DOI: 10.5216/cab.v13i3.4890

NEFROTOXICIDADE DA PREDNISONA EM FELINOS

 

Leandro Abreu Fonseca1, Angelo Ton2, Fabiano Sellos Costa3, Andréa Alves1, Geórgia Galaes4, Fabrícia Modolo Girardi2

 
1Professores do Centro Universitário Vila Velha, Vila Velha, ES, Brasil. leandro.abreu@uvv.br
2Médicos Veterinários autônomos, Vila Velha, ES, Brasil.
3Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, PE,Brasil
4Médica Veterinária autônoma, Eunápolis, BA, Brasil

RESUMO

Avaliou-se a nefrotoxicidade da prednisona em felinos com utilização de dose imunossupressora (5mg/kg/dia), por meio do hemograma, dos parâmetros bioquímicos séricos (uréia e creatinina) e urinários (GGT, proteína e creatinina) e da urinálise. Foram utilizados oito gatos, sem raça definida (SRD), adultos e com peso médio de 3 Kg. Os animais foram alojados em quatro baias (dois animais por baia) e alimentados com duas medidas de ração comercial por dia e água ad libitum por um período de adaptação de sete dias. O delineamento experimental foi inteiramente casualizado, sendo rejeitado qualquer critério específico de inclusão no trabalho, além da ausência de qualquer lesão renal prévia. Os animais receberam 5mg/kg de prednisona via oral a cada 24 horas por um período de 14 dias. As amostras foram coletadas em dois momentos, sendo  animais em repouso antes da administração de prednisona (M1) e 14 dias (M2) após o início da administração do fármaco. Foram observadas diferenças significativas em alguns parâmetros hematológicos, bioquímicos e na urinálise. Conclui-se que a prednisona na dose imunossupressora (5mg/kg/dia) durante um período de 14 dias é potencialmente nefrotóxica e que a determinação da atividade da GGT urinária mostrou-se precisamente sensível à lesão tubular proximal precoce.

PALAVRAS-CHAVE: corticoide; felinos; GGT; nefrotoxicidade.

 

NEPHROTOXICITY OF PREDNISONE IN CATS

 

ABSTRACT

The nefrotoxicity of prednisone in cats was evaluated, using an immunesupressor dose (5 mg/kg/day), by establishing blood count, serum biochemistry (urea and creatinine) and urinary (GGT, protein and creatinine) parameters and urinalysis. Eight cats were used. The animals were of undefinied breed, adults and with average weight of 3 kg.  They were housed in four cubicles and fed with two measures of commercial ration per day and water ad libitum during an adaptation period of seven days. The trial design was entirely random, being rejected any specific criterion of inclusion in this study besides the absence of any previous kidney damage. Animals received 5 mg / kg prednisone, orally, every 24 hours for a period of 14 days. The samples were collected in two different times, with the animals resting before prednisone administration (M1), and 14 days after the administration (M2). Significant differences were found in some hematological and biochemical parameters as well as in urinalysis. It was concluded that the prednisone (5 mg / kg / day), during a period of 14 days, is potentially nephrotoxic and the determination of the urinary GGT activity was proven to be precisely sensitive to early proximal tubular injury.

KEYWORDS: corticoid; feline; GGT; nephrotoxicity.



INTRODUÇÃO

Os rins desempenham a função de eliminação de produtos terminais do metabolismo orgânico e de controle das concentrações da água e da maioria dos constituintes dos líquidos do organismo.  A filtração glomerular, a reabsorção tubular e a secreção tubular de diversas substâncias são os principais mecanismos por meio dos quais os rins exercem as suas funções (MILLS et al., 1998).
O método rotineiramente usado para avaliar a função renal é a mensuração da concentração plasmática de substâncias normalmente excretadas pelos rins. A avaliação dos níveis de ureia e creatinina são os testes mais comumente utilizados na rotina. Para apreciação desses dados, é importante o conhecimento dos fatores extra-renais que podem afetá-los e a análise concomitante de outros dados laboratoriais para a localização da origem do aumento dessas substâncias. Entretanto, a azotemia de origem renal só ocorre quando cerca de 75% do parênquima renal é perdido e, dessa maneira, o conhecimento e a utilização de outros métodos que permitam o reconhecimento mais precoce da patologia renal tornam-se muito importantes para um melhor prognóstico da insuficiência renal (SANTIN et al., 2006).
A enzimologia clínica é de grande importância diagnóstica (WESTHUYZEN et al., 2003) no que se refere às enzimas presentes na corrente sanguínea e na urina. Os estudos de enzimologia iniciaram-se em 1901 com Vitor Henri e foram intensificados a partir de 1910 com Leonor Michaelis. Apenas em 1927 foi descrita a primeira enzima, a fosfatase alcalina por King e Armstrong. Na década de 1960 foi iniciado o uso da enzimologia no diagnóstico na Medicina Humana e apenas na década de 1980 seu uso foi ampliado no diagnóstico na Medicina Veterinária (RODRIGUES, 2005).
As enzimas urinárias são utilizadas para teste de detecção precoce de lesão renal. Dentre essas, a gama glutamil transpeptidase (GGT) urinária é a mais facilmente testada (RAMBABU & PITTABIRAMAN, 1982; SODRÉ et al., 2007). Elevações na atividade enzimática urinária ocorrem antes mesmo de mudanças na depuração de creatinina, na concentração sérica de creatinina ou na fração de eletrólitos eliminada pela urina (MEYTS et al., 1988).
No entanto, para que a dosagem da atividade de GGT urinária seja precisa, é necessário que o cálculo de correção descrito por DESCHEPPER et al. (1989) seja realizado, utilizando-se a densidade urinária 1.025 como fator de correção para o fluxo urinário de uma única amostra, tal que X = Y . 25/Z, em que X é atividade da GGT urinária calculada; Y é a atividade da GGT urinária da amostra e Z corresponde aos últimos dois dígitos da densidade urinária da amostra.
A GGT é uma enzima microssomal e de membrana, de vasta distribuição nos tecidos envolvidos em processos secretórios e absortivos, particularmente no canal biliar e na borda em escova dos túbulos renais (TASCI et al., 2005). É composta por uma subunidade pesada, com 62-68Kda, e por uma leve, com 22Kda (YU et al., 2007), e está abundantemente presente no pâncreas, fígado, baço, coração, cérebro, vesículas seminais e rins (TATE & ROSS, 1977; FRIELLE & CURTHOYS, 1982; CABRERA-ABREU & GREEN, 2002; ELIAS et al., 2004), além de ser essencial na manutenção do balanço homeostático, no que diz respeito ao estresse oxidativo (YU et al., 2007).
A GGT urinária reflete a lesão na borda em escova dos túbulos proximais (KANEKO et al., 2008; SANTIN et al., 2006) e pode ser encontrada na urina em condições lesivas, antes mesmo de outros elementos (RAMBABU & PATTABIRAMAN, 1982), além de persistir por maior tempo (YU et al., 2007).
Os efeitos dos corticoides podem ser observados em quase todo o organismo, pois influenciam a função da maioria das células (PENILDON, 2000). Segundo ANDRADE (2002), o corticoide apresenta uma atuação no metabolismo do ácido araquidônico, por meio da inibição da ação de enzimas chaves como a fosfolipase A-2 e a cicloxigenase, tendo essa última sua expressão genética de maneira tônica. 
As cicloxigenases são enzimas essenciais para a síntese de prostaglandinas a partir da liberação de ácido araquidônico (AA) pelas fosfolipases da membrana celular. A oxidação e a redução subsequente do AA são responsáveis pela produção, respectivamente, de endoperoxidase (PGG2) e hidroxiendoperoxidase (PGH2). A PGH2 é transformada por meio de mecanismos enzimáticos e não-enzimáticos em prostanóides primários, prostaglandina E2 (PGE2), prostaglandina F (PGF), prostaglandina D2 (PGD2), tromboxano B2 (TXB2), tromboxano A2 (TXA2) e prostaciclinas (PENILDON, 2000).
A síntese de prostanóides, que envolve o consumo de duas moléculas de oxigênio (MURRAY et al., 2002), se dá de modo gradual, em passos, por meio de um complexo de enzimas microssômicas, sendo que a primeira enzima dessa via sintética é a prostaglandina G/H endoperóxido sintase (cicloxigenase), em duas isoformas distintas. A cicloxigenase 1 (COX-1) é expressa de forma constitutiva na maioria das células, por outro lado, a COX-2 tem sua regulação incrementada por citocinas, por forças de cisalhamento e por fatores de crescimento. A COX-2 é a principal fonte dos prostanóides formados na inflamação e no câncer (BRUNTON et al., 2007).
De acordo com PENILDON (2000), é provável que a COX-2 exerça algum papel na fisiologia renal e na condução nervosa, de forma que a inibição dessa enzima poderá acarretar disfunção orgânica.
O objetivo desse trabalho é avaliar a nefrotoxicidade da prednisona em felinos com utilização de dose imunossupressora (5mg/kg/dia), por meio da determinação da atividade da GGT urinária e da relação proteína/creatinina na urina.

 
MATERIAL E MÉTODOS

 A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Biossegurança da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, com parecer número 010/2008. Foram utilizados oito gatos, sem raça indefinida (SRD), adultos e com peso médio de 3 Kg. Os animais foram alojados em quatro baias (dois animais por baia) e alimentados com duas medidas de ração comercial[1] por dia e água ad libitum por um período de adaptação de sete dias. Após o período de ambientação, inicialmente foram coletadas amostras de sangue para realização de hemograma, determinação de parâmetros bioquímicos (ureia e creatinina) e de urina (urinálise, relação proteína/creatinina e GGT), a fim de se determinar a média aritmética como valor basal de controle.
 O delineamento experimental foi inteiramente casualizado, sendo rejeitado qualquer critério específico de inclusão no trabalho, além da ausência de qualquer lesão renal prévia.
Os animais receberam 5mg/kg de prednisona via oral a cada 24 horas por um período de 14 dias. As amostras foram coletadas em dois momentos, sendo eles, animais em repouso antes da administração de prednisona (M1) e 14 dias após o início da administração do fármaco (M2). As coletas foram realizadas pela manhã de cada dia. A obtenção da amostra de sangue para realização do hemograma e dos parâmetros bioquímicos foi feita através de punção em veia jugular e as amostras foram acondicionadas em tubo contendo EDTA a 10% e outro sem anticoagulante, respectivamente. A amostra de urina foi obtida por meio de cistocentese.
 As urinálises foram realizadas, primeiramente, observando-se o aspecto físico (volume, cor, aspecto e densidade), seguido da realização do exame bioquímico, o qual foi realizado com auxílio de fitas de análise bioquímica[2], a fim de se determinar os níveis de glicose, corpos cetônicos, urobilinogênio, proteínas, pH, sangue oculto e bilirrubina. Após essa avaliação, realizou-se a centrifugação das amostras de urina em tubos de ensaio a 2000 rotações por minutos (RPM); em seguida, o sobrenadante foi desprezado, sendo deixada uma pequena fração, para ressuspensão e homogeneização do sedimento. Logo depois, colocou-se uma amostra disposta sobre lâmina e sob lamínula, para posterior análise ao microscópio óptico.
Para a determinação sérica de ureia, creatinina e urinária de proteína, creatinina e GGT utilizaram-se kits[3] reagentes comerciais utilizados em aparelho semi-automático[4]. O hemograma foi realizado segundo descrição de THRALL (2007); no entanto, a contagem de células foi realizada com o auxílio de um contador automático de células[5] e microscópio óptico. 
Os valores da atividade da GGT urinária foram corrigidos pela fórmula descrita por DESCHEPPER et al. (1989).

 
RESULTADOS E DISCUSSÃO

 Os achados laboratoriais no que diz respeito ao número de hemácias, ao VG e aos leucócitos totais e diferenciais mantiveram-se de acordo com o esperado durante a utilização de uma corticoterapia na dose de 5mg/kg/dia (dose de imunossupressão).
Para avaliação dos dados de hemograma, foram utilizados os valores de referência adotados por JAIN (1993). Os valores médios e desvios-padrão dos parâmetros hematológicos avaliados estão apresentados na Tabela 1.
Na análise estatística dos valores médios de contagem de hemácias, hemoglobina, volume globular (VG), volume corpuscular médio (VCM), concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) e de contagem de plaquetas constataram-se níveis dentro das variações permitidas para animais sadios nos dois momentos de coleta, com discreto aumento do VG após 14 dias de administração de prednisona. Esses dados são corroborados por PEREIRA et al. (2007), que comprovaram a existência apenas de pequenos efeitos dos corticoides sobre a eritropoiese e a concentração de hemoglobina, e por FELDMAN & NELSON (1996), em estudo feito com 34 felinos que apresentavam hiperadrenocorticismo e níveis de hemácias e leucócitos consistentemente dentro dos limites da normalidade.
Os resultados obtidos com a contagem de leucócitos totais demonstraram valores dentro da normalidade nos dois momentos. Porém, quando comparada a evolução do momento inicial ao momento final, verificaram-se diminuições significativas das médias de eosinófilos, monócitos e linfócitos, como afirmado por PENILDON (2000) e PEREIRA et al. (2007). Os leucócitos segmentados não apresentaram alterações estatisticamente relevantes, o que contraria DAMIANI et al. (1984), DAMIANI et al. (2001) e LONGUI (2007) no que diz respeito ao efeito dos glicocorticoides na diminuição da apoptose e aumento da sobrevida de neutrófilos. Não foram observados basófilos e bastonetes em nenhum dos momentos.
Para análise dos parâmetros bioquímicos, utilizaram-se os valores de normalidade propostos por KANEKO et al. (2008). Os valores médios e desvios-padrão dos parâmetros bioquímicos avaliados estão apresentados na Tabela 2.
Nenhum dos animais apresentou azotemia e/ou uremia no decorrer do período de uso da prednisona. Os valores séricos obtidos de ureia e creatinina não apresentaram quaisquer alterações estatisticamente significativas a ponto de representarem o desenvolvimento de azotemia. No entanto, não se pode descartar a presença de possíveis lesões renais (BARBER, 1996).
A análise da relação proteína/creatinina realizada no M1 apresentou-se dentro dos limites de normalidade. Em comparação, a relação proteína/creatinina do momento M2 mostrou-se alterada em um nível superior ao de três vezes o desvio-padrão em relação à média de M1, garantindo, com 99,8% de segurança, uma alteração estatisticamente significativa. Tais valores indicam, segundo BARBER (1996), perda leve a moderada de proteína. Contudo, os resultados foram comprometidos pela presença de valores destoantes da média. Ainda assim, os valores mínimos apresentaram-se acima dos determinados na faixa da normalidade, o que assegura a presença de lesão renal.
Portanto, os resultados da relação proteína/creatinina encontrados neste trabalho possibilitam a suposição de que o uso, em gatos, de prednisona na dose imunossupressora (5mg/kg/dia) durante um período de 14 dias é potencialmente nefrotóxico.
Para análise dos resultados de atividade de GGT urinária, foi utilizada como valor de referência a média obtida na primeira coleta (M1). Notou-se aumento expressivo da atividade de GGT urinária em todos os animais, após o tratamento; entretanto, foi observada uma importante variação entre os indivíduos, com valores extremamente discrepantes que acabaram por destoar da média final. Esses achados são compatíveis com Rivers et al. (1996) no que tange à sensibilidade da atividade de GGT urinária como marcador de lesão renal.
A densidade urinária manteve-se entre os níveis de normalidade (Tabela 3) que, de acordo com OSBORNE & FINCO (1995), oscilam entre 1,035 e 1,065. Porém, os valores finais apresentaram-se discretamente diminuídos em comparação com M1, o que pode ser justificado pela polúria e polidipsia observados frequentemente em pacientes sob uso de corticosteroides (ANDRADE, 2002).
No momento controle, 87,5% dos animais não apresentavam proteinúria. Os demais animais apresentavam apenas traços de proteína na urina.  Detectou-se proteinúria significativa em 37,5% dos gatos, após os 14 dias de tratamento. Entretanto, é válido ressaltar a variação entre os animais com perda proteica e a clinicamente expressiva reversão do quadro em um indivíduo.
Essa taxa de proteinúria é prevista por WATERS et al. (1997), que relataram que a perda de proteína na urina encontra-se associada à administração de prednisona em cães, sugerindo que outros animais, como os gatos, também possam apresentar essa alteração. No entanto, FELDMAN & NELSON (1996) afirmam que as anormalidades urinárias associadas à síndrome de Cushing canina (proteinúria, bacteriúria e piúria) não são comuns em gatos com essa doença.

 
CONCLUSÃO

 As determinações da atividade da GGT urinária e da relação proteína/creatinina urinária mostraram-se importantes como marcadores de função renal. Além disso, a determinação da atividade da GGT urinária mostrou-se precisamente sensível à lesão tubular proximal precoce; entretanto, não se demonstrou eficiente para se estimar o grau da injúria renal. De forma geral, a GGT urinária mostrou-se sensível como marcador precoce de lesão tubular renal em gatos induzida experimentalmente pelo uso de prednisona.

 
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 Protocolado em: 03 out. 2008.  Aceito em: 02 jul. 2012




[1] Cat chow® - Purina

[2] Combur Check - ROCHE®;

[3] Kits Bioclin®;

[4] BIOPLUS® BIO-200; 

[5] CELM® DA-550.