Resumo
Considerando os diversos problemas tecnológicos e econômicos que os microrganismos deteriorantes acarretam aos laticínios, o objetivo deste trabalho foi quantificar aeróbios mesófilos, psicrotróficos, termodúricos e esporulados no leite cru produzido na região Norte do Paraná e verificar a capacidade proteolítica e lipolítica desses microrganismos. Foram analisadas 20 amostras de leite cru e determinadas contagens de aeróbios mesófilos, psicrotróficos, termodúricos mesófilos, termodúricos psicrotróficos e esporos aeróbios e o perfil proteolítico e lipolítico de cada grupo. A contagem média de aeróbios mesófilos foi de 1,7x106UFC/mL acima do limite estabelecido pela Instrução Normativa 76 (3,0x105UFC/mL); 55% das amostras apresentaram contagens dentro dos padrões. As contagens de psicrotróficos variaram de 1,0x102 a 9,9x106UFC/mL e em 30% das amostras esse valor foi superior ao de mesófilos. A média de termodúricos mesófilos foi de 2,4x104UFC/mL, de termodúricos psicrotróficos 1,7x102UFC/mL e de esporos aeróbios foi de 5,0x101UFC/mL. Quanto ao perfil deteriorante, todos os grupos apresentaram atividade lipolítica e proteolítica elevadas, com predomínio de bactérias lipolíticas. Os valores encontrados indicam que o manejo higiênico-sanitário inadequado durante a ordenha e o resfriamento prolongado favorece a proliferação da microbiota deteriorante, que pode promover alterações significativas na qualidade e no rendimento do leite e seus derivados, mesmo após tratamento térmico.
Palavras-chave: lipólise; proteólise; refrigeração; microbiota deteriorante.
Abstract
Considering that technological problems and economic losses are basically caused by spoilage microorganisms on dairy industry, therefore the aim of this study was to quantify the mesophilic aerobic, psychrotrophic, thermoduric and aerobic spore-forming in raw milk produced in northern Paraná and also verify the proteolytic and lipolytic capacity of these microorganisms. Twenty samples of raw milk were analyzed and were determined mesophilic aerobic, psychrotrophic, thermoduric mesophilic, psychrotrophic thermoduric and aerobicspore-forming counts and proteolytic and lipolytic capacity from each group. The average counts of aerobic mesophilic were 1,79x106CFU/mL, above the limit established to Normative Instruction 76 (3,0x105CFU/mL); 55% samples had scores within the standards. Psychrotrophic counts ranged from 1,0x102 to 9,9x106CFU/mL and in 30% samples this count was higher than mesophilic. The average mesophilic thermoduric was 2,4x104CFU/mL, psychrotrophic thermoduric was 1,7x102CFU/mL and aerobic spore-forming was 5,0x101CFU/mL. As for the spoilage profile, all groups showed higher lipase and proteolytic activity, with a predominance of lipolytic bacteria. The values found indicates the inappropriate hygienic-sanitary management during milking and maintaining molk refrigerated for long periods until pasteurize, it can favorsthe proliferation of spoilage microbiota, which can promote significant changes in the quality and yield of milk and dairy products, even after the heat treatment.
Keywords: lipolysis; proteolysis; refrigeration; spoilage microbiota.
Seção: Ciência e Tecnologia de Alimentos
Recebido
7 de novembro de 2016.
Aceito
5 de agosto de 2019.
Publicado
5 de fevereiro de 2020
www.revistas.ufg.br/vet
Como citar - disponível no site, na página do artigo.
Introdução
O Brasil é o quarto maior produtor de leite no mundo(1), porém os problemas relacionados à produtividade e à qualidade do leite cru ainda são frequentes e graves, sendo esta última associada principalmente à excessiva contaminação por microrganismos, levando à rápida deterioração do produto, inclusive pasteurizado e UHT. A vida útil do leite beneficiado está diretamente relacionada à carga microbiana inicial no leite cru e à composição desta microbiota, principalmente deteriorantes produtores de enzimas. O maior problema atualmente no Brasil está no comprometimento da qualidade ainda na propriedade, pois o leite já sai com altas contagens de microrganismos aeróbios mesófilos. Enquanto nos Estados Unidos, União Europeia e Nova Zelândia a contagem desses microrganismos apresenta valores inferiores a 1,0x105UFC/mL, no Brasil a Instrução Normativa nº 76(2) permite contagens de até 3,0x105 UFC/mL. Assim, o leite pasteurizado no Brasil apresenta uma vida útil média de cinco dias, enquanto nos Estados Unidos chega a 20 dias, pois há uma preocupação não só com a quantidade de microrganismos, mas também com a composição da microbiota e sua atividade sobre as proteínas e gorduras do leite.
A refrigeração do leite cru reduz consideravelmente a multiplicação de aeróbios mesófilos, principais responsáveis pelo processo de acidificação do leite cru(3). Entretanto, permite a multiplicação de microrganismos psicrotróficos, que possuem vias metabólicas que são ativadas em temperatura de refrigeração(4). Esses microrganismos apresentam capacidade de produção de enzimas lipolíticas e proteolíticas termoestáveis, que mantêm a sua atividade enzimática após a pasteurização, ou mesmo após o tratamento de ultra alta temperatura (UAT)(5), influenciando diretamente na qualidade do produto final, diminuindo sua estabilidade e vida útil, alterando o sabor e odor do leite, diminuindo o rendimento na fabricação de queijos e promovendo sedimentação e geleificação do leite UHT(4,6); entretanto, não causam acidificação do leite. De acordo com Cousin(7) e Furtado(8), essas alterações são perceptíveis sensorialmente quando há contagens de psicrotróficos superiores a 1,0x106UFC/mL.
Os microrganismos termodúricos são aqueles capazes de resistir a elevadas temperaturas(9) e são também determinantes da vida útil do leite pasteurizado, pois, além de produzirem enzimas deteriorantes, eles próprios são resistentes à pasteurização, passando a compor a microbiota remanescente do leite pasteurizado. Portanto, a qualidade microbiológica do leite cru é determinante para a qualidade e vida útil do leite fluído após tratamento térmico.
Diante do exposto, o objetivo deste trabalho foi quantificar os microrganismos aeróbios mesófilos, psicrotróficos, termodúricos e esporulados no leite cru produzido na região norte do Paraná e verificar a capacidade proteolítica e lipolítica desses microrganismos, determinando quais os grupos mais importantes na deterioração do leite.
Material e métodos
Foram coletadas 20 amostras de leite cru refrigerado diretamente de tanques de expansão de propriedades na região do norte do Paraná, nas cidades de Londrina, Tamarana, Bela Vista do Paraíso, Arapongas, Sertanópolis, Bandeirantes, Andirá, Santo Antônio da Platina e Abatiá, no período de julho a outubro de 2015. As amostras foram coletadas após a ordenha da manhã juntamente ao leite da ordenha da tarde do dia anterior. Durante a coleta foi aplicado um questionário para a obtenção de informações sobre as características e manejo de ordenha de cada propriedade. As amostras foram coletadas em frascos estéreis de 500 mL e imediatamente encaminhadas, sob refrigeração, ao Laboratório de Inspeção de Produtos de Origem Animal (LIPOA) da Universidade Estadual de Londrina.
A avaliação das características físico-químicas do leite foi realizada através das seguintes análises: densidade a 15 °C, índice crioscópico (crioscópio digital microprocessado PZL 7000 – PZL, conforme orientações do fabricante), acidez titulável Dornic, estabilidade ao alizarol 72%, e teor de gordura conforme a Instrução Normativa 68(10), pH (pHmetro digital HI 8424 – Hanna, conforme orientações do fabricante) e fosfatase alcalina por kit enzimático (Bioclin – Quibasa Química Básica, MG, Brasil) conforme orientações do fabricante.
Para contagem de microrganismos aeróbios mesófilos, semeou-se 1mL da amostra em placas de PetrifilmTM AC (3M do Brasil), incubando-se a 36 ± 1 °C por 48 horas, enumerando-se as colônias que se tornaram vermelhas devido à redução do indicador cloreto de trifeniltetrazólio (TTC)(11).
Para a contagem de psicrotróficos foi utilizada a técnica de semeadura em superfície, em ágar padrão para contagem (PCA), incubando-se as amostras em duplicata a 7 ±1 °C por 10 dias(12).
Para a enumeração de microrganismos termodúricos mesófilos e termodúricos psicrotróficos, 5 mL de cada amostra de leite cru foram adicionados a tubos estéreis com tampa de rosca para tratamento térmico em banho-maria a 62,8 ± 0,5 °C por 30 minutos e imediatamente, após o tratamento térmico, os tubos foram imersos em banho de gelo até atingirem a temperatura de 10 °C(12). Procedeu-se então à diluição e à semeadura, feita em quadruplicata de cada diluição decimal por superfície em meio de cultura PCA, sendo uma duplicata incubada a 36 ± 1 °C por 48 horas e a outra a 7 ± 1 °C por 10 dias para pesquisa de termodúricos mesófilos e termodúricos psicrotróficos, respectivamente.
Para a contagem de esporos aeróbios foi realizado tratamento térmico das amostras antes da semeadura, visando a provocar a destruição das células vegetativas e a esporulação das que têm essa capacidade. Para tal, alíquotas de 200 mL de cada amostra de leite foram aquecidas em banho-maria com agitação a 80 ± 1 ºC por 10 minutos e depois transferidas para um banho de gelo até resfriamento a 10 °C. A semeadura foi realizada em superfície em meio de cultura PCA acrescido de 0,1% de amido solúvel. A incubação foi realizada a 32 ºC por 48 horas(12).
Após a contagem das colônias de cada grupo, todas as colônias obtidas nas maiores diluições foram repicadas para ágar leite suplementado (9:1) com solução estéril de leite em pó desnatado reconstituído a 10%(13) e em ágar tributirina suplementado com tributirina (99:1)(14) para verificação de atividade proteolítica e lipolítica, respectivamente. As placas foram incubadas a 32 °C por 48 horas. A contagem foi realizada através da formação de halos de proteólise e/ou lipólise ao redor das colônias. Posteriormente, foi feita a correlação da contagem de microrganismos com atividade proteolítica e/ou lipolítica dentro de cada grupo citado anteriormente.
Resultados e discussão
Houve predomínio de propriedades de pequeno porte, com média de 39 animais por estabelecimento. O número de animais em lactação foi de 16,89, com produtividade de 10,48 litros por animal, considerada acima da média do Estado, que é de 9,3 litros(15). A maioria das propriedades (90%) possuía sala de ordenha e duas (10%) utilizavam estábulo. Em relação à higiene de ordenha, a lavagem dos tetos é uma prática muito comum, observada em 50% das propriedades: 55% utilizavam o pré-dipping e 55% utilizavam o pós-dipping para desinfecção dos tetos. O desprezo dos três primeiros jatos era realizado em 60% das propriedades. A mamada do bezerro antes da ordenha foi observada em 35% das propriedades. Quando executada em todos os tetos, essa prática é equivalente ao desprezo dos três primeiros jatos, entretanto a presença do bezerro leva à sua excessiva manipulação pelo ordenhador, que acaba contaminando os tetos e o leite(5).
De 20 propriedades, 12 (60%) possuíam ordenha semifechada (sistema balde ao pé), seis (30%) possuíam circuito fechado e duas (10%), ordenha manual. A ordenha semifechada com bezerro ao pé foi observada em 25% das propriedades e as duas (10%) propriedades que realizavam ordenha manual possuíam bezerro ao pé.
Quanto à refrigeração do leite na propriedade, 100% das propriedades resfriavam em tanque de expansão, o que está em conformidade com a IN 76(2). A coleta era realizada no tanque após a ordenha da manhã, juntamente ao leite da ordenha da tarde do dia anterior.
Os resultados das análises físico-químicas, padrões estabelecidos pela IN 76(2) e número de análises fora do padrão estão dispostos na Tabela 1:
Do total de 20 amostras três (15%) apresentaram alteração na prova do alizarol, apresentando-se instável não ácido (LINA) e três apresentaram o teor de gordura inferior ao estabelecido pela legislação. Uma amostra apresentou índice crioscópico abaixo do padrão, uma amostra apresentou pH inferior ao proposto por Santos e Fonseca(3) e também apresentou instabilidade ao alizarol, sem alteração na acidez. Casos de leite LINA não estão ligados à baixa qualidade higiênica da matéria-prima, podendo ocorrer devido a diferentes fatores citados pela literatura, como desequilíbrio de sais, desequilíbrio entre energia e proteína na alimentação, qualidade ou substituições do sal mineral ou do concentrado, rebrota de capim e estresse térmico, entre outros fatores(5).
Para as demais análises, todas as amostras se apresentaram de acordo com os padrões determinados pela legislação.
Os dados da contagem média dos grupos de microrganismos analisados estão dispostos na Tabela 2:
A média para amostras dentro do padrão para aeróbios mesófilos foi 1,1x105 UFC/mL, sendo que onze (55%) delas estão de acordo com os valores aceitos pela IN 76.
O número de bactérias psicrotróficas presentes no leite cru está relacionado às condições higiênicas na produção e ao tempo e temperatura em que o leite é armazenado. Uma contagem baixa de psicrotróficos no leite é fundamental para sua qualidade, pois a atividade metabólica desses microrganismos resulta em alterações bioquímicas nos constituintes do leite que diminuem a vida útil do leite fluido e seus derivados.
Neste estudo, a contagem de psicrotróficos variou entre 1,0x102 e 9,9x106 UFC/mL. Resultados semelhantes foram encontrados por Pinto(19) para leite de fornecedores de uma indústria de laticínios localizada na Zona da Mata Mineira, com contagens entre 2,0x102 UFC/mL e 1,0x107 UFC/mL no leite cru e por Arcuri(20), com contagens entre 1,0x102 UFC/mL e 1,0x107 UFC/mL na região da Zona da Mata Mineira e sudeste do Rio de Janeiro.
Apesar de não haver padrão para esses microrganismos, no leite de boa qualidade a contagem de psicrotróficos deve ser de, no máximo, 10% da contagem total de aeróbios mesófilos(5). Nas amostras analisadas essa proporção foi de 46,9%, estando muito acima do ideal para um produto considerado de qualidade.
Seis amostras (30%) apresentaram contagem de psicrotróficos superior à de mesófilos. Segundo Beloti(5), em leites muito contaminados, a contagem de psicrotróficos aumenta proporcionalmente, podendo chegar a ser 400% superior à quantidade de mesófilos. Nessas amostras analisadas, a contagem de psicrotróficos foi 75% superior em relação aos mesófilos, demonstrando grande contaminação dessas amostras.
A média de termodúricos mesófilos foi de 2,4x104 UFC/mL, conforme demonstrado na Tabela 2. Esses microrganismos limitam o tempo de vida útil do leite pasteurizado por serem capazes de resistir à temperatura de pasteurização, por poderem apresentar características psicrotróficas ou mesmo serem formadores de esporos.
Termodúricos Psicrotróficos: esse grupo tem especial importância por atravessar toda a cadeia do leite, uma vez que boa parte deles é incorporada já no momento da ordenha, se multiplicam durante a estocagem do leite sob refrigeração, resistem à pasteurização e se desenvolvem no produto final, diminuindo sua vida útil(5). Além disso, continuam produzindo enzimas proteolíticas e lipolíticas, afetando a qualidade do produto final. Nas amostras analisadas, a contagem variou de 1,0x102 UFC/mL a 1,6x103 UFC/mL. Ribeiro Junior et al.(22), ao avaliarem 20 amostras de leite cru refrigerado na região Norte do estado do Paraná, encontraram em média 3,5x103 UFC/mL de termodúricos psicrotróficos, isolaram 347 colônias puras e verificaram que 142 (40,1%) apresentaram atividade proteolítica, demonstrando a elevada capacidade deteriorante desse grupo.
A média de esporos aeróbios para as 20 amostras foi de 50 UFC/mL (Tabela 2). No estudo de Rossi Junior(23) foram verificadas populações de 1,0x102 a 1,0x105 UFC/mL, muito superiores às encontradas no presente estudo. Os esporos são facilmente encontrados no solo e em alimentos para animais, por exemplo, na silagem(24), bem como em fezes, água, tetos e equipamento de ordenha. Além disso, são muito resistentes a processos térmicos como o UHT e podem apresentar atividade proteolítica e lipolítica, reduzindo a vida do leite pasteurizado.
De acordo com o Food and Drug Administration (FDA), microrganismos termodúricos, termófilos, psicrotróficos e bactérias formadoras de esporos constituem a maior ameaça à deterioração de produtos lácteos(25).
Para lipolíticos e proteolíticos a atividade deteriorante média dos grupos analisados está disposta na Tabela 3, em que foi realizada a contagem das colônias que haviam formado halos proteolíticos e/ou lipolíticos ao seu redor, confirmando assim sua atividade, e realizada a correlação dessa contagem dentro dos grupos estudados.
Conforme demonstrado na Tabela 3, houve predominância de bactérias lipolíticas em todos os grupos. As lipases bacterianas são capazes de hidrolisar os glóbulos de gordura do leite e os ácidos graxos insaturados liberados durante a lipólise são suscetíveis à oxidação, gerando aldeídos e cetonas, responsáveis pelo desenvolvimento de sabores desagradáveis, como ranço, sabão, oxidado ou metálico, podendo tornar o leite e seus derivados impróprios para o consumo. No trabalho de Moreira e Montanhini(26), avaliando os principais pontos de contaminação por microrganismos produtores de enzimas lipolíticas e proteolíticas em cinco propriedades leiteiras no estado do Paraná, observaram que 44,14% das amostras possuíam microrganismos com atividade lipolítica e apenas 11,03% possuíam atividade proteolítica. Entretanto, no presente trabalho, a porcentagem de bactérias com atividade proteolítica também foi elevada, as proteases promovem uma quebra contínua da caseína e podem ocasionar coagulação durante a pasteurização, sedimentação e a geleificação do leite UHT, desenvolvimento de odores e sabores indesejáveis e a diminuição do rendimento na produção de queijos. A porcentagem de microrganismos termodúricos mesófilos deteriorantes também foi elevada.
É importante observar que o grupo com maior porcentagem de microrganismos deteriorantes foi o dos termodúricos psicrotróficos. Esse resultado tem especial relevância para o leite pasteurizado, pois este é o grupo que sobreviverá ao tratamento térmico e continuará se multiplicando e produzindo enzimas no leite pasteurizado refrigerado, contribuindo para a deterioração do leite. Entretanto, apesar de a porcentagem de aeróbios mesófilos deteriorantes ser menor que a de termodúricos psicrotróficos, a quantidade de microrganismos no primeiro grupo é consideravelmente maior, o que representa uma produção de enzimas muito superior comparada aos psicrotróficos, o que reforça a importância da higiene de qualidade durante o processo de ordenha.
Outro fator importante, que determina a atividade proteolítica e lipolítica, está associado principalmente ao tipo de bactéria psicrotrófica presente no leite cru e não apenas ao número dessas bactérias(27).
Esses resultados indicam falhas nas práticas de higiene durante a produção do leite, que poderiam ser minimizadas adotando-se manejos regulares, como o desprezo dos três primeiros jatos, pré-dipping, que contribuem para a redução de até 80% da contagem bacteriana e de microrganismos deteriorantes(28) e não apenas a lavagem dos tetos com água, pós-dipping e higienização adequada dos equipamentos e ambiente de ordenha. Moreira e Montanhini(29) encontraram atividade lipolítica em 50% dos microrganismos isolados nos tanques de resfriamento, indicando que a refrigeração do leite em tanques mal higienizados pode causar um aumento do número de microrganismos ao invés de prevenir o problema. Além disso, a presença de água residual nos tanques também favorece a ocorrência de microrganismos deteriorantes(30). Neste estudo não foram realizadas perguntas ou análises sobre a qualidade da água. Porém, a qualidade da água utilizada também é de extrema importância para a contaminação do leite. Em uma pesquisa realizada em propriedades leiteiras do Agreste de Pernambuco, Silva et al.(31) encontraram resultados fora dos padrões microbiológicos para a água utilizada na ordenha. Das seis propriedades avaliadas, apenas uma utilizava água tratada, as demais coletavam a água direto de açudes, cisternas e minas. A inexistência de tratamento da água contribui para a contaminação dos utensílios e equipamentos utilizados para a realização da ordenha, que entram em contato direto com o leite, trazendo contaminação e comprometendo a sua qualidade.
É evidente que a presença de microrganismos deteriorantes, encontrados no presente estudo, nos indica falhas durante e após a obtenção do leite. A recomendação de higiene adequada na ordenha é o principal fator que minimiza a contaminação durante o processo. Além disso, a velocidade no resfriamento e beneficiamento do leite em um menor tempo possível diminuem as oportunidades de multiplicação desses microrganismos. A solução é adotar medidas durante a obtenção, transporte e beneficiamento do leite, bem como o desenvolvimento de programas de assistência aos produtores que reduzam a carga microbiana inicial e minimizem a incorporação de bactérias com perfil deteriorante ao leite.
Conclusão
Com este trabalho foi possível concluir que a qualidade do leite cru refrigerado produzido nas cidades estudadas não é satisfatória, apresentando altas contagens microbianas. Essa alta contaminação pode estar associada a procedimentos de higienização inadequados no sistema de produção e falhas no armazenamento do leite. Todos os grupos analisados apresentaram alta atividade deteriorante, com destaque para os termodúricos psicrotróficos. Entretanto, nos grupos de microrganismos com altas contagens, essa deterioração também é importante, pois uma grande quantidade de enzimas, resistentes ao processo térmico, pode ser produzida no leite ainda cru, levando à redução da vida útil do leite e seus derivados, produzindo efeitos indesejados. A solução é adotar medidas durante a obtenção, transporte e beneficiamento do leite, bem como o desenvolvimento de programas de assistência aos produtores, que reduzam a carga microbiana inicial e minimizem a incorporação de bactérias com perfil deteriorante ao leite. O pagamento por melhoria da qualidade é o principal incentivo à implantação de práticas higiênicas.
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