RESUMO
Botulismo é a intoxicação causada pela neurotoxina produzida pelo
Clostridium botulinum,
caracterizando-se por paralisia flácida ou completa da musculatura
esquelética. Este trabalho relata um surto de botulismo em bovinos
confinados, alimentados com silagem de milho. Amostras de fígado,
conteúdo intestinal e ruminal de um dos bovinos com o quadro clínico
característico de botulismo e uma porção da silagem de milho foram
encaminhados para análise bacteriológica. No laboratório realizaram-se
bioensaio em camundongos e soroneutralização, sendo confirmada a
suspeita de botulismo tipo C. Este relato visa alertar médicos
veterinários e criadores que adotam o confinamento de animais, pois
esta prática de manejo aumenta a suscetibilidade ao botulismo,
principalmente relacionada ao tipo e qualidade do alimento consumido.
PALAVRAS CHAVE: Bovinos,
Clostridium botulinum, confinamento.
ABSTRACT
OCCURRENCE OF BOTULISM IN FEEDLOT BOVINE IN RIO GRANDE DO SUL STATE/ BRAZIL
Botulism is the intoxication caused by a neurotoxin produced by the
Clostridium botulinum,
distinguished by flacid or complete skeletal musculature paralysis.
This study reports a botulism outbrake in feedlot bovine, fed with corn
silage. Samples of the liver, and of the intestinal and ruminal content
from one of the bovine that presented typical clinical state for
botulism, as well as a portion of corn silage were sent for bacterial
analysis. In the laboratory, bioassay and serum neutralization were
performed on rats, confirming the suspect for type C botulism. This
report intends to warn veterinaries and breeders, which practice herd
feedlot, because this procedure increases botulism susceptibility, and
it is mainly related to the type and quality of the food ingested.
Keywords: bovine,
Clostridium botulinum, feedlot.
INTRODUÇÃO
Botulismo é uma intoxicação caracterizada pela paralisia motora rápida, ocasionada pela toxina do
Clostridium botulinum, um microrganismo que prolifera em carcaças em decomposição e algumas vezes na matéria vegetal (BÖHNEL
et al.,
2001). No ambiente, a bactéria é encontrada principalmente na forma de
esporos. Quando em presença de matéria orgânica e condições adequadas
(anaerobiose), estes germinam e multiplicam-se, produzindo a toxina
botulínica. Existem vários tipos de toxinas de C. botulinum, que são
classificadas de A a G, distintas antigenicamente, mas semelhantes
quanto ao modo de ação. Comumente são as toxinas C e D que acometem os
ruminantes (ORTOLANI
et al., 1997; DUTRA
et al., 2005; LOBATO
et al., 2008).
As neurotoxinas produzem paralisia funcional sem o desenvolvimento de
lesões. Agem pela ligação aos receptores das terminações nervosas e,
uma vez dentro dos neurônios, interferem na liberação de acetilcolina
na junção neuromuscular. A toxina do
C. botulinum
tipo C atua clivando as duas proteínas essenciais, SNAP-25 e sintaxina,
para a fusão sináptica com a membrana plasmática dos neurônios, para
que haja a exocitose da acetilcolina (HUMEAU
et al.,
2000). Com o bloqueio desse neurotransmissor, a paralisia flácida é
desencadeada e o animal morre, em virtude de parada respiratória
(RADOSTITS
et al., 2000).
Os sinais clínicos característicos do botulismo incluem a paralisia
muscular flácida, que se inicia nos membros posteriores, progredindo
para os membros anteriores e cabeça. Intranquilidade, ataxia e andar
cambaleante também são relatados (COLBACHINI
et al.,
1999). Os membros se mantêm flácidos, e o animal é incapaz de manter a
cabeça ereta, apoiando-a sobre o flanco ou permanecendo em decúbito
esternal seguido de lateral (ORTOLANI
et al., 1997). Ocorrem, também, midríase e perda do tônus da língua, com subsequente sialorreia (BÖHNEL
et al.,
2001). A paralisia dos músculos torácicos resulta na respiração
abdominal terminal. Raramente, são observados casos de recuperação, o
que se dá em três a quatro semanas (ORTOLANI
et al., 1997).
A pecuária extensiva em regiões de solos ácidos (deficientes em
minerais) expõe os animais a problemas de mineralização, de modo que
eles se tornam sensíveis à intoxicação pelas toxinas de
C. botulinum presentes em grande quantidade nesse tipo de ambiente (DUTRA
et al.,
2005). Nas criações extensivas, as formas mais comuns de intoxicação
estão associadas à osteofagia em animais mantidos em solos deficientes
principalmente em fósforo e proteínas (DUTRA
et al.,
2001). Dessa forma, a suplementação mineral e proteica é essencial para
evitar que os animais desenvolvam vício osteofágico, como forma de
suprir suas carências nutricionais (PIMENTEL, 1993).
A ingestão de água estagnada e contaminada com carcaças de animais
ocasiona altos índices de mortalidade, além de aumentar a distribuição
do microrganismo no ambiente (DUTRA
et al.,
2001). A enfermidade acomete também animais confinados, nos quais a
ocorrência do botulismo está associada à presença das toxina C e D nos
alimentos, como cama de frango, silagem, milho e feno (ORTOLANI
et al., 1997; DUTRA
et al., 2005).
Apesar de o Brasil apresentar condições favoráveis
ao desenvolvimento do botulismo, ainda são poucos os relatos que
demonstram a verdadeira realidade brasileira diante dessa enfermidade.
No estado do Rio Grande do Sul (RS), essa situação não é diferente. A
paralisia em bovinos criados em sistema de confinamento não havia sido
diagnosticada e relatada anteriormente. Neste trabalho, apresenta-se um
caso de intoxicação por
C. botulinum C em bovinos mantidos em sistema de confinamento no RS.
MATERIAL E MÉTODOS
No município de Cachoeira do Sul, RS, em uma propriedade de criação de
bovinos de corte ocorreu a morte de seis animais, sendo dois bezerros e
quatro bovinos adultos. Os animais estavam recebendo silagem há setenta
dias, e as mortes só tiveram início com a abertura do último dos três
silos. As manifestações clínicas observadas foram condizentes com as do
botulismo e os animais morreram em menos de 24 horas. Outros dois
animais da propriedade desenvolveram a forma crônica da doença e se
recuperaram. As mortes cessaram após a interrupção do fornecimento de
silagem.
Amostras de fígado, conteúdo intestinal e ruminal e uma porção de
silagem de milho desta propriedade foram encaminhadas à análise
bacteriológica, no Laboratório de Bacteriologia da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM). O fígado foi macerado, diluído com solução
fisiológica 1:2, e mantido em refrigeração por um período de 12-24
horas, a fim de eluir a toxina eventualmente presente no tecido
hepático. Em seguida, a suspensão foi centrifugada e o sobrenadante
filtrado. O conteúdo intestinal e ruminal também foram
centrifugados e filtrados para a obtenção do sobrenadante. A silagem
foi adicionada em meio Cooked Meat Medium (CMM), fervida por vinte
minutos e incubada por cinco dias a 37ºC (QUINN
et al.,
2005). Após este período, foi processada da mesma forma que os
conteúdos intestinal e ruminal. Para a avaliação da toxicidade das
amostras, preconizaram-se o bioensaio e soroneutralização em
camundongos, a partir dos sobrenadantes, de acordo com a metodologia
descrita por SEBALD & PETIT (1997). Inocularam-se 0,5 mL do
filtrado em camundongos via intraperitoneal. Realizou-se o cálculo da
DL50 pelo método proposto por REED & MUENCH (1938), juntamente com
a verificação da toxina envolvida.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os animais inoculados manifestaram sinais clínicos compatíveis com o
botulismo (“cintura de vespa”), morrendo em menos de vinte horas. A
titulação da toxina no conteúdo intestinal demonstrou a presença de 10
DL 50. Pela soroneutralização, detectou-se a toxina do tipo C. A
presença de toxina foi confirmada pelo teste de microfixação do
complemento em extrato hepático, realizada no Departamento de Apoio,
Produção e Saúde Animal da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho, Araçatuba (UNESP).
Segundo DUTRA
et al. (2005),
animais confinados são susceptíveis à intoxicação botulínica, o que se
deve às condições de risco provocadas pelos alimentos. Frequentemente,
silagem, feno ou ração são malconservados, com matéria orgânica em
decomposição, umidade, anaerobiose, ou com cadáveres de pequenos
mamíferos ou aves, que geram condições ideais para multiplicação
bacteriana e produção de toxina. Neste relato, as mortes cessaram após
a interrupção do fornecimento da silagem, sendo que esta apresentava
sua lona de proteção com orifícios, o que gerou a presença de porções
enegrecidas. Tal fato ocorre normalmente pela presença de fungos que se
desenvolvem a partir das pequenas aberturas onde existe mais
oxigenação, elevando a temperatura e alterando o aspecto da
silagem.
Do quadro clínico observado, inicialmente, constavam dificuldade de
locomoção, paralisia flácida dos membros posteriores e anteriores,
decúbito lateral, dispneia, discreta salivação, respiração abdominal,
progredindo para morte após 24 horas do início dos sinais. Tal quadro é
caracteristicamente relatado (SIMMONS & TAMMEMAGI, 1964; CARDOSO
et al., 1994; ORTOLANI
et al., 1999; RADOSTITS
et al., 2000), sendo condizente com o esperado na intoxicação por
C. botulinum. Dos animais intoxicados, dois desenvolveram a forma crônica da doença, recuperando-se. De acordo com ORTOLANI
et al. (1997), estes casos são raros, mas pode ocorrer a recuperação em três a quatro semanas.
Segundo COLBACHINI
et al.
(1999), a detecção e a identificação da toxina botulínica em soro ou
vísceras (conteúdo intestinal e ruminal, fígado, fezes) de bovinos com
sinais clínicos típicos são consideradas suficientes para confirmar o
diagnóstico de botulismo. Para a confirmação da atividade tóxica, o
bioensaio ou teste de neutralização em camundongos foi utilizado,
avaliando-se as manifestações dos camundongos, principalmente a
presença da “cintura de vespa”. Conforme COLBACHINI
et al.
(1999), o bioensaio pode ser usado para determinar a presença da toxina
no soro de bovinos que recebem altas doses do inóculo tóxico e
apresentam quadro clínico agudo e subagudo, sendo uma técnica bastante
satisfatória (COLBACHINI
et al.,
1999). Outros testes já são usados, como o ensaio imunoenzimático, as
técnicas moleculares, as quais detectam genes codificadores de toxinas,
tendo resultados satisfatórios, principalmente pelo menor tempo de
diagnóstico e detecção de frações não tóxicas (LINDSTROM &
KORKEALA, 2006).
Em bovinos existe uma grande dificuldade no diagnóstico laboratorial da
doença, pois a espécie é extremamente sensível a pequenas quantidades
de toxina botulínica em relação aos camundongos utilizados em bioensaio
(DUTRA
et al., 2001), o que
pode gerar casos de falsos-negativos. Exceção se faz aos casos em que a
intoxicação é superaguda e a concentração da toxina é alta (JONES,
1991), como no trabalho de intoxicação experimental realizado por
COLBACHINI
et al. (1999), em
que o emprego do bioensaio, para a detecção da toxina botulínica em
soros de bovinos inoculados com altas doses desta, mostrou-se
extremamente satisfatório.
A vacinação é considerada a medida profilática mais importante contra o
botulismo. Apesar disso, a proteção vacinal depende da dose
ingerida da toxina, pois os animais vacinados podem desenvolver a
doença quando expostos a grandes quantidades desta (LOBATO
et al.,
2008). Além do mais, a melhoria das condições ambientais e sanitárias
com a eliminação das fontes de intoxicação e uma adequada suplementação
alimentar são essenciais para a prevenção da intoxicação. A prática de
apenas enterrar as carcaças não é recomendada, pois animais escavadores
trazem à superfície os restos contaminados. Portanto, o ideal é
removê-las, incinerá-las e posteriormente enterrá-las em áreas onde os
demais animais não tenham acesso (PIMENTEL, 1993).
O botulismo é uma enfermidade de importante casuística, sendo que sua
presença gera, na pecuária, grandes perdas econômicas. Dessa forma,
este relato vem alertar os criadores e veterinários que animais em
confinamentos são também susceptíveis ao botulismo, estando isso
relacionado principalmente ao tipo e qualidade do alimento consumido e
armazenado.
REFERÊNCIAS
BÖHNEL, H.; SCHWAGERICK B.; GESSLER,
F. Visceral botulism: a new form of bovine Clostridium botulinum toxication. Journal
Veterinary Medicine, v. 48, p. 373-383, 2001.
CARDOSO, A. L. M.; MINEO, J. R.;
SILVA, D. A. O.; SOUZA, M. A.;
COELHO, H. E.; TAKETOMI, E. A.;
METIDIERI, M. A.; ROSA, M. A. Botulismo experimental em bovinos induzido pela
toxina tipo D: avaliação clínica e laboratorial. Hora Veterinária, v.
78, p. 58-62, 1994.
COLBACHINI, L.; SCHOCKEN-ITURRINO, R.
P.; MARQUEZ, L. C. Intoxicação experimental de bovinos com toxina botulínica
tipo D. Arquivo Brasileiro de Medicina Veterinária e Zootecnia, v. 51,
p. 229-234, 1999.
DUTRA, I. S.; DÖBEREINER, J.; ROSA,
I. V.; SOUZA, L. A. A.; NONATO, M. Surtos de botulismo em bovinos no Brasil
associado à ingestão de água contaminada. Pesquisa Veterinária Brasileira,
v. 21, p. 43-48, 2001.
DUTRA, I. S.; DÖBEREINER, J.; SOUZA,
A. M. Botulismo em bovinos de corte e leite alimentados com cama de frango. Pesquisa
Veterinária Brasileira, v. 25, p. 115-119, 2005.
HUMEAU, Y.; DOUSSAU, F.; GRANT, N. J;
POULAIN, B. How botulinum and tetanus neurotoxins block neurotransmitter
release. Biochimie, v.
82, p.
427-446, 2000.
JONES, T.O. Bovine botulism.
Practice, v. 13, p. 83-86, 1991.
LINDSTROM,
M.; KORKEALA, H. Laboratory diagnostics of botulism. Clinical Microbiology
Revision, v. 19, p. 298-314, 2006.
LOBATO,
C. F.; SALVARANI, F. M.; SILVA, R. O. S.; SOUZA, A. M.; LIMA, C. G. R. D.;
PIRES, P. S.; ASSIS, R. A.; AZEVEDO, E. O. Botulismo em ruminantes causado pela
ingestão de cama-de-frango. Ciência Rural, n. 4, v. 38, p. 1176-1178,
2008.
ORTOLANI, L. E.; BRITO, L. A.; MORI,
C. S.; SCHALCH, U.; PACHECO, J.; PIMENTEL, J. C. Botulismo. O Corte, n.
31, 1993.
QUINN, P.J.; MAEKEY, B.K.; CARTER,
M.E.; DONNELLY, W.J.; LEONARD, F.C. Microbiologia veterinária e doenças
infecciosas. São Paulo: Artmed, 2005. p. 94-105.
RADOSTITS, O. M.; GAY, C. C.; BLOOD,
D. C; HINCHCLIFF, K. W. Veterinary medicine. 9. ed. 2000. p.757-760.
REED, L. J.; MUENCH, H. A simple
method of estimating fifty per cent endpoints. American Journal of Hygiene,
v. 27, p. 493-497, 1938.
SEBALD, M.; PETIT, J.C. Méthodes
de laboratoire bactéries anaérobies et leur identification: deuxième
édition augmentée. 2. ed. Paris: Institut Pasteur, 1997. p. 189-197.
SIMMONS, G.C.; TAMMEMAGI, L. Clostridium
botulinum type D as a cause of bovine botulism in Queensland. Australian
Veterinary Journal, v. 40, p. 123-127, 1964.
Protocolado
em: 14 fev. 2008. Aceito em: 14 out.
2009.