O uso sistêmico de morfina em equinos
é bastante controverso e ainda exige a realização de mais estudos. Na
literatura não existem relatos sobre o uso intravenoso de morfina em
cavalos da raça Puro Sangue Árabe e, assim, doze animais foram
selecionados e divididos entre os grupos GC (5mL NaCl 09%, iv) ou GM
(0,1mg/Kg morfina, iv). Realizou-se aferição basal em T-20 e T-10,
sendo os fármacos injetados em T0 e novas mensurações feitas em T30min,
T60min, T90min, T2h, T3h, T6h, T12h e T24h. Os parâmetros avaliados
incluíram frequência cardíaca e respiratória, temperatura retal, altura
de cabeça em relação ao solo, ptose palpebral e labial, motilidade
intestinal e ataxia. Além disso, verificaram-se o tempo de latência
para urinar e defecar e a porcentagem de animais que urinaram ou
defecaram. Não houve diferença significativa nos parâmetros avaliados,
exceto na motilidade intestinal, que apresentou redução de T30 a T2h
nos animais tratados com morfina. Assim, conclui-se que a aplicação
intravenosa de morfina (0,1mg/Kg) foi segura e não gerou alterações
clínicas ou comportamentais severas nos cavalos Puro Sangue Árabe.
PALAVRAS-CHAVES: Equinos, morfina, Puro Sangue Árabe.
ABSTRACT
CLINICAL AND BEHAVIORAL EFFECTS PROMOTED BY INTRAVENOUS INJECTION
OF MORPHINE IN ARABIAN HORSES
Systemic administration of morphine in horses is controversial and
requires more investigation. In literature, there is no study about
intravenous use of morphine in Arabian Horses; because of that, 12
animals were selected and distributed into two groups, GC (5mL NaCl
09%, iv) and GM (0,1mg/Kg morphine, iv). Basal evaluation was performed
in T-20 and T-10, drugs were injected in T0 and other measures were
carried out in T30min, T60min, T90min, T2h, T3h, T6h, T12h and T24h.
Parameters evaluated included heart and respiratory rate, body
temperature, height of the head in relation to the ground, eye and lip
drop, intestinal motility and ataxia. Besides, latency to urinate and
defecate, and the percentage of animals which urinated or defecated
were observed. There were no differences in the parameters, except in
intestinal motility that was reduced from T30 to T2h in GM. So, we
concluded that intravenous application of morphine (0.1mg/Kg) was safe
and did not promot clinical or behavioral changes in Arabian Horses.
KEYWORDS: Arabian Horses, horses, morphine.
INTRODUÇÃO
O bem-estar animal é um tema atual na medicina veterinária e, neste
contexto, se insere a minimização da dor, sensação capaz de
desequilibrar a homeostase e gerar alterações adaptativas autonômicas,
endócrinas e comportamentais (DANNEMAN, 1997), além de dificultar a
realização de procedimentos terapêuticos, especialmente com grandes
animais. A dor é definida pela Associação Internacional para o Estudo
da Dor como “uma experiência sensitiva e emocional desagradável
associada à lesão tecidual real ou potencial”.
Diversos estudos evidenciam que ainda há marcado interesse na busca por
terapias analgésicas que possam minimizar a dor nos equinos. Além
disso, um cavalo excitado em decorrência da dor pode lesionar-se mais
frequentemente que o animal sem dor, calmo, relaxado e com suporte
físico adequado (TAYLOR & CLARKE, 1999; TAYLOR
et al., 2002; TAYLOR, 2005).
A avaliação da dor é apontada como uma das principais dificuldades no
manuseio da dor pós-operatória, desde recém-nascidos (SILVA
et al.,
2007) até crianças menores de seis anos (MENEZES & GOZZANI, 2002),
e semelhante dificuldade é encontrada na medicina veterinária. HELLYER
(2002) acredita que as falhas no reconhecimento da dor em equinos levam
muitos clínicos a não prescrevem analgésicos, por não acreditarem que
seu paciente esteja em estado álgico.
Os opioides são analgésicos amplamente empregados no combate aos processos dolorosos (SAMMARCO
et al.,
1996; PASCOE & TAYLOR, 2003), visto que tais fármacos interagem com
receptores opioides, principalmente dos tipos µ (mu), κ (kappa) e δ
(delta) (GAVERIAUX-RUFF & KIEFFER, 1999; RANG
et al.,
2004) e desencadeiam diversos mecanismos moleculares que levam à
analgesia (DICKENSON & SULLIVAN, 1987; SCHULTZ & GROSS, 2001).
A morfina é o fármaco padrão dos agonistas de receptores µ cuja dose
terapêutica para administração sistêmica varia entre 0,04 a 0,1mg/kg,
em equinos (MUIR III, 1991; TAYLOR & CLARKE, 1999; MUIR III, 2001).
Todavia, esse uso tem sido desencorajado nesta espécie, dada a
possibilidade de ocorrerem efeitos colaterais severos (TAYLOR
et al.,
2002), já que existem relatos de aumento da frequência cardíaca,
aumento das pressões arterial e venosa central, tremores, depressão
respiratória, redução da temperatura corporal, sudorese, rigidez da
marcha, efeito inibitório sobre a motilidade intestinal e aumento da
atividade locomotora (TOBIN, 1978; KALPRAVIDH
et al., 1984; MUIR III, 1991; THURMON
et al., 1996; TAYLOR & CLARKE, 1999; MUIR III
et al.,
2001; HUBBELL, 2006). Assim, TAYLOR (2005) afirma que ainda há
necessidade de se investigar melhor o uso sistêmico de morfina na
rotina clínica de equinos.
THURMON
et al. (1996) citam
que os opioides podem apresentar diferenças quanto à ação inclusive
dentro de uma espécie. Além disso, algumas raças respondem de modo
distinto à ação de determinado fármaco, geralmente conforme a
sensibilidade ao agente empregado. Visto que na literatura pertinente
não existem relatos a respeito do uso de morfina em cavalos da raça
Puro Sangue Árabe (PSA), com este estudo objetivou-se avaliar os
efeitos clínicos e comportamentais promovidos pela injeção intravenosa
de morfina nesta raça.
MATERIAL E MÉTODOS
Este trabalho foi desenvolvido de acordo com as normas éticas, após ser
aprovado pelo Comitê de Ética e Bem-Estar Animal da FCAV – UNESP
(protocolo n.° 009974-05).
Doze equinos da raça Puro Sangue Árabe, com idade entre quatro e seis
anos, peso médio de 377 ± 27Kg, sendo seis machos castrados e seis
fêmeas não prenhes e fora do período de estro foram submetidos a exame
físico, classificados como hígidos e, portanto, selecionados.
Distribuíram-se os animais aleatoriamente nos grupos GC (5mL, NaCl
0,9%, iv) ou GM (0,1mg/Kg morfina, iv), sendo cada grupo composto por
três machos e três fêmeas.
Previamente à administração de morfina, realizaram-se duas aferições
basais (T-20min e T-10min) de frequência cardíaca (FC, em bpm),
frequência respiratória (f, em mpm), temperatura retal (TR, em °C),
altura de cabeça em relação ao solo (AC, em %), ptose palpebral e/ou
labial (escores), motilidade intestinal (escores) e ataxia (escores).
O parâmetro altura de cabeça em relação ao solo foi medido em
porcentagem de manutenção da altura da cabeça em relação ao solo após
comparação com o tempo basal, pois dessa forma foi possível evitar
discrepâncias entre as diferenças de alturas dos animais. Aferiu-se a
motilidade intestinal por meio de auscultação nos quadrantes superior
direito (QSD), superior esquerdo (QSE), inferior direito (QID) e
inferior esquerdo (QIE). O QSD refere-se ao ceco e, portanto, aferiu-se
a descarga da válvula ileocecal por cinco minutos, sendo considerada
como normomotilidade a ocorrência de duas a quatro descargas ileocecais
completas neste intervalo de tempo. Nos demais quadrantes,
realizaram-se apenas avaliação qualitativa durante um minuto. Os
escores utilizados na avaliação da motilidade intestinal foram: 0-
ausência de motilidade; 1- movimentos intestinais incompletos;
2-hipomotilidade; 3-normomotilidade; 4-hipermotilidade.
Mediram-se o parâmetro ptosepalpebral e o ptoselabial conforme a
porcentagem de animais que apresentaram ptose. A ataxia foi medida em
escores, segundo adaptação da escala utilizada por BRYANT
et al.
(1991) em equinos 0 (ausência) – estabilidade; 1 (leve) – redução de
estabilidade com alguma movimentação lateral; 2 (moderada) –
movimentação lateral mais intensa, tendência à inclinação; 3 (severa) –
apoio no tronco, membros pélvicos cruzados, flexões súbitas e
frequentes das articulações carpais.
Em T0 realizou-se a administração dos fármacos conforme o grupo
experimental e novas mensurações foram feitas em T30min, T60min,
T90min, T2h, T3h, T6h, T12h e T24h. Além disso, verificaram-se o tempo
de latência para urinar e defecar e, também, a porcentagem de animais
que urinaram ou defecaram após a administração dos fármacos, até três
horas de observação.
Os dados foram submetidos à análise estatística conforme a
característica das variáveis. Utilizou-se ANOVA de uma via com
repetições múltiplas, seguido pelo teste de Dunnett entre tempos e pelo
teste Student-Newman-Keuls entre grupos (p≤ 0,05), para avaliar FC, f,
T° e AC; ANOVA de uma via (p≤ 0,05), na análise da latência para urinar
e defecar; Kruskal-Wallis ANOVA, em blocos (p≤ 0,05), na comparação da
porcentagem de animais que urinaram e defecaram; Friedman ANOVA, em
blocos com repetições múltiplas, seguido pelo teste de Dunnett entre
tempos e pelo teste Student-Newman-Keuls entre grupos (p≤ 0,05) na
análise dos dados relacionados à ptosepalpebral ou labial, motilidade
intestinal e ataxia.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Não houve alteração significativa entre tempos e entre grupos nos
valores de frequência cardíaca, frequência respiratória, temperatura
retal, altura de cabeça em relação ao solo, ptosepalpebral, ptoselabial
e ataxia, conforme está ilustrado nas
Tabelas 1 e
2.
Quanto à motilidade intestinal, em GC não houve variação entre tempos,
ao passo que GM apresentou redução significativa em relação a T-20 em
T30, T60, T90 e T2h nos quadrantes superior direito, inferior direito e
inferior esquerdo. Entre grupos, os valores de GM foram inferiores ao
de GC nos tempos T60, T90 e T2h no quadrante superior e inferior
esquerdo e nos tempos T30, T60, T60 e T2h no quadrante inferior
direito. Esses achados estão ilustrados na
Tabela 3.
Durante as três primeiras horas após a injeção dos fármacos, nenhum
animal urinou e, portanto, a latência para urinar foi superior a 180
minutos em ambos os grupos. Quanto à defecação, GC apresentou taxa de
defecação de 66,6% e latência de 69,7±35min, ao passo que GM apresentou
taxa de defecção em 33,3% e latência de 143,3±23,3min. Nota-se que a
administração de morfina reduziu a porcentagem de animais que defecaram
e houve aumento do período de latência, todavia sem diferença
estatística.
A morfina reduziu a motilidade de modo significativo no intestino
grosso e, mesmo que sem diferença estatística, no intestino delgado.
Essas observações decorrem do efeito promovido pelo agonistas mu, como
é o caso da morfina, que diminui a motilidade do intestino grosso por
até 120 minutos (THURMON
et al.,
1996), exatamente como foi verificado. TAYLOR (2005) salienta a
necessidade de se investigar melhor os efeitos do uso sistêmico de
morfina, em equinos, e o presente estudo mostrou que a injeção
intravenosa de morfina (0,1mg/kg) em cavalos PSA foi segura e causou
apenas alterações leves e transitórias na motilidade intestinal, que
foi restaurada após a segunda hora de avaliação, sem que os cavalos
apresentassem outras manifestações. A inexistência de efeitos
colaterais maiores em equinos tratados com 0,1mg/kg morfina corrobora
os resultados apontados por CAMARGO
et al.
(2005), que também não observaram alterações da motilidade intestinal.
Alguns dos autores que citam a instalação de efeitos colaterais após o
uso intravenoso de morfina referem-se ao emprego de doses superiores a
0,3mg/kg (KALPRAVIDH, 1984; THURMON
et al.,
1996; HUBBELL, 2006). Obviamente, ainda é preciso avaliar melhor o uso
da morfina em cavalos portadores de distúrbios gastrintestinais, em
especial nos equinos que apresentem síndrome cólica.
Embora a porcentagem de animais que defecaram e a latência para defecar
não tenham apresentado redução significativa, houve redução da
motilidade. Essa aparente influência inibitória sobre o trato
gastrintestinal corrobora os estudos que mostraram prejuízo no trânsito
gastrintestinal de animais tratados por morfina (ROGER
et al.,
1994) e trabalhos com com ratos evidenciam que os receptores mu estão
envolvidos central e perifericamente com analgesia, ação
antissecretória e redução da motilidade (SMITH & CHANG, 1993).
DUCHARME (2003) infere que a morfina pode diminuir a motilidade
progressiva do intestino delgado e do cólon, porém aumenta os
movimentos de mescla e o tônus dos esfíncteres, ou seja, diminui o
peristaltismo enquanto favorece o movimento segmentar e pendular, o que
torna a morfina contraindicada depois de cirurgias
gastrintestinais.
Cabe salientar que este estudo foi desenvolvido sob condições naturais,
a fim de simular os possíveis efeitos promovidos pela morfina aplicada
clinicamente em equinos. Assim, não se submeteram os animais utilizados
a jejum hídrico ou alimentar previamente à administração dos fármacos.
É provável que o jejum interfira na porcentagem de animais que urinaram
e/ou defecaram, na latência para urinar e/ou defecar e na motilidade
intestinal.
Além disso, cabe relatar que as razões da baixa prescrição de opioides
incluem seu uso ainda recente na medicina veterinária, visto que
experiências mais antigas não eram animadoras, principalmente em
virtude: do uso de doses diferentes das atualmente empregadas; do
desconhecimento dos efeitos dos opioides diante das diferentes origens
e intensidades de dor; da dificuldade de se avaliar corretamente a dor
sentida pelo paciente; das deficiências no ensino médico a respeito do
uso de opioides e do tratamento da dor; do medo que os médicos têm em
provocar o desenvolvimento de dependência física e psíquica do paciente
e as dificuldades legais para se prescrever tais fármacos (DAUDT
et al., 1998; RANG
et al.,
2004). Entretanto, é preciso que os profissionais responsáveis pela
saúde dos pacientes entendam melhor a farmacologia dos opioides, a fim
de ampliarem o emprego adequado dessa classe farmacológica e usufruírem
de suas vantagens terapêuticas.
CONCLUSÕES
Diante do exposto, considera-se seguro o uso intravenoso de 0,1mg/Kg
morfina em equinos da raça Puro Sangue Árabe hígidos e sem estimulação
dolorosa, mas julga-se necessário que outros estudos avaliem os efeitos
do uso sistêmico deste opioide no trato digestório de equinos
portadores de processos dolorosos.
AGRADECIMENTOS
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, (FAPESP), pelo auxílio financeiro concedido (processo n°05/04480-0).
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