SURTOS DE BABESIOSE CEREBRAL EM BOVINOS LEITEIROS NO NORDESTE BRASILEIRO

 

Antônio Carlos L. Câmara1, Janaina Azevedo Guimarães2, Alexandre Cruz Dantas2, Carla Lopes de Mendonça2 e José Augusto Bastos Afonso2

 

1.       Hospital Veterinário de Grandes Animais, Departamento de Medicina Veterinária, Universidade Federal Rural do Semi-Árido. E-mail: aclcamara@yahoo.com.br (autor correspondente)

2.       Clínica de Bovinos, Campus Garanhuns, Universidade Federal Rural de Pernambuco.

 

PALAVRAS-CHAVE: Babesia bovis, doenças por protozoários, sintomas nervosos, sistema nervoso central.

 

ABSTRACT

 

CEREBRAL BABESIOSIS OUTBREAKS IN DAIRY CATTLE FROM NORTHEAST BRAZIL

This paper reports the epidemiological, clinical, laboratorial and necropsy findings of three cerebral babesiosis outbreaks in dairy cattle from northeast Brazil. These outbreaks affected a total of nine Holstein x Gir crossbred and Girolando cattle. Clinical signs included neurological disturbances, pale mucous membranes with variable degrees of icterus, hemoglobinuria, anorexia, fever, apathy, tachycardia, tachypnea, and reduction in milk yield. Five cases of marked regenerative anemia with Babesia bovis parasitized erythrocytes were identified by hematology analysis. Three necropsy findings revealed pale mucous membranes, splenomegaly, enlarged and yellowish liver, congested and edematous gall bladder containing viscous granular bile, red urine, and dark red kidneys. Gray matter of telencephalic and cerebellar cortices consistently had a typically pink-cherry discoloration. Imprint from the kidney reveals B. bovis in red cells. The disease can have an important economical impact in the northeast region due to productivity loss, mortality rate and costs of treatments.

 

KEYSWORDS: Babesia bovis, central nervous system, nervous signs, protozoa diseases

 

 

 

INTRODUÇÃO

A babesiose bovina é um distúrbio hemolítico causado por várias espécies de protozoários do gênero Babesia (BARROS et al., 2006), que infectam ampla variedade de animais domésticos e selvagens, e, ocasionalmente, o homem (BOCK et al., 2004). No Brasil, Babesia bigemina e Babesia bovis são as duas espécies responsáveis pela doença em bovinos, e são inoculadas pelo carrapato Riphicephalus (Boophilus) microplus (FARIAS, 2007). A doença causa importantes prejuízos econômicos, mesmo em áreas livres de carrapato (SCHILD et al., 2008), mas a maior relevância ocorre  principalmente nas áreas de instabilidade enzoótica ou epidêmicas, em que a maioria dos rebanhos é susceptível, sendo frequentes os surtos com elevada morbidade e mortalidade (FARIAS, 2007). Praticamente todo o estado do Rio Grande do Sul tem essa característica, sendo também incluído o sertão nordestino brasileiro, devido à ocorrência de períodos de estiagem prolongados (FARIAS, 2007).

A babesiose cerebral é a manifestação clínica da infecção por B. bovis em que são observados sinais neurológicos como incoordenação motora, hiperexcitabilidade, opistótono, cegueira, tremores musculares, paralisia dos membros pélvicos, movimentos de pedalagem, pressão da cabeça contra obstáculos, andar em círculos, ataques convulsivos, agressividade ou depressão e coma. Outros sinais clínicos encontrados em associação à manifestação neurológica incluem hemoglobinúria, anorexia, febre, taquicardia, taquipnéia e queda na produção leiteira (RODRIGUES et al., 2005; BARROS et al., 2006; FARIAS, 2007; ANTONIASSI et al., 2009). Assim, devido à importância desta enfermidade em algumas regiões do Brasil, o objetivo do presente trabalho é descrever os achados epidemiológicos, clínicos, laboratoriais e necroscópicos de três surtos de babesiose cerebral no Nordeste brasileiro.

 

MATERIAL E MÉTODOS

As informações foram obtidas a partir das fichas de acompanhamento clínico de nove bovinos oriundos de dois surtos em propriedades localizadas na região Agreste de Pernambuco e de um terceiro surto em uma fazenda situada no semi-árido do Rio Grande do Norte. Os bovinos dos dois primeiros surtos foram atendidos na Clínica de Bovinos, Campus Garanhuns da Universidade Federal Rural de Pernambuco (CBG-UFRPE), enquanto os animais do último surto foram encaminhados para o Hospital Veterinário da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (HOVET-UFERSA). Os surtos ocorreram nos meses de junho e agosto de 2006 e julho de 2009, respectivamente. Foram resgatadas as informações relacionadas aos dados epidemiológicos, obtido junto aos proprietários, além dos achados clínicos, laboratoriais e necroscópicos.

Os bovinos foram examinados clinicamente seguindo as recomendações de DIRKSEN et al. (1993). Amostras sanguíneas foram colhidas através de venipunção jugular em tubo a vácuo com anticoagulante EDTA (10%) para realização do hemograma segundo a metodologia de JAIN (1993) e confecção de esfregaços sanguíneos corados pelo método panótico® rápido para pesquisa de hematozoários. O tratamento instituído, após o diagnóstico laboratorial ou necroscópico, consistiu da aplicação de derivados da diamidina (diaceturato de diminazina; 3,5 mg/kg, via intramuscular; 24/24 horas, duas doses) e nos bovinos com hematócrito inferior a 15% (n=4) instituiu-se transfusão sanguínea com até 1,5 L de sangue completo obtido de bovinos adultos sadios. Os animais que morreram durante o internamento (n=3) foram necropsiados. Em um dos bovinos mortos foi realizado imprints de fragmentos do rim, cérebro e fígado, também corados pelo mesmo método supracitado.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

            O primeiro surto (junho de 2006) consistiu de onze vacas Girolando de alta produção leiteira adquiridas aproximadamente 20 dias antes do início da mortalidade no município de Águas Belas-PE e transportadas para outra propriedade situada em Garanhuns, Agreste Meridional de Pernambuco. Os bovinos eram vacinados contra raiva e febre aftosa, criados intensivamente e mineralizados. O primeiro sintoma observado pelo proprietário foi a queda abrupta da produção leiteira (diminuição da produção média de 25 L para 2 L/vaca/dia), seguido por hemoglobinúria e episódios de agressividade, sendo medicadas com soluções de glicose e aminoácidos sem sucesso. Duas vacas morreram na propriedade, uma durante o transporte no caminhão, enquanto outro bovino morreu 30 minutos após o desembarque na CBG-UFRPE. Assim, apenas sete vacas foram examinadas clinicamente. O peso corporal dos animais variou de 435 a 656 kg (média: 547,7 kg).

            O segundo surto ocorreu no mês de agosto de 2006 no município de Iati-PE. O proprietário possuía a queixa principal de que os bovinos acometidos apresentavam apatia e afastavam-se dos demais do lote, ocorrendo o óbito dentro de 24 horas após o início dos sintomas. O lote original era composto por 40 fêmeas com idades variando de 1 a 1½ anos;  das quais três morreram com a mesma sintomatologia, sendo então uma bezerra mestiça (Holandesa x Gir) de 150 kg encaminhada e examinada na CBG-UFRPE. Este animal veio a óbito 4 horas após o exame clínico. Salienta-se ainda que na propriedade existia mais três bezerras do lote com os mesmos sintomas. Os bovinos deste surto eram vacinados contra raiva e febre aftosa, criados extensivamente e mineralizados. Todos os bovinos do lote problema foram tratados.

            O terceiro surto (julho de 2009) teve como cenário uma propriedade localizada no município de Mossoró, região semi-árida do Rio Grande do Norte. Nesta fazenda todos os animais (nove adultos e oito bezerros) foram adquiridos 60 dias antes do episódio em uma feira agropecuária regional. Duas vacas e um touro apresentaram apatia severa, anorexia e queda abrupta da produção de leite nas fêmeas. Os bovinos foram medicados no mesmo dia com diaceturato de diminazina e oxitetraciclina seguindo recomendações de um funcionário de loja agropecuária, entretanto para uma das vacas a dose estipulada havia sido inferior ao necessário para o peso vivo. No dia seguinte, dois bovinos apresentaram melhora do quadro clínico, mas a vaca que recebeu a subdosagem desenvolveu manifestações nervosas e hemoglobinúria. O proprietário procurou em seguida orientação veterinária no HOVET-UFERSA. A evolução clínica foi de dois dias. Os bovinos eram mestiços (Holandesa x Gir), vacinados contra febre aftosa, criados semi-intensivamente e mineralizados.

            Após exame clínico dos nove bovinos oriundos do primeiro (n=7), segundo (n=1) e terceiro surto (n=1). Os principais sinais clínicos observados foram apatia, hiporexia ou anorexia, febre (temperatura retal média: 39,2°C), mucosas pálidas a rosa-pálidas com diferentes graus de icterícia, taquicardia, taquipnéia, hemoglobinúria (n=4) e presença de carrapatos em diferentes estágios de desenvolvimento. Os bovinos com sintomatologia neurológica apresentaram incoordenação motora, acuidade visual diminuída, mioclonias, pressionar a cabeça contra obstáculos, andar em círculos, agressividade, decúbito lateral com movimentos de pedalagem e vocalização, além de um dos bovinos mastigar compulsivamente a madeira da porteira do curral. Os sinais clínicos supracitados variaram de intensidade individualmente e são semelhantes aos relatados em trabalhos anteriores (BOCK et al., 2004; RODRIGUES et al., 2005; BARROS et al., 2006; FARIAS, 2007; ANTONIASSI et al., 2009).

Os achados laboratoriais consistiram, na maioria dos casos, em marcada anemia regenerativa normocítica normocrômica ou microcítica normocrômica, além da presença de anisocitose, policromasia e esquistócitos. A pesquisa de hematozoários foi positiva para o protozoário B. bovis em cinco dos nove bovinos examinados, alcançando o índice de 55,5%. Este dado sugere que o sangue para o diagnóstico da babesiose cerebral deva ser preferencialmente colhido de extremidades, como orelha ou ponta da cauda, já que a parasitemia no sangue circulante dos grandes vasos é baixa, raramente atingindo 5% (VALLI, 1993). Entretanto, RODRIGUES et al. (2005) sugerem que, pelo menos na doença aguda com manifestação neurológica, a parasitemia pode ser suficiente para permitir o diagnóstico em amostras de sangue colhidas na jugular, fato este comprovado em mais da metade dos nossos casos. Em relação aos imprints dos órgãos, apenas foi possível a visualização do hemoparasita na lâmina confeccionada a partir do rim, entretanto preconiza-se preferencialmente o diagnóstico através de esfregaços teciduais do córtex encefálico (RODRIGUES et al., 2005; FARIAS, 2007; ANTONIASSI et al., 2009), podendo também o imprint de rim ser utilizado como exame complementar para o diagnóstico da enfermidade.

Os achados de necropsia dos três bovinos consistiram de mucosas e musculatura pálidas com diferentes graus de icterícia, rins vermelho-escuros, hepatoesplenomegalia, fígado vermelho-alaranjado, hemorragias petequiais e em sufusão na serosa do rúmen, gordura perirenal, epicárdio e endocárdio; vesícula biliar com parede edemaciada e contendo bile grumosa, além de bexiga com urina de coloração de vinho tinto. A substância cinzenta dos córtices telencefálico e cerebelar e dos núcleos da base (TIRAR) era consistente e caracteristicamente róseo-cereja. Os achados de necropsia são semelhantes a relatos anteriores da enfermidade (BOCK et al., 2004; RODRIGUES et al., 2005; BARROS et al., 2006; SCHILD et al., 2008; ANTONIASSI et al., 2009), confirmando que o diagnóstico definitivo de babesiose cerebral pode ser obtido através dos achados macroscópicos, principalmente por meio da coloração róseo-cereja da substância cinzenta do encéfalo indicada como alteração patognomônica da doença (RODRIGUES et al., 2005).

Os bovinos do presente estudo apresentaram índice de sobrevivência de 66,6% (6/9), entretanto salienta-se que os animais apresentam graus variados de sintomatologia clínica. Assim, reiteram-se os achados de estudos anteriores que citam que casos neurológicos não tratados precocemente têm um desenlace fatal após curso clínico agudo ou superagudo (BARROS et al., 2006). O tratamento com derivados de diamidina permanece como a opção terapêutica de eleição em casos de babesiose cerebral e sua eficácia depende da precocidade do tratamento instituído, sendo também indicada a transfusão sanguínea em bovinos com hematócrito inferior a 15%.

 

CONCLUSÕES

No presente trabalho, o diagnóstico definitivo de babesiose cerebral foi realizado através da associação entre os achados epidemiológicos, clínicos, laboratoriais e necroscópicos, confirmando a ocorrência e importância da enfermidade em bovinos na região Nordeste do Brasil. A enfermidade pode causar importante impacto econômico principalmente devido a queda da produtividade, mortalidade e custo do tratamento.

REFERÊNCIAS

ANTONIASSI, N. A. B.; CÔRREA, A. M. R.; SANTOS, A. S.; PAVARINI, S. P.; SONNE, L.; BANDARRA, P. M.; DRIEMEIER, D. Surto de babesiose cerebral em bovinos no Estado do Rio Grande do Sul. Ciência Rural, Santa Maria, v. 39, n. 3, p. 933-936, 2009.

BARROS, C. S. L.; DRIEMEIER, D.; DUTRA, I. S.; LEMOS R. A. A. Babesiose cerebral. In:__. Doenças do sistema nervoso de bovinos no Brasil. Coleção Vallée, São Paulo, p.87-95, 2006.

BOCK, R.; JACKSON, L.; DE VOS, A.; JORGENSEN, W. Babesiosis of cattle. Parasitology, Cambrigde, v. 129, n. 7, p. 247-269, 2004.

DIRKSEN, G.; GRÜNDER, H. D.; STÖBER, M. Rosenberger – Exame clínico dos bovinos. 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 1993. 419p.

FARIAS, N. A. Tristeza parasitária bovina. In: RIET-CORREA, F.; SCHILD, A. L., LEMOS, R.A.A., BORGES, J. R. J. Doenças de ruminantes e equideos. 3.ed. Santa Maria: Gráfica e Editora Palotti, v. 1. p.524-532. 2007.

JAIN, N. C. Essentials of veterinary hematology. Philadelphia, Lea & Febinger. 1993. 417p.

RODRIGUES, A.; RECH, R. R.; BARROS, R. R.; FIGUERA, R. A.; BARROS, C. S. L. Babesiose cerebral em bovinos: 20 casos. Ciência Rural, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 121-135, 2005.

SCHILD, A. L.; RUAS, J. L.; FARIAS, N. A.; GRECCO, F. B.; SOARES, M. P. Aspectos epidemiológicos de um surto de babesiose cerebral em bovinos em zona livre de carrapato. Ciência Rural, Santa Maria, v. 38, n. 9, p. 2646-2649, 2008.

VALLI, V. E. O. The hematopoietic system. In: JUBB, K.V.F.; KENNEDY, P.C.; PALMER, N. Pathology of domestic animals. 4.ed. San Diego: Academic Press, v. 3, cap. 2, p. 101-265, 1993.