Algumas doenças infecciosas são
potencialmente capazes de comprometer a viabilidade de uma produção de
leite economicamente sustentável. Este trabalho teve como objetivo
avaliar a relação entre a soropositividade para diarreia viral bovina
(BVD) nas taxas de descarte em 240 rebanhos leiteiros comerciais. Para
quantificar os efeitos da infecção pelo vírus da BVDV nas taxas de
descarte involuntário, as variáveis foram incluídas em modelos mistos
de regressão linear múltipla generalizado. A soropositividade diminuiu
o número de animais descartados nos rebanhos positivos de acordo com os
resultados encontrados neste trabalho. A presença de anticorpos em
virtude da infecção natural teve um efeito protetor contra o descarte
involuntário, demonstrando o efeito da imunidade de rebanho.
PALAVRAS-CHAVES: Anticorpo, bovino, descarte, diarreia viral bovina, epidemiologia.
Some infectious diseases are
potentially capable of compromising the viability of an economically
sustainable milk production. The aim of this paper was to evaluate the
relationship between the seropositivity status of bovine viral diarrhea
(BVD) in 240 comercial herds and culling rates. To quantify the effects
of BVD virus (BVDV) infection on culling rates, the variables were
included on multiple generalizaded linear models. According to the
results of this study, seropositivity decreased culling rates in
positive herds. Presence of antibodies due to natural infection had a
protector effect against involuntary culling rates showing the herd
immunity effect.
KEYWORDS: Antibody, bovine viral diarrhea, cattle, culling, epidemiology.
INTRODUÇÃO
A criação de bovinos em grande escala e a intensa movimentação que
frequentemente ocorre nesses rebanhos os tornam mais susceptíveis aos
mais diversos agentes infecciosos, por causa de uma ampla diversidade
de fatores. A presença do BVDV tem frequentemente causado distúrbios
ligados à reprodução, fato este já documentado desde os anos 1940 por
OLAFSON
et al. (1946), em sua
primeira descrição clínica da doença. Abortos, mumificações, perdas
embrionárias e nascimentos de bezerros malformados e fracos resultam em
quedas no desempenho reprodutivo do rebanho e consideráveis perdas
econômicas em rebanhos bovinos (McCLURKIN
et al., 1984; AMES, 1986; BOLIN, 1990; DUBOVI, 1994; BERENDS
et al., 2008). O BVDV pode infectar outras espécies como ovinos (SCHERER
et al., 2001), além de vários outros ruminantes domésticos, incluindo caprinos e búfalos (HAMBLIN & HEDGER, 1979; BECHER
et al., 1997).
Durante os últimos sessenta anos, discussões acerca da patogênese do
vírus têm criado muita confusão, em parte pela falta do completo
entendimento da sua biologia. A resposta à infecção parece ser
dependente da interação de uma série de fatores, sendo alguns deles
inerentes aos animais, como idade do feto, estado imune do rebanho,
diversidade genética do vírus e sua virulência (HOUE, 1999).
A quantificação exata dos danos após a infecção é bastante difícil,
pois a maioria dos estudos têm se baseado na ocorrência de surtos da
doença. Apenas alguns trabalhos têm avaliado o impacto do vírus em
alguns rebanhos sem a ocorrência de surtos e, nesse sentido, o presente
trabalho teve como objetivo avaliar o impacto da BVD sobre as taxas de
descarte em rebanhos soropositivos.
MATERIAL E MÉTODOS
O banco de dados utilizado para a realização do presente trabalho teve
origem em um estudo de prevalência realizado em 240 rebanhos de aptidão
leiteira entre os anos de 1998 e 2001. Como pré-requisitos de inclusão
no estudo, as propriedades deveriam fornecer um número mínimo de
animais necessários para amostra, ter um controle zootécnico sobre o
rebanho e participar de um programa de controle leiteiro.
No total, coletaram-se 6.662 amostras de sangue durante o estudo.
Paralelamente, com o auxílio de questionários, informações
complementares tais como raça dos animais, número de lactações, dias em
lactação no momento da coleta, época do parto, número de animais no
rebanho e histórico de vacinações foram incluídos no banco de dados. A
metodologia utilizada para a coleta de dados em todos os rebanhos foi a
mesma, sendo possível, dessa forma, o agrupamento de todas as variáveis
em uma única planilha com o auxílio do software de análises
estatísticas STATA©.
Coleta de amostras
A partir de uma análise computadorizada, geraram-se números de forma
aleatória, para que fossem selecionados, de cada rebanho, trinta
animais em lactação de forma completamente randomizada, excluindo-se,
no entanto, animais que já haviam sido vacinados. As amostras de sangue
foram coletadas em 240 rebanhos oriundos dos seis Estados selecionados
para realização de testes para detecção de anticorpos contra BVDV. Para
o cálculo do tamanho da amostra requerida pelas análises estatísticas,
assumiram-se uma prevalência de rebanho de 46,1%, um erro permitido de
10% e um intervalo de confiança de 95% para detectar pelo menos um
animal positivo por rebanho (VANLEEUWEN
et al., 2001).
Selecionaram-se nos rebanhos cinco vacas que nunca haviam sido
vacinadas previamente ou cinco novilhas primíparas também sem nenhum
histórico de vacinação. HOUE
et al.
(1995) relataram uma sensibilidade superior a 95% e uma especificidade
superior a 98% ao nível de rebanho para identificação de rebanhos
positivos utilizando-se esta metodologia. Obtiveram-se os dados de
lactação de acordo com a lactação na qual a coleta de sangue foi
realizada. Os dados obedecem a uma estrutura hierárquica de quatro
níveis, ou seja, lactação, animal, rebanho e, por último, os Estados
(DOHOO
et al., 2003).
Testes sorológicos
Todas as amostras foram armazenadas a -20ºC pelo período no qual todas
as amostras estivessem prontas para o processamento. Titulou-se o soro
proveniente dos animais não vacinados para pesquisa de anticorpos
contra o genótipo do tipo I do BVDV por meio do método de
soroneutralização (DEREGT
et al.,
1992). O rebanho foi considerado positivo para BVD quando pelo menos um
animal apresentou título superior ou igual a 64 (VanLEEUWEN
et al.,
2006). Seguindo essa metodologia, caracterizaram-se os rebanhos como
positivos independentemente da frequência de animais soropositivos
dentro do rebanho.
Variáveis
Incluíram-se as variáveis relativas ao perfil sorológico no banco de
dados de acordo com os resultados do teste de soroneutralização. As
restantes foram incluídas de acordo com as informações contidas no
questionário formulado para coleta de dados complementares. Em seguida,
calculou-se uma nova variável a partir das variáveis disponíveis,
porcentagem de animais descartados no rebanho. A variável dependente,
taxa de descarte, foi transformada em logaritmo, em razão de ajustes
para realização das análises estatísticas.
Análises estatísticas
Para quantificar os efeitos da infecção pelo BVDV nas taxas de
descarte, as variáveis foram incluídas em modelos mistos de regressão
linear múltipla generalizado. As análises contemplam dois níveis
hierárquicos, sendo as variáveis latentes no nível animal e as
variáveis randômicas no nível de rebanho (DOHOO
et al., 2003).
As análises foram divididas em três etapas. Na primeira, avaliou-se a
associação estatística entre os determinantes e a variável dependente
de interesse. Nesta fase, construiu-se um modelo inicial contendo todas
as variáveis de interesse biológico, selecionando-as, então, a partir
de sua significância estatística (Backward Elimination) (DOHOOO
et al.,
2003). Na segunda etapa, verificou-se, segundo critérios biológicos, a
associação causal entre as variáveis selecionadas na primeira fase,
para verificar se havia algum fator de confundimento presente no modelo
inicial (DOHOOO
et al.,
2003). Por fim, a terceira etapa consistiu na elaboração do modelo de
regressão final, para que fossem possíveis avaliar a associação causal
e quantificar a influência da soropositividade dos rebanhos nas taxas
de descarte involuntário. O modelo definitivo incluiu as seguintes
variáveis: logaritmo do percentual de animais descartados como variável
dependente, Estado onde foi realizada a coleta, número de lactações e o
resultado da sorologia para BVD. Apesar de não haver associação
estatística para o número de lactações, esta variável foi mantida no
modelo, pois foi considerado um fator de confundimento segundo os
critérios utilizados por DOHOO
et al. (2003).
Controlaram-se, dessa maneira, os efeitos de rebanho, o Estado de
origem dos animais e número de lactações. O logaritmo da variável
dependente foi utilizado na análise para que a distribuição dos
resíduos se aproximasse da distribuição normal segundo a curva de
distribuição de Gauss. O limite de significância estatística
convencionado neste trabalho, assim como ocorre em grande parte da
literatura científica, foi de 5% (P<0,05).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
No modelo de regressão linear, foram calculados os coeficientes
referentes às variáveis envolvidas nas taxas de descarte de animais em
virtude da infecção pelo BVDV. De acordo com o coeficiente encontrado
para variável dependente, rebanhos soropositivos para BVD apresentam um
decréscimo nas taxas de descarte (-.1201595), ou seja, há uma redução
de 12% no número de animais descartados involuntariamente (
Tabela 1).
Dadas as variáveis incluídas no modelo final, foram analisados ao todo
154 rebanhos e 4.252 animais de acordo com a seleção realizada pelo
programa de análises estatísticas STATA©.
O estudo realizado por MEYLING
et al.
(1990) encontrou o mesmo tipo de associação, ou seja, rebanhos
soropositivos tiveram menores taxas de descarte em comparação a outros
trabalhos. Questões levantadas por HOUE (1999) e MUÑOZ-ZANZI
et al.
(2004) podem servir de base para discussão desses resultados. Segundo
esses autores, a resposta à infecção é dependente da interação de uma
série de fatores, dentre eles o estado imune do rebanho. De acordo com
os resultados apresentados, pode-se observar que a presença de
anticorpos nos animais teve um efeito protetor, o que não seria grande
surpresa, já que rebanhos negativos estão mais sujeitos à ação futura
do vírus sobre a reprodução (LOHR
et al.,
1983; BOLIN, 1990; GROOMS, 2004). Como os problemas reprodutivos são um
dos responsáveis pelos descartes involuntários, a diminuição na taxa de
descarte de 12% no presente trabalho pode ser explicada em parte com
base neste princípio.
BENNETT
et al. (1999)
encontraram uma associação negativa entre a presença de vacas não
vacinadas e a queda de produtividade nesses animais, o que reforçou
ainda mais a teoria de que a presença de anticorpos é determinante para
que não ocorram problemas reprodutivos e queda na produção de leite. Se
o descarte precoce de animais em virtude do vírus está amplamente
relacionado a esses problemas, fica clara, então, a relação entre a
presença de anticorpos e o aumento da sobrevida dos animais nos
rebanhos soropositivos.
Em um estudo, DAVID
et al.
(1994) investigaram a ocorrência de surtos de BVD em rebanhos
localizados na Inglaterra e encontraram um aumento de 11% no descarte
involuntário de animais infectados. Em outro estudo, PRITCHARD
et al.
(1989) relataram a morte de 8% dos animais e o aumento de 11% no
descarte precoce de animais com infecções agudas da doença em um
rebanho de 183 animais em Norfolk, Inglaterra. Em mais outro estudo
realizado para avaliar as perdas causadas pelo vírus, calcularam-se o
risco mínimo de descarte, o risco médio e o risco máximo, sendo,
respectivamente, de 2%, 8% e 11% (BENNETT
et al.,
1999). Estas categorias representam diferenças entre a severidade das
epidemias em rebanhos recentemente infectados e não são vacinados. Em
propriedades onde a doença é endêmica e os animais não são vacinados, o
risco de descarte involuntário foi na média menor em comparação aos
estudos anteriores, ou seja, o risco encontrado foi de 2%, segundo
MEYLING
et al. (1990).
A controvérsia de resultados é evidente de acordo com as publicações
sobre o assunto. Entretanto, um ponto-chave nesta discussão não deveria
ser esquecido. Trata-se do aspecto multifatorial da doença. A
diversidade genética do vírus (RIDPATH
et al.,
1998) e sua virulência são fatores determinantes que não podem ser
desconsiderados. As diferenças metodológicas também são decisivas, pois
muitos trabalhos têm sido realizados durante a ocorrência de surtos da
doença. Outro ponto fundamental é a presença de animais
persistentemente infectados (PI) nos rebanhos. Dada a sua grande
importância epidemiológica, a porcentagem de animais PI pode
influenciar significativamente as taxas de descarte, por causa da queda
no desempenho produtivo desses animais e maior exposição do restante do
rebanho ao vírus, dada a grande eliminação de partículas virais no
ambiente. Desta forma, o maior desafio viral pode desequilibrar a
relação entre os fatores epidemiológicos envolvidos no processo
saúde/doença, ou seja, o equilíbrio envolvendo o agente, seu hospedeiro
e o meio ambiente.
CONCLUSÕES
A soropositividade para BVDV reduziu em 12% a taxa de descarte nos
rebanhos leiteiros envolvidos no presente estudo. Sendo assim, a
soropositividade para BVDV em virtude da infecção natural apresentou um
efeito protetor, aumentando, consequentemente, a sobrevida desses
animais. A presença de anticorpos demonstra a importância da imunidade
de rebanho, reduzindo os efeitos deletérios da presença do vírus.
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Protocolado
em: 7 maio 2009. Aceito em: 18 jan.
2010.