DOI: 10.1590/1089-6891v17i231635

MEDICINA VETERINÁRIA

RELAÇÕES TOPOGRÁFICAS DOS SACOS AÉREOS DE CODORNAS

(Coturnix coturnix)


TOPOGRAPHICAL RELATIONSHIPS OF THE AIR SACS OF QUAIL (Coturnix coturnix)


Pedro Bianchi1*

Tatiana Silvestre2

José Roberto Kfoury Junior1

Aline Nayara Poscai1

Rafael Magdanelo Leandro1

Patrícia Orlandini Gonçalez3


1Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

2Médica Veterinária Autônoma, São Paulo, SP, Brasil.

3Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

*Autor para correspondência - pedro.bianchi@usp.br


Resumo

A morfologia das aves é pouco relatada, o que dificulta a prática veterinária nestes animais. O seu sistema respiratório é diferenciado pela presença dos sacos aéreos, estrutura de fundamental importância para as aves, porém muito susceptível a doenças. Dessa forma, objetivou-se descrever a anatomia dos sacos aéreos (SA) em codornas em relação às suas relações topográficas. Para tanto, foram dissecadas quinze codornas que tiveram seu trato respiratório injetado com Neoprene látex corado e fixadas em solução de formol a 10%. O SA cervical é ímpar e possui uma porção mediana localizada entre as artérias braquiocefálicas. O SA clavicular também é ímpar e inicia-se próximo às primeiras vértebras torácicas. Os SA torácicos cranial e caudal estão lateralmente ao pulmão e medialmente às costelas. O SA torácico cranial dispõe-se da margem dorso-látero-cranial até a margem ventral do fígado e o SA torácico caudal, do quarto látero-caudal do fígado até o terço cranial do SA abdominal. O SA abdominal vai da base caudal do fígado até a região cloacal. Contudo, os sacos aéreos das codornas estudadas nesta pesquisa seguem um padrão topográfico, formando divertículos entre os órgãos adjacentes.

Palavras-chave: aves; Coturnix coturnix; sintopia; sistema respiratório.


Abstract

The morphology of birds is rarely reported, hindering veterinary practice in these animals. The respiratory system is distinguished by the presence of air bags, a structure of fundamental importance to the birds, but very susceptible to diseases. Thus, the objective of this study was to describe the anatomy of the air sacs (AS) in quails regarding their topographical relationships. To this, fifteen quails that had their respiratory tract injected with Neoprene, stained and fixed in formalin 10% latex were dissected. Cervical AS is unique and has a middle portion located between the brachiocephalic arteries. The clavicular AS is also odd and starts near the first thoracic vertebrae. The cranial and caudal thoracic AS are lateral to the lung and medially to the ribs. The cranial thoracic AS goes from the dorsal lateral-cranial margin to the ventral margin of the liver, and the caudal thoracic AS goes from the fourth lateral-caudal margin of the liver to the cranial third of the abdominal AS. Abdominal AS goes from the liver to the base of the vent area. However, the air sacs in quails studied in this research follow a topographic pattern, forming diverticula between adjacent organs.

Keywords: birds; Coturnix coturnix; respiratory system; sintopy.


Enviado em: 26 agosto 2014

Aceito em: 03 março de 2016


Introdução


As aves representam um dos grupos de vertebrados com maior diversidade de espécies e apresentam características morfológicas diferenciadas, porém pouco conhecidas, como a presença dos sacos aéreos no sistema respiratório(1). A maioria das informações encontradas na literatura é de caráter genérico e focam, essencialmente, no galo doméstico (Gallus gallus domesticus).

Na avicultura, a coturnicultura vem se destacando no mercado agropecuário brasileiro como excelente atividade produtiva, graças aos aspectos positivos da criação, principalmente por requerer baixo custo e utilizar pequenas áreas. O manejo destas aves inclui a manutenção do bem estar destes animais, considerando a qualidade da água e da ração disponibilizada para os mesmos, não necessitando de um grande número de funcionários para manter uma criação de qualidade. No entanto, deve-se atentar para a qualificação desta mão de obra, objetivando, consequentemente, um rápido retorno de capital(2). A evolução da avicultura representa uma marca vitoriosa da pesquisa em busca da eficiência da produção animal. Entretanto, a codorna ainda é usada como modelo experimental(2) e, por essa razão, informações científicas disponíveis sobre o desenvolvimento de suas linhagens, tanto para postura como para corte, são escassas.

Para o desenvolvimento adequado de uma espécie de produção é necessário o conhecimento das suas características morfo-funcionais, fornecendo as informações para as áreas zootécnicas e veterinárias. Além disso, as informações a respeito da anatomia do grupo das aves são incompletas(3), sendo estas referências importantes para se caracterizar e relacionar as espécies em suas características morfofuncionais.

As doenças do trato respiratório são um importante fator para a morte e perda produtiva das aves, sendo que este possui peculiaridades importantes e pouco referenciadas entre as espécies(4). O sistema respiratório das aves é extremamente eficiente e, consequentemente, mais complicado do que em outros vertebrados, sendo sua morfo-função única entre estes animais(5-7). Os órgãos respiratórios das aves são muito diferentes dos mamíferos, principalmente, devido a especializações para o voo, ao seu metabolismo endotérmico, a uma arquitetura e desenvolvimento pulmonar diferenciados(8). A traqueia é bastante longa, os ramos traqueais e os dois brônquios extrapulmonares primários estão associados aos sacos aéreos(8). Os pulmões, pequenos, compactos e relativamente rígidos, estão ligados a nove sacos aéreos volumosos, de paredes finas, situados em várias partes do corpo desses animais(9,10). Os sacos aéreos são dilatações cegas, de paredes finas, do sistema brônquico, que se estendem além do pulmão, em perfeita relação com as vísceras torácicas e abdominais, são destituídos de epitélio respiratório e servem, essencialmente, de reservatório de ar, contribuindo na ventilação sistêmica, sendo, portanto, pouco vascularizados(11).

Divertículos destes sacos entram em diversos ossos e até mesmo estendem-se entre os músculos esqueléticos, funcionando principalmente na respiração, além de tornarem o corpo mais leve e abaixarem o centro de gravidade, por sua disposição amplamente dorsal, dando uma maior estabilidade para o voo(11).

As aves possuem nove sacos aéreos, definidos como um interclavicular único, um cervical, um par torácico anterior (cranial), um par torácico posterior (caudal) e um par abdominal(12). Porém, outros achados na literatura mostram que as aves possuem oito sacos aéreos, sendo estes sacos ímpares cervical e clavicular e sacos pares torácicos craniais e caudais e, abdominais(13,14).

De uma maneira geral, são descritos, para as aves, um grupo cranial de sacos aéreos (cervical, clavicular e torácico cranial), que se conecta aos brônquios secundários medioventrais e um grupo caudal (torácico caudal e abdominal), que se conecta aos brônquios secundários lateroventral e mediodorsal e ao brônquio primário intrapulmonar. As descrições comparativas dos sacos aéreos são complicadas em decorrência da existência de inúmeras terminologias para os mesmos(15,16).

Ocorre uma especulação considerável sobre as possíveis funções dos sacos aéreos na respiração, sendo que outras funções sugeridas são: diminuir o peso específico do corpo, reduzir a fricção das partes em movimento durante o voo, auxiliar na redução da temperatura corporal, aumentar a flutuação das aves aquáticas e diminuição do impacto dos órgãos(17-19).

Com base nas evidências de um mercado crescente da coturnicultura e das necessidades de informações sobre os aspectos morfológicos do sistema respiratório destas aves para melhor compreender sua fisiologia, objetivou-se estudar as relações topográficas dos sacos aéreos desta espécie, a fim de se fornecer subsídios para o desenvolvimento de pesquisas funcionais e práticas clínicas, que poderão atender às condições de desenvolvimento da coturnicultura, bem como fornecer parâmetros para a anatomia comparativa das aves.


Material e Métodos


Para a realização desta pesquisa, após a aprovação dos procedimentos realizados pelo Comitê de Ética no Uso de Animais (protocolo N06785-9) da Universidade Camilo Castelo Branco (UNICASTELO- Campus Descalvado), foram utilizados quinze cadáveres de codornas adultas, machos e fêmeas, oriundos da doação de criadores da região de Descalvado-SP.

As aves tiveram seu trato respiratório injetado, via sondagem traqueal, com Neoprene látex 70% corado com pigmento específico para a marcação do mesmo. Logo após, os animais foram fixados, por via intramuscular e intracavitária, com solução aquosa de formol a 10%, ficando submergidos em recipientes com esta mesma solução para o seu armazenamento e conservação.

Após a fixação, as aves foram dissecadas para a observação e descrição dos sacos aéreos. Para tanto, foram realizas duas incisões laterais, atingindo a musculatura caudal e desconectando as costelas em suas porções esternais e torácicas, favorecendo o rebatimento das estruturas ventrais cranialmente. Desta forma, os sacos aéreos foram identificados e individualizados para a melhor observação dos mesmos. Após, foram feitas análises referentes à sua distribuição, ligação com o trato respiratório e sintopia, em que os órgãos adjacentes foram retirados quando pertinente à visualização das estruturas. Os dados foram transferidos para fichas individuais e foram confeccionados desenhos esquemáticos para a marcação representativa dos casos. Da mesma forma, foram tomadas fotografias para a posterior análise, registro e ilustração das peças.


Resultados


Os saco aéreo cervical apresenta-se como uma porção mediana que se apoia na base e face ventral do coração, estando contido entre as duas artérias braquiocefálicas, estendendo-se da entrada do tórax, no nível da fossa glenóide, até a porção crânio-ventral do coração.

As porções laterais do saco aéreo cervical vão da articulação do ombro até o saco aéreo torácico cranial, curvando-se caudo-ventralmente, margeando as faces laterais do coração e a base do pulmão, encontrando-se medialmente com sua porção mediana, sendo atravessado caudo-lateralmente pelas veias cavas. O saco aéreo cervical entremeia-se nos músculos peitoral e supra-coracóide, formando divertículos em toda sua extensão que se espalham entre a musculatura e adentram o osso úmero e as vértebras cervicais.

Estrutura ímpar, o saco aéreo clavicular se inicia no nível da primeira ou segunda vértebra torácica por duas câmaras laterais que se unem medianamente e terminam na margem cranial do fígado e início do saco aéreo torácico cranial, tendo um formato semelhante à letra “V”, dispondo-se dorsalmente ao coração, estando adjacente à musculatura ventral da coluna vertebral, formando divertículos direcionados às vértebras torácicas.

Os sacos aéreos torácicos craniais (ou anteriores) são estruturas pares que possuem um formato de “concha” que abraçam lateralmente o fígado, dispondo-se da margem dorso-latero-cranial até próximo à margem ventral do fígado. Estão em contato com as costelas lateralmente, sendo que estas formaram impressões no látex que os preencheram, e medialmente com as faces lateral e ventral dos pulmões.

Os sacos aéreos torácicos caudais (ou posteriores) apresentam-se bilateralmente com um formato semelhante ao dos sacos aéreos torácicos craniais. Dispõem-se da região latero-caudal do fígado até o terço cranial do saco aéreo abdominal, sobrepondo-o em sua face lateral. Medialmente mantêm contato com o pulmão e lateralmente com as costelas.

Os sacos aéreos abdominais são os de maior volume e área de distribuição contínua. Cranialmente apoiam-se na base caudal do fígado indo até a região cloacal, ocupando todo o espaço dorso-latero- ventral da região abdominal. Estão em contato lateralmente com a parede corpórea e medialmente com as alças intestinais (latero-ventral), trato genito-urinário (latero-dorsal), formando divertículos que se entremeiam nestes órgãos.


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Discussão


Após a dissecação dos quinze exemplares de codornas, pôde-se observar que os sacos aéreos mantiveram um padrão de distribuição, que variou conforme o tamanho, a repleção de ar e o estado fisiológico da ave (peso e formação de ovos), já que se distribuiam formando divertículos entre os órgãos(4,7). São estruturas bastante sensíveis, preenchendo todos os espaços vazios da cavidade torácica e abdominal(18,19), seguindo o padrão das demais aves domésticas(10).

Apresentaram-se em número de oito (Figura 1), sendo os sacos cervical e clavicular ímpares e os torácicos cranial e caudal e o abdominal pares(4), confrontando os dados de outros autores, que relatam a existência de nove sacos aéreos(6).

A sintopia dos sacos aéreos de codornas foi semelhante ao descrito na literatura clássica para o Gallus gallus domesticus, seguindo um padrão em todos os indivíduos. Os sacos aéreos, sem exceção, possuem comunicações com os pulmões(16), corroborando com os achados deste trabalho, em que foi possível verificar tais comunicações(11). No entanto, devido à não penetração completa do Látex, algumas comunicações podem não ter sido visualizadas.

Apesar de apresentarem tamanhos diminutos(12) e recobertos por mucosa respiratória(17), foi possível visualizar, além das comunicações entre os sacos aéreos e os pulmões, os divertículos que penetravam nos ossos, igualmente observados em patos (Anas platyrhynchos), estendendo-se além dos pulmões, estando em perfeita relação com as vísceras torácicas e abdominais, continuando até se permearem na musculatura esquelética das aves, o que caracteriza a função proposta para tais estruturas, que participam da respiração, deixam o corpo mais leve e dão estabilidade para o voo(6,7).

Os sacos aéreos são importantes para a manutenção da homeostasia das aves, incluindo as codornas, que possuem sacos aéreos funcionais, conforme descrito neste trabalho. Com o avanço das técnicas de criação destas aves e a consequente agregação das mesmas em locais pequenos, muitas doenças, principalmente a aerosaculite, que consiste na inflamação da parede dos sacos aéreos, acometem as codornas(13), causando perdas econômicas, pois as aves acometidas são descartadas após o abate(14). Ainda, devido à comunicação dos sacos aéreos com os órgãos adjacentes e com o sistema músculo esquelético(15), sugere-se que uma infecção previamente instalada nos sacos aéreos possa se disseminar para os órgãos que estão em íntimo contato com tais estruturas, prejudicando o desempenho produtivo destas aves(5,3,7).

Contudo, após as dissecações e observações, pôde-se concluir que os sacos aéreos das aves estudadas nesta pesquisa (Coturnix coturnix) acompanham um padrão topográfico, formando divertículos entre os órgãos adjacentes, sendo que seu formato pode variar de acordo com o tamanho, estado fisiológico e repleção de ar.


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