INDICADORES SANGUÍNEOS DE LIPOMOBILIZAÇÃO E FUNÇÃO HEPÁTICA NO INÍCIO DA LACTAÇÃO EM VACAS LEITEIRAS DE ALTA PRODUÇÃO

 

Félix González1, Rodrigo Muiño2, Víctor Pereira3, Rómulo Campos4, José Luis Benedito Castellote3

 

1 Médico veterinário, professor Faculdade de Veterinária, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. CEP: 91540-000.

E-mail: felix.gonzalez@ufrgs.br (autor correspondente)

2 Médico veterinário, Centro Veterinário de Meira, Galícia, Espanha

3 Médico veterinário, professor Faculdade de Veterinária, Universidade de Santiago de Compostela, Lugo, Espanha

4 Médico veterinário, professor Faculdade de Ciências Agropecuárias, Universidade Nacional da Colômbia, Palmira, Colômbia

 

PALAVRAS-CHAVES: Bioquímica sanguínea, cetose, lipidose hepática

 

ABSTRACT

 

BLOOD INDICATORS OF LIPOMOBILIZATION AND HEPATIC FUNCTION IN HIGH YIELDING DAIRY COWS DURING EARLY LACTATION

Blood indicators are used as a tool for diagnosing and estimating the severity of metabolic disorders. This work investigates the relationship between blood indicators of lipomobilization and hepatic function in high yielding dairy cows. Two groups of Holstein cows were studied: 27 early-lactating cows (Group 1) and 14 mid- lactating cows (Group 2). The animals originated from four different herds with similar husbandry characteristics. Blood samples were used to determine concentrations of beta-hydroxybutyrate (BHB), non-esterified fatty acids (NEFA), triglycerides (TG), and other serum components as well as the activity of AST and GGT enzymes. The first group had significantly higher BHB and NEFA levels. High lipomobilization and subclinical ketosis were detected in 67% and 41% of early-lactating cows and 14% and 36% of mid-lactating cows, respectively. NEFA tests were not as sensitive as BHB to diagnose subclinical ketosis. Low TG concentrations were observed in all cows suffering from subclinical ketosis and in 61% of those with high lipomobilization. AST values revealed that 30% had hepatic lipidosis in early lactation. Furthermore, lower concentrations of glucose, total protein, and urea suggested that hepatic function was compromised.

KEYWORDS: Blood biochemistry, hepatic lipidosis, ketosis.

INTRODUÇÃO

A maioria (97%) do gado leiteiro na Galícia está formada por vacas da raça Holandesa de alta produção com média de 7.426 L/lactação (XUNTA DE GALICIA, 2003). Cerca de 2% das vacas de alta produção sofrem cetose e cerca de 1% sofrem desordens hepáticas (BENEDITO, 1998).

A cetose e o fígado gorduroso estão intimamente relacionados e são responsáveis por severas perdas econômicas. Geralmente a cetose clínica em vacas leiteiras ocorre entre a 2ª e a 7ª semanas de lactação (DUFFIELD et al., 1997). A prevalência de cetose subclínica em vacas de alta produção está estimada entre 7% a 32% do rebanho (NIELEN et al., 1994). Esta prevalência é considerada maior no primeiro mês de lactação (BAIRD, 1982).

As vacas leiteiras de alta produção sofrem um balanço energético negativo na 1ª semana de lactação por conta do desequilíbrio entre o gasto de energia envolvendo a produção de leite e a limitada ingestão de alimento (NIELEN et al., 1994), levando a lipomobilização com possibilidade de infiltração de gordura no fígado (AMETAJ et al., 2002). As lesões hepáticas devidas à infiltração de gordura derivada da lipomobilização aumentam a possibilidade de sofrer outros transtornos como cetose, hipocalcemia, deslocamento de abomaso e retenção de placenta (AMETAJ, 2005). A abordagem diagnóstica da lipidose hepática e a suscetibilidade a cetose em vacas de alta produção incluem biopsia ou ecografia de fígado, mas uma análise menos invasiva e mais econômica pode ser o estudo dos indicadores bioquímicos sanguíneos de lipomobilização e de lesão e função hepática (BAIRD, 1982).

O presente trabalho visa estudar as relações entre os indicadores sanguíneos de lipomobilização e de função hepática em vacas leiteiras de alta produção a fim de obter parâmetros que ajudem no diagnóstico da severidade de transtornos metabólicos relacionados com balanço energético negativo no início da lactação.

 

MATERIAL E MÉTODOS

O experimento foi desenvolvido na Região de Galícia (Espanha) em quatro propriedades leiteiras de similares condições de manejo e alimentação. As vacas, todas da raça Holandesa, eram de produção maior de 40 L/dia. Os animais estavam acomodados em free-stalls com camas de areia, alimentados com ração totalmente misturada. As vacas eram ordenhadas duas vezes por dia e o número de vacas em ordenha variou de 92 a 163. Dois grupos de vacas foram selecionados considerando os dias em lactação: um grupo de primeiro mês de lactação (N= 27), considerado como animais de alta lipomobilização e um grupo de 3 a 5 meses de lactação (N= 14), considerado como animais de baixa lipomobilização.

Amostras de sangue foram coletadas da veia coccígea em tubos vacutainer sem anticoagulante após a primeira ordenha da manhã. As amostras foram centrifugadas para obtenção de soro, o qual foi imediatamente congelado em tubos plásticos tipo eppendorf a -20ºC até a determinação bioquímica. Os seguintes metabolitos foram determinados mediante técnicas de espectrofotometria: beta-hidroxibutirato e ácidos graxos não esterificados (Randox, Irlanda), AST, GGT e triglicerídeos (Spinreact, Espanha), glicose, proteína total e albumina (Human, Alemanha), uréia, creatinina, bilirrubina, cálcio e fósforo (RAL, Espanha). A análise estatística incluiu ANOVA multivariada dos principais componentes e teste de Pearson para correlação.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os indicadores de lipomobilização, ácidos graxos não esterificados (NEFA) e beta-hiroxibutirato (BHB) foram mais elevados nas vacas em início da lactação comparados aos valores das vacas no terceiro mês de lactação. Em média, o valor de NEFA das vacas no primeiro mês de lactação foi duas vezes o valor das vacas no terceiro mês de lactação (536,6 vs. 237,2 μmol/L), enquanto que os valores de BHB no primeiro grupo ultrapassaram o limiar de 1,0 mmol/L considerado como normal (DUFFIELD, 2000). Poucos trabalhos indicam qual seria o limiar de concentração sérica de NEFA em que se possa considerar que existe alta lipomobilização, mas valores >400 μmol/L já indicam problemas de balanço energético (OETZEL, 2004). No presente trabalho, 67% das vacas em início de lactação e 14% das vacas em lactação intermédia apresentaram evidência de alta lipomobilização. Concentrações de NEFA >700 μmol/L são compatíveis com cetose (OETZEL, 2004). Cinco vacas de lactação inicial (18,5%) e uma de lactação intermédia (7%) apresentaram valores de NEFA acima desse valor. A cetose subclínica também pode ser diagnosticada com concentrações séricas de BHB acima de 1,2 mmol/L, enquanto que a cetose clínica é diagnosticada com valores de BHB acima de 2,6 mmol/L (OETZEL, 2004). No presente trabalho, 41% das vacas do grupo inicial de lactação e 36% do grupo de lactação mais avançada tiveram BHB acima de 1,2 mmol/L. Os dados sugerem que os valores de NEFA são menos sensíveis para detectar cetose subclínica que os valores de BHB em vacas leiteiras de alta produção.

Uma condição de cetose clínica pode ser diagnosticada quando coincidem sinais clínicos com os seguintes valores de indicadores bioquímicos: BHB >1,2 mmol/L, glicose <2,5 mmol/L, e triglicerídeos <0,12 mmol/L (MUTLU & ABDULLAH, 1998). Sob este critério, 22% das vacas em início de lactação e nenhuma das vacas em lactação avançada tiveram coincidência desses valores. DOKOVIC et al. (2005) mostraram que em vacas cetósicas a concentração sérica de triglicerídeos (TG) é menor que em vacas sadias porque os TG podem estar se acumulando no tecido hepático e não saem para circulação. O presente trabalho mostra que 52% das vacas de alta lipomobilização e 43% das vacas de baixa lipomobilização tiveram valores de TG <0,12 mmol/L. Não houve correlação significativa entre TG e NEFA nem entre TG e BHB, sugerindo que valores isolados de TG não podem ser considerados como indicadores de lipomobilização. Entretanto, todas as vacas que sofreram cetose subclínica pelos critérios citados acima e 61% das vacas com alta lipomobilização (NEFA> 400 μmol/L) tiveram valores de TG menores de 0,1 mmol/L.

Quando o fígado sofre infiltração de gordura é produzida uma lesão das células hepáticas e as enzimas indicadoras de injúria (aspartato aminotransferase - AST e gama glutamiltransferase - GGT) têm atividade aumentada no soro (BOBE et al., 2004). Apesar de o valor médio de AST ser maior nas vacas de lactação inicial não houve diferença significativa entre os dois grupos de vacas (93,1 vs. 84 U/L). STOJEVIĆ et al. (2005) relatam em vacas de raça Holandesa valor máximo de AST de 85 U/L, aquém do valor máximo encontrado neste trabalho (184.5 U/L). Considerando um valor de AST acima de 100 U/L como sugestivo de lesão hepática, este trabalho mostra 30% dos animais de lactação inicial com possível lesão hepática devida provavelmente à infiltração de gordura. Esses animais incluem as vacas cetósicas, as quais tiveram um valor médio de AST de 137,4 U/L. A atividade de GGT foi similar nos dois grupos de vacas (28,9 e 30,6 U/L) e maior que o valor de 17,1 U/L relatado por STOJEVIĆ et al. (2005). Os dados apresentados sugerem que nessas vacas o processo de lipomobilização foi capaz de produzir lesões relevantes no fígado em 1/3 das vacas em lactação inicial e que AST é indicador mais sensível que GGT para detectar lesões hepáticas. A infiltração gordurosa no fígado também pode afetar a concentração de outros componentes do sangue. Glicose, proteína total, albumina e uréia podem estar diminuídas (WEST, 1990). No presente trabalho, a glicemia e as concentrações séricas de proteína total, albumina e uréia das vacas em início de lactação foram menores (P< 0,01) que nas vacas no meio da lactação. Estes metabolitos são indicadores de funcionalidade hepática (BOBE et al., 2004) e sua diminuição pode estar refletindo uma infiltração gordurosa em animais com alta lipomobilização. Possíveis alterações na função hepática podem ter efeito deletério no metabolismo dos animais, com impacto no desempenho na produção e na reprodução.

 

CONCLUSÃO

Os dados de bioquímica sanguínea mostram que vacas leiteiras de alta produção têm alto grau de lipomobilização e risco de cetose no primeiro mês de lactação comparado com vacas no terceiro mês de lactação. Os melhores indicadores para a detecção de cetose e de risco de complicações derivadas são o beta-hidroxibutirato, a enzima AST e os metabolitos glicose, proteína total e uréia. NEFA é útil para detectar lipomobilização mas não tem sensibilidade para detectar cetose.

 

REFERÊNCIAS

AMETAJ, B. N.; BRADFORD, B. J., BOBE, G.; BEITZ, D. C. Acute phase response indicates inflammatory conditions may play a role in the pathogenesis of fatty liver in dairy cows. Jounal of Dairy Science, Champaign, v. 85, suppl. 1, p. 189, 2002.

AMETAJ, B. N. A new understanding of the causes of fatty liver in dairy cows. Advances in Dairy Technology, v. 17, p. 97-112, 2005.

BAIRD, D. G. Primary ketosis in the high producing dairy cow: clinical and subclinical disorders, treatment, prevention and outlook. Journal of Dairy Science, Champaign,v. 65, p. 1-10, 1982.

BENEDITO, J. L. Patología de la producción láctea en Galicia. Conferencia pronunciada en la Real Academia de Ciencias Veterinarias. Disponível em: <http://www.racve.es/actividades/ciencias-basicas/1998-05-27JoseLuisBeneditoCastellote.htm>. Acesso em fevereiro de 2009.

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ĐOKOVIĆ, R.; ŠAMANC, H.; BOŠKOVIĆ-BOGOSAVLJEVIĆ, S.; RADOVIĆ, V. Changes of characteristic blood parameters in ketotic cows. Veterinarski Glasnik, v. 59, suppl. 1-2, p. 221-228, 2005.

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STOJEVIĆ, Z.; PIRŠLJIN, J.; MILINKOVIĆ-TUR, S.; ZDELAR-TUK, M.; LJUBIĆ, B. B. Activities of AST, ALT and GGT in clinically healthy dairy cows during lactation and in the dry period. Veterinarski Arhiv, Zagreb, v. 75, p. 67-73, 2005.

WEST, H. J. Effect on liver function of acetonaemia and the fat cow syndrome in cattle. Research in Veterinary Science, London, v. 48, p. 221–227, 1990.

XUNTA DE GALICIA. Agricultura e Ganderia. Disponível em: <http://www.xunta.es/galicia2003/gl/20_02.htm>. Acesso em fevereiro de 2009.