ANÁLISE MORFOLÓGICA DO
APARELHO UNGUEAL DO VEADO-CATINGUEIRO (Mazama
gouazoubira, Fischer, 1814) (Artiodactyla, Cervidae)
Lorenna Cardoso Rezende1, Juliana Passos Alves dos Santos2, Lucas Tarago Urbani3, Alvaro Carlos Galdos-Riveros4, Maria Angelica Miglino5
RESUMO
MORPHOLOGICAL EVALUATION OF
THE UNGULA APPARATUS OF THE GRAY BROCKET DEER
(Mazama gouazoubira, Fischer, 1814)
(Artiodactyla, Cervidae)
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
No
mundo, existem 17 gêneros e 45 espécies de cervídeos (WALKER, 1991),
distribuídos na América, Europa,
Ásia e norte da África. Eles tiveram uma rápida radiação adaptativa
durante o
Pleistoceno (aproximadamente 2.500.000 anos) na América do Sul,
chegando a
ocupar nichos ecológicos que, em outros continentes, como a África,
estão
ocupados pelos bovídeos (REDFORD
& EISENBERG, 1992).
A
diversidade de ambientes ocupados pode influir em aspectos de sua
ecologia,
como seleção de habitat, dieta, reprodução, e no comportamento social
dos
indivíduos. Esses animais apresentam, geralmente, comprimento variando
de 0,91
a 1,0 m, altura da cernelha de 35 a 65 cm e peso entre 13 e 20,5 kg (PINDER
& LEEUWENBERG, 1997). Esse animal se alimenta de grande
variedade de plantas, sendo considerado um animal frugívoro e seletivo (BODMER,
1991; BLACK &
VOGLIOTTI, 2008).
O
casco constitui-se de lâminas grossas queratinizadas situadas sobre o
extremo
dos dedos dos ungulados, sem vasos sanguíneos nem nervos, similar a
outras
estruturas derivadas da epiderme como a unha, os cornos e as garras.
Ele tem
como função dar suporte e distribuir, assim como amortecer o peso do
animal,
absorver impacto que representa o apoio do corpo no solo e permitir a
locomoção (ACUÑA
et al., 2004).
O
casco é composto por duas partes, um epitélio superficial (epiderme) e
uma
camada fibrosa resistente (derme), que repousa em um estrato de tecido
conjuntivo frouxo (subcutâneo). A epiderme é queratinizada e a derme é
uma
estrutura altamente vascularizada que tem como função a nutrição e
inervação do
casco. Por último, o tecido subcutâneo que forma a almofada digital (STUMP,
1967; HOOD,
1999).
A
unha dos ungulados cresce a partir de uma prega curva da derme na coroa
do
casco. A epiderme abaixo da maior parte da unha produz um tecido córneo
que
mantém a adesão à medida que a unha desliza gradualmente no sentido
distal. A
derme sobre a epiderme reúne-se em algumas pregas longitudinais baixas
(lâminas), que se interdigitam com as lâminas epidérmicas
correspondentes; o
contato dermoepidérmico ampliado acentua a ligação entre a unha e os
tecidos
mais profundos (DYCE
et al., 2010).
A epiderme divide-se
em: estrato basal,
estrato germinativo e estrato córneo. O estrato córneo ainda se
subdivide em:
estrato externo, estrato médio e estrato interno ou lamelar. Este
último é
constituído por lamelas paralelas, distribuídas de forma longitudinal,
formando
um tecido queratinoso, sendo importante para unir a parede da muralha e
a
superfície dorso lateral da estrutura óssea (KONIG
& LIEBICH, 2004).
A
camada germinativa da epiderme e o córion têm uma íntima relação, por
consequência, qualquer lesão numa dessas estruturas conduz a prejuízos
na
outra. A estabilidade estrutural do tecido córneo é resultante dos
complexos
formados entre a queratina e aminoácidos (COLLINS et al., 2010).
Quanto
à constituição óssea, cada dedo é formado por três ossos principais:
falange
proximal; falange média; e falange distal. O osso mais susceptível de
ser
lesado é a falange distal, pois está mais exposto a traumatismos ou a
agentes
infecciosos que podem chegar até ela após a ocorrência de lesões e
deformações
na proteção córnea ou epiderme. A parte distal da falange média e a
falange
distal são recobertas em quase sua totalidade pelo tecido conjuntivo
subcutâneo (ACUÑA
et al., 2004).
A
forma do casco deve ser compatível com a conformação e o peso corporal
do
animal. Eles devem ser arredondados, de tamanho grande, sem
apresentarem talões
estreitos. O crescimento do casco do cervídeo é de 0,5 cm por mês (MILLER et al., 1986).
Até o momento não existem relatos na literatura sobre a conformação da extremidade distal dos membros de cervídeos. Portanto, o estudo das camadas componentes do casco desses animais pode auxiliar na elucidação do seu crescimento, identificação de suas pegadas e em procedimentos cirúrgicos no Mazama gouazoubira (Fischer, 1814).
Após a biometria, amostras dos dedos III e IV foram coletadas em secções transversais, com cortes paralelos à borda da sola do casco, e longitudinais na região que abarcou o períoplo até a sola do casco. O material foi processado pelas técnicas microscópicas de histologia de luz e eletrônica de varredura (MEV). Para histologia, a espessura dos cortes foi de 3 µm e o material foi corado com Hematoxilina-Eosina (HE). Para a microscopia eletrônica de varredura (MEV), as amostras foram cobertas com ouro (coloidal) e examinadas em microscópio Carl Zeiss (DSM 940-A) e LEO (435 VP).
RESULTADOS
As
úngulas ou casco são em número de quatro em cada membro e protegem a
sua
extremidade distal, cobrindo a falange distal. O casco do dígito
principal
acompanha o formato da falange distal, possuindo três superfícies: a
parede
abaxial, a parede interdigital e a sola. Os dígitos acessórios são
compostos
por falanges vestigiais nodulares cobertas por curtas cápsulas córneas
cônicas,
que se assemelham às dos dígitos principais (Figuras 1A, 1B).
Macroscopicamente,
o dígito lateral do membro pélvico é maior por suportar mais peso
(Figura 1C),
ocorrendo o inverso no membro torácico.
A
parede abaxial do casco cobre cranial e lateralmente a falange distal e
reflete-se em ângulo agudo na direção palmar ou plantar. O formato do
estojo
córneo é convexo lateralmente e marcado por cristas paralelas na borda
coronal
na zona de crescimento do casco (Figura 1). Próximo à junção do casco
com a
pele, uma faixa de tecido queratinizado macio, identificado como
períoplo
(Figuras 1A, 1B), repousa sobre a superfície externa da parede do
casco, sendo
que, com o crescimento do casco, esse tecido seca, tornado-se uma
camada
lustrosa protetora recobrindo toda a parede do casco.
A
superfície palmar ou plantar é formada pela borda
distal da parede do estojo córneo, sola e bulbo. No animal em estação,
observamos lateralmente a parede (Figuras 1A, 1B) e, caudalmente, o
bulbo
(Figura 1C). O comprimento da parede dorsal do casco mediu
aproximadamente 2,5
cm (Figura 1D). A média dos ângulos do casco no membro torácico foi 35°
e no
membro pélvico foi 33° (Figura 2).
Na
microscopia eletrônica de varredura (MEV), foi possível
visualizar a morfologia de todas as camadas que compõem a extremidade
distal do
membro (Figura 3). O casco é formado pela queratinização do epitélio
sobre uma
derme bastante modificada, dividido em estrato externo, médio e
interno. O
estrato externo apresentou uma camada muito fina e recobriu a
superfície
externa da parede com espessura média de 141,5 µm (Figuras 3A, 3B, 3C,
3D). A
epiderme de revestimento dessas papilas produz túbulos córneos que
correm
distalmente em direção à margem de sustentação do peso da parede. Os
túbulos
estão incrustados em tecido córneo intertubular menos estruturado,
formado pela
epiderme sobre as regiões interpapilares da derme; a combinação de
tipos de
tecido córneo confere ao tecido um aspecto finamente estriado (Figura
3B).
O
estrato médio é constituído de queratina tubular
pigmentada (Figura 3A), observada como bandas sobrepostas na
microscopia óptica
(Figura 3B), sendo que esses túbulos córneos são melhor observados no
corte
transversal na MEV (Figura 3F), sendo a principal estrutura de
sustentação da
parede do casco.
Em contrapartida, o estrato interno é uma camada não pigmentada (Figuras 3A), composto por várias lâminas epidérmicas e dérmicas, distribuídas de forma longitudinal e paralela, observadas na MEV (Figuras 3H, 3I) com muitos vasos sanguíneos com formato arredondado, distribuídos entre essas lâminas (Figuras 3D, 3E, 3F). Essas lâminas são formadas por tecido queratinoso, cuja importância reside na união da parede do casco com a superfície do periósteo da falange distal (Figuras 3H e 3I). A união entre as lâminas epidérmicas e dérmicas permite à parede deslizar gradualmente em direção ao solo, onde sua borda distal é gasta.
DISCUSSÃO
Os
ungulados apoiam o corpo apenas na última falange dos dedos, que é
protegida
por um estojo córneo. Portanto, o casco é uma especialização epidérmica
que
protege a extremidade distal do membro. O conhecimento da disposição
dos
tecidos componentes desse anexo cutâneo auxilia na identificação das
pegadas do
M. gouazoubira, além de possibilitar intervenções cirúrgicas e
correções
na angulação dos cascos desses animais.
A
sola entre o bulbo e a parede é pequena no M. gouazoubira, como
também
descrito para os ruminantes e suínos (DYCE
et al., 2010). A espécie M.
gouazoubira
possui como característica de rastro marcas comprimidas lateralmente. A
impressão de cada dígito é alargada na margem posterior (de borda
convexa),
estreitando-se para a margem anterior, a qual termina em uma unha
pontuda. É
difícil e pouco confiável a distinção entre os rastros dessa espécie e
de
outras espécies de veados de pequeno porte (MORO-RIOS
et al., 2008).
Foi
preconizado para uma postura adequada que os dois ângulos das pinças
dos cascos
de um membro sejam iguais, frisando-se que existe alta correlação entre
alterações do ângulo de pinça e comprimento da face dorsal com
ocorrência de
lesões podais (CABRAL
et al., 2004). A angulação da pisada do membro
torácico foi menor para o M. gouazoubira quando comparado com os
equinos
e bovinos, que apresentam aproximadamente 50° a 55° (ANDRADE,
1986).
Quando
o interesse maior é obter informações topográficas, o MEV é o
instrumento mais
versátil para avaliação, exame e análise das características
microestruturais (DYKSTRA,
1993), permitindo analisar a disposição do
tecido epitelial, conjuntivo e ósseo, como por exemplo, a disposição
das
lâminas interdigitais que são menos desenvolvidas no M. gouazoubira,
como também descrito para os ruminantes e suínos, quando comparadas com
os
equinos (DYCE
et al., 2010).
Há
uma vasta literatura descrevendo o casco de bovinos (DYCE et al., 2010)
e equinos (KUWANO, 1996; COLLINS et
al., 2010); entretanto, os relatos sobre cervídeos são escassos.
Considerando a
importância dessa estrutura anatômica no sistema locomotor, estudos
adicionais
são necessários. Até o presente momento, não foram relatados estudos
quanto à
estrutura e ultraestrutura ungueal desses animais; portanto, os dados
obtidos
neste trabalho poderão auxiliar na descrição da extremidade distal dos
membros
torácicos e pélvicos e sua possível correlação com outros animais
silvestres ou
domésticos.
Em
relação às estruturas encontradas na MEV do casco do cervídeo, pode-se
observar
a disposição das lâminas epidérmicas e dérmicas, dos vasos sanguíneos
imersos
no estrato interno da derme, além da relação dos tecidos epitelial,
conjuntivo
e ósseo que compõem a extremidade distal do membro. Podemos concluir em
relação
à angulação dos cascos que houve uma grande diferença com relação aos
bovinos e
equinos (KUWANO, 1996;
COLLINS
et al., 2010), o que era esperado devido à postura
corporal e hábitos de vida dos cervídeos, que são animais mais leves;
por outro
lado, mais estudos sobre a anatomia da locomoção desses animais são
necessários
para um melhor entendimento e aplicação na área clínica e cirúrgica.
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