DOI: 10.1590/1089-6891v17i119485
PRODUÇÃO ANIMAL
INFLUÊNCIA DA GORDURA DO LEITE BOVINO E CAPRINO NA RESISTÊNCIA DO Mycobacterium fortuitum À PASTEURIZAÇÃO LENTA
Karina Ramirez Starikoff1*
Érika Junko Nishimoto2
Fernando Ferreira3 Simone Carvalho Balian3
Evelise Oliveira Telles3
1Universidade Federal da Fronteira Sul, Laranjeira do Sul, PR, Brasil.
2MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Laranjeira do Sul, PR, Brasil.
3Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo, São Paulo,SP, Brasil
*Autora para contato - karina.starikoff@uffs.edu.br
Enviado em: 28 julho 2012
Aceito em: 05 outubro 2015
O amplo e sistemático emprego da pasteurização do leite reduziu drasticamente a incidência, em humanos, de importantes zoonoses veiculadas por ele, como a tuberculose causada pelo Mycobacterium bovis (1). Os parâmetros de tempo e temperatura da pasteurização foram estabelecidos com base nos estudos conduzidos entre 1920 e 1950 sobre a resistência térmica do Mycobacterium bovis e da Coxiella burnetti (2,3), porque essas são as bactérias não formadoras de esporos mais resistentes ao calor que naturalmente podem contaminar o leite (4). Desde então, poucos estudos foram realizados para atualizar as informações sobre a resistência térmica desses agentes.
Atualmente, os binômios de tratamento térmico aprovados para o leite no Brasil são (5,6) o de 62 a 65 C por 30 minutos, denominado de pasteurização lenta e permitido apenas para laticínios de pequeno porte, e o de 72 a 75 °C por 15 a 20 segundos, denominado de pasteurização rápida. Os dois processos devem inativar a enzima fosfatase alcalina do leite, mas manter a enzima peroxidase ainda ativa, garantindo o atendimento aos parâmetros estabelecidos.
Na década de 1990 foi sugerida a potencial relação do Mycobacterium paratuberculosis com a doença de Crohn em humanos (7), o que desencadeou vários estudos sobre sua resistência à pasteurização do leite (8-15). Em 2002, uma revisão sobre o assunto (16) apontou uma grande variabilidade nos resultados reportados na literatura (de < 2 a > 10 reduções decimais em tratamento a 63 °C/30 min., por exemplo). Os autores concluíram que o fato poderia estar relacionado, entre outros fatores, às diferenças entre as cepas empregadas, ao tratamento dado ao inóculo, ao método de pasteurização experimental empregado e ao meio de cultura utilizado para recuperação e contagem do agente.
Nesse particular, há poucos dados na literatura sobre a influência do substrato na curva de morte térmica do Mycobacterium spp. A influência da gordura do leite na cinética de morte térmica não foi avaliada para esta bactéria, embora a literatura indique um efeito protetor para outros microrganismos (17-21). Também não foram encontrados estudos dessa natureza em outros tipos leite, além do bovino, mas há relato de que a termorresistência de Listeria monocytogenes é maior em leite ovino que em bovino e caprino, sugerindo que haja algum componente protetor intrínseco ao leite de ovelha para esse agente (19).
Esses fatos reforçam a importância de atualização dos dados de morte térmica do Mycobacterium spp. em leite de várias espécies animais. Houve suficiente evolução na microbiologia, tanto em meios de cultura quanto em métodos de pesquisa nos últimos 50 anos, quando comparado com as condições em que os dados originais de resistência térmica do M. bovis foram obtidos. Esses dados podem contribuir para a análise da segurança que a pasteurização oferece ao leite, permitindo que o Gerenciador do Risco possa decidir sobre a necessidade de aplicar ou alterar as medidas sanitárias para proteger a saúde do consumidor (22).
Com intuito de compreender melhor a tolerância térmica do Mycobacterium spp., este trabalho teve como objetivo verificar a influência da gordura na eficácia da pasteurização lenta em leite bovino e caprino contaminados com Mycobacterium fortuitum.
O leite bovino foi escolhido por ser o mais produzido no Brasil e o caprino porque é recomendado para crianças, idosos, pacientes em recuperação e pessoas alérgicas ao leite bovino, devido à gordura ser mais facilmente digerida e à proteína ser menos alergênica (23,24). A escolha do M. fortuitum foi fundamentada nos fatos de ser a espécie recomendada pela Organização Mundial da Saúde para estudos preliminares com micobactérias por ser menos patogênica, representando menor risco ao operador, e apresentar crescimento rápido (25); por apresentar curva de morte térmica similar ao do M. bovis (9), que é a principal espécie zoonótica transmitida pelo leite, entre as micobactérias; por já ter sido isolada de leite cru (26-28) e de leite pasteurizado (28) e por ser considerado um patógeno oportunista (31), embora não haja relato de doença causada por M. fortuitum associada à transmissão pelo leite.
As amostras de leite foram inoculadas com Mycobacterium fortuitum (NCTN 8573) e pasteurizadas utilizando-se o método de tubo-teste. Foram realizadas três repetições em cada substrato: leite caprino (da raça Saanen) integral e desnatado e leite bovino (mestiço da raça Holandesa) integral e desnatado. As amostras de leite foram obtidas do mesmo animal, sabidamente negativo ao teste da tuberculina e sob condições higiênicas; os primeiros jatos foram descartados para realização do teste da caneca de fundo escuro. As amostras foram semeadas em ágar sangue e incubadas por cinco dias a 37 °C para se avaliar a qualidade microbiológica geral do leite.
O leite cru foi primeiramente analisado quanto ao teor de gordura pelo método de Gerber e quanto à presença das enzimas peroxidase (30) e fosfatase alcalina (Alkaline Phosphatase FS IFCC 37 ºC, Ref: 104419910021, DIASYS - Diagnostic Systems International). Então, metade do volume do leite foi desnatado por centrifugação (BECKMAN, J21-21, Minnesota, EUA) a 5000 rpm por 15 minutos a 0
°C (2520 °G) e o teor de gordura foi analisado novamente.
O inóculo utilizado foi padronizado de forma a se obter uma concentração do Mycobacterium fortuitum próxima a 107 UFC/mL de leite. Mycobacterium fortuitum (NCTN 8573) foi cultivado em meio Löwenstein-Jensen por 5 dias a 37 °C. Os tubos foram pesados em balança de precisão e, por diferença de peso, aproximadamente 600 mg foram coletados com uma haste de plástico estéril e transferidos para cadinho estéril, sendo vigorosamente macerados com 1 mL de solução salina 0,85% com 0,05% de Tween 80. Em seguida, foram adicionados 24 mL de solução salina 0,85% até completar 25 mL de volume de inóculo, que foi transferido para erlenmeyer estéril com presença de pérolas de vidro.
O uso do Tween 80, a movimentação vigorosa e as pérolas de vidro visam evitar a formação de grumos, devido à tendência de aglomeração das micobactérias em meios líquidos, por causa da natureza hidrofóbica da sua parede celular (31).
Dois mililitros do inóculo foram adicionados a 50 mL de leite e, após homogeneização, 5 mililitros foram distribuídos em cada um de oito tubos (16x160 mm com tampa de rosca) previamente identificados com números de 1 a 8. Os sete primeiros foram usados para o tratamento térmico e o oitavo para a análise da carga inicial (“Ci”) do M. fortuitum.
As amostras 1 a 7 foram acondicionadas em banho-maria (BM) à 85 °C até o leite atingir 65 °C (fase de aquecimento). Nesse momento, a amostra 1 foi retirada e resfriada, para a contagem no início da pasteurização (“CIP”), enquanto as outras foram transferidas para outro BM, à 65 °C, para a manutenção da temperatura. A cada cinco minutos uma amostra foi retirada e resfriada, até completar o processo, ou seja, aos 5, 10, 15, 20, 25 e 30 minutos, esta última denominada de contagem no final da pasteurização (“CFP”) e as intermediárias, “CP5”, “CP10” etc.
Três amostras do leite cru não inoculado também foram pasteurizadas com as amostras teste para que, no final do tratamento térmico, fossem realizadas as pesquisas das enzimas peroxidase e fosfatase alcalina (30). Um termômetro de mercúrio foi acoplado a uma quarta amostra de leite cru não contaminado para o monitoramento da temperatura do leite durante a pasteurização. Essas quatro amostras tinham o mesmo volume de leite e estavam acondicionadas no mesmo tipo de tubo que as amostras em teste.
As amostras foram submetidas à diluição decimal seriada em solução salina 0,85%. Depois de serem homogeneizadas em vortex por 10 segundos, 0,1 mL de cada diluição foi semeado em placas com meio Löwenstein-Jensen em duplicatas e incubado por 5 dias à 37°C.
A
diluição de eleição para a contagem foi a que apresentou entre 15 e 150
colônias. Quando o nível de contaminação foi inferior a 15, na menor
diluição, registrou-se a quantidade detectada. Os resultados foram
expressos em Log10 UFC/mL.
Utilizou-se o Mann-Whitney Test para se comparar o efeito do substrato na
sobrevivência do M. fortuitum ao processo térmico.
Uma linha de regressão linear foi utilizada para ajustar o número de
registro de sobreviventes no leite em função do tempo. A equação da reta
foi utilizada para calcular o valor D65 °C do leite de cabra integral e
desnatado, bem como do leite de vaca integral e desnatado. O valor D
refere-se ao tempo em minutos, à uma dada temperatura, capaz de reduzir um
ciclo logarítmico de um micro-organismo.
O
tratamento térmico do leite, praticado no BM em condições que buscavam
mimetizar a pasteurização, atendeu aos requisitos enzimáticos oficiais
brasileiros: as enzimas fosfatase alcalina e peroxidase estavam ativas no
leite cru e apenas a peroxidase permaneceu ativa no leite pasteurizado
(5). O desnate das amostras de leite reduziu o teor de gordura para níveis
abaixo de 0,5% (Tabela 1), atendendo aos parâmetros legais para o leite
desnatado (6).
A carga inicial (Ci) do M. fortuitum (Log10 UFC/mL) nas amostras de leite,
bem como a contagem dos sobreviventes no início da pasteurização (CIP) e
no final (CFP) estão apresentados na Tabela 1. Observou-se que não houve
desvitalização completa do inóculo em nenhuma amostra, embora tenha
ocorrido um importante decaimento na população microbiana ao final do
processo térmico.
A eficácia do processo de pasteurização pode ser compreendida como a
somatória do decaimento nas fases de aquecimento (que variou de 59 a 66
segundos, independentemente de ser integral ou desnatado) e de manutenção
da temperatura, cujos resultados foram calculados, respectivamente, pela
diferença entre as contagens no início e no fim da referida fase: “Ci –
CIP” e “CIP – CFP” (Tabela 2). Assim, em média, houve um decaimento total
de 4,4 Log10 UFC/mL no leite caprino integral, de 4,9 Log10 UFC/mL no
leite caprino desnatado, de 3,9 Log10 UFC/mL no leite bovino integral, de
5,4 Log10 UFC/mL no leite bovino desnatado e não houve diferença
significativa entre essas medidas.
O valor D65 °C obtido para o leite de cabra integral e desnatado foi,
respectivamente, 10,51 e 8,61 minutos. Já para o leite de vaca integral e
desnatado foi, respectivamente, 18,02 e 7,82 minutos. As curvas dos
sobreviventes e as respectivas equações das retas estão apresentadas na
Figura 1.
O teor de gordura do leite empregado nesta pesquisa esteve fora da média para as duas espécies, mas de modo geral são semelhantes entre si (32,33) e apresentaram-se dentro da variação reportada na literatura. A porcentagem de gordura tende a variar mais que os outros componentes e diferentes fatores exercem influência sobre esta variação, dentre eles estão: raça, alimentação, estação do ano, idade, estágio de lactação e outros efeitos ambientais, que podem explicar os valores obtidos (34,35).
Tanto a gordura quanto a espécie de origem do leite não tiveram influência significativa sobre o nível de decaimento do M. fortuitum ao tratamento térmico. No entanto, é possível que isso se deva ao baixo número de ensaios realizados em cada substrato (n=3), o que poderia ser esclarecido com novos estudos. Apesar disso, nota-se uma tendência de maiores níveis de decaimento na população do agente em leite desnatado, de ambas as espécies, sugerindo um efeito termo protetor da gordura sobre o M. fortuitum, o que não surpreende já que essa propriedade da gordura está bem comprovada na literatura para outras bactérias (17-21).
Ainda na linha de tendências, a gordura teve maior influência no decaimento do M. fortuitum no leite bovino do que no leite caprino, o que, a princípio, poderia estar relacionado ao maior teor de gordura nas amostras de leite de vaca (5,9%) do que nas de cabra (2,8%). É possível, entretanto, que outros fatores tenham contribuído para esse resultado, como a composição do leite em ácidos graxos. O leite caprino é rico em ácidos graxos de cadeia curta e média, como o capróico (C6), caprólico (C8) e cáprico (C10) (33). A composição percentual desses ácidos são, respectivamente, no leite caprino 0,95%, 1,29% e 5,22%, enquanto no leite bovino são 0,86%, 0,59% e 1,25% (32).
Outro
achado interessante do estudo é que a cinética de morte térmica do M.
fortuitum no leite bovino integral foi diferente quando comparado com o
leite bovino desnatado e leite caprino integral e desnatado. Para o
substrato leite bovino integral, a fase de aquecimento foi tão importante
para o decaimento da população microbiana quanto os 30 minutos de
manutenção da temperatura alvo. Esse fenômeno deve ser mais bem
investigado, pois não foram encontrados dados que pudessem sustentar uma
teoria plausível.
Dos valores D65 °C obtidos, depreendeu-se que a pasteurização lenta do
leite caprino e bovino desnatado seria capaz de reduzir aproximadamente 3
Log10 UFC/mL, o que difere da eficácia calculada a partir dos
sobreviventes (Tabela 2). Essa diferença de resultado pode estar associada
ao fato de que, neste estudo, a função linear não explicou inteiramente a
redução dos sobreviventes como função única do tempo de exposição ao calor
(R2 das equações é baixo), diferentemente dos achados de Grant et al (9).
Esses autores verificaram um padrão de função linear para as curvas de
morte térmica do M. bovis e do M. fortuitum; vale ressaltar que estes
autores utilizaram a técnica de número mais provável para quantificar os
agentes.
Comparando-se a influência de dois métodos de quantificação de M.
paratuberculosis sobre o valor D62 °C, Sung e Collins (10) inocularam o
agente em meio lactato. Quando a enumeração foi feita por cultura
radiométrica (BACTEC), a curva obtida apresentou R2 igual a 0,95, mas
utilizando-se o método de contagem em placas, o valor de R2 caiu para
0,61. Este valor é similar aos obtidos nos substratos desnatados do
presente estudo, que também utilizou a técnica de contagem em placas,
tendo registrado R2 igual a 0,63 no leite caprino e 0,67 no bovino. No
leite integral, no entanto, o valor R² foi ligeiramente mais alto no leite
bovino (R² = 0,73) que no leite caprino (R² = 0,50). Esses valores baixos
de R2 reforçam a hipótese de que outras características como a composição
dos ácidos graxos, por exemplo, têm um papel importante na taxa de morte
desse agente, além do tempo de tratamento térmico e do teor de gordura do
substrato.
Segundo Sung e Collins (10), o valor D65 °C para M. paratuberculosis em
leite foi de 38,9 segundos, cujo teor de gordura não foi especificado,
resultado mais baixo que os desta pesquisa. Isso é surpreendente, já que o
M. fortuitum é considerado menos termo resistente que o M.
paratuberculosis (9,10). A divergência pode estar relacionada ao método de
quantificação empregado: aqueles autores utilizaram cultura radiométrica
(BACTEC) enquanto neste estudo empregou-se contagem em placas. Por fim,
outro dado importante é que a pasteurização não causou reduções do M.
fortuitum para níveis abaixo do detectável pela técnica (<10 UFC/mL), o
que difere dos resultados de Grant et al (9), que não detectaram
sobreviventes de M. bovis ou M. fortuitum a 63 °C por 30 minutos, apesar
de também terem partido de Ci de 7 Log10 UFC/mL no leite.
Considerando-se o fato de que a curva de morte térmica do M. fortuitum é
análoga à do M. bovis (9) e que o nível de contaminação natural do leite
por M. bovis pode chegar à 104 UFC/mL (35), pode-se inferir o impacto da
pasteurização sobre esse agente zoonótico.
Aplicando-se os resultados aqui obtidos ao pior cenário de contaminação
natural de leite citado por Ball (35), a pasteurização lenta pode não
reduzir o M. bovis a níveis inferiores a 1 UFC/mL em leite bovino
integral. Esse dado é de difícil interpretação, visto que a literatura é
carente em dados sobre dose infectante para esse agente, mas é oportuno
considerar que a produção de queijos leva a uma provável concentração dos
micro-organismos sobreviventes. Os resultados sugerem, no entanto, que a
resistência térmica do agente é influenciada pela matriz alimentícia e,
desta forma, o assunto precisa ser mais estudado, a fim de se alimentar
modelagens de Avaliação de Risco.
A gordura do leite mostrou efeito protetor sobre o Mycobacterium fortuitum, que foi mais evidente em leite bovino. Além disso, em leite bovino integral, o padrão de decaimento do M. fortuitum durante o tratamento térmico diferiu dos demais substratos (leite bovino desnatado e leite caprino integral e desnatado).
Gostaríamos de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão de bolsa de mestrado e aos técnicos, Sandra Abelardo Sanches e Orlando Bispo de Souza, pela assistência na realização dos experimentos.