in Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica
O processo de canonização de João Cabral em Portugal
Resumo
Este artigo, apresentado originalmente como conferência a um público estrangeiro,acompanha o processo de canonização do poeta brasileiro João Cabral de Melo Netoem Portugal. Para isso, recupera parte significativa da recepção críticaportuguesa de Cabral e levanta outras informações que ajudam a entender a suainstitucionalização nos anos 1960. Por fim, lembra críticos contemporâneos dapoesia cabralina e indaga sobre a recepção futura dessa poesia considerando oatual contexto de ensino da literatura brasileira em Portugal.
Main Text
Minha proposta é falar sobre um poeta que ocupa, ao lado de Manuel Bandeira e CarlosDrummond de Andrade, o coração do cânone da poesia brasileira. Isso pode sersignificativo em termos de Brasil, mas não o é quando se tem em mira o chamado cânoneocidental. Nesse patrimônio de palavras, que os brasileiros também reivindicamos comonosso, a literatura brasileira ainda ocupa, quando ocupa, um lugar bastante acanhado.Por isso, acompanhando algumas listagens canônicas de obras representativas daliteratura ocidental, experimentamos, muitas vezes, a estranha sensação de que talvez osbrasileiros não sejamos ocidentais. Outras vezes somos tomados por uma grande satisfaçãoao descobrir, numa obra crítica estrangeira de maior abrangência e penetração, apresença de um Machado de Assis ou de um Drummond. Lembro-me, nesse sentido, do meuentusiasmo e do entusiasmo dos meus colegas de doutorado quando, em 1996, lemos a versãoem espanhol de La verdad de la poesía, de Michael Hamburguer, edescobrimos que o autor, ainda nos anos 60, havia lido, e bem, Carlos Drummond deAndrade.
Atendo-me, entretanto, ao sujeito da minha fala, tratarei do processo de canonização deJoão Cabral de Melo Neto em Portugal, o que se cumpre num momento de diálogo fecundoentre a intelectualidade portuguesa e a brasileira e com resultados que só beneficiaramas literaturas dos dois países.
Ainda que um cânone literário se componha de livros, ele se constrói a partir da leituradesses livros. Assim, a história da canonização de um escritor é também a história dasleituras da obra desse escritor, é sobretudo a história de como essa obra foi lida peloscríticos especialistas e pelos escritores-críticos. Nesse sentido, a narrativa sobre oreconhecimento de João Cabral pela crítica portuguesa poderia começar com a recuperaçãode um artigo de Vitorino Nemésio sobre O engenheiro2 [1945], publicado no Diário popular de Lisboa,em 1949, sob o título "Poesia 'engenhosa'".
Quando saiu a crítica de Nemésio, Cabral já havia publicado Psicologia daoperandi, mas o crítico não demonstra ter conhecimento dessa obra, talvezaté em função de seus exemplares limitados, feitos pelo próprio poeta em sua prensamanual, com o selo editorial O Livro Inconsútil. No artigo, Nemésio (1949, p. 5) diztratar "de um poeta estreado em 1941 e que conta, até a presente recolha de poemas, trêslivros". Mas ele se refere, ao que tudo indica, ao ensaio Considerações sobre opoeta dormindo, de 1941, e a Pedra do sono, de 1942, dadosque acompanham a informação sobre o autor na primeira edição de Oengenheiro.
Segundo Nemésio (1949), o sistema poético"engenhoso" de Cabral é fruto da engenharia triunfante dos tempos modernos,personificada no heterônimo engenheiro de Fernando Pessoa. Situando Cabral em um momentode acalmia no contexto de "desculturalização" e "desumanização" das vanguardas, dizNemésio (1949, p. 5) que quanto mais ouniverso que cerca o poeta "é mecanizado e utilitário, mais ele o tenta transfigurarpelo sonho, criando uma expressão que desafia a subtileza dos hermeneutas de tipológico". A ênfase do crítico na dimensão onírica do livro talvez soe estranha a leitoresde hoje, acostumados a ler em O engenheiro um momento decisivo deafirmação da lucidez. Mas, como já notou, na década de 60, José Guilherme Merquior (1972), a consolidação do apego à criaçãolúcida não implica, nesse livro, uma desvalorização automática do sonho, matriz demuitos poemas. Nemésio fecha o artigo situando o lirismo "intemporal e incondicionadopor região ou lugar" de Cabral - e assim o é, efetivamente, até a publicação deO cão sem plumas [1950] - entre poetas autenticamente líricos comoCecília Meireles, Murilo Mendes, Ribeiro Couto e Jorge de Lima. Situar Cabral entreesses nomes então já reconhecidos, mais do que identificar-lhe uma família, a que,apesar da influência inicial de Murilo Mendes, o poeta iniciante já não pertence, é ummodo de anunciar-lhe auspiciosamente um lugar no panorama da poesia contemporânea deentão.
Vitorino Nemésio, o primeiro crítico português de Cabral, foi também romancista, poeta eum prestigioso professor, tendo sido, inclusive, o primeiro a lecionar LiteraturaBrasileira na Universidade de Lisboa quando da criação da disciplina em 1957. Assimsendo, a história da recepção de Cabral em Portugal principia com um nome deimportância, sempre atento à produção literária brasileira.
Depois desse artigo de Nemésio, ao longo dos anos 50, tem-se notícia de apenas umapublicação exclusiva sobre o poeta. Trata-se do artigo "A poesia, essa estranhainvenção", de autoria de João Gaspar Simões, publicadona revista A manhã, do Rio de Janeiro, em novembro de 1950.Nesse artigo, o crítico nota que Cabral transformou em lei o mandamento da modernidadede que o poeta deve fazer dos seus versos uma estranha invenção da própria poesia.Segundo o crítico, o título das obras de Cabral, de Considerações sobre o poetadormindo a O cão sem plumas, "é um gráfico da própriamarcha cem por cento autoconsciente da sua poesia no sentido de uma fabricação integralde 'vazio'" (SIMÕES, 1950, p. 1). Nessaperspectiva, O engenheiro ainda apresentaria o poeta como fazedor,criador dos seus versos. Já Psicologia da composição representaria oponto culminante rumo ao vazio, ao não fazer, enfim, à invenção da própria poesia. Se ocrítico nota bem o momento de impasse representado por Psicologia dacomposição, não percebe, entretanto, a abertura processada em O cãosem plumas à impura e prosaica realidade exterior, pois, segundo ele, nesselivro, Cabral atinge a ambição da poesia pura.
Malgrado esse equívoco, esse artigo de Gaspar Simões representa um acontecimento digno denota na recepção de Cabral porque constitui o reconhecimento do poeta, em um veículo daentão capital brasileira, por parte de um crítico português considerado tanto no Brasilquanto em Portugal. Gaspar Simões se debruça sobre três importantes obras da trajetóriade Cabral, apesar de elas terem tido uma tiragem bastante limitada. No caso dos livrosde 1947 e 1950, estes foram impressos pelo próprio autor, ficando sua distribuiçãorestrita sobretudo aos contatos do impressor e aos de alguns amigos.
A década em que Gaspar Simões publicou o seu artigo representa um momento importante nanarrativa sobre a canonização de Cabral em Portugal porque nela se estreitaram suasrelações com intelectuais desse país. Cabral conta que, entre 1950 e 1952, quando serviaao Consulado Geral em Londres, conheceu João Gaspar Simões e ficaram "bons camaradas"(MELO NETO, 1985 apud ATHAYDE, 1998, p. 140). Esseconhecimento pode ter sido o ponto de partida para o artigo atrás mencionado e paraoutros três que o crítico publicou na década seguinte. Ainda na Inglaterra, conheceutambém Rubem Leitão, de quem ficou muito amigo e que lhe deu a ler "uma porção de poetasportugueses interessantes". Entre esses poetas estava Sophia de Mello Breyner Andresen,de quem se tornaria amigo e era, para ele, "o grande poeta" da sua geração em Portugal.Na casa de Sophia, conheceu muita "gente de primeira qualidade", como Alexandre O'Neille Alexandre Pinheiro Torres, os responsáveis pela publicação de seus Poemasescolhidos pela Editora Portugália, seleta que terá um papel chave nadifusão portuguesa do poeta. Antes da ida para Londres, ainda em Barcelona, seu primeiroposto diplomático, Cabral travou, entre 1949 e 1950, uma assídua correspondência com opoeta português Alberto de Serpa, com quem publicou o único número da revista de poesiaO cavalo de todas as cores3.Numa das cartas, datada de 19 de agosto 1950, pede ao amigo uma relação de confradesportugueses aos quais quer mandar O cão sem plumas: "gostaria que v. memandasse nomes e endereços de alguns poetas e críticos portugueses capazes de seinteressar pelo meu livro". A justificativa para o pedido é a desatualização da sualista: "a lista que eu tenho me foi dada há muitos anos, no Recife, pelo Manuel Anselmo.Mas desconfio que alguns já morreram e que muitos são desinteressantes". Essa informaçãomerece destaque porque revela um desejo de Cabral de estabelecer uma interlocução comcriadores e críticos portugueses, de ser lido e reconhecido em Portugal.
O poeta estava certo porque os contatos estabelecidos nos anos 50 tiveram desdobramentos,os quais, aliados a outros acontecimentos, confluíram para o boom dasua recepção crítica nos anos 60. Nesse período, um número expressivo de resenhas eartigos assinados por leitores abalizados, como Óscar Lopes (1963, 1966, 1968), Eduardo Prado Coelho (1963, 1967), João GasparSimões (1960, 1964a, 1964b), Arnaldo Saraiva(1966, 1967), entre outros, comprova oreconhecimento da crítica portuguesa à obra daquele que é um dos maiores e maisoriginais poetas brasileiros de todos os tempos.
Uma das razões a concorrer para esse boom é a publicação de obras deCabral por editoras portuguesas, o que torna sua poesia mais acessível ao leitor do paíse dá ensejo a um número expressivo de resenhas.
Em 1960, Quaderna é publicado pela Guimarães Editores, saindo só no anoseguinte no Brasil em Terceira feira. Arnaldo Saraiva (2014), hojeprofessor emérito da Universidade do Porto, conta que, conhecendo três ou quatro poemasde Cabral, tomou consciência do que a sua poesia representava com o livro de 1960: "sóme dei conta de que se tratava de um poeta de excepção quando, em 1960, caloiro naFaculdade Letras de Lisboa, pude ler Quaderna, que acabara de sair emprimeira edição na capital portuguesa" (SARAIVA,2014, p. 95). Enquanto o então jovem estudante de Letras Arnaldo Saraivadescobre a excepcionalidade da poesia cabralina, o maduro crítico João Gaspar Simões(1960, p. 15) publica uma resenha no Diário de Notícias, de Lisboa, emque contempla Quaderna ao lado de Tempo espanhol, deMurilo Mendes, e principia destacando o empreendimento editorial português que convidabrasileiros para figurarem ao lado de portugueses no inventário da "moderna poesianacional".
Três anos depois de Quaderna, a Editora Portugália publica os járeferidos Poemas escolhidos. A seleção dos poemas foi feita porAlexandre O'Neill e o prefácio, assinado por Alexandre Pinheiro Torres. A publicação daseleta motivou um número considerável de resenhas bastante favoráveis, dos quais valecitar as palavras com que Óscar Lopes abre sua recensão por serem elas exemplares dovivo entusiasmo causado pela poesia cabralina entre críticos portugueses:
Além das publicações de Quaderna e dos Poemasescolhidos, um outro fator que contribuiu sobremaneira para a projeção deCabral em Portugal foram as apresentações teatrais do poema dramático Morte evida severina, realizadas pelo TUCA, grupo de Teatro da UniversidadeCatólica de São Paulo. Em 1966, o TUCA recebeu, pela montagem do poema Morte evida severina, musicado por Chico Buarque, o prêmio de crítica e público noIV Festival de Teatro Universitário de Nancy, na França. EsseFestival também premiou Cabral como o Melhor Autor Vivo. Após o Festival, o TUCArealizou apresentações em Lisboa, Porto e Coimbra. As encenações repercutiram como umverdadeiro acontecimento. Periódicos diversos publicaram artigos sobre o espetáculo. Asrevistas Seara nova, de Lisboa, e Plano, do Porto,organizaram dossiês com depoimentos e artigos, nos quais é evidente o impacto positivocausado pela representação. Se é verdade que esse impacto foi devido não somente aotexto encenado, mas à realização do espetáculo em si, com os atores, o cenário e amúsica de Chico Buarque, não se pode deixar de considerar que o acontecimento teatralpôs em evidência, para o público português, o poema Morte e vidaseverina, de um modo particular, e a poesia de Cabral, de um modogeral.
Uma terceira explicação para a recepção fortemente favorável à poesia de Cabral nos anos60 parece estar ligada ao fato de o poeta fornecer uma realização esteticamente válidapara uma questão que estava a incomodar artistas e críticos portugueses, pelo menos apartir do Neorrealismo, ou seja, o compromisso social explícito da literatura; questãoque nem sempre encontrou as soluções poéticas mais felizes. No contexto do salazarismo,as atividades crítica e literária implicavam uma tomada de partido, um gesto deresistência. Cabral, ao realizar uma poesia que é, a partir de O cão semplumas, simultaneamente, uma mimesis produtiva de uma dadarealidade social e uma crítica da própria linguagem de representação, uma poesia queincorpora, na própria linguagem de menos, uma realidade subtraída, representava umasolução exemplar para a questão da literatura empenhada4. Provavelmente por isso conseguiu ser apreciado por leitores tão diversos,como o presencista João Gaspar Simões e o crítico do Neorrealismo Alexandre PinheiroTorres.
A capacidade da poesia cabralina de atender às expectativas de leitores de orientaçõescríticas diversas é vista com perspicácia por Eduardo Prado Coelho numa resenha aos Poemas escolhidos, publicada naSeara nova em 1963. Prado Coelho diz que o poetabrasileiro "defende, nos seus próprios versos, uma estética realista" (COELHO, 1963, p. 227), a qual ressalta com nitidezque realismo não se confunde, como acontece, segundo o crítico, em demasia no Portugalde então, com uma poesia bem intencionada, de exaltada revolta social, mas implica oencontro de uma expressão estética adequada. Não se limitando ao plano das intenções, orealismo de Cabral é, segundo o autor citando Roland Barthes, ao mesmo tempo ideológicoe semiológico, ou seja, um realismo que parte da própria linguagem. Prado Coelho dizque, desse modo, a obra do poeta constitui uma resposta à contradição há temposenunciada por Mário Dionísio (apud COELHO, 1963,p. 227), segundo a qual o grande problema literário e artístico do realismo daquelesdias "refere-se precisamente à contradição inevitável que consiste em ser ele, de raiz,antiarte de vanguarda, e não ser possível no mundo de hoje [...] criar qualquer arteautêntica e portanto renovadora que não passe por uma atitude de vanguarda". SegundoPrado Coelho, Cabral, ao criar um realismo que é ao mesmo tempo ideológico esemiológico, supera essa contradição dialética, criando uma poesia que agrada arealistas e vanguardista.
Apreciado por críticos e criadores de tendências distintas e até discordantes, sucessojunto a um público mais horizontal por meio das encenações de Morte e vidaseverina, publicado por editoras portuguesas, enfim, legitimado naterrinha, quando Cabral publica, no Brasil, A educação pela pedra, em1966, o livro, pela ordem de dificuldade que impõe, não alcança, em Portugal, um públicotão amplo quanto o auto de Natal, mas é rapidamente resenhado por leitoresespecialistas, entre os quais Arnaldo Saraiva (1967), Eduardo Prado Coelho (1967) eÓscar Lopes (1968).
Mas a história da canonização de Cabral em Portugal, que se cumpre nos anos 60,concomitante à institucionalização do poeta no Brasil, não estaria completa sedesconsiderasse o papel nela exercido por outros poetas, os quais leram Cabral sobretudopor meio de poemas críticos5. Os bons poetas, quesão normalmente bons leitores de outros poetas e, por conseguinte, críticos perspicazes,costumam exercer um papel significativo tanto na canonização de um escritor quanto narevisão do cânone. São sobretudo os poetas-críticos que imprimem uma vitalidade muitogrande ao cânone poético, seja por revelarem um talento novo, seja por inserirem natradição nomes negligenciados em que descobrem valores fundamentais para a compreensãode uma contemporaneidade estética e histórica.
Vários poetas portugueses escreveram poemas críticos sobre Cabral, entre os quais Sophiade Mello Breyner Andresen, Alexandre O'Neill, Armando Silva Carvalho, Jorge de Sena eManuel Alegre. Entre todos, vale destacar, pela importância que tiveram na recepção dopoeta brasileiro, Sophia Andresen e Alexandre O'Neill.
Cabral, como já referido, era amigo de Sophia e a considerava "o grande poeta" portuguêsde sua geração (1985 apud ATHAYDE, 1998, p. 140).A ela escreveu um elogio poético publicado em A educação pela pedra(MELO NETO, 2008, p. 113) e a evoca ainda em Auto do frade [1984](MELO NETO, 2008, p. 447).
Sophia, por sua vez e antes de Cabral, provavelmente motivada pela edição portuguesa deQuaderna e tendo lido a poesia reunida do autor saída emDuas águas [1956], publicou, em 1960, na revista católicaEncontro, um artigo que evidencia o deslumbramento nela exercidopela obra do poeta brasileiro6. No artigo, destacaaspectos hoje canônicos na descrição da poesia cabralina: o voluntarismo, a consciência,a arquitetura poética, a ausência de concessões ao público, a opção pelo difícil, alinguagem seca e certeira, a economia de meios, a perfeição calculada, o gosto da ascesee a necessidade do concreto.
Cabral continuará sendo lido por Sophia, de outro modo, em O CristoCigano, livro que foi motivado pela lenda do Cristo Cachorro que o poetateria contado a ela numa igreja de Triana, bairro cigano de Sevilha. O CristoCigano saiu em 1961, com uma dedicatória em verso a Cabral, o qual não sócontou a lenda que sustenta o fio narrativo do livro, mas parece ter influenciado a suaprópria fatura. Segundo Maria Andresen Tavares (2014, p.9), filha da poetisa, a mãe teria arredado esse livro deliberadamente de suaobra por um certo período por considerálo um objeto estranho na sua poesia em função da"fortíssima influência que nele sentia da poesia de João Cabral de Melo Neto".
O Cristo Cigano merece destaque não pelo fato de a lenda contada porCabral estar na gênese do livro, mas porque é exemplar de um outro modo de recepção dopoeta brasileiro em Portugal, que é por meio da influência sobre outros criadores.Alexandre Pinheiro Torres (1984) escreve ter sidoMorte e vida severina uma das mais poderosas influências na poesiaportuguesa dos anos 60. João Gaspar Simões, por sua vez, defende que Cabral é mestre dospoetas jovens em função do seu construtivismo e não da despoetização da realidade e queo realismo cabralino, ao transparecer na obra de poetas portugueses jovens, se convertenuma espécie de mero exercício poético, em que no lugar de antipoesia tem-se apoesia(SIMÕES, 1964a). Foge ao propósito deste trabalho desenvolver como se opera a influênciade Cabral entre criadores portugueses, mas apenas constatá-la como parte importante doprocesso de canonização do poeta.
Sophia continuará lendo Cabral, como quem persegue uma obsessão leitora ou uma paixãopoética ainda não enunciada devidamente. Em 1989, 28 anos após a primeira ediçãod'O Cristo Cigano, ela publica no livro Ilhas umpoema sob o título "Dedicatória da terceira edição do Cristo Cigano aJoão Cabral de Melo", a leitura crítica mais perspicaz que ela realiza do poetabrasileiro. Sophia parece ter precisado de anos para ver com exatidão a poesia do amigo,para realizar aquela que seria sua leitura definitiva do poeta. Se Cabral é e se querlido como o poeta da imanênia, da visão exata e da artesania do verso, no novo poema,Sophia, sem desconsiderar esses elementos, acrescenta a esse retrato apolínio o quepertence ao reino de Dionísio, o que nasce do domínio técnico, mas está além dele, ouseja, a paixão da linguagem. Com isso, une o que Cabral se esforçou por separar comopoeta e como crítico de si, como se pode ler nas estrofes finais do poema, em que areconsideração do poeta brasileiro engloba também seu precursor português Cesário Verde:"Mas sua arte não é só/ Olhar certo e oficina/ E nele como em Cesário/ Algo às vezes sealucina/ Pois há nessa tão exacta /Fidelidade à imanência/ Secretas luas ferozes/Quebrando sóis de evidência" (ANDRESEN, 2011, p.757-758).
Esse poema crítico de Sophia é significativo porque Cabral, sempre o primeiro leitor delemesmo, como todo grande criador, terminou estabelecendo o modo de a sua poesia ser lida.Esse modo de ler foi seguido pela crítica, inclusive pela própria Sophia no artigo de1960, e terminou por se transformar, pela força da repetição, em verdadeiros truísmos,os quais, se não são inexatos, não dão conta das tensões que estão na base da poesia doautor. Nesse sentido, esse poema de Sophia é precursor de leituras mais recentes dapoesia cabralina, publicadas tanto em Portugal quanto no Brasil, sobretudo, a partir dofinal dos anos 1990, em que se procura problematizar os lugarescomuns recorridos paracaracterizar essa poesia. Entre essas leituras, ao menos sobre uma, Sophia parece terexercido uma influência mais direta, que é a tese de Maria Andresen Tavares (1998), intitulada Stevens, Ponge,João Cabral: entre as coisas e as palavras. Poesia epensamento. Analisando os autores eleitos separadamente, mas pelo viéscomum da poesia das coisas, a maior contribuição da tese para os estudos cabralinosparece residir no fato de ela insistir nas tensões que estão na base da poesia do autor:"Qualquer definição afirmativa desta poesia requer um mas que, se não adenega, pelo menos faz emergir uma tensão" (TAVARES,1998, p. 251)7.
Sophia teve ainda um papel importante na recepção de Cabral em Portugal porque na casadela ele conheceu outros críticos e criadores que também se tornaram leitores de suapoesia, como é o caso de Alexandre O'Neill.
O'Neill publicou, no livro Abandono vigiado, de 1960, uma "Saudação aJoão Cabral de Melo Neto". Essa saudação constitui a primeira leitura crítica portuguesaem verso do poeta brasileiro e é, ao lado da "Dedicatória à terceira edição do CristoCigano", o poema crítico português mais perspicaz sobre a obra de Cabral.
A "Saudação a João Cabral de Melo Neto" compõe um ensaio construído de modo bastanteorganizado sobre o estilo do poeta brasileiro.
O argumento de leitura do poema-ensaio é o prasaísmo da poesia cabralina, que encontra emCesário Verde o seu antecedente: "mas de prosaico não foi chamado/ o nosso CesárioVerde?". O'Neill limpa o termo de sentidos pejorativos (não o "que em verso é incapaz doverso", ou seja, o que, escrevendo em verso, não faz poesia; não a poesia panfletária) eexplica os significados assumidos por ele, entre os quais "matemático", "o nãoenfático", "o que é a palo seco", caracterizadores recorrentes doestilo cabralino. Mas ao fim desse poema que incorpora, em sua fatura, o próprio estiloprosaico do retratado, valorizando-o, O'Neill faz questão de sublinhar as diferençasentre a poesia de Cabral e a dele, advertindo, entretanto, no final do poema, que issonão é motivo para não o saudar:
Digno de destaque é esse gesto de O'Neill, porque os poetas, de um modo geral, nãocostumam ser capazes de uma compreensão crítica em relação àqueles com quem não seidentificam. Inclua-se aí o próprio Cabral, que, não obstante diga estar O'Neill entreos poetas portugueses da sua idade que mais o interessam e a ele tenha dedicado oantológico "Catar feijão", sobre ele não escreveu um poema crítico, como o fez paracriadores verdadeiramente de sua predileção.
Mas O'Neill, acima das diferenças poéticas, soube ler, admirar e descrever poeticamente oestilo de Cabral. Além disso, foi um dos maiores responsáveis pela divulgação de suaobra em Portugal, ao realizar a seleção dos textos que figuram nos Poemasescolhidos, antologia que teve, como já sublinhado, um papel fundamental noprocesso de difusão e reconhecimento da poesia cabralina na década de 60.
Do boom dos anos 60 à atualidade, registra-se uma crítica regular esistemática sobre Cabral em Portugal, atestando que ele ainda continua uma tradiçãoviva. Entre 1988 e 2005, foram defendidos 4 trabalhos acadêmicos, entre dissertações eteses, sobre o poeta8. Entre os críticosportugueses contemporâneos da poesia cabralina, além do veterano Arnaldo Saraiva, quepublicou em 2014 um livro sobre o poeta reunindo trabalhos éditos e inéditos,destacam-se nomes como Rosa Maria Martelo, Abel Barros Baptista, Maria Andresen Tavares,Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Carlos Mendes de Sousa.
Vale registrar que em 1986, Cabral teve sua poesia até então completa publicada pelaImprensa Nacional, Casa da Moeda e, em 1990, recebeu o Prêmio Luís de Camões, dois fatosque confirmam a reverência portuguesa ao poeta brasileiro.
Depois da morte do poeta, em 2000, a Colóquio/Letras consagrou-lhe umdossiê em que reúne documentos e artigos assinados por críticos de diferentes países,mas, sobretudo, portugueses e brasileiros, e constitui uma importante referência noâmbito dos estudos cabralinos.
Vale mencionar ainda uma edição de A educação pela pedra saída em 2006pela Cotovia. Seguindo a composição gráfica da primeira edição do livro de 669 e com posfácio de Carlos Mendes de Sousa, apublicação integra a coleção Curso Breve de Literatura Brasileira, dirigida pelocrítico, professor e investigador da Literatura Brasileira Abel Barros Baptista.
As relações de Cabral com críticos e poetas portugueses, sua canonização e projeção emPortugal, é fruto de um diálogo salutar entre esses dois países; diálogo para o qualcontribuiu o ensino da literatura brasileira nas universidades portuguesas. Nessesentido, pode ser que Cabral e a tradição brasileira, que é também uma tradiçãohistórica e esteticamente importante para os portugueses, sofram as consequências dareformulação do ensino em Portugal e na Europa.
Se o cânone implica a existência de leitores e para eles existe, a sua sobrevivênciadepende também de sua manutenção nos currículos escolares. No caso da disciplinaLiteratura Brasileira, ela foi criada, em Portugal, apenas em 1957, na Universidade deLisboa. Após o 25 de abril, passou a integrar o currículo de várias outras faculdades deLetras e teve uma ampliação relativa de sua carga horária em 1984, quando José AugustoSeabra era ministro da Educação. Entretanto, a disciplina sofreu, já no final do séculoXX, uma redução progressiva de seu espaço10. Com aDeclaração de Bolonha, que começou a ser implantada na virada do século, talvez asituação do ensino da literatura brasileira em Portugal passe por um processo de maioracanhamento. Com a nova orientação, os cursos de Letras de países integrantes da UniãoEuropeia diminuíram seu tempo de formação para três anos, além de sofrerem outrasconsequências em função de ajustes econômicos decorrentes da crise que assola váriospaíses europeus. O quadro atual do ensino da literatura brasileira em Portugal é assimsumarizado por Viviana Bosi:
Os críticos contemporâneos da poesia cabralina se formaram em um outro contexto de ensinoda literatura brasileira em Portugal; contexto que, se nunca foi o ideal, ao menospropiciava um contato maior e mais efetivo com autores brasileiros. Considerando essasituação institucional, somada à falta de uma política governamental e editorial paradifundir os bons escritores brasileiros em Portugal e à falta de prestígio social daliteratura nestes tempos, a permanência da poesia de Cabral entre leitores portuguesesao futuro pertence e parece que está a depender de iniciativas individuais sobretudo decríticos, que são também professores, e de jovens poetas que nele porventura encontremou inventem um precedente da própria voz.
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Author
Solange Fiuza
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brazil