ACHADOS CLÍNICOS,
LABORATORIAIS, ULTRASSONOGRÁFICOS E ANÁTOMO-PATOLÓGICOS
Antônio Carlos L. Câmara1,
José Renato J. Borges2, Ceci Ribeiro Leite2, Ana Lourdes
A. A. Mota2, Roberta F. de Godoy2, Karla M. R. Guedes3,
Vanessa S. Mustafa3, e Giane R. Paludo4
1. Hospital
Veterinário de Grandes Animais, Departamento de Medicina Veterinária,
Universidade Federal Rural do Semi-Árido. E-mail: aclcamara@yahoo.com.br (autor
para correspondência)
2. Hospital
Escola de Grandes Animais da Granja do Torto, Faculdade de Agronomia e Medicina
Veterinária (FAV), Universidade de Brasília (UNB)
3. Laboratório
de Patologia Veterinária, FAV, UNB
4. Laboratório
de Patologia Clínica, FAV, UNB
PALAVRAS-CHAVES: Bovinos, plantas tóxicas, ptaquilosídeo, samambaia.
ABSTRACT
CLINICAL, LABORATORY, ULTRASONOGRAPHIC AND PATHOLOGIC FINDINGS IN A CASE
OF BOVINE ENZOOTIC HEMATURIA
Pteridium aquilinum is a well-known toxic plant worldwide, responsible for three different
clinical syndromes in cattle, including bovine enzootic hematuria (BEH). The
present work describes a case study of BEH through clinical, laboratory,
ultrasonographic, and pathological findings. A 10-year-old crossbreed was
clinically examined. Pale mucous, progressive weight loss, tachycardia, ruminal
hypomotility, hematuria, and dysuria were evidenced. Rectal ultrasonography
showed a thickened urinary bladder wall, and hyperecoic areas in the lumen
suggesting blood clots. Hematology revealed normocytic and hypochromic anemia,
hypoproteinemia, and inversion in the lymphocyte/neutrophile ratio. Severe
hematuria and proteinuria were observed in urinalysis. Escherichia coli was isolated from the urine culture in a
microbiological analysis. Pathological findings in the bladder consisted of
submucosa thickness, angiogenesis, and lesions typical of hemangiomas.
Ultrasonography may be a helpful tool for providing epidemiological data and
clinical signs in the diagnosis of BEH. However, histopathology remains the
most reliable method to confirm toxicosis.
KEYS WORDS: Bracken fern, cattle, ptaquiloside,
toxic plants.
INTRODUÇÃO
Pteridium aquilinum, a "samambaia-do-campo", é considerada
uma das plantas tóxicas mais importantes, não só por ser cosmopolita e ter
extensa distribuição, mas também pelos diferentes tipos de intoxicação que
provoca em diversas espécies animais (EVANS, 1964; TOKARNIA et al., 2000). No
Brasil, Pteridium aquilinum subsp. caudatum var. arachnoideum é
a única variedade identificada (TOKARNIA et al., 2000), sendo responsável por três diferentes quadros clínico-patológicos
em bovinos, atribuídos a ação radiomimética da planta (FRANÇA et al.,
2002). A ocorrência de síndrome hemorrágica aguda (SHA) (MARÇAL et al., 2002; ANJOS
et al., 2008), carcinoma das vias digestivas superiores (SOUTO et al., 2006a) e
hematúria enzoótica bovina (HEB) (CARVALHO et al., 2006; SOUTO et al. 2006b), varia
de acordo com a quantidade de planta consumida e com o tempo de ingestão (FRANÇA
et al., 2002).
P. aquilinum é a única planta
conhecida capaz de causar naturalmente câncer em animais (EVANS, 1964) e possui
considerável número de componentes tóxicos, dentre eles o ptaquilosídeo, um
glicosídeo sesquiterpenóide capaz de induzir clastogênese em culturas celulares
e com atividade mutagênica e carcinogênica (CARVALHO et al., 2006). O
ptaquilosídeo é eliminado na urina, sendo capaz de induzir tumores de bexiga em
bovinos (CARVALHO et al., 2006), e também no leite, com risco potencial para a
saúde humana (ALONSO-AMELOT, 1997). Assim, devido à importância desta
enfermidade em algumas regiões do Brasil, o objetivo do presente trabalho é
descrever os achados epidemiológicos, clínicos, laboratoriais, ultrassonográficos
e anátomo-patológicos de um caso de HEB.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi encaminhada
para o Hospital Escola de Grandes Animais da Universidade de Brasília, uma vaca
mestiça de aproximadamente 10 anos de idade com histórico de hematúria intermitente
há cinco meses e perda de peso progressiva, oriunda de uma propriedade na
Região Administrativa do Gama, Distrito Federal. O proprietário relatava ainda
que o animal foi comprado há seis meses junto com outros três bovinos de uma
fazenda localizada no município de Santo Antônio do Descoberto, Goiás.
O
animal foi examinado clinicamente seguindo as recomendações de DIRKSEN et
al. (1993). Amostras sanguíneas foram colhidas em
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ambas
as propriedades foram visitadas, entretanto apenas na propriedade situada no
município de Santo Antônio do Descoberto-GO foi observada grande quantidade de
“samambaia-do-campo” junto à pastagem, com indícios de pastoreio recente. Apesar
de tipicamente múltiplos casos serem afetados pela HEB (MIESNER, 2009), nesta
propriedade com um rebanho de 57 bovinos de diferentes categorias (vacas secas,
vacas em lactação, bezerros e reprodutores), não havia histórico prévio da
enfermidade.
Os sinais clínicos mais
relevantes consistiram em estado corporal ruim, apatia, mucosas pálidas, vasos episclerais
vazios, taquicardia (100 batimentos por minuto), rúmen moderadamente vazio,
hipomotílico com estratificações ausentes, disúria e urina sanguinolenta com
presença de coágulos. A sintomatologia foi sequela da anemia e perda de peso
progressiva decorrentes do quadro de hematúria causados pela intoxicação, e, são
semelhantes a relatos anteriores da doença (TOKARNIA et al., 2000; FRANÇA et
al., 2002; SOUTO et al., 2006b). A avaliação ultrassonográfica por via retal permitiu
a visualização da bexiga com parede espessada (0,58cm), presença de áreas
hiperecóicas (coágulos) no interior da bexiga (4-7cm x 3-
A hematologia revelou na série vermelha, o marcante quadro de anemia normocítica hipocrômica (hematócrito: 10%) associado à severa hipoproteinemia (4g/dL), enquanto o leucograma revelou inversão da relação neutrófilos: linfócitos, mas sem a presença de leucocitose relativa ou absoluta. Os demais parâmetros encontravam-se dentro dos limites fisiológicos para a espécie (KRAMER, 2000). A anemia normalmente é normocítica e normocrômica devido à diminuição do número de eritrócitos ocasionada pela perda sanguínea (WOSIACKI et al., 2002). O quadro de anemia arregenerativa e as coagulopatias (trombocitopenia) são decorrentes da rarefação de tecido hematopoiético na medula óssea e depressão da série megacariocítica e granulocitica (MARÇAL et al., 2002). O leucograma discorda de resultados anteriores que constataram severa leucopenia em bovinos com HEB (FRANÇA et al., 2002) ou SHA (ANJOS et al., 2008), possivelmente devido ao presente caso possuir menor cronicidade. A urinálise revelou no exame físico: urina de coloração vermelha, odor fétido e aspecto turvo; enquanto o exame químico revelou proteinúria e hematúria. A sedimentoscopia apresentou moderada quantidade de células de descamação vesical, hemácias incontáveis, leucócitos raros e moderada quantidade de bactérias. Os resultados do exame físico e químico são citados em estudos anteriores (WOSIACKI et al., 2002), enquanto na literatura pesquisada não existe resultados de sedimentoscopia urinária. A cultura microbiológica isolou Escherichia coli comprovando que bovinos com HEB apresentam maior risco de desenvolver infecções ascendentes das vias urinárias (WOSIACKI et al., 2002; MIESNER, 2009).
Os
principais achados de necropsia consistiram de mucosas e carcaça
acentuadamente pálidas, sangue com aspecto aquoso, fígado
moderadamente
amarelado e pulmões com acentuado edema interlobular. A bexiga
apresentava-se
distendida com urina vermelho-escura, grande quantidade de
coágulos sanguíneos,
espessamento acentuado da parede do órgão e
múltiplas formações polipóides avermelhadas
de aproximadamente 0,5cm na mucosa. Os achados microscópicos
revelaram no fígado, áreas de discreta necrose de hepatócitos
centrolobulares, enquanto na bexiga observou-se, em algumas áreas, espessamento
da região submucosa devido à proliferação de tecido conjuntivo, com moderada
neoformação vascular (angiogênese) e alguns focos discretos de infiltrado
inflamatório linfocitário. Em outras áreas observaram-se pequenos nódulos de
cerca de 5mm de diâmetro formados pela proliferação de pequenos vasos de
endotélio simples, dilatados (ectasia vascular), preenchidos por sangue e com
moderado estroma fracamente eosinofílico entre os vasos, característico de
hemangiomas. As lesões responsáveis pela hematúria crônica e pela conseqüente
anemia acentuada vistas na HEB (TOKARNIA et al., 2000) caracterizam-se por neoplasmas
vesicais de histogênese variada (PEIXOTO et al., 2003), muitas vezes
acompanhados por perda da integridade do epitélio de revestimento da mucosa vesical
(SOUTO et al., 2006b), como vista neste bovino. Em estudo recente, a
histopatologia dos tumores de bexiga associados à HEB revelou a coexistência de
neoplasmas diversos, epiteliais ou mesenquimais, benignos ou malignos, porém
raramente apresentando metástases, dentre os mais frequentes encontram-se os
papilomas, carcinomas de células transicionais, adenocarcinoma, carcinomas de
células escamosas e hemamgiomas, sendo este último observado em 29,5% dos casos
(CARVALHO et al., 2006). A degeneração hepática secundária à anemia é também um
achado frequente na intoxicação (SOUTO et al., 2006b).
CONCLUSÕES
No presente trabalho, o diagnóstico definitivo de HEB foi realizado através da associação entre os achados epidemiológicos, clínicos, ultrassonográficos, laboratoriais e anátomo-patológicos, confirmando a ocorrência da intoxicação em bovinos no Centro-Oeste. A ultrassonografia pode ser uma útil ferramenta associada aos dados epidemiológicos e sinais clínicos no diagnóstico de HEB, entretanto a histopatologia permanece como a opção mais confiável para diagnóstico definitivo da intoxicação.
REFERÊNCIAS
ALONSO-AMELOT, M. E. The link between bracken fern and stomach cancer: milk. Nutrition, New York, v. 13, n. 7-8, p. 694-696, 1997.
ANJOS, B. L.;
IRIGOYEN, L. F.; FIGHERA, R. A.; GOMES, A. D.; KOMMERS, G. D.; BARROS, C. S. L.
Intoxicação aguda por samambaia (Pteridium
aquilinum) em bovinos na Região Central do Rio Grande do Sul. Pesquisa
Veterinária Brasileira, Rio de Janeiro, v. 28, n. 10, p. 501-507, 2008.
CARVALHO, T.; PINTO, C.; PELETEIRO, M. C. Urinary
bladder lesions in bovine enzootic haematuria. Journal of Comparative Pathology,
DIRKSEN, G.; GRÜNDER, H. D.; STÖBER, M. Rosenberger – Exame clínico dos bovinos. 3. ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan. 1993. 419p.
EVANS, W. C. Bracken
poisoning of farm animals. Veterinary Record,
FRANÇA, T. N.; TOKARNIA, C. H.; PEIXOTO, P. V. Enfermidades determinadas pelo princípio radiomimético de Pteridium aquilinum (Polypodiaceae). Pesquisa Veterinária Brasileira, Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, p. 85-96, 2002.
GARCIA-NAVARRO, C.E.K. Manual de urinálise
veterinária. São Paulo: Livraria Varela, 1996. 95p.
JAIN, N. C. Schalm’s veterinary hematology.
4.ed.
KRAMER, J. W. Normal hematology of cattle,
sheep and goats. In: FELDMAN, B.F.; ZINKL, J.G.; JAIN, N.C. Schalm’s veterinary hematology. 5.ed.
MARÇAL, W. S.; GASTE, L.;
REICHERT NETTO, N. C.; MONTEIRO, F. A. Intoxicação aguda pela samambaia (Pteridium
aquilinum, l. Kuhn), em bovinos da raça Aberdeen Angus. Archives of
Veterinary Science, Curitiba, v.7, n.1, p.77-81, 2002.
MIESNER, M. D. Bovine enzootic
hematuria. In:
SOUTO, M. A. M.; KOMMERS, G. D.; BARROS, C. S. L.; PIAZER,
J. V. M.; RECH, R. R.; RIET-CORREA, F.; SCHILD, A. L. Neoplasias do trato
alimentar superior de bovinos associadas ao consumo espontâneo de samambaia (Pteridium
aquilinum). Pesquisa Veterinária
Brasileira, Rio de Janeiro, v. 26, n.2, p. 112-122, 2006a.
SOUTO, M. A. M.; KOMMERS, G. D.; BARROS, C. S. L.; RECH, R.
R.; PIAZER, J. V. M. Neoplasmas da bexiga associados à hematúria enzoótica bovina.
Ciência Rural, Santa Maria, v. 36,
n. 5, p.1 647-1650, 2006b.
TOKARNIA, C. H.; DÖBEREINER, J.;
PEIXOTO, P. V. Plantas de ação radiomimética. In:___.
Plantas tóxicas do Brasil. Rio de Janeiro: Helianthus, 2000. p. 178-187.
WOSIACKI, R. S.; REIS, A. C. F.; ALFIERI, A.F.; ALFIERI, A. A. Papilomavírus bovino tipo 2 na etiologia da hematúria enzoótica bovina. Semina: Ciências Agrárias, Londrina, v. 23, n. 1, p. 121-130, 2002.