DOI: 10.5216/CABV11I3.1029

INTOXICAÇÃO POR DICLORVÓS E CIPERMETRINA EM BOVINOS EM MATO GROSSO – RELATO DE CASO


Fábio de Souza Mendonça,¹ Sílvio Henrique Freitas,² Renata Gebara Sampaio Dória,²
Lázaro Manoel de Camargo² e  Joaquim Evêncio-Neto¹

1. Departamento de Morfologia e Fisiologia Animal, UFRPE. E-mail:  mendonca@dmfa.ufrpe.br
2. Universidade de Cuiabá.



RESUMO

Relata-se um surto de intoxicação por inseticida organofosforado e piretroide em vacas leiteiras no município de Cuiabá, Estado de Mato Grosso. Morreram onze vacas, de um total de 25 animais. Entre as principais manifestações clínicas observaram-se apatia, anorexia, sialorreia, diarreia de coloração escurecida, por vezes com estrias de sangue, tremores musculares, incoordenação e dificuldade respiratória. As lesões observadas à necropsia consistiram em edema pulmonar, enfisema subpleural e hemorragias de intensidade e formas diversas em vários órgãos. Não foram observadas alterações microscópicas significativas em nenhum dos animais. A pesquisa toxicológica em conteúdos de rúmen, retículo, omaso e abomaso resultaram negativas. Amostras de fígados e rins resultaram positivas para o grupo de inseticidas organofosforados e piretroides.

PALAVRAS-CHAVES: Inseticidas, organofosforados, piretroides, vacas.


ABSTRACT

DICHLORVOS AND CYPERMETHRIN POISONING IN BOVINE IN MATO GROSSO STATE/BRAZIL – CASE REPORT

An outbreak of organophosphorus and pyrethroid insecticide poisoning in cows in the city of Cuiabá, Mato Grosso, is described. Eleven from 25 animals died. The main manifestations included diarrhea, sometimes bloody, apathy, anorexia, sialorrhea, muscular trembles, incoordenation and dyspnea. At post-mortem examinations, lung edema, sub pleural emphysema and hemorrhages disturbances of varied forms and intensity in several organs were observed. There were no significant microscopic changes in any animal. Analyses for organophosphorus and pyrethroid insecticide derivates from rumen, reticulum, omasum and abomasum contents were negative. Samples of livers and kidneys resulted positive for dichlorvos and cypermethrin.

KEYWORDS: Cattle, insecticides, organophosphorus, pyrethroid.


INTRODUÇÃO

Dados do Sistema de Informações Toxicofarmacológicas (Sinitox) revelam que os praguicidas são os principais responsáveis pelas intoxicações em animais domésticos no Brasil (SINITOX, 2005). Dentre os praguicidas associados às intoxicações em animais estão os organofosforados (ORFs) e piretroides (PRTs) (OSWEILER, 1998). Inseticidas ORFs são compostos carbonados alifáticos usados comumente em frutas, grãos armazenados, solo e animais para prevenir ou tratar a infestação por insetos ou nematódeos. Eventualmente, ORFs provocam surtos de intoxicação em animais de produção e causam sérios prejuízos à pecuária (OSWEILER, 1998). Em animais de produção, as intoxicações ocorrem principalmente pela contaminação dos alimentos, água e pastagens. Intoxicações também ocorrem após exposição transcutânea e inalação (OSWEILER, 1998). Além disso, existem vários fatores de risco e, dentre esses, se destaca o método aplicação pour on (RADOSTITIS et al., 2000).
Os ORFs mais frequentemente utilizados são diclorvós, metaminofós, clorfenrifós, clorpirifós, triclorfon, dimixion, ethion, diazinon, fenitrotion, fention e fosfomet (OSWEILER, 1998). Esses toxicantes apresentam propriedades que podem causar morte imediata após um quadro de asfixia, resultante da insuficiência respiratória associada à constrição bronquial e aumento das secreções bronquiais, paralisia dos músculos respiratórios e depressão do centro respiratório (ABDELSALAM, 1987).
Os PRTs são compostos largamente utilizados em medicina veterinária em produtos de aspersão ou imersão para o controle de moscas, carrapatos, pulgas e piolhos e seu uso excessivo pode levar à intoxicação, dada sua alta lipossolubilidade (MURPHY, 1980). Os PRTs podem ser divididos em duas classes, levando-se em consideração a existência de diferenças na estrutura e mecanismo de ação. Os PRTs do tipo II, como a cipermetrina, contêm um componente α-cyano em sua estrutura, enquanto que os PRTs do tipo I não contêm esse componente (OSWEILER, 1998). Os PRTs atuam nos canais de sódio da membrana dos axônios, diminuindo e retardando a condução de sódio para o seu interior e suprimindo o efluxo de potássio (JONES et al., 2000).
As intoxicações por compostos que contêm inseticidas ORFs e PRTs, embora ofereçam elevados riscos a todos os mamíferos (BLACK, 1998), têm sido pouco relatadas em animais de produção. Por esse motivo, o presente trabalho objetivou relatar os aspectos epidemiológicos, clínicos e patológicos de um surto de intoxicação por diclorvós e cipermetrina em bovinos no Estado de Mato Grosso.

MATERIAL E MÉTODOS

Os dados epidemiológicos e os sinais clínicos foram obtidos em visita à propriedade onde ocorreu o surto. Onze bovinos morreram e, destes, necropsiaram-se quatro. Fixaram-se fragmentos de todos os órgãos em solução de formalina 10%, sendo processados rotineiramente e corados pela hematoxilina e eosina (HE) nas dependências do Laboratório de Patologia Veterinária da Universidade de Cuiabá (LPV/UNIC). Do sistema nervoso central processaram-se, para histopatologia: córtex frontal, núcleos da base, tálamo, córtex parietal, colículos rostrais, córtex occipital, ponte, pedúnculos cerebelares, cerebelo, bulbo na altura do óbex, medula cervical.
Amostras de feno e cevada que estavam sendo consumidos pelos animais foram coletadas diretamente do cocho, para a realização de análise química e cromatográfica. No momento da necropsia colheu-se conteúdo dos pré-estômagos de dois animais (bovinos 1 e 2), além de fígado e rins dos bovinos 3 e 4. As amostras, enviadas ao Laboratório de Análises Toxicológicas Ltda. – Latox, Porto Alegre, RS, foram analisadas pelos métodos de cromatografia em camada delgada e cromatografia gasosa para identificação de ORFs e PRTs.
Após o diagnóstico de intoxicação os animais foram tratados com sulfato de atropina (15 mL para cada animal uma a duas vezes por dia). As vacas receberam, ainda, tratamento de suporte com fluidoterapia e antitóxico. Quatro animais que apresentavam sinais clínicos menos intensos receberam banho com água morna e sabão neutro para diminuir a concentração do agente tóxico.

RESULTADOS

Epidemiologia

O surto ocorreu em outubro de 2006, em um lote de 25 vacas de produção leiteira de uma propriedade localizada no Município de Cuiabá, Mato Grosso. Desse lote, onze vacas morreram. Segundo informações, conforme rotina após a ordenha, as vacas foram alimentadas com cevada e feno de alfafa (Medicago sativa) e no mesmo dia um inseticida contendo diclorvós (fosfato de 0,0-dimetil-2,2-diclorovinila) e cipermetrina (alfa - ciano - 3 - fenoxibenzil - 2,2 - dimetil - 3 - (2,2- diclorovinil) ciclopropano carboxilado) foi diluído em querosene e aplicado via pour on no dorso dos bovinos para o combate à mosca do chifre nas primeiras horas da manhã. Para a aplicação do inseticida, calculou-se o peso dos animais por estimativa entre 400-500 kg. Os primeiros animais afetados apresentaram os sinais clínicos nas primeiras 24-48 horas após aplicação.

Sinais clínicos e achados de necropsia

Os principais sinais clínicos e os achados anátomo-histopatológicos encontram-se descritos nos Quadros 1 e 2.
No período de ocorrência do surto, uma vaca foi encontrada morta no início da manhã, cerca de 24-30 horas após a aplicação do inseticida. No decorrer do dia, vários animais (bovinos 1-11) apresentaram sinais clínicos que consistiram em apatia, anorexia, mucosas oculares cianóticas, sialorreia, fezes pastosas com estrias de sangue ou acentuada diarreia, tremores musculares e incoordenação motora. Os bovinos apresentavam respiração superficial, predominantemente abdominal, e o quadro clínico se agravava para angústia respiratória e morte. Quatro vacas (bovinos 12-15) apresentaram manifestações clínicas menos intensas, caracterizadas por apatia, anorexia, diarreia aquosa e sialorreia e se recuperaram após tratamento sintomático.
Os achados de necropsia consistiram em congestão e hemorragias em vários órgãos, enfisema e edema pulmonar (Figuras 1, 2, 3, 4, 5, 6). Não foram observadas alterações microscópicas significativas em nenhum dos animais.
Nas amostras dos tecidos enviados ao Latox foram encontrados resíduos do pesticida Ectoplus® (composto que contém diclorvós e cipermetrina) em amostras de rins e fígados de dois animais (Quadro 3).

DISCUSSÃO

O diagnóstico da intoxicação por diclorvós e cipermetrina foi realizado com base no histórico da aplicação do produto pour on, sinais clínicos, achados de necropsia e pela presença de resíduos desses produtos, detectados por cromatografia gasosa e cromatografia em camada delgada, no fígado e rins de dois dos animais intoxicados.
Existem vários fatores de risco para intoxicações por inseticidas em bovinos. Os PRTs são altamente lipofílicos e facilmente absorvidos através da pele intacta. Quando diluídos em soluções contendo hidrocarbonetos derivados do petróleo, como o óleo diesel, os PRTs têm sua toxicidade potencializada (HUMPHREYS, 1988). Surtos de intoxicações por ORFs ocorrem quando produtos recomendados para instalações são aplicados em animais, quando há superdosagem pelo fato de os compostos serem diluídos em produtos oleosos e quando a aplicação é feita em dias com temperatura elevada (MEERDINK, 1989; MOHAMED, 1990). Além disso, são mais tóxicos para vacas e bezerros os ORFs como o diclorvós, dioxation e paration (RADOSTITIS et al., 2000). Esses três últimos fatores podem ter sido determinantes para a intoxicação dos animais.
Em bovinos, os sinais clínicos da intoxicação por ORFs e PRTs incluem salivação, hiperexcitabilidade, tremores, convulsões, dispneia, fraqueza, prostração e morte (MURPHY, 1980). Congestão pulmonar acompanhada de edema é um achado importante nessas intoxicações, mas não necessariamente constante. As manifestações clínicas apresentadas pelos bovinos deste trabalho consistiram principalmente em alterações relacionadas com a inibição da colinesterase. A inativação da colinesterase por ORFs causa aumento da acetilcolina nos tecidos e na atividade do sistema nervoso parassimpático, bem como dos nervos colinérgicos pós-ganglionares do sistema nervoso simpático. Assim, os efeitos tóxicos reproduzem as respostas muscarínicas e nicotínicas causadas pela administração de acetilcolina (ABDELSALAM, 1987; BAKIMA et al., 1989). Os efeitos muscarínicos da acetilcolina se manifestam por respostas viscerais do sistema respiratório, que consistem em dificuldade respiratória acentuada em virtude de um decréscimo na capacidade dinâmica pulmonar e da pressão do oxigênio arterial, promovendo edema pulmonar, constrição bronquial e aumento da secreção de muco pelas glândulas bronquiolares, responsáveis pela angústia respiratória (Quadros 1 e 2). Entretanto, os tremores, a fraqueza e a paralisia flácida observados tanto podem ser associados aos efeitos nicotínicos na musculatura esquelética pelo excesso de acetilcolina (BARRETT et al., 1985; MEERDINK, 1989) quanto à interferência nos canais de sódio e potássio no sistema nervoso central pela ação tóxica aguda da cipermetrina (OSWEILLER, 1998; RADOSTITIS et al., 2000).
As lesões macroscópicas, observadas nas vacas descritas neste trabalho, caracterizadas por alterações vasculares nos tratos digestório e respiratório, apesar de serem inespecíficas, têm sido descritas em outros surtos de intoxicação por ORFs e PRTs em ruminantes (CASTRO et al., 2007; BLACK, 1998; WANG et al., 2007).
Na intoxicação por ORFs, a lesão específica é a degeneração axonal, caracterizada por uma tumefação significativa, de até vinte vezes o normal (JONES et al., 2000). Os PRTs, por interferirem na regulação do sódio e potássio celular, podem, também, levar à degeneração axonal. Entretanto, em casos agudos da intoxicação, como os descritos no presente trabalho, não se observam lesões histológicas significativas (CASTRO et al., 2007).
O sulfato de atropina, utilizado no tratamento dos animais intoxicados, não foi eficaz para evitar as mortes das vacas com quadro severo de exposição. Sabe-se que o sulfato de atropina não neutraliza a ligação praguicida-enzima, mas bloqueia o efeito da acetilcolina nos terminais nervosos muscarínicos. Dessa forma, o sulfato de atropina previne os efeitos muscarínicos, mas não os nicotínicos, que causam a incoordenação motora e tremores musculares (ECOBICHON et al., 1996), os quais foram observados nas vacas deste relato.

CONCLUSÃO

A aplicação por via pour on de inseticidas contendo diclorvós e cipermetrina diluídos em óleo diesel em vacas podem produzir sinais clínicos de toxicose aguda caracterizados por distúrbios neurológicos e respiratórios.

REFERÊNCIAS

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Protocolado em: 14 fev. 2007.  Aceito em: 5 out. 2009.