INTRODUÇÃO
Os protozoários do gênero
Cryptosporidium spp. são patógenos que causam enfermidade entérica (LEAV
et al., 2002; SULAIMAN
et al.,
2005) e que apresentam distribuição mundial e são capazes de infectar
mais de 170 espécies animais diferentes, dentre eles equinos
(O’DONOGHUE, 1995) e humanos (ANGUS, 1990). São protozoários
pertencentes à familia
Crytosporidiidae (REY, 2001) e parasitam as microvilosidades do epitélio gastrintestinal e/ou a árvore brônquica (FAYER
et al., 2000). Quando parasita o intestino, o
Cryptosporidium
spp. é capaz de determinar danos às microvilosidades, dificultando a
absorção de nutrientes e prejudicando o desempenho dos animais (BOCH
et al,, 1982; CURRENT, 1985; O`DONOGUE, 1985).
A transmissão desse parasita pode ocorrer pela via fecal-oral ou pela
ingestão de água e alimentos contaminados (JOHNSON, 1997) bem como ser
influenciada pelo nível de contaminação ambiental e pela sobrevivência
da forma infectante às condições do meio (ROBERTSON
et al.,
1992). KIRKPATRICK (1985) verificou nos Estados Unidos que 65% a 97%
das águas de superfície estão contaminadas com oocistos de
Cryptosporidium spp.
Em equinos, a infecção pelo
Cryptosporidium spp. foi descrita inicialmente em cinco potros da raça Árabe com imunossupressão (SNYDER
et al., 1978). Subsequentemente, o
Cryptosporidium
spp. foi relatado em cavalos imunocompetentes em diferentes lugares do
mundo. A prevalência em equinos pode variar conforme a categoria
animal, a idade, a localização, entre outros fatores. As taxas de
infecção encontradas variam de 1% a 47% (SANTIN
et al., 2007).
Animais jovens, mais susceptíveis, apresentam diarreia como principal
sinal clínico, ao passo que nos adultos a infecção é geralmente
assintomática (SANTIN
et al., 2007). O curso da infecção pelo
Cryptosporidium spp. geralmente é autolimitante em indivíduos imunocompetentes (KEUSCH
et al., 1995). No entanto, em animais imunossuprimidos, o
Cryptosporidium
spp. é reconhecido como um microrganismo patogênico determinando
diarreia aquosa, má absorção e perda de peso (CURRENT, 1985), em que a
severidade da doença é diretamente proporcional ao estado imunológico
do hospedeiro (FEELY, 1990). BJORNEBY (1991) relatou a morte de cinco
potros com imunodeficiência severa devida à infecção por
Cryptosporidium spp.
A criptosporidiose pode ser um risco à saúde pública, dada a
possibilidade de transmissão desse agente para os seres humanos, uma
vez que os animais participam como um reservatório desse protozoário. O
presente estudo tem por objetivo comparar a prevalência da infecção
pelo
Cryptosporidium spp.
entre equinos de tração pertencentes a carroceiros do bairro Alto da
Boa Vista e atletas do Jockey Club de Santa Maria, RS.
MATERIAL E MÉTODOS
O estudo foi realizado no período de abril a junho de 2007.
Utilizaram-se 104 equinos, sendo 52 das raças Puro Sangue Inglês (PSI)
e 52 Sem Raça Definida (SRD), machos e fêmeas com idades variando de 5
meses a 20 anos. Para determinação de diferenças na frequência de
detecção quanto à idade, os animais foram classificados em: potros (até
dois anos), jovens (dois até oito anos) e adultos (mais de oito até
vinte anos).
Os equinos foram divididos em dois grupos: Grupo 1, composto por
equinos de tração do bairro Alto da Boa Vista, machos (31) e fêmeas
(21), sendo 8 potros, 16 animais jovens e 28 animais adultos (n=52); e
Grupo 2, constituído de equinos atletas do Jockey Club de Santa Maria,
machos (34) e fêmeas (18), com 18 potros, 23 animais jovens e 11
animais adultos (n=52). Os animais não apresentavam diarreia ou
qualquer outro sinal clínico da doença.
Coletaram-se as amostras diretamente da ampola retal dos animais, as
quais foram posteriormente identificadas e preservadas em refrigerador
a 5°C até o seu processamento no laboratório de Doenças Parasitárias da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Processaram-se as amostras
pela técnica de FAUST
et al.
(1938), pela centrífugo-flutuação com sulfato de zinco (densidade
específica = 1.180 Kg/m³). Os oocistos foram mensurados e
caracterizados morfologicamente, conforme REY (2001) e FOREYT (2005).
Os animais do Grupo 1 pastavam em campo nativo com eventual
suplementação de milho, farelo e ração. Os animais não recebiam
suplemento mineral. Os equinos viviam livremente na comunidade e em
contato direto com resíduos domésticos e córregos que atravessam o
bairro Alto da Boa Vista. Os animais eram utilizados em atividades como
pequenos fretes, transportes de pessoas e coletas de materiais
recicláveis pelo centro da cidade e no bairro.
Os equinos do Grupo 2 recebiam ração concentrada duas vezes ao dia em
cochos de cimento no interior das cocheiras e feno de alfafa fornecido
no chão, uma vez ao dia. Alguns equinos recebiam cenoura como
complemento alimentar. Forneciam-se a água em bebedouros com boias de
nível,
ad libitum, e sal
mineral, uma vez por semana, na forma granulada no comedouro. As camas
eram de maravalha ou palha de arroz e trocadas semanalmente.
Procedia-se à remoção das fezes das camas duas vezes ao dia, sendo
depositadas em esterqueiras, situadas próximas às cocheiras, no período
matutino e vespertino. Os animais saíam das cocheiras duas vezes ao dia
para realizar treinamento, passeio e pastoreio em piquete de campo
nativo próximo às baias, onde alguns animais de carroceiros tinham
acesso a estes piquetes.
Para a análise estatística, empregou-se o software SAS V8. A ocorrência
do parasita nas faixas etárias e no sexo foi analisada pelo teste exato
de Fischer, ao nível de 5% de significância.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados obtidos nos grupos estão demonstrados na
Tabela 1. Todos os equinos avaliados estavam clinicamente sadios, com a consistência das fezes considerada normal.
Pode-se observar que a prevalência do protozoário foi maior entre os
equinos da raça PSI (80,8% - 52/42) quando comparados aos SRD (38,5% -
20/52) e que não houve diferença estatística para prevalência deste
parasita considerando a variável sexo em ambos os grupos.
Do total dos animais do Grupo 1 (n=52), vinte (38,5%) apresentaram
oocistos nas fezes, sendo que nos animais jovens (2 a 8 anos) foi
observada maior positividade (12/16 – 75%).
Da totalidade dos 52 animais do Grupo 2 (equinos atletas), constatou-se
a presença de oocistos de Cryptosporidium spp. em 80,8% (42/52) das
amostras das fezes analisadas, com uma prevalência nos potros de 83,3%
(15/18), nos jovens de 78,3% (18/23) e nos adultos de 81,8% (9/11). Não
foram observadas diferenças estatísticas quanto à variável idade deste
grupo.
Comparando-se estatisticamente as faixas etárias entre grupos,
observa-se significativa diferença na prevalência entre os potros,
sendo os animais do G2 os que apresentaram maior positividade. Na
categoria dos animais jovens de ambos os grupos, os valores percentuais
da prevalência do protozoário nas fezes foram semelhantes, não havendo
diferença estatística. Entre os animais adultos, o Grupo 2 apresentou
estatisticamente maior prevalência do protozoário do que os animais do
Grupo 1 na mesma faixa etária.
Houve maior prevalência de oocistos de
Crytosporidium
spp. nas fezes de animais atletas do Jockey Club em relação aos de
tração, possivelmente pelas condições a que estes animais são
submetidos, como a de constantes situações de estresse proporcionado
por treinamentos extenuantes, pela estabulação, enfermidades e pelas
competições frequentes, bem como pela possível contaminação da água,
dos alimentos e higiene dos tratadores. Como os animais do Grupo 1
tinham idade média maior, quando comparados aos animais do Grupo 2,
sugere-se que os animais mais idosos conferem imunidade etária contra a
infecção pelo protozoário. Provavelmente a contaminação ambiental por
esse protozoário no Jockey Club esteja influenciando para a maior
prevalência entre os equinos atletas. Além disso, como refere BRAY
(1997), em áreas grandes de pastoreio dificilmente os animais regressam
para pastar na mesma área, evento esse que determina a redução da
taxa de reinfecção, diferentemente de uma área mais restrita de
pastoreio, que favorece o contato com as fezes infectadas dos animais.
Os resultados deste estudo discordam dos apresentados por MAJEWSKA
et al. (2004), que demonstram a prevalência de 3,5%, de infecção de equinos com
Cryptosporidium
spp. em centros de equitação na região ocidental da Polônia, em
Wielkopolska. Discordam, ainda, dos referidos por JOHNSON (1997), que
evidenciaram a ausência de oocistos do protozoário. Possivelmente,
esses índices são atribuídos à água contaminada com oocistos
infectantes, sugerindo que há grande contaminação hídrica no Alto da
Boa Vista.
Este estudo também diverge dos relatos de OLSON (1997), em que a prevalência de
Cryptosporidium
spp. foi maior em animais adultos (21%) quando comparados com os potros
(10%), possivelmente pela proteção contra esta infecção atribuída à
imunidade passiva ou por reduzir o contato das fontes de infecção do
protozoário (WOLFE, 1992). XIAO & HERD (1994) também demonstraram
uma prevalência inferior de
Cryptosporidium spp. em Ohio e Kentucky, em equinos, de cinco a oito semanas de idade, quando comparados aos adultos.
A taxa de infecção por oocistos de
Crytosporidium spp. foi superior quando comparada à relatada por BEELITZ
et al. (1996), em que 0,33% do total dos animais foram positivos. No entanto, está em concordância com os relatos de MAJEWSKA
et al.
(1999), em que a taxa de infecção pelos protozoários variou entre 17% e
100% no Canadá e outras localidades do EUA como Louisiana, Colorado e
Texas.
A presença destes oocistos de
Cryptosporidium
spp. em animais de tração e animais atletas possivelmente representa um
grande risco à saúde pública, em virtude do potencial zoonótico que
este protozoário demonstra, especialmente em relação à população do
Alto da Boa Vista e circunvizinha ao Jockey Club de Santa Maria.
CONCLUSÃO
Com base nos resultados do presente estudo, pode-se concluir que os equinos do Jockey Club apresentam maior prevalência de
Cryptosporidium
spp. nas fezes que equinos de tração no município de Santa Maria, RS.
Além disso, observou-se que esses animais apresentam-se como provável
reservatório deste protozoário, apontando para um possível risco à
saúde pública. Dessa forma, este estudo, assim como outros, salienta a
importância dessa enfermidade envolvendo a epidemiologia e controle
dessa protozoose.
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