DOI: 10.5216/cab.v13i2.7653

AVALIAÇÃO CLÍNICA DE BOVINOS INOCULADOS COM VENENO DE Crotalus durissus terrificus DETOXIFICADO POR IODAÇÃO E IODAÇÃO COM ENCAPSULAÇÃO EM LIPOSOMAS

 

Luiz Alberto Lago1, Marilia Martins Melo1, Luis Guilherme Dias Heneine2, Ernani Paulino Lago3, Neide Judith Faria Oliveira4, Paulo Gabriel Pereira Silva Junior5

 

1Professores Doutores da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. lago@vet.ufmg.br
2 Pesquisador Funed- Fundação Ezequiel Dias, Belo Horizonte, MG, Brasil
3Professor Doutor da Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, MG, Brasil
4Professora Doutora do Instituto de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Minas Gerais, Montes Claros, MG, Brasil
5Professor Doutor da Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

RESUMO

Investigou-se a eficiência da detoxificação do veneno crotálico para bovinos, pelos métodos de iodação e iodação com encapsulação em liposomas, através da avaliação clínica dos animais inoculados. Onze fêmeas, com idade média de 18 meses e peso médio de 160 kg, foram inoculadas com 0,03mg/kg de peso vivo do veneno crotálico do tipo crotamina positivo. Cinco animais receberam o veneno iodado livre, cinco, o iodado encapsulado em liposomas e um animal recebeu o mesmo veneno na forma natural, para controle da letalidade da amostra. Avaliações clínicas foram realizadas a cada duas horas após a inoculação do veneno (T0 - T 24). Todos os parâmetros clínicos avaliados (comportamento, postura, temperatura, frequências respiratória, cardíaca e de movimentos de rumem, coloração de mucosas, funções sensorial e motora e alterações no local da inoculação) permaneceram dentro dos limites de normalidade desta espécie durante todo o período estudado. Conclui-se que a iodação do veneno crotálico, com ou sem incorporação em liposomas, suprime o quadro clínico do envenenamento crotálico nos bovinos.
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PALAVRAS-CHAVE: bovino; Crotalus; veneno.

 
CLINICAL EVALUATION OF CATTLE INOCULATED WITH Crotalus durissus terrificus SNAKE VENOM DETOXIFIED BY IODINATION WITH OR WITHOUT ENCAPSULATION INTO LIPOSOMES

 

ABSTRACT

The efficacy of detoxification of the crotalic venom for cattle by iodination and iodination plus encapsulation methods was clinically evaluated. Eleven 18-month-old heifers, weighing 160 kg in average, were used in this study. Groups of five animals were inoculated intramuscularly with 0.03mg/kg with either the detoxified non-encapsulated venom or the detoxified encapsulated venom. One control animal received the same dose of non-detoxified venom by the same route. Clinical evaluations were performed every two hours after venom inoculation (T0 - T 24). All clinical parameters (behaviour, posture, temperature, cardiac, respiratory and rumen movements frequencies, color of mucous membrane, sensorial and motor functions, and alterations at the inoculation site) were within the normal standards of the species throughout the studied period. It could be concluded that iodination of the crotalic venom, with or without incorporation into liposomes, suppresses the clinical manifestations of the crotalic envenomation in cattle.
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KEYWORDS: bovine; Crotalus; venom.




INTRODUÇÃO

As serpentes do gênero Crotalus são responsáveis por 14% dos acidentes ofídicos em humanos no Brasil (NETTO et al. 2004) e provocam a maioria dos envenenamentos fatais (RANGEL-SANTOS et al. 2004). O tratamento desse envenenamento com soro heterólogo obtido de equinos hiperimunizados ainda é a opção disponível mais eficiente (CHOUMET et al. 1998); no entanto, ele causa, frequentemente, reações de hipersensibilidade no paciente humano tratado (NETTO et al. 2002) e provoca graves problemas na sua cadeia produtiva como alto custo orgânico e até mesmo a morte do animal soro-produtor, pois esse veneno é altamente tóxico e pouco imunogênico (CLISSA et al., 1999, FERREIRA JUNIOR et al., 2005). Além disso, apresenta ainda um alto custo na sua linha de produção (GUIDOLIN et al., 1989, FERREIRA JUNIOR et al., 2006).
Muitos estudos têm sido realizados com o objetivo de se encontrar alternativas para resolver esses problemas e a detoxificação do veneno com preservação da sua imunogenicidade parece ser importante passo nessa busca. KOCHOLATY et al. (1968) detoxificaram o veneno da cascavel sul-americana utilizando foto-oxidação e concluíram que, além da atenuação de seus efeitos deletérios, esse processo também preserva sua imunogenicidade. DANIEL et al. (1987) detoxificaram esse veneno mediante iodação controlada e concluíram que o método é eficiente para camundongos. FREITAS (1997) incorporou a crotoxina em liposomas e concluiu que houve redução de, pelo menos, 42 vezes na sua toxicidade.
Esse veneno é uma complexa mistura de peptídeos biologicamente ativos e proteínas com atividades enzimáticas, com capacidade de interferir em inúmeros processos fisiológicos, afetando órgãos e sistemas, causando manifestações clínicas graves e até morte (AZEVEDO-MARQUES et al., 1990; HUDELSON & HUDELSON, 1995; RANGEL-SANTOS et al., 2004; LAGO et al., 2004). A crotoxina é o principal componente neurotóxico dessa mistura, molécula formada por duas sub-unidades, a crotapotina e a crotoxina B, e é a principal causadora da sua letalidade (AIRD et al., 1985; AIRD et al., 1986, RANGEL-SANTOS et al., 2004, SAMPAIO et al., 2006).
Em humanos, o quadro clínico é típico de neuropatia, sendo observada, em alguns casos, a síndrome de rabdomiólise (MAGALHÃES et al., 1986; AMARAL et al., 1988). Os bovinos são mais sensíveis ao veneno da cascavel do que a maioria das outras espécies domésticas (BRASIL & PESTANA, 1909). Eles sobrevivem se inoculados com 0,025mg/kg do veneno, via intramuscular (ARAUJO et al.1963), e morrem em 28 horas se a dose inoculada for de 0,03mg, apresentando um quadro clínico característico de neuropatia com incoordenação motora, tremores musculares e paralisia flácida, contudo, sem alterações significativas na frequência respiratória e na temperatura retal (LAGO et al., 2000).
SOERENSEN et al. (1995) inocularam bovinos com veneno crotálico e observaram que os animais apresentaram incoordenação motora, paralisia do posterior e morte em 24 horas. Os autores concluíram que a temperatura, frequência respiratória, frequência cardíaca e frequência de movimentos de ruminação não são parâmetros de diferenciação clínica e que o edema, nesse caso, é notoriamente inferior ao causado pelo veneno botrópico.
O objetivo deste trabalho foi avaliar a eficiência da detoxicação do veneno da Crotalus durissus terrificus para bovinos, pelos métodos de iodação e iodação com encapsulação em liposomas, por meio da avaliação clínica, para subsidiar estudos de imunogenicidade deste veneno nesta espécie.

MATERIAL E MÉTODOS

O experimento foi realizado em abril de 2001 e foram utilizadas 11 novilhas mestiças, com idade média de 18 meses e peso médio de 160 kg. Os animais foram mantidos em baias, identificados, vermifugados com albendazol
(Valbazen-SmithKline) e banhados com solução de amitraz (Triatox-Mallinckrodt), segundo recomendação do fabricante, no dia seguinte ao de sua chegada ao hospital veterinário. Foram formados três grupos experimentais: no Grupo VI (n=5), os animais receberam inoculação com veneno iodado livre; no Grupo VILP (n=5), inoculação com veneno iodado incorporado em liposomas; no Grupo V, um animal recebeu a inoculação com veneno na forma natural, para verificação da letalidade (controle).O veneno utilizado foi o crotálico do tipo crotamina positivo, fornecido pelo Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Fundação Ezequiel Dias (FUNED) que foi diluído em solução salina 0,85% e fracionado em duas alíquotas. A primeira alíquota, na concentração de 5,00mg/ml, foi inoculada no animal do Grupo V e a segunda, submetida à iodação, segundo HENEINE et al. (1986), foi subdividida em duas frações: a primeira, na concentração de 8,39mg/ml, foi inoculada nos animais do Grupo VI e a segunda, na concentração de 6,00mg/mL, submetida ao processo de incorporação do veneno em liposomas, segundo FREITAS et al. (1997), foi inoculada nos animais do Grupo VILP. A inoculação do veneno, na dose de 0,03mg/kg, foi feita por via intramuscular, na região glútea, conforme BELLUOMINI (1972).
Antes da inoculação do veneno (tempo zero) e a cada duas horas, durante 24 horas (T2 a T24), foram realizados exames clínicos
e colheita de sangue venoso da jugular em tubos venoject (Terumo Medical Corporation). Foi definido um protocolo de exame clínico com avaliação do comportamento e da postura, medição da temperatura retal, frequências respiratória, cardíaca e de movimentos de rumem, coloração de mucosas, avaliação das funções sensorial e motora e de alterações no local da inoculação. A concentração do veneno no soro sanguíneo dos animais foi determinada por teste imunoenzimático (ELISA), segundo HENEINE et al. (1990). O animal do Grupo V foi necropsiado e os fragmentos de órgãos colhidos foram conservados em formol a 10% e em seguida, processados e corados pela hematoxilina-eosina, segundo LUNA (1968). O delineamento experimental foi um sistema de “blocos ao acaso”, em que cada animal configurou um bloco, destacando-se o T0 como sendo o controle experimental (cada animal é controle absoluto e perfeito de si mesmo, SNEDECOR & COCHRAM, 1967). Análise de variância e os testes de Kruskal-Wallis e de Scott-Knott, foram usados para verificação das diferenças entre as médias. Este trabalho não foi submetido à Comissão de Ética de Experimentação Animal por ser anterior à Lei 11.794/08 da Constituição Federal que regulamenta e estabelece procedimentos para o uso científico de animais. Trata-se de dados experimentais de banco de teses, cujo experimento foi realizado no mês de abril de 2001 e seu projeto de pesquisa devidamente aprovado e registrado pela Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais no ano de 1998; portanto, num período em que não havia Comissão de Ética e Experimentação Animal (CETEA) nesta instituição.

RESULTADOS

A Figura 1 ilustra o perfil da concentração do veneno crotálico na circulação dos animais utilizados no experimento. O grupo tratado com veneno iodado (VI) apresentou uma concentração de veneno mais elevada e com oscilações maiores durante todo o período estudado. O grupo tratado com veneno iodado encapsulado em liposomas (VILP) apresentou um perfil com concentração baixa, mas bastante estável durante todo tempo. Todos os grupos mostraram aumentos entre duas e 4 horas após, sendo mais altos e o mais rápidos no Grupo VI. Embora a diferença de concentração entre os Grupos VI e VILP seja grande, o perfil apresentado é muito semelhante, com três picos observados em três, 11 e 18 horas após o envenenamento. O Grupo V apresentou uma concentração máxima em quatro horas, caindo a valores em torno de 1,0ng/mL em oito horas e assim permanecendo até a morte do animal.
As Figuras 2 e 3 ilustram os perfis da temperatura, frequências respiratória, cardíaca e de movimentos ruminais dos animais utilizados no experimento. Houve diferenças estatísticas significativas entre os tempos T4, 6, 8, 10, T0, 2, 12, T14, 22, 24 e T0, 16, 18, 20, para temperatura; T2, 4, 6, 8,10, 12, 24 e os demais para frequência respiratória; T2, 4, 6, 8, 10, 12, T14, 16, 22, 24 e T0, 18, 20, para frequência cardíaca entre os Grupos VI e VILP; contudo, os valores permaneceram dentro dos limites de normalidade da espécie. O animal do Grupo V apresentou em T20 diminuição da frequência respiratória, acompanhada de dispnéia, sialorréia seguida de morte 21 horas após envenenamento. Os animais dos Grupos VI e VILP apresentaram discreta inapetência, que desapareceu após o período experimental e não foram observadas alterações dos outros parâmetros clínicos estudados.
O animal do Grupo V apresentou quadro clínico típico do envenenamento crotálico conforme descrito por SOERENSEN et al. (1995) e também LAGO et al. (2000) pois, logo após a inoculação, já apresentou inquietação e desconforto e após duas horas observou-se apatia com cabeça baixa, letargia e edemaciação discreta no local da inoculação. Dez horas após a inoculação o edema já havia desaparecido e diminuição da sensibilidade superficial, do tônus muscular, do reflexo patelar, com incoordenação motora e decúbito external foram observados. Decorridas 16 horas da inoculação o animal apresentou paralisia flácida dos membros pélvicos e, ao completar 20 horas, surgiram dispnéia e sialorréia, culminando com a morte passadas vinte e uma horas desde o envenenamento.
O estudo anatomo-histopatológico desse animal revelou lesões discretas como pequenas áreas hemorrágicas do tipo sufusões e petéquias na musculatura esquelética e cardíaca, degenerações hialina, vacuolizações e estriações nas fibras musculares e infiltrados de células polimorfonucleares, principalmente no local da inoculação do veneno.
A estabilidade e baixa concentração de veneno no soro apresentada pelo Grupo VILP ocorreram, principalmente, porque uma das propriedades dos liposomas é exatamente permitir que o veneno seja liberado mais lentamente, portanto, em quantidades menores e mais constantes (FREITAS & FREZARD, 1997). Nisso consiste um dos principais efeitos imunoadjuvantes dos liposomas.
As maiores médias da temperatura e frequências respiratória e cardíaca observadas nos tempos entre T2 e T12 e no tempo T24 ocorreram possivelmente porque essas medições começaram às nove horas, logo, os cinco tempos seguintes e o T24, coincidiram com o período mais quente do dia. Além disso, outro fator que possivelmente contribuiu para essa discreta hipertermia é o fato de que os animais estavam alojados num galpão cujo teto é de amianto e com ventilação deficiente. O esforço físico dos animais a cada colheita de material, durante sua contenção, também contribuíram para a elevação de temperatura observada. A eliminação de calor via respiratória, vasodilatação periférica e elevação da frequência cardíaca fazem parte do mecanismo fisiológico de termólise (SILVA, 2000 STARLING et al., 2002).
A observação de valores de temperatura do Grupo VILP, discretamente superiores, ocorreu provavelmente devido aos liposomas, por meio de seu efeito imunoadjuvante de liberação lenta e em menores quantidades do veneno e do processo inflamatório provocado pela sua presença. A síndrome febril pode estar presente no quadro clínico do acidente ofídico crotálico segundo HUDELSON & HUDELSON (1995).
Casos relatados por AMARAL et al. (1988) apresentaram temperatura sem alteração. SOERENSEN et al. (1995) investigaram o quadro clínico do envenenamento crotálico e botrópico bovino e concluíram que temperatura, freqüência respiratória e frequência cardíaca não são parâmetros de diferenciação clínica entre esses envenenamentos. LAGO et al. (2000) observaram que a temperatura e a frequência respiratória dos animais inoculados com esse veneno mantiveram-se normais até 20 horas desde o envenenamento, quando começaram a cair.
Embora a frequência respiratória tenha se elevado nos Grupos VI e VILP, dispnéia foi observada apenas no animal do Grupo V. Diversos autores relatam dispnéia nesse envenenamento em humanos (MAGALHÃES et al., 1986; AZEVEDO-MARQUES et al., 1990; JORGE & RIBEIRO, 1992, LAGO et al., 2000; e LAGO et al., 2004). A discreta inapetência apresentada pelos animais dos Grupos VI VILP provavelmente decorreu do estado de desconforto e manipulação a cada duas horas a que foram submetidos.

CONCLUSÃO

De acordo com os resultados observados neste trabalho, conclui-se que a iodação com ou sem encapsulação em liposomas suprime completamente o quadro clínico do envenenamento crotálico em bovinos e, portanto, a metodologia de detoxificação do veneno utilizado mostrou-se eficiente. Diante disso, fica evidente a necessidade da realização de estudos da imunogenicidade do veneno detoxificado por esse método.

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Protocolado em: 07 out. 2009.    Aceito em: 09 abr. 2012.