Resumo
Objetivou-se com este trabalho investigar as características sanitárias e de manejo das revendas de aves vivas, bem como a identificação e caracterização antigênica de Salmonella enterica e sua sensibilidade a antimicrobianos. Foram aplicados questionários estruturados, além de 627 amostras coletadas nas gaiolas, sendo 209 de excretas, 209 de ração e 209 suabes de bebedouros. Essas amostras foram processadas por bacteriologia convencional. Os isolados obtidos foram submetidos ao teste de suscetibilidade e a 12 antimicrobianos pelo método de difusão em disco. Verificou-se que 91,7% das revendas estudadas alojam Gallus gallus domesticus juntamente a outras espécies animais, comercializam aves com escassa documentação zoosanitária, a vigilância ativa é insatisfatória e utilizam e comercializam antimicrobianos de forma indiscriminada. Detectou-se a presença da Salmonella enterica em 1,4% (9/627) das amostras analisadas nas gaiolas, sendo 1,9% (4/209) em excretas, 0,95% (2/209) em ração e em 1,4% (3/209) em suabes de bebedouros, as quais foram caracterizadas, antigenicamente, como Salmonella Heidelberg, Gallinarum, Risen, Ndolo, Saint Paul, Mbandaka e subesp enterica O:6,7. Na determinação da suscetibilidade aos antimicrobianos, obteve-se resistência de 44,4% (4/9) para Trimetoprim-sulfametoxazol, 33,3% (3/9) para enrofloxacina, 22,2% (2/9) para ciprofloxacina, ceftiofur, amoxicilina e 11,1% (1/9) para tetraciclina e fosfomicina. Salmonella Heidelberg, além dos sorovares Gallinarum, Risen, Saint Paul e Mbandaka, todos mostraram resistência a pelo menos um dos antimicrobianos testados. Trimetoprim-sulfametoxazol e enrofloxacina foram os antimicrobianos que apresentaram menor eficácia. Sorovares como Heidelberg, Gallinarum e Mbandaka apresentam multirresistência aos antimicrobianos de uso comum em medicina humana e veterinária, o que implica em riscos potenciais para saúde única.
Palavras-chave: Água. Excretas. Galinhas. Ração. Salmonelose.
Abstract
The objective of this study was to investigate the sanitary and management characteristics of live-bird resellers as well as identify and undertake an antigenic characterization of Salmonella enterica and its sensitivity to antimicrobials. Structured questionnaires were applied and 627 samples were collected from the cages, consisting 209 samples of excreta, 209 of feed and 209 drinker swabs. These were processed by conventional bacteriology. The obtained isolates were subjected to the susceptibility test and to 12 antimicrobial tests by the disk diffusion method. Of the studied resellers, 91.7% house Gallus gallus domesticus, together with other animal species; sell birds with little zoosanitary documentation; have unsatisfactory active surveillance; and use and sell antimicrobials indiscriminately. The presence of Salmonella enterica was detected in 1.4% (9/627) of the samples analyzed in the cages, with 1.9% (4/209) found in excreta, 0.95% (2/209) in feed and in 1.4% (3/209) in drinker swabs. These were characterized antigenically as Salmonella Heidelberg, Gallinarum, Risen, Ndolo, Saint Paul, Mbandaka and subsp enterica O:6,7. When susceptibility to antimicrobials was determined, 44.4% resistance (4/9) was detected for trimethoprim-sulfamethoxazole, 33.3% (3/9) for enrofloxacin, 22.2% (2/9) for ciprofloxacin, ceftiofur and amoxicillin and 11.1% (1/9) for tetracycline and fosfomycin. Salmonella Heidelberg, as well as serovars Gallinarum, Risen, Saint Paul and Mbandaka, showed resistance to at least one of the tested antimicrobials. Trimethoprim-sulfamethoxazole and enrofloxacin were the antimicrobials that showed the least efficacy. Serovars such as Heidelberg, Gallinarum and Mbandaka have multiresistance to antimicrobials commonly used in human and veterinary medicine, implying potential risks to One Health.
Keywords: Chickens. Excreta. Feed. Salmonellosis. Water.
Seção: Medicina Veterinária
Recebido
25 de julho de 2020.
Aceito
31 de agosto de 2020.
Publicado
26 de outubro de 2020.
www.revistas.ufg.br/vet
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Introdução
As revendas de aves vivas, comuns em todo o Brasil, acontecem em estabelecimentos comerciais onde há alojamento e trânsito de aves de espécies, origem e destinos diversificados. As aves da espécie Gallus gallus domesticus convivem, nesse ambiente, com outros animais, como os psitacídeos, anseriformes, répteis, passeriformes e mamíferos, comercializados para pequena escala de produção. Essas revendas são fiscalizadas em vários parâmetros, de acordo com a legislação, contudo, tem se mostrado insuficiente para contornar, de forma mais efetiva, questões sanitárias, principalmente o controle de agentes patogênicos em casas de revenda, criações alternativas e caipiras(1).
Mesmo o Programa Nacional de Sanidade Avícola (PNSA), instituído no Brasil em 1994, que se estruturou em aspectos legais e sanitários na mitigação de risco e no controle de trânsito nos estabelecimentos avícolas(1), não abordou ações em relação às revendas de aves vivas, deixando aos estados essa atribuição. O PNSA instituiu o monitoramento de Salmonella Enteritidis, Salmonella Typhimurium, Salmonella Pullorum, Salmonella Gallinarum em Gallus gallus domesticus destinados aos estabelecimentos de reprodução e comerciais de corte e postura. Entretanto, o programa não contemplou o controle desses agentes em revendas, em criações alternativas e/ou caipiras, transferindo a responsabilidade aos estados.
A proteção da indústria avícola é importante não apenas no que diz respeito à produtividade, como também em defesa sanitária, visto que, em Goiás, é composta de oito incubatórios, 63 matrizeiros, sete matrizeiros de recria, dois bisavoseiros, um avoseiro e 975 estabelecimentos comerciais de frangos de corte galinhas e poedeiras(1).
As aves, assim como diferentes espécies animais, podem abrigar no trato intestinal bactérias patogênicas, como Salmonella, as quais podem constituir-se em potenciais reservatórios de doenças zoonóticas. Além disso, evidências assinalam que essas aves podem disseminar genes de resistência a drogas antimicrobianas(2). Os quimioterápicos possuem relevância na produção avícola, os quais são utilizados como função terapêutica, profilática, além de moduladores de crescimento(3) e, possivelmente, promovem o bem-estar dos animais. Porém, podem causar possíveis impactos na saúde e, seu uso abusivo, segundo a Organização Mundial da Saúde, potencialmente, pode pomover a resistência antimicrobiana, o que reforça a necessidade de adotar medidas para limitar a propagação da resistência(4).
Ressalta-se que a utilização facilitada de antimicrobianos, potencialmente, pode implicar em riscos potenciais para a seleção de bactérias resistentes, o que pode interferir no controle de importantes doenças, comuns entre as aves e o homem(2). Assim, este trabalho foi desenvolvido com o objetivo de investigar as características sanitárias de manejo das revendas de aves vivas na região metropolitana de Goiânia, Goiás, bem como identificar a presença de Salmonella enterica com a caracterização antigênica e a sensibilidade dos isolados a antimicrobianos.
Material e Métodos
O projeto foi aprovado pela Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA)/UFG sob o protocolo nº 107/17 e com a autorização dos proprietários das revendas, por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As análises foram realizadas no laboratório de Bacteriologia do Departamento de Medicina Veterinária da Escola de Veterinária e Zootecnia (EVZ), da Universidade Federal de Goiás (UFG), e a caracterização antigênica dos isolados foi procedida no Laboratório Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Rio de Janeiro.
Para a coleta das amostras, foram selecionados, por conveniência, 60 estabelecimentos, distribuídos em 12 municípios da região metropolitana de Goiânia, que abrigavam Gallus gallus domesticus. O número de revendas estudadas variou com base no número existente em cada município. As revendas foram visitadas e questionários estruturados compostos por questões fechadas foram respondidos pelos responsáveis dos estabelecimentos com a finalidade de obter informações sobre origem das aves, fonte e destino da água utilizada, destino das aves mortas e dos dejetos, alimentação fornecida, comercialização e utilização de antimicrobianos.
As coletas das amostras foram realizadas de acordo com o número de baterias de cada estabelecimento, as quais foram estratificadas em cinco estratos com coleta de 100%, 80%, 60%, 40% e 20% das baterias com Gallus gallus domesticus, num total de 209 baterias amostradas. Foram coletadas 30g de excretas das bandejas, 30g de ração dos comedouros e três suabes de bebedouros, que constituíram uma amostra, somando-se 627 amostras.
Após a coleta, as amostras foram homogeneizadas, identificadas e transportadas em caixas isotérmicas, contendo gelo reciclável, ao laboratório para processamento, as quais foram processadas segundo Brasil(5,6), com modificações: excretas e ração foram pesadas em uma quantidade de 25g; em seguida, todas as amostras, inclusive os suabes de bebedouro, foram acrescidas de 225 mL de água peptonada a 1%, homogeneizadas e incubadas a 37 ºC por 24 horas.
Em seguida, foi realizada a homogeinização das amostras e 1 mL da solução foi retirado e transferido para 9 mL de caldo selenito cistina e 0,1 mL para 10 mL de caldo Rappaport Vassialides, que foram incubados a 37 ºC por 18 a 24 horas. Finalizado esse período, alíquotas foram repicadas em placas em ágar Hektoen, ágar XLT4 e ágar verde brilhante e incubados por 37 ºC por 18 a 24 horas.
Entre três a cinco Unidades Formadoras de Colônia (UFCs) de cada meio, por placa, com características morfológicas de Salmonella, foram repicadas em meios de tríplice açúcar ferro (TSI) e incubados a 37°C por 18 a 24 horas. Após esse período, os tubos que continham TSI, com crescimento sugestivo de Salmonella, foram submetidos aos testes de urease, produção de indol e H2S, vermelho de metila, motilidade, lisina descarboxilase, teste do malonato e citrato de Simmons. Quando ocorreram reações bioquímicas compatíveis com Salmonella, as amostras foram submetidas ao teste sorológico com soro polivalente anti-O Salmonella e as amostras com resultados positivos foram enviadas ao Instituto Osvaldo Cruz (FIOCRUZ-RJ) em ágar nutriente para tipificação do sorovar isolado.
O perfil de suscetibilidade antimicrobiana foi determinado pelo método de Difusão em Disco de acordo com Clinical and Laboratory Standards Institute – CLSI(7). Os antibióticos testados foram amoxicilina (10 mcg), ciprofloxacina (5 mcg), doxiciclina (30 mcg), enrofloxacina (5 mcg), fosfomicina (200 mcg), florfenicol (30 mcg), gentamicina (10 mcg), neomicina (30 mcg), ceptiofur (30 mcg), tetraciclina (30 mcg), trimetopim-sulfametazole (1,25/23,75 mcg) e cloranfenicol (30 mg). Foi utilizada como cepa de referência Salmonella enterica ATCC 14028.
Resultados e Discussão
As respostas obtidas no questionário estruturado sobre as características sanitárias e de manejo das revendas de aves vivas estão apresentadas no Tabela 1. Observou-se que as revendas comercializavam várias espécies de animais, sendo que 8,3% (5/60) alojavam somente a espécie Gallus gallus domesticus e 91,7% (55/60) alojavam galinhas e outras espécies de aves e mamíferos. A existência de diferentes espécies de animais nessas revendas é preocupante pela possibilidade de abrigarem no trato intestinal bactérias patogênicas, como Salmonella spp., Campylobacter spp., Escherichia coli, entre outras, constituindo potenciais reservatórios de doenças zoonóticas com importância em medicina humana e veterinária(2,8).
Identificou-se no questionário que apenas 31,7% (19/60) das revendas possuíam a documentação de acordo com a legislação(9), enquanto 68,3% (41/60) delas não possuíam documentos zoosanitários, o que evidencia a falta de controle de entrada e saída das aves. Os dados que estão incluidos na Guia de Trânsito Animal (GTA), por exemplo, origem, destino, vacinações e exames laboratoriais, permitem a rastreabilidade e controle sanitário, portanto, a ausência desses documentos acarreta deficiências de informação ao serviço oficial de defesa sobre as aves alojadas.
Quanto à origem da água para dessedentação das aves e higienização, 86,6% (52/60) eram tratadas por companhias públicas de saneamento e, em 13, 4% (8/60), a água era proveniente de poços artesianos. Verificou-se que a maiora das águas utilizadas, 68,3% (41/60), tinha destino ecologicamente correto, no entanto, em 31,7% (19/60) das revendas, utilizava-se fossa séptica, condição que possibilita a introdução de substâncias tóxicas e de micro-organismos patogênicos que podem chegar facilmente por percolação através da zona não-saturada ao aquífero e serem extraídas através dos poços(10).
Quanto ao destino dos dejetos e aves mortas, constatou-se que 78,3% (47/60) eram direcionados a lixões, além de 21,7% (13/60) ao lixão e enterro. Os lixões, locais onde resíduos sólidos são depositados diretamente sobre o solo, aumentam o risco de contaminação do ar, água superficial e subterrânea, além de favorecerem a manutenção e proliferação de vetores de doenças, de animais sinantrópicos e de atrair pessoas e animais em condição de vunerabilidade social(11). Assim, o depósito de carcaças em lixões oferece risco de infecção para indivíduos que vivem próximos e, principalmente, para animais de vida livre. Ainda assim, o percentual extraído das informações do questionário pode ser considerado satisfatório, registrando-se que o Serviço de Defesa Sanitária do Estado de Goiás recebe denúncias sobre estabelecimentos avícolas que depositam dejetos em vias públicas.
A maioria das revendas (48/60) utilizava antimicrobianos nas aves alojadas, principalmente em pintainhos imediatamente após a recepção. Os antimicrobianos mais utilizados incluíram oxitetraciclina (42/60), trimetoprim sulfametoxazol (38/60) e enrofloxacina (14/60). Essa utilização indiscriminada de antimicrobianos em animais que são alojados, expostos e comercializados para as pequenas propriedades rurais implica em riscos potenciais para a seleção de bactérias resistentes e para o controle de importantes doenças comuns entre as aves e o homem. Como as moléculas desses fármacos não são totalmente metabolizadas no organismo animal, há ainda a liberação de resíduos para o meio ambiente(12), bem como na transferência horizontal de genes para outros microrganismos. Assim, há o favorecimento da resistência de microrganismos aos agentes antimicrobianos, além de causar problemas de ordem toxicológica a organismos vivos(3).
No Tabela 2, encontram-se os resultados da pesquisa de Salmonella por categoria de amostras, municípios das revendas, incubatórios e estados de origem das aves.
A presença de Salmonella enterica foi detectada em 1,4% (9/627) das 627 amostras analisadas, as quais foram oriundas de quatro revendas, localizadas em três municípios distintos, originadas de incubatórios dos estados de Goiás, São Paulo e do Distrito Federal. Esses dados são preocupantes, considerando que a bactéria possui ampla variedade de hospedeiros e afeta a maioria das espécies animais, incluindo mamíferos, aves, animais de sangue frio e o homem, os quais, posicionados na cadeia epidemiológica, podem se tornar assintomáticos ou doentes e disseminadores da bactéria.
Apesar do potencial das revendas na manutenção e disseminação da bactéria, destaca-se que trabalhos relacionados à frequência de Salmonella enterica em aves alojadas nesses locais são escassos na literatura consultada. No estado de Santa Catarina, tendo como origem casas agropecuárias, pintos de um dia comercializados para criação não industrial foram necropsiados. Disso, Salmonella Typhimurium foi isolada de um pool de três fígados 2,32% (3/129). Os autores evidenciaram risco de transmissão para os humanos, inclusive para outros sistemas de produção(13). Por outro lado, estudos realizados em frangos de corte no Paraná apontaram maior circulação da bactéria, com relato de 11,4% de amostras positivas de suabes de arrasto(14). Apesar de serem obtidos em diferentes condições, esses resultados, dentre outros, demonstram a importância do patógeno em Gallus gallus domesticus e seu potencial risco de transmissão e disseminação para outras espécies, como apontado neste estudo.
Analisando as categorias de amostras, verificou-se que 1,9% (4/209) das excretas, 1,4% (3/209) dos suabes de bebedouros e 0,95% (2/209) das ração foram positivas para o patógeno, as quais foram caracterizadas antigenicamente como sorovares Heidelberg, Gallinarum, Risen, Ndolo, Saint Paul e Mbandaka subesp enterica O:6,7. Destaca-se que as revendas com amostras positivas avaliadas neste estudo receberam aves de incubatórios certificados pelo MAPA. Sobre isso, sublinha-se que o serviço de defesa do estado de Goiás recebeu, no período de 2018 até junho de 2019, a notificação de 416 focos de Salmonella, sendo 396 de salmonelas paratíficas, sete de Salmonella Pullorum e dois de Salmonella Gallinarum, totalizando 27.111.306 aves dentro dos focos(1).
A presença de diversos sorovares nas amostras processadas pode ter se originado das aves recebidas ou mesmo pela contaminação da água nos bebedouros e ração. A disponibilidade de alimentos em revendas pode atrair moscas, que podem propagar a bactéria no ambiente, hipótese sustentada por Ugbogu et al.(15), que identificaram 61,7% (21/34) de moscas contaminadas com Salmonella, sendo apontadas, dessa forma, como principais vetores mecânicos de salmonelose em criações avícolas(16).
Segundo a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), nos últimos dez anos, o setor avícola brasileiro enfrentou surtos esporádicos causados pelos biovares Gallinarum e Pullorum, principalmente nos estados localizados nas regiões sul e centro-oeste. O tifo aviário é uma doença grave que infecta apenas espécies aviárias, principalmente as galinhas, de caráter sistêmico, comumente descrita em aves adultas, de transmissão vertical e horizontal, com baixa excreção fecal. Entretanto, neste estudo, a bactéria foi identificada em excretas. Embora seja baixa a excreção fecal desse patógeno, esse achado sugere a presença de aves portadoras alojadas no momento da coleta ou a sobrevivência da bactéria nas bandejas de excretas pela produção de biofilmes. Biofilmes podem ser considerados uma estratégia de sobrevivência dos microrganismos em ambientes desfavoráveis e podem se constituir fontes crônicas de contaminação e aumentar a resistência a fatores ambientais(17,18).
Outra informação que reforça a presença de biofilmes foi que, anteriormente, nessa revenda, reportou-se mortalidade de pintainhos de criatórios de fundo de quintal. No entanto, na ocasião da coleta, o estabelecimento alojava 182 pintainhos, aparentemente saudáveis e oriundos de um incubatório com certificação. Pondera-se que a higienização insatisfatória, sem a remoção de matéria orgânica aderida às bandejas, não eliminou a bactéria e possibilitou a formação de biofilmes. Gama et al.(19) afirmaram que matéria orgânica presente nesses ambientes protege e fornece nutrientes para multiplicação bacteriana e possibilita a persistência de Salmonella em fontes ambientais como penugem, ração e água.
Além da Salmonella Gallinarum, sorovar adaptado ao hospedeiro, outros não adaptados foram identificados (Tabela 2) nas amostras analisadas, com destaque para Salmonella Heidelberg nos suabes de bebedouros. Segundo Burt et al.(20), essa bactéria se destaca como um dos sorovares mais patogênicos para o homem, no qual causa complicações graves como septicemia, miocardite e morte. Sua identificação em amostras de água pode ser explicada pela presença de nutrientes, ou, ainda, pela contaminação dos bebedouros por roedores ou por vetores mecânicos, como, por exemplo, moscas, ou pela formação de biofilmes, como já mencionado. A hipótese de que a contaminação tenha origem na água deve ser considerada, pois, apesar da água oferecida aos animais ser de abastecimento público, provavelmente a limpeza e desinfecção, ou seja, a higienização, tanto das gaiolas quanto dos ambientes das revendas, não tenha sido realizada de forma satisfatória. Registrou-se, ainda, que os equipamentos de proteção individual (EPI) não eram utilizados pelos funcionários e, em muitas revendas, observou-se acúmulo de matéria orgânica nas gaiolas, comedouros e bebedouros. O manuseio das aves pelas pessoas sem EPI também pode ser considerado um risco potencial da permanência de Salmonella, conforme já reportado no estudo de Namata et al.(21).
Os sorovares Saint Paul e Ndolo (Tabela 2) foram isolados de amostras de ração e podem constituir fonte de infecção para os animais e o homem(22). A disponibilidade de alimentos em ambiente de revendas, potencialmente, permite a presença de reservatórios dessa bactéria, os quais desempenham papel importante na sua transmissão e manutenção(23). As rações contaminadas, principalmente aquelas que contêm ingredientes de origem animal, são apontadas como fonte de infecção para criações avícolas(24). Além disso, ratos, por exemplo, comensais comuns em áreas urbanas, são atraídos para locais de acesso fácil ao alimento como os comedouro ou locais de armazenamento das rações e podem contaminar, por meio de suas fezes, o alimento fornecido para os animais(25,26).
Quanto à suscetibilidade aos antimicrobianos das amostras dos isolados de Salmonella enterica, foram verificados diferentes níveis de resistência às bases testadas, como registrado a seguir na Tabela 3. Em ordem decrescente, obtiveram-se 44,4% (4/9) para trimetoprim sulfametoxazol, 33,3% (3/9) para enrofloxacina, 22,2% (2/9) para ciprofloxacina, ceftiofur e amoxicilina, além de 11,1% (1/9) para tetraciclina, fosfomicina, doxiciclina, gentamicina, neomicina, cloranfenicol e florfenicol. Registra-se que os sorovares Heidelberg, Gallinarum e Mbandaka foram os únicos a apresentarem resistência a um maior número dos antimicrobianos testados.
Os sorovares Heidelberg, Gallinarum e Mbandaka foram identificados como fenótipos multtirresistentes (MDR), que resistiram a, no mínimo, quatro antimicrobianos testados, o que, potencialmente, pode reduzir as opções terapêuticas para o tratamento das infecções tanto em homens como em animais e, ao mesmo tempo, compor microbiotas intestinais.
A presença desses isolados, com múltipla resistência, em revendas, deve ser analisada com preocupação, considerando que, nesses locais, proprietários, funcionários e consumidores, frequentemente, manuseiam animais e equipamentos sem as devidas proteções, o que, potencialmente, possibilita a exposição e a disseminação das bactérias, que podem se instalar na microbiota intestinal tanto do homem como dos animais. Ressalta-se que o agente ainda pode sobreviver em ambientes diversos e se constituírem em risco de transferências de resistência e propagação para as bactérias comensais. Esses riscos foram apontados por Chantziaras et al.(27), que correlacionaram a resistência antimicrobiana em animais produtores de alimentos, como as aves, para os humanos, e por Silva et al.(2) , que apontaram evidências de que a microbiota intestinal das aves podem abrigar bactérias zoonóticas, patogênicas ou não, as quais podem ser reservatórios de genes que conferem resistência aos antimicrobianos, desempenhando, portanto, papel importante na disseminação da resistência bacteriana entre diferentes espécies animais.
Em relação à Salmonella Heidelberg, observou-se resistência a quinolonas (enrofloxacina e ciprofloxacina), cefalosporina (ceftiofur) de terceira geração e às tetraciclinas. A ocorrência de Salmonella Heidelberg multirresistente aos antimicrobianos, presente em revendas onde circulam pessoas e comercializa-se animais destinados às pequenas propriedade rurais, potencializa e representa um perigo para a saúde pública. Esse cenário de multirresistência limita o tratamento terapêutico, visto que são fármacos utilizadas em quadros de salmonelose humana e animal, além de ser um dos sorovares que pode determinar complicações sistêmicas em pessoas, principalmente em crianças, idosos ou pessoas imunocomprometidas(19,28,29). Adicionalmente, deve-se assinalar que há um risco potencial para outros animais, além das galinhas, e o meio ambiente, já que a bactéria pode ser disseminada por animais de vida livre como os pombos, comuns nessas revendas.
Esse cenário se assemelha aos que investigaram a frequência de Salmonella enterica em carcaças de frango congeladas, nas cinco regiões geográficas do Brasil, encontrando índices de detecção que variaram entre 11,9% e 23,5%(13). Segundo esses autores, para Salmonella Heidelberg, a frequência foi de 6,4% (16/250). Todos os isolados de Salmonella testados foram resistentes a um ou mais antibióticos, e 133 (53,2%) foram caracterizados como multirresistentes. Além disso, a Salmonella Heidelberg foi também resistente à ceftriaxona 188/250 (75,0%) e ao ceftiofur 43,8% (110/250)(13).
Em relação ao sorovar Gallinarum, verificou-se multirresistência a ciprofloxacina, enrofloxacina, trimetoprim, sulfametaxazol e fosfomicina, resultados estes em concordância com as investigações de Penha Filho et al.(30), que avaliaram o perfil de suscetibilidade de Salmonella Gallinarum e Salmonella Pullorum, isolados de 1987 a 1991 e de 2006 a 2013, no Brasil. As drogas antimicrobianas ciprofloxacina, enrofloxacina, trimetoprim e sulfametaxazol, identificadas neste estudo como ineficazes contra Salmonella Gallinarum, estão entre as mais utilizadas de forma empírica e indiscriminada, como registrado no questionário, o que implica em riscos potenciais para as aves, o que permite sugerir adoções de procedimentos sanitários e maior controle higiênico e sanitário em revendas.
A possibilidade e propensão de bactérias não patogênicas e benéficas intestinais das aves atuarem como potenciais reservatórios de genes de resistência antimicrobiana traduz-se em riscos para a saúde animal e humana, sendo passível afirmar que haja a ocorrência de graves consequências para saúde das aves e no controle de importantes doenças comuns entre as aves e o homem.
Conclusão
As revendas de aves vivas apresentam características sanitárias e de manejo semelhantes: Gallus gallus domesticus alojados com outras espécies de aves e animais, comercialização de aves com escassa documentação zoosanitária, vigilância ativa insatisfatória, utilização e comercialização de antimicrobianos de forma indiscriminada. Constata-se que Salmonella Heidelberg, Gallinarum, Risen, Ndolo, Saint Paul e Mbandaka são identificadas em revendas, sendo que Salmonella Heidelberg, Gallinarum e Mbandaka apresentam multirresistência aos antimicrobianos, o que implica em riscos potenciais para os animais, os homens e o meio ambiente, ou seja, para a saúde única, o que permite sugerir adoções de procedimentos sanitários e maior controle higiênico e sanitário em revendas.
Agradecimentos
Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela viabilidade da pesquisa.
Referências