DOI:10.5216/cab.v11i3.5499
ESTUDO CLÍNICO-LABORATORIAL DA TOXEMIA DA PRENHEZ EM OVELHAS: ANÁLISE RETROSPECTIVA


Anne Grace Campos,¹ José Augusto Bastos Afonso,² Rogério Adriano Santos,¹
Carla Lopes Mendonça² e Janaína Azevedo Guimarães³

1. Médico Veterinário, doutorando em Ciência Veterinária, Universidade Federal Rural de Pernambuco, UFRPE, Pernambuco.
E-mail: annegracevet@click21.com.br
2. Médico veterinário, doutor, Clínica de Bovinos, Campus Garanhuns/UFRPE
3. Médico veterinário, mestre, Clínica de Bovinos, Campus Garanhuns/UFRPE.


 

RESUMO

O presente trabalho objetiva fazer uma análise retrospectiva dos achados de 33 ovelhas com toxemia da prenhez, enfocando os aspectos clínicos e laboratoriais desse distúrbio. A maioria dos animais era criada intensivamente, com acesso livre a alimentos concentrados e encontrava-se no terço final de gestação com dois ou mais fetos. Os exames laboratoriais revelaram hiperglicemia e cetonúria na maior parte das ovelhas. A evolução clínica variou de cinco a dezessete dias nos animais que vieram a óbito (42,4%) ou receberam alta clínica (57,6%), respectivamente. Este trabalho confirma que toxemia da prenhez é um distúrbio metabólico que acarreta perdas econômicas importantes à produção de ovinos na região, causadas pela mortalidade das ovelhas e cordeiros.

PALAVRAS-CHAVES: Corpos cetônicos, glicose, ovelha, toxemia.


ABSTRACT

CLINICAL AND LABORATORIAL STUDY OF PREGNANCY TOXAEMIA IN EWES: RETROSPECTIVE ANALYSIS

The present work aimed to do a retrospective data analysis in 33 ewes with pregnancy toxaemia, focusing on the clinical and laboratorial aspects of the disturbance. The majority of the animals were raised intensively with free access to concentrate food and they were, at the final trimester of pregnancy, carrying two or more fetus. The laboratorial exams revealed hyperglycemia and ketonuria in most of the ewes. The clinical evolution varied from five to 17 days in the animals that died (42.4%) or received clinical discharge (57.6%), respectively. Thus, this work confirms that pregnancy toxaemia is a metabolic disorder leading to important economic losses in Pernambuco State, Brazil, due to the mortality of ewes and lambs.

KEYWORDS: Glucose, ketone bodies, sheep, toxaemia.


INTRODUÇÃO

A região Nordeste possui grande tradição na ovinocultura, com aproximadamente 56% do rebanho ovino brasileiro, totalizando cerca de 7,75 milhões de animais. O Estado de Pernambuco possui em torno de 943 mil ovinos (IBGE, 2006). Nos últimos anos tem sido observado o crescente interesse na criação de animais de alto padrão zootécnico, a fim de realizar melhoramento genético no rebanho brasileiro, principalmente na raça Santa Inês (MORAIS, 2000). Concomitantemente, vêm ocorrendo a intensificação da atividade e profundas mudanças no manejo nutricional, propiciando o aparecimento de enfermidades decorrentes da administração inadequada de rações, sejam elas comerciais ou formuladas na própria fazenda, tornando comuns enfermidades como acidose ruminal, laminites, polioencefalomalácia, urolitíase obstrutiva, além de transtornos metabólicos, como a toxemia da prenhez.
A toxemia da prenhez é um distúrbio metabólico de ovinos e caprinos que usualmente se observa no final da gestação, sendo mais frequentemente observada nas últimas seis semanas, quando ocorrem aproximadamente 70% do crescimento fetal (HERDT, 2000). O desenvolvimento da doença coincide com a tentativa malsucedida da ovelha em atender às demandas energéticas do(s) feto(s) em crescimento (HARMEYER & SCHLUMBOHM, 2006). Associado a isso, a toxemia da prenhez tem sido mais comumentemente observada em ovelhas obesas, nas quais o acúmulo de gordura visceral e o útero gravídico causam compressão sobre os órgãos digestivos, sobretudo no rúmen, reduzindo a capacidade de ingestão (VAN SAUN, 2000).
Os animais acometidos manifestam inicialmente inapetência, apatia, alteração de comportamento, que evoluem para decúbito prolongado. Alguns animais apresentam hipomotilidade ou atonia ruminal, constipação, bruxismo e odor de acetona no ar expirado. Com o agravamento da doença, surgem sinais neurológicos que incluem cegueira, andar em círculos, incoordenação motora, pressão da cabeça contra obstáculos, visão direcionada para cima (“olhar para as estrelas”), tremores e convulsões, levando o animal à morte após evolução clínica de seis a oito dias (BRUÉRE & WEST, 1993; ROOK et al., 2000).
A toxemia da prenhez é considerada umas das principais causas de mortalidade de ovelhas no pré-parto (MAVROGIANNI & BROZOS, 2008). A casuística na Clínica de Bovinos, Campus Garanhuns da Universidade Federal Rural de Pernambuco (CBG-UFRPE), confirma a importância desse distúrbio metabólico na clínica médica de ovinos, já que, das 563 ovelhas atendidas no período de 2001 a 2007, 33 (5,86%) corresponderam à toxemia da prenhez. Dada a tal importância econômica na região, em associação à escassez de informações relativas a esse distúrbio no Brasil, o presente artigo objetiva relatar os achados em 33 casos de toxemia da prenhez em ovelhas, com enfoque nos aspectos clínicos e laboratoriais.

MATERIAL E MÉTODOS

Realizou-se a investigação em 33 ovelhas diagnosticadas com toxemia da prenhez, provenientes de municípios localizados no Estado de Pernambuco, durante o período de 2001 a 2007. As fichas clínicas foram resgatadas e analisaram-se as informações relacionadas aos sinais clínicos e achados laboratoriais (glicose sanguínea e pesquisa de corpos cetônicos na urina), bem como alguns dados epidemiológicos, como raça, sistema de criação, período gestacional, alimentação e presença doenças intercorrentes.
Submeteram-se os animais a exame clínico, segundo DIFFAY et al. (2004). Colheram-se amostras de sangue para a determinação de glicose de dezessete animais no período pré-parto e apenas de sete no pós-parto, em tubos a vácuo (BD – Vacutainer System® - Becton Dickison Ind. Cir. Ltda.), contendo fluoreto de sódio, sendo centrifugadas a 3.500 rpm por cinco minutos (Centrifugador Excelsa 2 – Fanem Ltda.), logo após a coleta. Separararam-se os plasmas, livres de hemólise, por aspiração, para o processamento imediato da amostra, efetuando-se a leitura em analisador bioquímico semiautomático (Labquest - LABQUEST – LabTest Dianóstica), usando kit comercial.
A determinação qualitativa dos corpos cetônicos foi realizada após a obtenção de urina das vinte ovelhas antes e de quatro após o parto, empregando-se o teste de Rothera e fitas reagentes comerciais (Multistix - Multistix ® - Fitas reativas para uroanálise: Bayer Diagnósticos), conforme preconizam DIRKSEN et al. (1993). Como protocolo de tratamento nas ovelhas acometidas pela doença, empregaram-se a reposição hídrica, eletrolítica e correção do equilíbrio ácido-básico, soluções de glicose a 5% (I.V.) e de cobalto (V.O.), com fornecimento de fluido ruminal fresco, propilenoglicol, vitamina B12 (IM) e a reposição de cálcio. Nas situações em que se fez necessária a realização da cesariana, empregou-se o modelo de FUBINI et al. (2005).

RESULTADOS

O maior número de animais com toxemia da prenhez ocorreu em ovinos da raça Santa Inês, com 28 casos (84,8%), seguidos por fêmeas mestiças e da raça Dorper, com três (9,1%) e dois casos (6,1%), respectivamente. A maioria desses animais era mantida em sistema de criação intensivo, correspondendo a 66,7% (22/33) da casuística, enquanto que 21,2% (7/33) das pacientes eram criadas em sistema semi-intensivo e apenas 12,1% (4/33) em sistema extensivo. A manifestação clínica da doença foi observada no período do pré-parto, em 100% dos animais (33/33). Destes, 57,6% (19/33) receberam alta clínica. Vieram a óbito 42,4% (14/33), sendo que oito animais morreram antes de completar a gestação, o que foi constatado apenas na necropsia, enquanto outros seis sucumbiram após o parto.
Observa-se ainda o aumento da prevalência dessa enfermidade, principalmente nos últimos três anos (2005 a 2007), conforme observado na Figura 1.
Todas as ovelhas estavam no terço final da gestação e eram submetidas a dietas alimentares variadas, sendo que 60,6% (20/33) recebiam volumoso e concentrado à vontade, 21,2% (7/33) alimentavam-se somente com volumoso, 9,1% (3/33) recebiam volumoso e concentrado oferecido de acordo com o peso do animal e 9,1% (3/33) recebiam alimento com diminuição do fornecimento de concentrado no terço final da gestação. Foi observado que onze ovelhas (33,3%) estavam acometidas por doenças intercorrentes, como mastite (5/11), verminose (4/11), broncopneumonia (1/11) ou associação de verminose e mastite (1/11).
Os resultados dos exames clínicos são apresentados na Tabela 1.
de hiperglicemia, em 64,7% (11/17), seguida por normoglicemia, em 23,5% (4/17), e hipoglicemia, em 11,8 % (2/17). Nos sete animais em que foram realizadas dosagens no pós-parto, a taxa foi de 85,7% (6/7) animais com normoglicemia e de 14,3% (1/7) com hipoglicemia. A pesquisa de corpos cetônicos na urina, conforme a Figura 2, realizada em ovelhas antes do parto, apresentou resultado positivo em 90,9% (20/22) dos animais estudados, ao passo que, em 9,1 % (2/22) destes, o resultado obtido foi negativo. Após o parto, 25,0% (1/4) das pacientes apresentaram resultado positivo, ao passo que em 75,0% (3/4) foram verificados resultados negativos.
No momento do parto verificou-se gestação múltipla em 92,0% (23/25) dos casos e em 8,0% (2/25) havia apenas um feto. Convém ressaltar que oito animais não foram até o final da gestação, sendo constatados óbitos e confirmadas as prenhezes durante a necropsia. Foi percebido também que em 20% (4/25) não houve necessidade de auxílio ao parto, ao contrário do observado em 32% dos casos clínicos (8/25), nos quais se realizou manobra obstétrica, e em 48% (12/25) as pacientes foram submetidas à cesariana.
No quesito viabilidade fetal, constatou-se o índice de sobrevivência total de 54% (27/50), e o índice de sobrevivência materno alcançou 57,6% (19/33), conforme verificado na Tabela 2.

DISCUSSÃO

Por ser a toxemia da prenhez um distúrbio metabólico não totalmente esclarecido, estudos estão sendo realizados e dados mais recentes (SCHLUMBOHM & HARMEYER, 2008) sugerem que a causa primária desse distúrbio é uma deficiência da produção de glicose materna, possivelmente provocada por um déficit no processo de síntese do principal precursor, no caso o ácido propiônico produzido no rúmen. Outros autores, como BRUÉRE & WEST (1993) e AFONSO (2006), afirmaram, anteriormente, que essa ocorrência se devia a um suprimento aumentado de glicose para o útero gestante. 
A maior ocorrência de casos clínicos na raça Santa Inês é justificada por ser esta uma das raças mais criadas na região, em virtude de suas qualidades zootécnicas, assim como da rusticidade e produção de carne (OLIVEIRA, 2000).
A maior prevalência associada ao sistema de criação ocorreu nos animais submetidos ao sistema intensivo de criação, os quais recebiam concentrado à vontade e apresentavam escore corporal acima do considerado ideal para a espécie (escore corporal 3), conforme observado nos animais do trabalho. De acordo com ROOK (2000), o fornecimento de energia no terço final da gestação para ovelhas acima do peso pode resultar no agravamento do quadro clínico dos animais com toxemia da prenhez, pela maior mobilização de gordura e consequente aumento dos corpos cetônicos.
Os sinais clínicos que os animais apresentaram neste trabalho, como foi descrito, não foram tão severos e discordam dos relatados por ROOK (2000). Este autor afirmou que os sinais clínicos brandos da doença não são frequentemente noticiados, devendo-se tal fato, provavelmente, ao rápido reconhecimento da doença, o que evita sua evolução e consequente agravamento e óbito tanto da ovelha quanto da cria.
Os achados observados nas ovelhas acometidas no terço final de prenhez, gestando fetos múltiplos e apresentando doenças concomitantes como mastite (5/11), verminose (4/11) e broncopneumonia (1/11), verifica-se que são justificados, de acordo com as informações de BRUÉRE & WEST (1993), pelo fato de a capacidade do rúmen encontrar-se diminuída e o consumo de alimento estar prejudicado. Neste período, há a elevação do tamanho fetal (principalmente quando são múltiplos), o que pode levar, além de toxemia da gestação, a uma situação de predisposição a doenças concomitantes, como por exemplo foot rot, anormalidades dentárias, parasitismo gastrointestinal, entre outros.
Com relação aos produtos obtidos das ovelhas acometidas, a maioria necessitou de auxílio, através de manobras obstétricas ou cesarianas. Esses achados concordam com os de MARTENIUK & HERDT (1988) e RADOSTITS et al. (2000), quando afirmam que, se um animal aborta ou sobrevive a termo, a distocia é frequente e está associada com baixa atividade uterina e muscular abdominal, juntamente com pouca dilatação cervical.
A hiperglicemia foi um dos achados laboratoriais mais frequentemente observados neste estudo, discordando do relatado por RANAWEERA (1980) e FORD et al. (1990), em que a maior ocorrência era de ovelhas hipoglicêmicas acometidas por essa doença. O aumento da glicose na corrente sanguínea verificada neste estudo está de acordo com o descrito por LINDNER (1959), tendo relação com o estresse severo a que os animais são submetidos ou até mesmo a uma habilidade prejudicada da ovelha cetonêmica, em metabolizar ou excretar o hormônio cortisol. Conforme relatado por WASTNEY et al. (1983), pode estar associado também à morte fetal, que parece resultar na gliconeogênese aumentada.
Ainda com relação aos achados laboratoriais, a pesquisa de corpos cetônicos na urina realizada antes do parto apresentou resultado positivo em quase todos os animais estudados, indicando que a grande maioria das pacientes apresentava cetonúria. Esses achados concordam com a afirmativa de LYNCH & JACKSON (1983), quando citam que este é um dos achados mais consistentes na toxemia da gestação ovina, enfatizando que a concentração de β-hidroxibutirato (BHB) em ovelhas gestantes normais apresentam valores abaixo de 0.5mM. Já a cetonúria é evidente somente quando concentrações plasmáticas de BHB alcançam 0.6 a 0.7mM. Uma inversão desse quadro foi observada após o parto, provavelmente em virtude da queda dos valores dos corpos cetônicos na urina, em decorrência da melhora da condição clínica devido ao tratamento.
A evolução clínica variou de cinco a dezessete dias nos animais que vieram a óbito (42,4%) ou receberam alta clínica (57,6%), respectivamente. Esse resultado diverge dos apresentados por ROOK (2000) e AFONSO (2006), que afirmam que a morbidade das pacientes se dá em torno de 20%, enquanto que a mortalidade dos animais acometidos pode alcançar valores de 80%, principalmente quando o início do tratamento é retardado e os animais são incapazes de se levantar. Acredita-se que essa divergência quanto aos resultados obtidos possa ser explicada pelo fato de os animais terem sido atendidos e tratados no estágio inicial da doença.

CONCLUSÃO

A ação efetiva de forma precoce no tratamento viabiliza clinicamente a ovelha e o feto. Além disso, o trabalho comprova que a toxemia da gestação é um distúrbio que tem sido constantemente diagnosticado na ovinocultura, sendo caracterizado por grandes prejuízos econômicos tanto devido às perdas decorrentes do óbito tanto das ovelhas como de suas crias. Isso torna necessária uma orientação no que diz respeito às práticas de manejo nutricional, para que tais perdas sejam reduzidas.

REFERÊNCIAS

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Protocolado em: 7 fev. 2009.    Aceito em: 28 set. 2009.