FATOR DE
CONDIÇÃO RELACIONADO A ASPECTOS REPRODUTIVOS DA PIAPARA (Leporinus obtusidens) (Characiformes: Anostomidae) COLETADAS A JUSANTE DA USINA HIDRELÉTRICA DO FUNIL, MINAS GERAIS, BRASIL
Viviane de
Oliveira Felizardo1, Luis David Solis Murgas1, Elissandra
Ulbricht Winkaler2, Gilmara Junqueira Machado Pereira3,
Mariana Martins Drumond4, Estefânia de Souza Andrade1
1 Departamento de Medicina Veterinária, Setor de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, MG
2 Centro de Ciências Agrárias, Ambientais e Biológicas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Cruz das Almas, BA
3 Analista Ambiental da Usina Hidrelétrica de Funil, Lavras, MG
4 Departamento de Zootecnia, Setor de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, MG
Email para correspondência: elis@ufrb.edu.br
RESUMO
O
objetivo deste trabalho foi descrever a variação sazonal do fator de condição
(K) correlacionado com os índices gonadossomático (IGS) e hepatossomático (IHS)
de Leporinus obtusidens (Valenciennes,
1837), coletados a jusante da Usina
Hidrelétrica do Funil, e avaliar se esses índices podem indicar o período
reprodutivo dessa espécie. Os animais (n=110) foram capturados mensalmente
entre setembro/2006 e agosto/2007 e agrupados
por estação do ano. O comprimento e o peso dos animais foram obtidos para
cálculo de K, o peso do fígado foi determinado para o cálculo do IHS e com o
peso das gônadas foi obtido o IGS. O valor de K obtido para machos e fêmeas
agrupados e somente para machos foi significativamente menor (p<0,05) no
verão. Para as fêmeas não houve variação significativa de K ao longo do ano. Os
valores de IHS foram significativamente maiores durante a primavera e verão
para ambos os sexos, enquanto que o IGS de machos e fêmeas foram maiores
(p<0,05) durante a primavera. Nos testes de correlação, K não está
relacionado com o IGS nem com o IHS e não se mostrou um bom indicador do
período reprodutivo da piapara. Entretanto, existe forte correlação entre IGS e
IHS e, relacionados, podem ser utilizados como indicadores do período
reprodutivo dessa espécie, que provavelmente ocorre na primavera.
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PALAVRAS-CHAVE:
peixe; reprodução; reservatório.
CONDITION FACTOR RELATED TO REPRODUCTIVE ASPECTS OF
(Leporinus obtusidens)
(Characiformes: Anostomidae) COLLECTED AT DOWNSTREAM OF THE HIDROELECTRIC POWER
STATION OF FUNIL, STATE OF MINAS GERAIS, BRAZIL
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
Estudos sobre a dinâmica da
reprodução de peixes ocupam importante lugar na investigação pesqueira,
fornecendo subsídios necessários para a elaboração de programas visando à
exploração racional e preservação da ictiofauna de rios e lagos (Santos et al.,
2006; Prestes et al., 2010). Dentro dessa linha de pesquisa, destacam-se
estudos que abordam época de reprodução, tamanho e idade da primeira maturação
gonadal, fecundidade, taxa de crescimento e tipo de desova (SANTOS et al.,
2006; GOMIERO et al., 2008; GOMIERO et al., 2010).
A espécie Leporinus obtusidens (Valenciennes,
1837), popularmente conhecida como piapara, é um peixe de água doce nativo das
regiões Sul e Sudeste do Brasil (NETO et al., 2006), possui hábito alimentar
onívoro, alimentando-se de insetos, restos de peixes e de vegetais e é uma
espécie economicamente importante no sul
do Brasil (TAITSON et al., 2008). A espécie se situa nos elos intermediários da
cadeia trófica, devido a seus hábitos alimentares. Por essa razão, é de grande
importância na manutenção do equilíbrio do ciclo biológico dos ambientes em que
habita, constituindo o principal produto de captura, principalmente no alto rio
Paraná (ARAYA et al., 2005).
A piapara migra a montante,
uma vez por ano, para a desova (OLDANI et al., 1992). Assim como a maioria das
espécies de peixes, mostra uma periodicidade em seu processo reprodutivo,
iniciando seu desenvolvimento gonadal em uma época anterior àquela de
reprodução e complementando sua maturação gonadal no momento em que as
condições ambientais são adequadas à fecundação e ao desenvolvimento
reprodutivo (VAZZOLER, 1996).
Os represamentos promovem
grandes alterações nas interações bióticas dentro do ecossistema,
particularmente entre as de natureza trófica e reprodutiva dos peixes, devido à
interrupção das rotas migratórias impostas pelo barramento (AGOSTINHO et al., 2007). Dessa forma,
devido aos sucessivos barramentos de rios, as espécies tendem a se adequar às
novas situações ecológicas, para poder realizar satisfatoriamente o ciclo
reprodutivo (SUZUKI & AGOSTINHO, 1997).
Com isso, os objetivos deste trabalho foram descrever o padrão de
variação sazonal do fator de condição e correlacioná-lo com os índices
gonadossomático e hepatossomático e determinar se esses índices podem ser
utilizados como ferramentas indicativas do período reprodutivo de L. obtusidens, coletados a jusante da Usina Hidrelétrica do Funil, Perdões,
MG.
Após a captura, os peixes
foram anestesiados com benzocaína (1g/10 mL álcool +
O K dos animais foi calculado
pelo método alométrico, a partir da expressão K=W/Lb, na qual W
representa a massa total, L o comprimento padrão dos indivíduos e b o
coeficiente de regressão. Para estimar o valor do coeficiente b, ajustou-se uma
única equação de relação peso-comprimento (W=aLb), a partir do
conjunto de todos os indivíduos coletados, utilizando-se o método dos mínimos
quadrados aplicados aos dados convertidos em seus respectivos logaritmos
naturais, de acordo com metodologia sugerida por LIMA-JUNIOR et al. (2002).
Para a análise da variação
sazonal do desenvolvimento gonadal, estimou-se o índice gonadossomático para
cada exemplar, a partir da expressão IGS=(Wg/Wt)100 e, para se determinar o
índice hepatossomático dos animais, utilizou-se a fórmula IHS=(Wf/Wt)100.
Os resultados obtidos para as
variáveis K, IGS e IHS ao longo das quatro estações foram submetidos à
comparação sazonal, pela aplicação do teste de Kruskal-Wallis, após a análise
de normalidade dos dados pelo teste de Shapiro-Wilk. A possível correlação entre
essas variáveis foi testada pela aplicação do Coeficiente de Correlação de
Spearman. O nível de significância de 0,05 foi estabelecido para todos os
tratamentos e o programa estatístico utilizado foi BioEstat 5.0.
A equação da relação peso-comprimento, ajustada a partir dos dados dos indivíduos capturados, assumiu a seguinte forma: W=0,019*L3,142. Assim, o valor do coeficiente b determinado e aplicado na fórmula para cálculo do K foi de 3,142 (Figura 1).
O fator de condição das piaparas, machos e fêmeas agrupados, foi significativamente menor no verão, quando comparado com o outono e inverno (Figura 2A). Quando analisado em relação ao sexo (Figura 2B), para as fêmeas o K não apresentou diferenças sazonais significativas (p=0,1215), enquanto que para os machos o menor valor de K também foi observado no verão, em relação ao inverno.
O índice gonadossomático das piaparas fêmeas foi maior (p<0,05) na primavera, quando comparado com as demais estações (Figura 3A). Nos machos, o maior valor do IGS (p<0,05) também foi observado na primavera, em relação ao outono e inverno (Figura 3B).
Em relação à variação sazonal do índice hepatossomático, as fêmeas apresentaram os maiores valores (p<0,05) na primavera (Figura 3A). Tendência semelhante foi observada nos machos, cujo IHS foi maior (p<0,05) na primavera, quando comparados com outono e inverno (Figura 3B).
Comparando-se as variáveis das fêmeas ao longo das estações, nota-se que existe correlação entre o K e IHS e entre IGS e IHS (Tabela 2).
DISCUSSÃO
O fator de condição (K) é um importante indicador do grau de higidez
de um indivíduo e seu valor reflete as condições nutricionais recentes e/ou
gastos das reservas em atividades cíclicas, sendo possível relacioná-lo às
condições ambientais e aos aspectos comportamentais das espécies (GOMIERO et
al., 2010). ANTONIUTTI et al. (1985) observaram que as maiores médias do
K coincidem com a época de maturação gonadal do cascudo (Plecostomus albopunctatus) e BARBIERI & VERANI (1987) chegaram
às mesmas conclusões para outro locarídeo (Hypostomus
aff. plecostomus).
Para o caraciforme L. obtusidens
essa relação não foi possível, visto
que o menor valor de K foi observado no verão, estação na qual ocorre
sua desova (OLDANI et al., 1992), e pode
refletir o gasto energético para a produção dos gametas. GOMIERO et al. (2010)
também observaram o menor valor de K para o caraciforme Oligosarcus hepsetus durante o verão, estação que coincide com o
período reprodutivo da espécie. Segundo os mesmo autores, os maiores valores de
K no outono ocorreram devido à maior intensidade alimentar no final do inverno
e primavera, com subsequente acúmulo de gordura no final do verão e outono
(BOTELHO et al., 2007), podendo assim, sofrer alterações tanto em função dos
fatores intrínsecos (reservas orgânicas, desenvolvimento gonadal e tamanho dos
exemplares) quanto dos fatores extrínsecos, como temperatura, fotoperíodo e
disponibilidade alimentar.
Dessa forma, a variação do K das piaparas também pode estar relacionada
à disponibilidade e aproveitamento de alimentos pelos indivíduos, que pode ter
sido maior durante o verão. LIMA-JÚNIOR & GOITEIN (2006) observaram que,
para o pimelodídeo P. maculatus, a
variação sazonal do fator de condição não está diretamente relacionada ao
desenvolvimento gonadal e que os indivíduos apresentaram maiores índices de
condição corpórea após períodos de intensa atividade alimentar.
A hipótese da relação do K com fatores extrínsecos pode ser corroborada
com resultado da correlação entre a variação sazonal do K e IGS, que pode
indicar um maior desenvolvimento das gônadas. Nos testes de correlação,
observou-se que essas duas variáveis apresentam ciclos independentes, ou seja,
não há uma associação significativa entre elas.
Na primavera, foram observados os maiores valores de IGS, indicando que
nessa época os animais encontraram condições ambientais e fisiológicas
propícias à maturação gonadal, coincidindo com a elevação das médias
pluviométricas e da média de temperatura (SANTOS et al., 2006). Dessa forma,
com a análise do IGS de machos e fêmeas, pode-se inferir que o período
reprodutivo de L. obtusidens, no
local estudado, pode estar compreendido durante a primavera.
O IHS também pode ser utilizado como indicador do período reprodutivo
de peixes, correlacionado a outros fatores como o K e IGS. Esse índice pode
estar relacionado com a mobilização das reservas energéticas necessárias para o
processo de vitelogênese, reprodução ou também para preparação para o período
de inverno (QUEROL et al., 2002).
Para L. obtusidens capturadas na barragem do Funil, o IHS pode estar
relacionado com o período reprodutivo dessa espécie. Os menores valores do IHS
de fêmeas foram observados no outono e inverno e podem ser decorrentes do gasto
energético que a espécie sofreu durante o período reprodutivo (primavera). Nos
machos, o IHS também foi menor no outono, indicando que as reservas energéticas
podem ter sido utilizadas para a reprodução. Esse fato pode ser evidenciado
pela existência de correlação altamente significativa entre o IHS e o IGS.
Em contrapartida, QUEROL et al. (2002) concluiram que o IHS do cascudo
(Loricariichthys platymetopon) não
pode ser utilizado como indicador do período reprodutivo, pois apresenta seus
maiores índices no outono. Segundo os mesmo autores, o IHS dos cascudos pode
estar relacionado com o acúmulo de reservas energéticas para o período de
inverno e não ao período de reprodução. Esse fato foi evidenciado pelos autores
pela baixa correlação entre o IHS e o IGS (-0,21).
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