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Wed, 21 Jun 2023 in Inter-Ação, Goiânia
Escola modelo, para quem? investimento discricionário e igualdade jurídica em questão
Resumo
O texto analisa a previsão legal da decisão política tomada por algumas administrações públicas quadrienais, quando embasam os programas de governo na área educacional apenas pelo investimento discricionário em escolas diferenciadas para poucos, privando boa parte dos alunos, em igual situação jurídica (matriculados na mesma rede ou sistema público de ensino), de uma educação qualificada. A discussão tem origem na observação da expansão ou avanço quantitativo de ações e políticas educacionais baseadas em escolasmodelo, experimentais ou projetos-piloto, trazendo a supervalorização da singularidade, aplicada a poucas escolas dentro de um mesmo sistema de ensino. O texto apresenta resultados de uma pesquisa de base documental jurídica, pautada por uma metodologia analítico-reconstrutiva, com o procedimento da análise de conteúdo e técnica da análise temática. O corpus de análise é constituído pelas principais leis que regulamentam a educação pública no Brasil enquanto direito universal e previsão de financiamento. Conclui-se que é possível indicar que experiências inovadoras, se não são contrárias à legislação vigente, também não colaboram para o fortalecimento de conceitos e práticas como equidade e igualdade na educação pública, na medida em que tratam de maneira diferenciada sujeitos em situação jurídica análoga, no que concerne ao acesso à educação de qualidade.
Main Text
Introdução
O binômio igualdade/desigualdade alimenta o debate educacional sob diferentes aspectos. Quando devemos garantir a igualdade? Quando nossas vicissitudes legitimam diferenças? Boaventura de Souza Santos nos dá importante pista conceituai sobre tal questão, quando aponta que:
[...] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades (SANTOS, 2003, p. 56, grifos nossos).
Inter-Ação, Goiânia, v.47, n.l, p. 1 71-183, jan./abr. 2022. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.5216/ia.v47i1.71426>.
No processo de escolarização formal, quando e o que implica o tratamento igualitário? A premissa da discussão, que ora se inicia, vai ao encontro dos resguardos legais sobre o tratamento igualitário a sujeitos em análoga situação jurídica, no caso, alunos de redes públicas de ensino, no que tange ao acesso à educação de qualidade, esse sentido cabe a provocação: escola pública de boa qualidade? Temos! Mas, para poucos... Escolas-Modelo, mas para quem?
Tal problematização tem sua origem na observação de um fenômeno reiterado: a expansão ou avanço quantitativo de ações e políticas educacionais baseadas na defesa, construção e propaganda de experiências exitosas, modelares ou inovadoras de escolarização pública, o que supervaloriza experimentos singulares aplicados a poucas escolas dentro de um sistema ou rede de ensino.
A contradição parece evidente e toma por base as escolhas do agente público, que privilegiam a qualidade para poucos (ou os alunos matriculados/selecionados/contemplados naquela/s escola/s diferenciadas) separando-os, dentro de uma mesma rede ou sistema de ensino, em escolas com propostas pedagógicas e/ou condições infraestruturais distintas. Assim, parece conflitante pautar a oferta da escola pública pela exceção para poucos e a (eventual) precarização para muitos.
A questão a ser problematizada não reside nas escolas-modelo, experimentais ou projetos-piloto, mas na distinção que tais escolas podem promover entre crianças e jovens que estão matriculados na mesma rede/sistema público de ensino, forjando uma desigualdade artificial e incentivada pelo poder público.
Para o presente texto traçamos, como objetivo, discutir, circunstancialmente, a decisão política tomada por algumas administrações públicas quadrienais que tendem a embasar seus programas de governo na área educacional pelo investimento discricionário em escolas diferenciadas para poucos. Daí a tese de que isso priva boa parte dos alunos em igual situação jurídica (matriculados na mesma rede ou sistema público de ensino) a uma educação “qualificada”. Com tal debate, intencionamos levantar argumentos sobre a legitimidade e pertinência do investimento discricionário do agente público, quando se faz, politicamente, esta escolha.
Metodologia
Apresentam-se aqui resultados de uma pesquisa de base documental pautada por uma metodologia analítico-reconstrutiva, cujo escopo incide sobre contribuições ao debate acerca do paradoxo constituído pela oferta de educação de qualidade diferenciada para sujeitos em igual condição jurídica, a partir dos recursos advindos da pesquisa científica. Os documentos foram examinados a partir da metodologia da análise de conteúdo, utilizando-se a técnica da análise temática, na qual o “[...] tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado, segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura” (BARDIN, 2007, p. 105).
A sustentação teórica para a pesquisa advém de uma revisão mínima de literatura. Há uma significativa quantidade de pesquisas que incursionam pelo debate do direito à educação, (CURY, 2002; CURY, 2008; FLACH, 2009; FREITAS, FERNANDES, 2011; MACHADO, GANZELI, 2018; ARAÚJO, CASSINI, 2017; ZUCHETTI, MOURA, 2017; RANIERI, ALVES, 2018); dentre outros que auxiliam na necessária reflexão sobre o direito à educação, contradições e entraves na materialização de tal direito em realidades concretas, como nas redes públicas de educação, principalmente na educação básica.
A pesquisa considerou um corpus de análise baseado em documentos jurídiconormativos que regulamentam a oferta da educação pública no Brasil, especificamente a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988); a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394/1996 (BRASIL, 1996); a Lei 11.494, de 20 de junho de 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB (BRASIL, 2007); as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, Resolução n° 4/2010 (BRASIL, 2010) e o Plano Nacional de Educação em vigência, a Lei 13.005/2014 (BRASIL, 2014).
A opção pelo exame legal parte da premissa de que:
A linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande função prática, que é emprestar uma força particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os outros a satisfação de novos carecimentos materiais e morais; mas ela se torna enganadora se obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivindicado e o direito reconhecido e protegido (BOBBIO, 1992, p. 10).
Assim, compreende-se que as legislações trabalhadas são históricas e contextuais. Portanto, não são “um produto acabado, mas um momento num processo de elaboração, com tudo o que isso comporta de contradições, de incoerências, de imperfeições” (BARDIN, 2007, p. 164). Por esta razão, as leis não dizem apenas o que está contido em suas linhas, requisitando, para sua interpretação, o olhar crítico do pesquisador, olhar de quem “[...] procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se debruça” (BARDIN, 2007, p. 38).
Examinou-se então, cada um dos documentos jurídico-normativos que compõem o quadro de análise, em busca de evidências (artigos, incisos, parágrafos etc.) que pudessem ajudar a tecer argumentos sobre a sustentabilidade da interpretação acerca do paradoxo evidenciado, na direção de uma composição argumentativa advinda da análise de conteúdo.
Por fim, cumpre informar que o texto apresentado faz parte dos resultados parciais de uma pesquisa que objetiva discutir a gestão da educação em redes e sistemas públicos de ensino, mapeando ações e opções do agente público na condução das políticas educacionais em destaque para tais redes e sistemas.
Sobre as interpretações dos textos legais
O fenômeno das escolas-modelo, também denominadas de projetos-piloto, experiências exitosas ou outras designações derivadas, evidencia um paradoxo na escolarização de massas: na impossibilidade do atendimento com qualidade a toda a demanda por educação básica, o gestor opta por programas de governo que encaminhem escolas-modelo como padrão de referência. Tais escolas - geralmente resumidas a projetos e iniciativas isoladas em um bairro ou cidade - transforma-se, muitas vezes, no “carro-chefe” da administração quadrienal que as encampa/promove, sendo divulgadas, propagandeadas, festejadas, enquanto todo o restante do sistema escolar é deixado de lado.
Isso se evidencia, por exemplo, quando crianças e jovens precisam realizar processos seletivos ou são submetidas a sorteios para a conquista de vagas em escolas públicas com uma “qualidade de referência”. Nesse processo já se tem um argumento suficientemente forte para questionar a escolha do gestor público, que opta pela oferta de uma escola de qualidade destacada para alguns, em detrimento da oferta de uma escola com o mínimo de qualidade para todos os alunos, e, ainda, seleciona os alunos que apresentam melhor desempenho para que ingressem nessas escolas, induzindo, no mínimo, a possibilidade de generalização do resultado, a uma falácia constituída de má-fé. Percebe-se que “[...] o direito à educação tem sido mitigado pelas desigualdades, [...] Isso inviabiliza a efetivação da [...] garantia de permanência e sucesso na escola com nível de qualidade equivalente para todos” (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2005, p. 13).
Na sequência, questiona-se os elementos jurídico-normativos apresentados nas principais legislações que regulamentam a educação nacional.
As soluções de qualidade apenas para alguns, apesar de ganharem espaço em algumas práticas e programas de governo, comprometem um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil disposto na CF/88, Art. 3º, IV, que é o de “promover o bem de todos, sem [...] formas de discriminação” (BRASIL, 1988). Desta forma, ao garantir que apenas alguns tenham acesso a escolas com experiências inovadoras ou exitosas - posto que não há expansão da experiência para toda a rede/sistema -, a administração pública faz uma escolha entre alunos (os que terão vagas), distinguindo iguais e, nisso, discriminando alguns em benefício de outros.
A qualidade para poucos expressa em experiências isoladas ou para alguns (sujeitos, bairros, municípios etc.), fere, ainda o que reza a CF/88, Art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]” (BRASIL, 1988). Sendo assim, em tese, todos os alunos de uma determinada rede ou sistema público de ensino deveriam ter acesso às escolas de igual qualidade, com iguais condições de permanência e êxito (insumos, infraestrutura, acessibilidade, projeto pedagógico, assistência estudantil, professores qualificados etc).
De outra forma - e pelo que se depreende no exame dos dispositivos legais -, o investimento de qualidade para poucos afeta também a CF/88, no que diz respeito ao Art. 206, cujos princípios zelam pela: “I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” e “VII - garantia de padrão de qualidade” (BRASIL, 1988).
Incluso na Constituição Federal, ainda temos o critério de financiamento do ensino público que coíbe a distinção entre sujeitos em uma mesma rede ou sistema de ensino, tal qual assegurado pelo § 3º do Art. 212, com redação dada pela Emenda Constitucional 59/2009:
Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. [...]
§ 3º A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere a universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação (Redação dada pela Emenda Constitucional n° 59, de 2009) (BRASIL, 1988, grifo nosso).
É lícito observar que este parágrafo é ainda mais enfático no que concerne à qualidade para todos, partindo do conceito de equidade que acompanha os dispositivos legais em epígrafe. Ora, se uma mesma rede ou sistema público de ensino assente com a distinção entre os alunos e a criação e fomento de escolas diferenciadas, quebram-se tais princípios constitucionais, uma vez que a qualidade seria diferenciada entre os alunos que conquistaram acesso às escolas-modelo e os alunos que garantiram vaga em escolas que não foram contempladas pela experiência.
Os princípios que conduzem o ensino, no Brasil são retomados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, especificamente no Art. 3º, incisos I e IX: “Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola [...]; IX - garantia de padrão de qualidade” (BRASIL, 1996).
No artigo seguinte da LDB, inclui-se a educação como direito do cidadão em seu acesso e um dever do Estado em atendê-lo, mediante oferta qualificada:
Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de [...] IX - padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem (BRASIL, 1996).
Todavia, é na questão do financiamento da educação que a LDB reafirma a equidade e lança um elemento importante ao debate, uma vez que assegura o critério da isonomia ante às ações públicas em relação ao sistema educacional.
Art. 74. A União, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, estabelecerá padrão mínimo de oportunidades educacionais para o ensino fundamental, baseado no cálculo do custo mínimo por aluno, capaz de assegurar ensino de qualidade. Art. 75. A ação supletiva e redistributiva da União e dos Estados será exercida de modo a corrigir, progressivamente, as disparidades de acesso e garantir o padrão mínimo de qualidade de ensino (BRASIL, 1996, grifo nosso).
Ainda o artigo 75 da LDB, em seu parágrafo 2º, indica que “a capacidade de atendimento de cada governo será definida pela razão entre os recursos de uso constitucionalmente obrigatório na manutenção e desenvolvimento do ensino e o custo anual do aluno, relativo ao padrão mínimo de qualidade” (BRASIL, 1996). Ou seja, a decisão de investimento é política, mas não deveria distanciar-se da regra: investimento obrigatório/custo do aluno (definido por lei, para todos os alunos), garantindo um padrão mínimo de qualidade.
A mesma lógica do financiamento, como um critério de igualdade e acesso, também pode ser localizado a partir da leitura dos dispositivos jurídicos contidos na lei 11.494, de 20 de junho de 2007, ou a lei que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB (BRASIL, 2007).
Não há, na lei do Fundeb, um fator de ponderação direcionado a experiências escolares diversas, modelares ou pilotos. O fator de ponderação e, portanto, de distribuição dos recursos leva em consideração o aluno da educação básica em suas diferentes etapas e em distintas modalidades (Art. 36, Lei 11.494/2007), se a escola está situada na zona urbana ou na zona rural, ou ainda se oferta escolarização em tempo parcial ou integral, diferenciando ainda a educação especial.
Assim, o critério redistributivo do Fundeb é suficientemente igualitário, levando em consideração situações diferenciais que são, de fato, individualizadas, por exemplo se o aluno está na educação infantil ou no ensino fundamental. Todavia, não faz distinção ou previsão de investimentos diferenciados dentro do mesmo critério de ponderação e em relação a alunos em situação paralela.
Também, no campo dos documentos normatizadores da educação nacional, temos a Resolução n° 4, de 13 de julho de 2010, que define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. A Resolução em tela ratifica os princípios endereçados à educação nacional e destacados anteriormente na CF e na LDB:
Art. 4º As bases que dão sustentação ao projeto nacional de educação responsabilizam o poder público, a família, a sociedade e a escola pela garantia a todos os educandos de um ensino ministrado de acordo com os princípios de: I - igualdade de condições para o acesso, inclusão, permanência e sucesso na escola; [...] IX - garantia de padrão de qualidade (BRASIL, 2010).
A resolução afirma, de maneira mais diretiva, que o regime de colaboração entre os entes federados deve “vencer a fragmentação das políticas públicas e superar a desarticulação institucional (Art. 7º, BRASIL, 2010).
No intento de vencer a fragmentação e a desarticulação, a Resolução assinala o conceito de sistema de ensino: “O que caracteriza um sistema é a atividade intencional e organicamente concebida, que se justifica pela realização de atividades voltadas para as mesmas finalidades ou para a concretização dos mesmos objetivos (Art. 7º, § 2, BRASIL, 2010). Assim, separar, diferenciar, distinguir, individualizar, desarticular, selecionar não seriam verbos adequados de acordo com um sistema de ensino efetivamente preocupado com a igualdade e a universalização do direito à educação.
Insiste a resolução que a qualidade, na educação, é uma conquista coletiva colocando-se, portanto, de forma antagônica a uma qualidade para poucos, sobretudo se os poucos forem alunos de uma mesma rede de ensino onde há outros tantos em igual condição e direito (Art. 8º, BRASIL, 2010).
A legislação não coíbe, tampouco desestimula experiências diferenciadas e contextualizadas. Mas, em momento algum, indica que certos alunos devem ter acesso a um tipo de escola, enquanto outros devem ter acesso a outro tipo de escola, dentro da mesma rede. Tampouco há previsão legal para que esta decisão discriminatória possa ser tomada no âmbito discricionário dos gestores e agentes públicos.
A mesma tônica de superação das desigualdades encharca o Plano Nacional de Educação - Lei 13.005/2014 (BRASIL, 2014). O PNE apresenta como uma de suas diretrizes a “[...] superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação (Art. 2º, inciso III. BRASIL, 2014). Na sequência, indica para a “IV - melhoria da qualidade da educação” (Art. 2º. BRASIL, 2014), mas não explicita sobre tal qualidade, permitindo a interpretação cominada com as demais legislações vigentes, de que o endereço dessa diretriz é coletivo e não individualizado.
Todavia, o Plano Nacional de Educação prevê modelos de atendimento diferenciado em casos específicos e necessários, como o desenvolvimento de formas alternativas de oferta do ensino médio em face ao atendimento de filhos e filhas de profissionais itinerantes (estratégia 3.12); ou em razão do atendimento à população do campo (estratégia 7.14); ou ainda, o apoio a projetos inovadores na educação de jovens e adultos, em razão das necessidades específicas desses alunos (estratégia 9.9). Porém, tais diferenciações são necessárias, sobretudo em relação aos contextos diferenciados e específicos apontados nas estratégias mencionadas, seriam situação em que se justifica a chamada discriminação positiva, visando atender aos desiguais na medida das suas desigualdades, que não é o caso da problemática levantada em questão.
Acerca do debate necessário
Mas com tantos indicativos expressos na legislação educacional, por qual razão grassam iniciativas que separam sujeitos em igual situação jurídica e tal separação é considerada legítima - e mesmo festejada -, como ação política? A resposta parece figurar na seguinte questão:
No Brasil, a constituição do direito à educação nos textos legais, especialmente no que diz respeito à gratuidade e à obrigatoriedade, é marcada por uma trajetória sinuosa e errática que alterna avanços e retrocessos, refletindo as transformações sociais, políticas e econômicas do país (MACHADO; GANZELI, 2018, p. 52).
Assim, problematizar as possíveis contradições encontradas em políticas educacionais que objetivam materializar este direito, faz-se mister como subsídio para o avanço e qualificação do direito à educação enquanto construção histórica e social.
Portanto, partimos da proposição de acordo com a qual as experiências de “escolas-modelo”, “escolas-piloto” ou outras denominações, mas que mantém a lógica de organização e objetivos, dentro da mesma rede ou sistema público de ensino, fomentam a desigualdade. Trata-se da desigualdade escolar reforçada pelo Estado, pelos mecanismos e ações de gestão da educação que deveriam, em tese, combatê-la.
Desta feita, parece que a institucionalização de diferenciações - pela ausência de condições do agente público em realizar uma oferta equânime ou pela falta de vontade política em fazê-lo -, não soma à redução das desigualdades, pelo contrário, torna-as legítimas.
A contraposição às desigualdades passa pela compreensão dos seus contextos de nascedouro e da necessidade que temos em desvelá-los e problematizá-los, pois, “os direitos nascem e se desenvolvem, não por nossa disponibilidade pedagógica, mas essencialmente por conjunturas históricas de formações sociais concretamente dadas” (BOTO, 2005, p. 779).
Em tal direção, a perspectiva de benefício e concessão pode encontrar guarida em programas de “qualidade diferenciada”. Assim, a distinção entre iguais pode servir para reforçar mecanismos de fisiologismo político, favores e doações, contrários aos princípios democráticos e isonômicos, que deveriam encharcar a escola pública.
Uma velha tradição conformista nos faz ver e crer que o que se destina aos pobres convive com a precariedade e a provisoriedade permanentes; que o governo e o próprio Estado Brasileiro que o engloba, explora o jogo do terror e do favor, não só resvalando - como uma assiduidade espantosa para os arbítrios ditatoriais -, mas espalhando favores segundo as oscilações de seus interesses eleitoreiros e suas barganhas calculadas (LINHARES, 2007, p. 142).
Isto porque, em geral, os modelos exitosos são oriundos e embasados: a) em experiências internacionais; b) em promessas de campanhas eleitorais e planos de governo (cujo compromisso anterior à eleição aventou para a instalação de uma ou mais escolas diferenciadas) e, c) em parcerias público-privadas e convênios. Em qualquer origem, as escolas diferenciadas recebem atenção e são alvo de propagandas por parte das administrações que as encampam.
Mas, o desafio não é desconstruir as (boas) ideias e práticas do gestor, seja em sua desenvoltura para o trato com experiências internacionais; nas promessas de campanha; e ou nas parcerias que ele pode adotar. O desafio é incentivar o gestor público a adquirir/desenvolver a habilidade política e técnica para levar a toda a rede de escolas sob sua gestão um programa de governo que não segregue ou separe os iguais, uma vez que:
A disseminação e a universalização da educação escolar de qualidade como um direito da cidadania são o pressuposto civil de uma cidadania universal e parte daquilo que um dia Kant considerou como uma das condições “da paz perpétua”: o caráter verdadeiramente republicano dos Estados que garantem este direito de liberdade e de igualdade para todos (CURY, 2002, p. 261-262).
A provocação é instar que o gestor, caso opte por um programa de escolarização inovador ou diferenciado, tenha condições de ofertá-lo a toda a população, sem escolher bairros e escolas, sob pena de incorrer em práticas de distinção, pouco afetas ao princípio da equidade jurídica, entre sujeitos iguais, uma vez que grande parte da escola pública no Brasil tem sido assinalada “pela exclusão, seletividade, iniquidade, ineficácia, ineficiência e baixa efetividade” (FREITAS, 2008, p. 41).
Convém ressaltar que, quando discutimos critérios de discriminação entre sujeitos em condição jurídica análoga, não estamos nos colocando contra uns, mas a favor de todos, pois:
Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados (BOBBIO, 1992, p. 25).
Propor organizações pedagógicas dinâmicas, contextualizadas, diversificadas e inovadoras não é, de forma alguma, um problema. Todavia, quando tais organizações são isoladas e restritas a alguns sujeitos e por critérios, como bairro de residência ou escola de matrícula, não temos um projeto diferenciado, mas um ato discricionário contrário à isonomia entre pares.
Além do mais, ao privilegiar o uso de escolas-modelo, projetos-piloto, experiências exitosas, alternativas de organização pedagógica restritas a uma ou poucas escolas, o gestor parece indicar que não tem condições logísticas, políticas, pedagógicas ou financeiras de estender aquela boa ideia a toda a rede sob sua gestão.
Conclusões
Tomando por base interpretativa a análise de conteúdo dos dispositivos jurídico-normativos que embasam o ensino público no Brasil, podemos afirmar que não há um respaldo legal visível para a distinção/diferenciação entre sujeitos em situação jurídica análoga, no que concerne ao acesso à educação de qualidade referenciada. Portanto, experiências inovadoras, modelares, piloto, se não são contrárias à legislação educacional vigente, também não colaboram para o fortalecimento de conceitos e práticas como equidade e igualdade na educação básica pública.
Assim, o fenômeno das escolas-modelo, experiências inovadoras ou projetospiloto, falha ao tomar como pauta a escola de massas, partindo da premissa paradoxal da qualidade, mas para poucos, já que é difícil e oneroso garantir o mesmo padrão de qualidade para todos.
É lícito afirmar que o gestor público tem ideias e projetos importantes para melhorar a qualidade da escola pública brasileira. O que ele não tem é dinheiro, vontade política e/ou condições estruturais de estender essa qualidade a todas as escolas da rede/sistema de ensino, incorrendo na qualidade para poucos ou na distinção entre os (supostamente) iguais.
Como conclusão, ainda se reforçam os questionamentos sobre o alcance de tais experiências, conduzidos pelas seguintes reflexões: Será que estamos desistindo de pensar em ações horizontais e coletivas para a qualidade da escola de massas e nos concentrando excessivamente na busca por “modelos” aplicáveis, mas não generalizáveis? Podemos aceitar a qualidade da escola pública para poucos? Que experiências o gestor público pode apresentar e que sejam aplicadas a escolas de massas? Ou vamos nos voltar para experiências singulares e incapazes de estenderemse a um grande contingente de escolas, separando os mais iguais dentre os iguais? Fica o desafio para aprofundar a reflexão e a provocação para se pensar ações legais e políticas efetivamente promotoras de justiça social e não meramente discursivas ou de justiça seletiva.
Resumo
Main Text
Introdução
Metodologia
Sobre as interpretações dos textos legais
Acerca do debate necessário
Conclusões