O presente estudo descreve uma
técnica para obtenção de fragmentos luteais empregando-se a colpotomia.
Os animais foram submetidos à anestesia epidural e no fórnix vaginal e,
após dez minutos, realizou-se uma incisão no fundo vaginal com lâmina
de bisturi, bem como procedeu-se à dissecção do tecido, até que fossem
possíveis o acesso à cavidade pélvica e a tração dos ovários para o
interior vaginal. Realizou-se, então, a colheita de biopsia luteínica,
com o auxílio de uma pinça do tipo Yomann. Sinais de dor e estresse
foram observados apenas em duas colheitas durante a incisão no fundo
vaginal, a tração do ovário ou durante a biopsia luteínica. Contudo,
esses sinais foram observados em dez colheitas durante a dissecção da
parede vaginal e peritôneo. Registrou-se a ocorrência de ataxia em
38,81% colheitas, a qual esteve relacionada, normalmente, a um
procedimento mais longo. As ataxias podem ser divididas em leve
(15/26), moderada (6/26) e severa (5/26). A avaliação da presença de
adesões ovarianas ipsilaterais à incisão realizou-se apenas até a
quarta colheita, sendo notadas em dezesseis colheitas. O protocolo
empregado mostrou-se um método seguro e eficiente na obtenção de
fragmentos luteais. A baixa incidência de aderências permite o uso
consecutivo das fêmeas sem interferência nas ovulações e colheitas
subsequentes.
PALAVRAS-CHAVES: Biopsia luteal, corpo lúteo, colpotomia, Nelore (
Bos indicus).
ABSTRACT
LUTEAL BIOPSY IN NELLORE COWS
The present study describes a technique to obtain consecutive luteal
samples by colpotomy. The animals received an epidural anesthesia and
local anesthesia (vaginal vault) and after ten minutes the vaginal
vault was incised with a scalpel blade and tissue was dissected to
provide access to the pelvic cavity and to retract the ovary into the
vagina. Then, a luteal biopsy was performed with a Yomann biopsy
nipper. Signs indicative of pain and stress during the vaginal vault
incision, traction of ovary or luteal biopsy were observed only in two
collections. However, these signs were observed in ten collections
during dissection of the vaginal wall and peritoneum. The occurrence of
ataxia was observed in 26 collections and it was usually related to a
longer duration of the procedure. Ataxia could be divided in light
(15/26), moderate (6/26) and severe (5/26). The occurrence of ovarian
adhesions ipsilateral to the incision was evaluated only in the initial
four collections. Adhesions were present in 16 collections. The
protocol described above provided a safe and efficient method to
acquire luteal samples. The low incidence of adhesions allows the
consecutive use of females without any interference in subsequent
ovulations and collections.
KEYWORDS: Colpotomy, corpus luteum, luteal biopsy, Nellore (
Bos indicus).
INTRODUÇÃO
Diversos pesquisadores vêm empregando a colheita de fragmentos luteais
para o estudo da fisiologia do corpo lúteo (VAN DEN BROECK
et al., 2002a; VAN DEN BROECK
et al., 2002b; D’HAESELEER
et al., 2006a; D’HAESELEER
et al., 2006b; D’HAESELEER
et al.,
2007). Contudo, a maioria dos estudos é realizada com fragmentos de
ovários provenientes de abatedouro, para os quais a fase do ciclo
estral é determinada de acordo com o desenvolvimento folicular,
características morfológicas do corpo lúteo e atividade secretora do
trato genital feminino (IRELAND
et al., 1980).
A partir desses achados foram determinadas quatro fases do ciclo
estral, a saber: fase I (1º – 4º dia), fase II (5º – 10º), fase III
(11º –17º) e fase IV (18º – 20º). Quando se empregou essa classificação
em animas com o dia do ciclo estral conhecido, a fase do ciclo estral
foi determinada corretamente, com erro de mais ou menos um dia, em 70%
dos animais e, incorretamente, nos demais (30%; IRELAND
et al., 1980).
Portanto, considerando-se que alguns eventos fisiológicos do ciclo
estral ocorrem em curtos períodos de tempo, tais como a ovulação e a
luteólise, a classificação morfológica pode gerar erros importantes,
como, por exemplo, classificar uma fase como proestro quando ainda
existem elevadas concentrações plasmáticas de progesterona.
Como método alternativo, KOT
et al.
(1999) relataram a colheita de biopsias luteais guiadas pela
ultrassonografia transretal, em dias conhecidos do ciclo estral,
empregando agulhas do tipo Tru-cut®, acopladas a uma guia de aspiração
folicular. Contudo, tal técnica apresenta como limitações o elevado
custo dos equipamentos necessários e a dificuldade de obtenção das
agulhas.
Outros investigadores têm empregado a colpotomia (incisão no fundo vaginal) para a realização de ovariectomia (DROST
et al., 1992; CASSAR
et al., 2002; JO
et al., 2002; SILVA
et al., 2004; KLIEM
et al.,
2008). Porém essa técnica impossibilita a reutilização dessa fêmea para
fins reprodutivos, quando bilateral, ou restringe o seu uso a apenas
duas colheitas, uma de cada ovário.
O objetivo do presente estudo foi descrever uma técnica para obtenção
de fragmentos luteais consecutivos, empregando-se a colpotomia, sem
comprometer a função ovariana em fêmeas da raça Nelore.
MATERIAL E MÉTODOS
Utilizaram-se dezesseis vacas Nelore Puro de Origem (P.O.), adultas
(primíparas e pluríparas), com escore corporal igual ou superior a 3
(escala de 0 a 5; HOUGHTON
et al.,
1990), apresentando atividade ovariana cíclica e período pós-parto
superior a sessenta dias, provenientes dos rebanhos das Fazendas
Experimentais São Manuel e Edigárdia da Faculdade de Medicina
Veterinária e Zootecnia (Unesp), Campus de Botucatu. Os animais foram
alocados em baias descobertas, trinta dias antes do início do estudo, e
durante todo o período em que permaneceram estabulados receberam uma
dieta balanceada contendo feno de coast-cross, bagaço de cana, milho,
farelo de soja e concentrado e água à vontade.
Após o período de adaptação de trinta dias às condições experimentais,
submeteram-se os animais à sincronização do estro com um análogo de
GnRH (50 µg de lecirelina, Gestran Plus® (Gestran Plus, Tecnopec Ltda.,
São Paulo, Brasil), IM) e colocação de um implante intravaginal de
progesterona (Primer®) (Primer, Tecnopec Ltda., São Paulo, Brasil.), o
qual foi mantido por sete dias. Nos dias 6 e 7, administraram-se 5,0 mg
e 2,5 mg de cloprostenol (Sincrosin®, - Sincrosin, Vallee S.A., São
Paulo, Brasil - IM), respectivamente. Posteriormente, as fêmeas foram
acompanhadas por ultrassonografia transretal (Aloka SSD 500 (Aloka Co.
Ltda., Tokyo, Japan.) com transdutor de 5,0 MHz) até que a ovulação
fosse detectada (D1= dia um do ciclo estral).
Os animais sincronizados foram submetidos às colheitas de fragmentos
luteais em dias pré-determinados do ciclo estral (D6, D10, D15, D18 e
24 horas após a detecção das concentrações plasmáticas de progesterona
abaixo de 1 ng/mL – pós-luteólise), em cinco ciclos estrais
consecutivos. Após cada colheita, realizou-se a administração de PGF2α
e os animais foram ressincronizados, de modo a permitir o
desenvolvimento de outra colheita no ciclo subsequente (intervalo médio
ao redor de um mês).
Antes de cada colheita, os ovários de cada fêmea foram avaliadas por
ultrassonografia transretal para caracterização do corpo lúteo (CL) e a
região perineal higienizada com água corrente, sabão e solução de
Kilol® ( Kilol, Quinabra, São José dos Campos, SP, Brasil.) na diluição
de 1:250 mL.
Anteriormente ao procedimento de colheita das amostras luteais,
empregou-se o seguinte protocolo anestésico: anestesia epidural,
combinando os anestésicos cloridrato de lidocaina 2% (Xylestesin® 2% -
Xylestesin, Cristália Ltda., Itapira, SP, Brasil.), na dose média de
0,14 mg/kg (de 0,10 a 0,18 mg/kg), e cloridrato de xilazina (Rompum®
‑ Rompum, Bayer S.A., São Paulo, SP, Brasil.), na dose média de
0,017 mg/kg (de 0,029 a 0,009 mg/kg). Adicionalmente, desenvolveu-se um
bloqueio local no fórnix vaginal com 15 a 20 mL de cloridrato de
lidocaína 2% com o auxílio de um equipo acoplado a uma seringa de 20 mL
(Figura 1).
Dez minutos após o procedimento anestésico, procedeu-se a uma incisão
de aproximadamente oito centímetros de comprimento, na região
dorsolateral no fórnix vaginal ipsilateral ao ovário que continha o
corpo lúteo, com uma lâmina de bisturi acoplada a um estilete de uso
comum, que permitia a retração da extremidade e superfície cortante
durante a introdução no vestíbulo vaginal (
Figura 1).
O procedimento permitia, sem grandes dificuldades, o acesso à cavidade
pélvica. Contudo, em algumas fêmeas, foi necessária maior divulsão do
tecido submucoso, muscular e peritôneo.
Após a incisão no fórnix, introduziu-se a mão na cavidade pélvica e
localizava-se o ovário, que foi tracionado até o interior da vagina, de
modo a permitir a colheita de fragmentos luteais com o auxílio de uma
pinça do tipo Yomann (“boca de jacaré”), que possuía uma cavidade de
1,0 x 0,3 x 0,4 cm (comprimento x largura x altura).
No pós-operatório foram empregados, por via intramuscular, penicilina
benzatina (15.000 UI/kg de peso vivo; Septipen®) (Septipen, Vallee
S.A., São Paulo, SP, Brasil.) e flunixin meglumine (Flunixin Injetável,
Chemitec, São Paulo, SP, Brasil.) na dose de 2,2 mg/kg.
As pinças empregadas no presente estudo foram lavadas após cada uso em
água corrente e sabão neutro e, posteriormente, mantidas em solução de
Kilol®, na diluição de 1:250 mL, até o uso subsequente. Ao final de
cada dia, lavaram-se as pinças novamente em água corrente e sabão,
sendo secas em estufa convencional e mantidas embrulhadas em um campo
cirúrgico.
Os fragmentos obtidos foram retirados da pinça com auxílio de uma
agulha, lavados em solução fisiológica e acondicionados para posterior
uso em técnicas de imunoistoquímica e RT-PCR. Adicionalmente
realizou-se a coloração de hematoxilina-eosina para avaliação das
características histológicas do corpo lúteo bovino ao longo do ciclo
estral (
Figura 2).
Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética no Uso de Animais da
Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Estadual
Paulista “Julio de Mesquita Filho,” Campus de Botucatu.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A técnica descrita para biopsia luteal se mostrou viável, com a
obtenção de fragmentos satisfatórios em todos os animais submetidos ao
procedimento. Contudo, em função de algumas falhas de ovulação durante
a sincronização do ciclo, foram realizadas sessenta e sete colheitas,
ao invés das oitenta inicialmente previstas. As amostras luteais
obtidas mostraram-se adequadas para os fins pretendidos, como a
avaliação histológica pela coloração de hematoxilina-eosina (
Figura 2), reações de imunoistoquímica e extração de RNA.
Após a sincronização subsequente, procedeu-se à avaliação diária das
fêmeas por meio de ultrassonografia transretal, para verificar a
ocorrência da ovulação. Nesse período, foi possível observar a presença
de muco vaginal com estrias de pus em 18,52% (10/54) das fêmeas.
Assinale-se que essas vacas estavam com um implante vaginal, o que pode
ter facilitado a ocorrência de vaginites.
O protocolo anestésico empregado no presente estudo foi semelhante ao descrito por LEE
et al.
(2004) em fêmeas holandesas. Tais autores observaram boa sedação e
possibilidade de executar uma laparotomia com o emprego de 0,25 mg/kg
de cloridrato de xilazina associado a 0,10 mg/kg de cloridrato de
lidocaína no espaço epidural. No presente estudo, foi inicialmente
empregada a dose descrita para as fêmeas holandesas. Contudo, como os
animais apresentaram intensa ataxia após o procedimento, houve a
necessidade de diminuir a dose de cloridrato de xilazina preconizada,
adaptando-a às fêmeas Nelore, que se mostraram mais susceptíveis a esse
fármaco.
Assim, a dose de cloridrato de xilazina empregada no presente estudo é
bem inferior àquela descrita na literatura (0,05 mg/kg, CARON &
LEBLANC
et al., 1989; ST JEAN
et al., 1990; 0,07 mg/kg, CAULKETT
et al., 1993).
A anestesia empregada neste estudo permitiu a colheita das biopsias
luteais com as fêmeas permanecendo em estação durante todo o
procedimento. Para que as fêmeas com sinais de ataxia permanecessem em
estação, foram empregadas cintas, presas ao tronco de contenção, ao
redor dos membros anteriores e posteriores. Esse procedimento resultou
em sinais de dor e estresse (vocalização, sialorreia, inquietação e
comportamento de fuga) observados em apenas 2,99% (2/67) das colheitas
durante a incisão no fundo vaginal, a tração do ovário ou durante a
biopsia luteínica e em 14,93% (10/67) das colheitas durante a dissecção
da parede vaginal e peritôneo. Durante o estudo, notou-se que o
procedimento de divulsão da parede vaginal aumentava o desconforto da
fêmea. Por isso, optou-se por uma incisão maior no fundo vaginal, com
menor necessidade de divulsão da parede.
A ocorrência de ataxia foi observada em 38,81% (26/67) das colheitas, e
geralmente estava relacionada com os procedimentos mais demorados e não
aos sinais de dor ou a dose empregada na anestesia, uma vez que a
redução da dose de cloridrato de xilazina não suprimiu a ocorrência de
ataxia. A maioria dos episódios de ataxia observados (57,69% – 15/26)
foi leve. A ocorrência de ataxia moderada ou severa foi visualizada em
apenas 23,08% (6/26) e 19,23% (5/26) das colheitas, respectivamente.
Esses resultados diferem dos encontrados por St JEAN
et al. (1990), que relataram 75% (6/8) de ataxia moderada nas fêmeas estudadas, e dos citados por CARON & LEBLANC
et al. (1989), que mencionaram alta taxa de ataxia moderada. Já CAULKETT
et al. (1993) observaram 27,6% de ataxia, variando de leve a moderada, taxa semelhante à registrada no presente estudo.
De forma contrária, HIRAOKA
et al.
(2007) relataram a ocorrência de ataxia em apenas 1,12% (1/90) dos
animais, mas 5,56% (5/90) dos animais permaneceram em decúbito esternal
durante ou após o procedimento cirúrgico. Adicionalmente, neste estudo
7,69% (2/26) das fêmeas que apresentaram ataxia tiveram dificuldade em
permanecer em estação após o procedimento, o que foi relatado por
HIRAOKA
et al. (2007), mas não por ST JEAN
et al. (1990).
Quanto ao procedimento cirúrgico empregado no presente estudo, foi
observada aderência ovariana ipsilateral à incisão em 25,93% (14/54)
das fêmeas, sem que essa acarretasse o comprometimento das ovulações e
biopsias subsequentes. Observe-se que essa avaliação foi feita apenas
até a quarta colheita. Porcentagem maior foi observada por DROST
et al.
(1992), que relataram aderência ipsilateral em três animais, adesão
generalizada em uma vaca após primeira incisão e em duas vacas após
duas incisões (35,29%; 6/17). Esses autores também mencionaram
dificuldades na localização da incisão quando esta era realizada com o
emprego de um pequeno trocater ou uma tesoura, o que não foi verificado
no presente estudo. O emprego da incisão com a lâmina de bisturi
permitiu a obtenção de um orifício de fácil localização e de tamanho
suficiente para a recuperação do ovário até o canal vaginal.
Assim como descrito por DROST
et al.
(1992), não foi verificada a ocorrência de anorexia ou qualquer
alteração sistêmica nos animais empregados no presente estudo, e também
não se notou a ocorrência de perfuração intestinal ou da bexiga, assim
como suposto por SILVA
et al.
(2004). Neste estudo, verificou-se a ocorrência de vaginite em 14,63%
(10/67) das fêmeas, com a presença de muco purulento em apenas em três
(4,48%; 3/67). Deve-se considerar, neste caso, a possibilidade de a
contaminação e/ou irritação advir do implante intravaginal.
SILVA
et al. (2004) compararam
a via vaginal (colpotomia) com o flanco para o acesso ao ovário e
concluíram que a via vaginal requer mais tempo, maior experiência do
técnico, causa maior desconforto ao animal, além de ser desconfortável
ao cirurgião. Contudo, é a que apresenta menos complicações
pós-operatórias. No presente estudo, embora não se tenha comparado
diferentes técnicas operatórias, a colpotomia se mostrou rápida, o
cirurgião rapidamente adquiriu prática e não foi observado grande
desconforto ao animal ou ao cirurgião. A via vaginal teve ainda como
vantagem a rápida cicatrização, não requereu sutura e apresentou baixa
incidência de complicações pós-operatórias.
Todos os sinais descritos ocorreram de forma independente, não havendo
qualquer correlação entre a ocorrência de dor, ataxia e aderências
ovarianas.
CONCLUSÕES
O protocolo anestésico e a técnica cirúrgica empregados mostraram-se
seguros e eficientes na obtenção de fragmentos com tamanho adequado
para uso em estudos da anatomia funcional luteínica envolvendo as
técnicas histológicas-padrão, imunoistoquímica e de biologia molecular.
A baixa incidência de aderências permite o uso consecutivo das fêmeas,
sem interferência nas ovulações e colheitas subsequentes. Novos estudos
são necessários para que se investigue a fertilidade futura desses
animais.
AGRADECIMENTOS
À Fapesp, pelo suporte financeiro.
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Protocolado em: 25 ago. 2009. Aceito em: 17 mar. 2010.