INDUÇÃO DE NECROSE CEREBROCORTICAL EM BEZERROS COM DIETA RICA EM ENXOFRE

 

Paulo Henrique Jorge da Cunha1, Peres Ramos Badial2, José Paes de Oliveira Filho2, Didier Quevedo Cagnini2, Ana Claudia Gorino2, Mariana Fontanetti Marinheiro2, Renée Laufer Amorim2, Alexandre Secorun Borges2

 

1- Departamento de Medicina Veterinária, Escola de Veterinária da Universidade Federal de Goiás, Campus Samambaia (Campus II), Caixa postal 131, Goiânia - GO. CEP: 74001-970.

E-mail: phcunhavet@yahoo.com.br (autor correspondente)

2 - Departamento de Clínica Veterinária, Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, UNESP - Campus de Botucatu, Distrito de Rubião Júnior s/n, Botucatu - SP, Brasil.. CEP: 18618-000

 

PALAVRAS-CHAVE: Bovino, gás sulfídrico ruminal, polioencefalomalacia.

 

 

ABSTRACT

 

EXPERIMENTAL CEREBROCORTICAL NECROSIS IN CALVES FED A HIGH SULPHUR DIET

Polioencephalomalacia (PEM) is a common degenerative neurologic disease of ruminants around the world. This study evaluates clinical parameters, ruminal hydrogen sulfide concentrations and histopathological features of 6 calves weighing 120 kg and fed sulphur supplements with 0,5% of diet dry matter. Body temperature measurements as well as respiratory and cardiac rates remained within the normal range. Ruminal hydrogen sulfide levels increased after ingestion of the experimental diet. One animal showed severe neurologic signs. Necropsy findings of 2 calves revealed necrosis of cerebrocortical neurons. Clinical and histopathological analyses reported high levels of hydrogen sulfide, confirming the induction of neuronal necrosis in calves with dietary supplementation of sulphur.

 

KEYWORDS: Bovine, polioencephalomalacia, ruminal sulfide.

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

PEM é uma síndrome cerebrocortical degenerativa dos ruminantes e o termo é utilizado para descrever uma alteração morfológica caracterizada por amolecimento (malacia) da substância cinzenta (polio) do encéfalo (GOULD, 2000).

A primeira descrição da PEM foi em 1956 e durante os 25 anos subsequentes, a etiologia foi atribuída à deficiência de tiamina associada à alta ingestão de grãos na ração (GOULD, 2000). Pesquisas têm indicado que a PEM não apresenta somente uma etiologia única, pois vários fatores têm sido associados à sua ocorrência, tais como, alterações no metabolismo da tiamina, intoxicação por chumbo, privação de água e/ou intoxicação por cloreto de sódio, ingestão excessiva de enxofre (GOULD, 2000), infecção pelo herpesvirus bovino tipo 5 e intoxicação por Phalaris spp. (BARROS et al., 2006).

As principais fontes de enxofre relatadas que ocasionaram PEM foram melaço e uréia (MELLA et al., 1976), aditivos alimentares como o gesso (RAISBECK, 1982), água com sulfatos (HAMLEN et al., 1993), subprodutos de grãos (NILES et al., 2002) e cevada (KUL et al., 2006).

O diagnóstico da PEM decorrente de dietas ricas em enxofre deve ser realizado com base na epidemiologia, quadro clínico, na dosagem do teor de gás sulfídrico ruminal, do enxofre na dieta e pelas alterações macroscópicas e microscópicas no SNC (GOULD, 2000).

O presente trabalho avaliou os parâmetros clínicos e determinou os valores da concentração do sulfeto de hidrogênio ruminal e os achados histopatológicas de bovinos mestiços suplementados com 0,5% de enxofre na matéria seca visando induzir necrose cerebrocortical.

 

MATERIAL E METODOS

Foram utilizados seis bezerros mestiços com idade aproximada de sete meses e peso vivo médio de 120 Kg, sendo mantidos durante todo o período experimental em baias individuais destinada para pesquisa de animais de médio porte da Clínica de Grandes Animais do Hospital Veterinário da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FMVZ/UNESP/Botucatu).

O protocolo de intoxicação foi adaptada de SAGER et al. (1990) com as modificações descritas a seguir. O período experimental foi dividido em três fases. A fase 1 constituiu a adaptação dos bovinos com suplementação exclusiva de feno por um período de quatorze dias, enquanto a Fase 2 compreendeu um período de sete dias de transição do feno para ração, retirando-se 1 Kg do feno/dia/bezerro e adicionando-se 1 Kg da ração/dia/bezerro. Na ultima fase (fase 3), os animais receberam durante quatorze dias exclusivamente ração.

A ingestão do feno coast-cross (Cynodon dactylon) foi ad libitum, enquanto o consumo da ração foi de no máximo 2,5% do peso vivo. Como fonte de enxofre foi adicionada diariamente à ração sulfato de sódio totalizando 0,5% de enxofre na matéria seca.

A análise bromatológica do feno de coast-cross (Cynodon dactylon) (91,07% matéria seca; 10,32% proteína bruta; 1,11% extrato etéreo; 2,47% minerais; 42,6% fibra bruta; 113,50% extrato não nitrogenado; 53,37% nutrientes digestíveis totais; 85,49% fibra detergente neutra; 43,48% fibra detergente ácida) e da ração (90,45% matéria seca; 21,19% proteína bruta; 4,31% extrato etéreo; 10,7% minerais; 3,92% fibra bruta; 59,88% extrato não nitrogenado; 87,27% nutrientes digestíveis totais; 29,34% fibra detergente neutra; 13,25% fibra detergente ácida) foram realizadas no Laboratório de Bromatologia da FMVZ/UNESP/Botucatu.

As análises de elementos minerais do feno de coast-cross (Cynodon dactylon) (14 g/Kg de nitrogênio, 1,1 g/Kg de fósforo, 15 g/Kg de potássio, 2 g/Kg cálcio, 1,0 g/Kg de magnésio, 2,6 g/Kg de enxofre, 14 mg/Kg de boro, 9 mg/Kg de cobre, 190 mg/Kg de ferro, 156 mg/Kg de manganês e 16 mg/Kg de zinco) e da ração (3,95 g/Kg de fósforo, 18 g/Kg de potássio, 3 g/Kg cálcio, 1,5 g/Kg de magnésio, 1,5 g/Kg de enxofre, 12,5 mg/Kg de boro, 462 mg/Kg de ferro e 102,5 mg/Kg  de manganês) foram realizadas, respectivamente, nos Laboratórios de Nutrição Mineral de Plantas da FMVZ/UNESP/Botucatu e no Instituto Campineiro de Análise de Solo e Adubo Ltda.  A dosagem de enxofre da água (11 mg/L) do poço semi-artesiano foi conduzida no Laboratório de Fertilizantes e Corretivos da Faculdade de Ciências Agronômicas da UNESP/Botucatu.

Os bezerros foram examinados na fase 1 no primeiro, sétimo e décimo quarto dias, na fase 2 no sétimo dia e na fase 3 no sétimo e décimo quarto dias, porém, eram observados diariamente visando detectar a presença de sinais específicos de encefalopatia.

As dosagens do sulfeto de hidrogênio ruminal foram realizadas nas fases 1 e 2 semanalmente, enquanto na fase 3 no terceiro, sétimo, décimo e décimo quarto dias.  A técnica utilizada foi adaptada de GOULD et al. (1997) com as modificações descritas a seguir. Inicialmente foi realizada a tricotomia da fossa paralombar esquerda e anti-sepsia com iodopovidona (PVPI), sendo que a punção ruminal foi realizada no ponto médio da porção mais dorsal da fossa paralombar esquerda utilizando-se agulha do cateter intravenoso 14G sem a cânula externa de teflon. Em seguida, foi encaixado ao conector da agulha um equipo intravenoso com 15 cm de comprimento, cortando e desprezando-se a extremidade com o gotejador. A ponta cortada do equipo adaptado foi acoplada ao tubo colorimétrico de dosagem de gás sulfídrico, que já estava previamente inserido na bomba manual de vácuo (modelo AP-20S, Sensidyne®, Florida, USA). As mensurações foram realizadas de acordo com o manual do fabricante da bomba de vácuo, padronizando em 100 mL de gás para valores entre 25 a 1.000 ppm (modelo 120 SF, Sensidyne®, Florida, USA) e de 1.000 a 40.000 ppm (modelo 120 SH, Sensidyne®, Florida, USA) de sulfeto de hidrogênio com tempo de amostragem de 1,5 minutos.

Após a morte natural ou eutanásia foi realizada a necrópsia, onde foram registradas as alterações macroscópicas.  No exame histopatológico as amostras do SNC foram fixadas em formol tamponado a 10%, submetidos à desidratação em soluções crescentes de álcoois, diafanização em xilol, inclusão em parafina, cortadas com 5 µm de espessura e coradas pelo método de hematoxilina-eosina (HE).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os valores da temperatura corpórea, freqüência cardíaca e respiratória permaneceram dentro da faixa de normalidade para a espécie bovina, independente da fase experimental. A hipomotricidade ruminal observada na fase 3 foi ocasionada pelo fornecimento de uma dieta contento exclusivamente ração. A motricidade ruminal é estimulada pela presença de fibra efetiva e o fornecimento de uma dieta sem qualquer tipo de volumoso e com FDN baixo, como observado, proporcionou baixa motricidade ruminal (RADOSTITS et al., 2007).

Os valores da dosagem de gás sulfídrico ruminal da fase 1 na primeira e segunda colheitas foram inferiores a 500 ppm, sendo considerados por GOULD (2000) como normais. Já na terceira colheita a média e o desvio padrão do gás sulfídrico ruminal aferido foi de 1.171,6±1.013,97 ppm, ou seja, elevados para bovinos alimentados somente com feno sem suplementação de sulfato de sódio e com concentração de enxofre na matéria seca dentro dos valores normais pelo NRC (2005).

Os resultados observados da determinação do gás sulfídrico ruminal da fase 2 (803,33±610,4 ppm) e da Fase 3 (3.750±341,17 ppm) foram acima dos valores normais (GOULD, 2000). Estes resultados associados com as concentrações de enxofre na dieta (5.000 mg/Kg na matéria seca) e na água (11 mg/L), indicaram que a ingestão dos bovinos estava acima do nível recomendado pelo NRC (2005), criando condições favoráveis para ocorrência da necrose cerebrocortical nos bovinos confinados.

No sexto dia da fase 2 um bezerro com dosagem de gás sulfídrico ruminal de 1.250 ppm apresentou sinais clínicos de encefalopatia como apatia, ataxia, tremores de cabeça, déficit proprioceptivo e nistagmo vertical, vindo a óbito com evolução clínica de dez horas. Estes sinais clínicos também foram descritos por GOULD (2000) como compatíveis com necrose cerebrocortical ocasionada por ingestão excessiva de enxofre. Os demais animais não apresentaram alterações neurológicas durante o período experimental.

Ao realizar o exame macroscópico necroscópico do encefálico do bezerro com sinais de encefalopatia observou-se redução dos giros cerebrais nos lobos occiptal e parietal esquerdo e compressão da porção lateral esquerda do cerebelo. No exame histopatológico evidenciou-se principalmente no córtex parietal e occipital esquerdo a presença de edema e necrose neuronal difusa acentuada, neuronofagia e gliose moderada com presença de vacúolos nas fibras neuronais de algumas porções da substância cinzenta e, principalmente, nestas regiões a necrose neuronal e a gliose estavam mais intensas caracterizando um quadro de necrose cerebrocortical conforme descrito também por GOULD (2000). Dos outros cinco animais, foi realizada necropsia em dois sendo que somente um apresentou necrose cerebrocortical.

 

CONCLUSÃO

Os achados clínicos e histopatológicos associados com os elevados teores de sulfeto de hidrogênio ruminal confirmaram a indução de necrose cerebrocortical nos bovinos mestiços suplementados com 0,5% de enxofre na matéria seca.

 

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de Programa Institucional de Capacitação Docente e Técnica (PICDT) de doutorado concedida ao primeiro autor e pela bolsa Programa de Demanda Social (DS) de mestrado concedida ao segundo autor. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP Processo n°. 2006/05836-6) pelo apoio financeiro e concessão de bolsa para o terceiro (Processo n°.2009/00763-9) e quarto autores (Processo n°.2007/05008-9) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de produtividade ao último autor.

 

REFERÊNCIAS

 

BARROS, C. S. L.; DRIEMEIER, D.; DUTRA, I. S.; LEMOS, R. A. A. Doenças do sistema nervoso de bovinos no Brasil. Montes Claros: Vallée, 2006.

GOULD, D. H. Update on sulfur-related polioencephalomalacia. In: OSWEILER, G. D.; GALEY, F.D. The Veterinary Clinics of North America: Food Animal Practice, Philadelphia, v. 16, n. 3, p.481-496, 2000.

GOULD, D. H., CUMMINGS, B. A., HAMAR,  D.W. In vivo indicators of pathologic ruminal sulfide production in steers with diet-induced polioencephalomalacia.  Journal of Veterinary Diagnostic Investigation, Columbia, v. 9, p. 72-76, 1997.

HAMLEN, H., CLARK, E., JANZEN, E. Polioencephalomalacia in cattle consuming water with elevated sodium sulfate levels: a herd investigation. Canadian Veterinary Journal, Ottawa, v. 34, p. 153-158, 1993.

Kul, O., Karahan, S., Basalan, M., Kabakci, N. Polioencephalomalacia in cattle: a consequence of prolonged feeding barley malt sprouts. Journal of Veterinary Medicine Series A, Berlin, v. 53, n. 3, p. 123-128, 2006.

MELLA, C. M., PEREZ-OLIVA, O., LOEW, F. M. Induction of bovine polioencephalomalacia with a feeding system based on molasses and urea. Canadian Journal of Veterinary Research, Ottawa, v. 40. n. 1, p.104-10, 1976.

NILES, G. A., MORGAN, S., EDWARDS, W. C., LALMAN, D. Effects of dietary sulfur concentrations on the incidence and pathology of polioencephalomalacia in weaned beef calves. Veterinary and Human Toxicology, Manhattan, v. 44, n. 2, p. 70-72, 2002.

NRC. Mineral tolerance of animals. 2 ed. Washington: National Academy Press. 2005. 385p.

RADOSTITS, O. M.; GAY, C. C.; HINCHCLIFF, K. W.; CONSTABLE, P. D. Veterinary medicine. A textbook of the disease of cattle, horses, sheep, pigs and goats. 10.ed. Saunders Elsevier: USA, 2007. 2156p.

RAISBECK M. F. Is polioencephalomalacia associated with high-sulfate diets? Journal of the American Veterinary Medical Association,     Schaumburg, v. 180, p. 1303-1305, 1982.

SAGER, L. R., HAMAR, D. W., GOULD, D. H. Clinical and biochemical alterations in calves with nutritionally induced polioencephalomalacia. American Journal of Veterinary Research, Chicago, v. 51, n. 12, p. 1969-1974, 1990.