DOI: 10.1590/1089-6891v18e-17286

 

5.05.00.00-7 MEDICINA VETERINÁRIA

 

PREVALÊNCIA DE Helicobacter spp. EM CÃES DE CAMPO GRANDE-MS

 

PREVALENCE OF Helicobacter spp. IN DOGS FROM CAMPO GRANDE-MS

 

Brunna Mary Okubo1
Rafael Ricci-Azevedo1
Nathalia Novak Zobiole1
Danieli Fernanda Buccini1
Susana Elisa Moreno1*

 

1Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS, Brasil
* Autora para correspondência - smoreno@ucdb.br

 

Resumo
A Helicobacter spp. é uma bactéria Gram negativa espiralada, de grande importância clínica, que se relaciona a patogenias como gastrite e úlceras pépticas e, mais recentemente, com o carcinoma gástrico em humanos. Evidências sugerem o potencial dos animais, principalmente os domésticos, como fonte de infecção zoonótica das helicobactérias, já que bactérias com morfologia similar às encontradas em animais foram observadas no estômago de humanos com gastrite. Nesse contexto, os cães podem ser um importante reservatório de agentes infecciosos como a Helicobacter spp. O presente trabalho teve como objetivo avaliar a prevalência de Helicobacter spp. em cães do Centro de Controle de Zoonoses de Campo Grande/MS. Para tanto, foram utilizados 96 cães dos quais foram colhidas amostras do corpo, fundo e antro gástrico, para avaliação da presença da Helicobacter spp. por meio do teste rápido de urease e análise histológica. O teste rápido de urease permitiu a detecção de Helicobacter spp. em 94,7% dos cães; já a análise histológica indicou a presença de Helicobacter spp. em 100% dos animais avaliados com predominio da bactéria na região do fundo do estômago.
Palavras-chave: cães; Helicobacter; teste de urease.

 

Abstract
Helicobacter spp. is a spiral Gram-negative bacterium that has substantial clinical importance. It has been related to diseases such as gastritis and peptic ulcers, and more recently to gastric cancer in humans. Evidence suggests the potential of animals, particularly domestic ones, as the source of zoonotic infection of helicobacteria since bacteria with similar morphology to those found in animals were observed in the stomach of humans with gastritis. Thus, dogs have been identified to serve as an important host for infectious agents such as Helicobacter spp. From this perspective, the present study aimed to assess the prevalence of Helicobacter spp. in dogs from the Zoonosis Control Center of Campo Grande-MS. Samples of body, fundus, and gastric antrum from 96 dogs were collected to evaluate the presence of Helicobacter spp. through the rapid urease test and histological analysis. Helicobacter spp. was found in 94.7% of the dogs by rapid urease test and in 100% by histological analysis, with bacteria predominance in the stomach fundus region.
Keywords: dogs; Helicobacter; urease test.

 

Recebido em: 23 dezembro de 2012
Aceito em: 07 novembro de 2016

 

Introdução

 


A Helicobacter spp. é uma bactéria Gram negativa, com o formato de hélice, microaerofílica, capaz de sobreviver em um ambiente altamente ácido, devido à produção de uréase(1- 3).
A Helicobacter spp. pode colonizar a mucosa gastrointestinal de humanos, animais domésticos (como cães, gatos, porcos e aves), além de animais silvestres, como macacos(4-7). Estima-se que cerca da metade da população mundial esteja infectada, mas apenas de 5 a 10% apresentem casos clínicos(3). Tem sido demonstrada a correlação de Helicobacter spp. na patogenia da gastrite, úlcera gástrica e duodenal e, mais recentemente, essa bactéria foi reconhecida como agente indutor do carcinoma gástrico no ser humano(8). Em cães, os estudos de prevalência da Helicobacter spp. são escassos, mas sugere-se uma taxa de infecção entre 67 a 100%(9). Estudos com avaliação histológica do estômago de cães mostraram a presença da bactéria, com ocorrência predominante no corpo e no fundo gástrico. Entretanto, o grau de colonização por estas bactérias não se correlaciona diretamente com o diagnóstico de gastrite leve a moderada em cães(10-12).
Essa bactéria adere-se à mucosa gástrica por meio de uma adesina presente em sua superfície, denominada BabA, facilitando a penetração de produtos antigênicos nas células da mucosa, comprometendo a resposta imunológica do hospedeiro(9,13). Outro mecanismo de patogenicidade da Helicobacter spp. é a produção de citotoxinas como a CagA (cytotoxin-associated gene A) e a VacA (vacuolating-associated cytotoxin). A VacA comporta-se como um transportador passivo de uréia e, desse modo, aumenta a permeabilidade do epitélio à uréia, que é quebrada em produtos intermediários tóxicos. A infecção com cepas positivas para CagA está associada a lesões epiteliais mais graves, inflamação aguda ou crônica intensas, possibilidade de ulceração péptica e risco de câncer gástrico(14-16).
Evidências sugerem o potencial dos animais, principalmente os domésticos, como fonte de infecção zoonótica das helicobactérias, já que bactérias com morfologia similar às encontradas em animais foram observadas no estômago de humanos com gastrite(17). Grande atenção deve ser dada a esse fato, pois a maioria da população mundial apresenta estreito contato com alguma espécie de animal doméstico, principalmente com os cães(18). Entretanto, a forma exata pela qual ocorre a transmissão desse microrganismo é desconhecida. O isolamento de Helicobacter spp. em saliva, em placa dentária e nas fezes de cães reforça a hipótese de transmissão por esses animais por via oro-oral ou oro-fecal(2).
Nesta perspectiva, o presente trabalho teve por objetivo avaliar a prevalência de Helicobacter spp. em cães no Centro de Controle de Zoonoses de Campo Grande, Mato Grosso do Sul.

 

Materiais e Métodos


 

A coleta das amostras biológicas foi realizada no período de agosto de 2007 a outubro de 2007, no Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), Campo Grande-MS, utilizando-se cães destinados à eutanásia, recolhidos nesse Centro. As análises laboratoriais foram realizadas no laboratório de Farmacologia e Mutagênese, da Universidade Católica Dom Bosco - UCDB.
As amostras biológicas foram obtidas de 96 cães sem raça definida, provenientes do CCZ. Os animais foram anestesiados com Tiopental (7,7mg/kg) e posteriormente eutanasiados com 10 mL de cloreto de potássio, intravenosamente. Os procedimentos foram realizados em concordância com as diretrizes de Bioética e autorizações pertinentes. Foram coletadas amostras do fundo gástrico, separando-se o tecido mucoso do seroso, sendo utilizado apenas o tecido mucoso para detecção da bactéria.
Para a detecção da bactéria, foram utilizados fragmentos de aproximadamente 6 mm, obtidos do fundo gástrico dos animais. Esses fragmentos foram submetidos ao teste rápido de urease (URETEST, Renylab, PR) que consiste em um teste colorimétrico qualitativo, destinado à identificação da bactéria. É um teste altamente específico e sensível, sendo o mais utilizado para diagnóstico endoscópico devido à potente atividade ureásica da bactéria(3,19).
Para a avaliação histológica foram coletadas, por meio da técnica aberta, amostras de tecido do fundo, corpo e antro gástricos de 29 cães, aleatoriamente, pertencentes ao grupo dos 96 animais amostrados. Após a coleta, as biópsias foram imersas em solução de formaldeído a 10%. A produção das lâminas com material histológico obedeceu à seguinte sequência de procedimentos: (a) desidratação e diafanização das amostras em diferentes concentrações de álcool e tempo; (b) inclusão do material obtido em parafina por duas horas; (c) cortes histológicos com espessura de 6 cm com auxílio do micrótomo; (d) reidratação das lâminas em diferentes concentrações de xilol e álcool; (e) finalizando, coloração pelo método de Giemsa modificado, por meio do qual o material das lâminas foi submetido à solução A (0,4 g de fucsina básica, 2 g de fenol, 4 mL de álcool absoluto e 100 mL de água destilada) por 5 minutos e à solução B (45 mL de água destilada; 5 mL de formaldeído e 5 mL de ácido acético) também por 5 minutos. Ao examinar as lâminas (microscopia óptica, aumento de 1000 vezes) foram observadas bactérias coradas em rosa ou levemente avermelhadas.
A quantificação da prevalência de Helicobacter spp. no estômago de cães foi realizada por meio da análise das lâminas histológicas. Para tanto, foram avaliados três campos observados aleatoriamente em cada lâmina, nos quais o número de bactérias foi contado. Foi atribuído a cada lâmina um score (1 a 5) de acordo com a média do número de bactérias encontradas. Os scores foram determinados conforme os seguintes intervalos: 1 a 60 bactérias (score 1); 61 a 120 (score 2); 121 a 180 (score 3); 181 a 240 (score 4); acima de 241 (score 5). Os resultados foram expressos como mediana dos scores em cada grupo.
Para análise estatística dos dados histológicos foi aplicado o teste de análise de variância (ANOVA). Em todos os casos, comparações individuais foram testadas com teste de t de Bonferroni (comparações múltiplas). O número (n) de animais por grupo experimental foi descrito nas figuras. As diferenças foram consideradas estatisticamente significativas para p <0,05.

 

Resultados

 


A avaliação da presença da Helicobacter spp. em cães pelo teste rápido de urease demonstrou que 94,7% dos animais foram positivos para a bactéria (Tabela1).

 

Considerando-se as características dos animais (sexo, idade, sinais clínicos) que apresentaram positividade para Helicobacter spp. e as possíveis correlações entre elas, verificou-se que foi homogênea a distribuição dos animais em relação ao sexo (Figura 1, painel A), uma vez que tanto os machos quanto as fêmeas apresentaram a bactéria de maneira similar (Figura 1, painel B). A avaliação dos animais quanto à faixa etária de 1 a 15 anos (Figura 1, painel C) apresentou positividade para a bactéria em todos os grupos (Figura 1, painel D).

 


A avaliação de Helicobacter spp. por meio da análise histológica mostrou prevalência de 100%. A análise foi feita contando-se as bactérias em campos escolhidos de modo randomizado, atribuindo-se valores (score) aos intervalos, como descrito na metodologia. Os dados obtidos mostraram o predomínio de bactérias no fundo, seguido do corpo gástrico, quando comparados ao antro estomacal (Figura 2). Além disso, a distribuição das bactérias apresentou-se de maneira diferenciada nas três regiões do estômago (Figura 3).

 

 

 


 

 

Discussão

 


A determinação da presença de Helicobacter spp. pode ser realizada por vários métodos. Pelo menos dois métodos devem ser combinados para a obtenção de resultados fidedignos(2,20). Os métodos invasivos para a detecção de Helicobacter spp. ainda são os mais comumente empregados, envolvendo a gastroscopia e coleta de uma amostra de biópsia da mucosa gástrica para realização do teste rápido de urease e exame histopatológico. Atualmente, tem sido proposto o emprego da técnica de detecção do DNA bacteriano utilizando-se PCR(21) para a identificação de Helicobacter ssp. em fezes. Contudo, sugere-se que esse método seja menos preciso devido à menor quantidade de bactérias nas fezes ou degradação do DNA bacteriano no intestino grosso(7).
Pelos resultados obtidos neste estudo, pode-se observar a alta prevalência de Helicobacter spp. pelo teste rápido de urease, correspondendo a 94,7% (91/96) dos animais. Esses resultados são condizentes com outros trabalhos na literatura, que demonstraram que a presença da bactéria encontra-se elevada em cães, podendo atingir 100% desses animais(9-12). Entretanto, um estudo realizado na Polônia por Jankowski e colaboradores(21) utilizando a técnica de detecção de Helicobacter spp. por PCR demonstrou a presença da bactéria em apenas 23,3% dos cães. Esse resultado pode estar associado ao pequeno número de bactérias nas fezes ou degradação do DNA bacteriano nas amostras.
A elevada prevalência de Helicobacter spp. não se correlacionou aos parâmetros como sexo, idade e sinais clínicos uma vez que quase a totalidade dos animais avaliados foi positiva para a bactéria.
A análise histológica pelo método de coloração por Giemsa modificado da biópsias de 29 cães revelou a presença de Helicobacter spp. em 100% dos animais estudados; entretanto, a distribuição dessa bactéria mostrou-se heterogênea nas diferentes regiões gástricas. O padrão de colonização na região do fundo foi significativamente maior, quando comparado ao corpo e antro gástricos (Figura 3). Resultados similares foram observados em outros trabalhos(2,20,22); no entanto, Vieira(20) verificou também uma prevalência significativa na região do corpo. A prevalência das bactérias diagnosticadas pelo teste rápido de urease e análise histológica apresentou-se de maneira similar. Embora ambos os testes tenham demonstrado sensibilidade semelhantes para detecção da bactéria, vale ressaltar que, de acordo com a literatura(20), a análise histológica é um teste que apresenta maior grau de confiabilidade, podendo complementar os resultados obtidos pelo teste rápido de urease, sobretudo em situações de suspeita de falsos negativos.
A alta prevalência de Helicobacter spp. observada em cães e humanos é inversamente proporcional ao padrão sanatário e econômico(23). A infecção causada pelo Helicobacter spp. relacionada às patologias é catastrófica em humanos quando comparada aos cães. Embora se note a presença significativa de helicobactérias em cães, não é possível relacionar com alterações gástricas nesses animais(22,24,25). Estudos sugerem várias hipóteses para explicar os fatores relacionados à alta prevalência dessas bactérias e o padrão de infecção. Um importante fator, dentre os mecanismos de proteção, é a rápida taxa de renovação do epitélio gástrico frente a uma agressão. Após terem sido expostas a um agente agressor, as células da superfície epitelial são esfoliadas e a seguir observa-se um aumento do número de mitoses, com aumento do aporte celular para recobrir a superfície desnuda. Portanto, infecções de pequena intensidade podem não evoluir para possíveis danos expressivos na mucosa gástrica(26,27).
Outros estudos sugerem que o gene VacA codifique a citocina vacuolizadora e está presente em aproximadamente 50% das espécies de Helicobacter spp.. Isso explica, em parte, porque apenas uma minoria de indivíduos infectados desenvolvem úlceras e um número ainda menor evoluem para um câncer gástrico, mesmo sendo esses indivíduos infectados por linhagens mais virulentas de Helicobacter spp.(28,29). Segundo Israel e Peek(30), em humanos, todos os indivíduos portadores de Helicobacter spp. têm inflamação gástrica coexistente; contudo, apenas uma pequena porcentagem de indivíduos colonizados desenvolve alguma patologia. O aumento do risco pode estar relacionado a diferenças na expressão de produtos específicos da bactéria, variações na resposta imune do hospedeiro à bactéria ou interações específicas entre hospedeiro e o microrganismo(31).
Estudos demonstraram que Helicobacter heilmannii, Helicobacter felis, Helicobacter salomonis, Helicobacter bizzozeronii e Helicobacter pylori têm sido encontradas colonizando o estomago de cães(6,31,32) . A prevalência dessas espécies varia de acordo com a localização geográfica, porém sugere-se maior prevalência em cães da Helicobacter heilmannii(21), a qual é comprovadamente patogênica para o ser humano(33).
Apesar de vastas pesquisas, as vias de infecção por Helicobacter spp. permanecem desconhecidas. A transmissão da Helicobacter spp. pode ser direta, isto é, por via oral, por via oro-fecal, ou gastro-oral, bem como indireta, por meio de alimentos contaminados, água ou ainda equipamentos endoscópicos mal desinfetados(34-37). Embora ainda não existam demonstrações inequívocas, a elevada incidência de Helicobacter spp. nos estômagos de animais pode sugerir que sejam considerados como um fator de risco potencial na transmissão da infecção aos humanos(6,36,37).
Uma pesquisa realizada com gatos oriundos dos EUA e Alemanha e cães da Dinamarca mostrou que esses animais oferecem um risco zoonótico pequeno, pois humanos geralmente são infectados por um subtipo(1), ou seja, apresentam maior risco de infecção relacionada a patologias, diferente do observado em cães e gatos (subtipo 2 e 4)(9). No entanto, os suínos também apresentam um risco maior, devido à elevada frequência de infecção pelo subtipo (1)(38).
Kato et al.(39) relataram a ocorrência de Helicobacter heilmannii em crianças que não possuíam animais de estimação; entretanto, Thomson et al.(40) e Van Loon et al.(41) observaram essa mesma espécie em crianças e em seus animais de companhia. A transmissão zoonótica do gênero Helicobacter tem sido sugerida devido à presença de microrganismos gástricos com morfologia similar no estômago de várias espécies de animais(42).
Frente aos dados obtidos, pode-se concluir que, nos cães procedentes da cidade de Campo Grande - MS, a taxa de colonização por Helicobacter spp., avaliada pelo teste de urease, é de 94,7%; já a avaliação por análise histológica evidenciou uma taxa de 100%. Apesar dessa alta prevalência, não foi possível estabelecer correlação com sexo, idade ou sinais clínicos. O impacto dessas helicobactérias em cães ainda é considerado controverso, pois não foi possível afirmar se são ou não parte da microflora estomacal desses animais. Portanto, novos estudos devem ser realizados na tentativa de identificar fatores de patogenicidade e/ou na relação bactéria-hospedeiro que resultassem em doenças gástricas nos cães, assim como em outros animais.

 

Agradecimentos

 

A Iara Helena Domingos e Maria Aparecida Conche Cunha, Silvia Barbosa do Carmo e toda a equipe do CCZ pelo auxílio com o manuseio dos animais; a Auristela de Mello Martins, pelos cortes histológicos; à Regilene Fátima de Oliveira, pelo apoio técnico; à Maria Aparecida Perrelli, pela correção do manuscrito.
Financiamento: UCDB; CNPq

 

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