Fábio de Souza Mendonça,¹ Sílvio Henrique Freitas,² Renata Gebara Sampaio Dória,²
Lázaro Manoel de Camargo² e Joaquim Evêncio-Neto¹
1. Departamento de Morfologia e Fisiologia Animal, UFRPE. E-mail: mendonca@dmfa.ufrpe.br
2. Universidade de Cuiabá.
Relata-se um surto de intoxicação por
inseticida organofosforado e piretroide em vacas leiteiras no município
de Cuiabá, Estado de Mato Grosso. Morreram onze vacas, de um total de
25 animais. Entre as principais manifestações clínicas observaram-se
apatia, anorexia, sialorreia, diarreia de coloração escurecida, por
vezes com estrias de sangue, tremores musculares, incoordenação e
dificuldade respiratória. As lesões observadas à necropsia consistiram
em edema pulmonar, enfisema subpleural e hemorragias de intensidade e
formas diversas em vários órgãos. Não foram observadas alterações
microscópicas significativas em nenhum dos animais. A pesquisa
toxicológica em conteúdos de rúmen, retículo, omaso e abomaso
resultaram negativas. Amostras de fígados e rins resultaram positivas
para o grupo de inseticidas organofosforados e piretroides.
PALAVRAS-CHAVES: Inseticidas, organofosforados, piretroides, vacas.
ABSTRACT
DICHLORVOS AND CYPERMETHRIN POISONING IN BOVINE IN MATO GROSSO STATE/BRAZIL – CASE REPORT
An outbreak of organophosphorus and pyrethroid insecticide poisoning in
cows in the city of Cuiabá, Mato Grosso, is described. Eleven from 25
animals died. The main manifestations included diarrhea, sometimes
bloody, apathy, anorexia, sialorrhea, muscular trembles, incoordenation
and dyspnea. At post-mortem examinations, lung edema, sub pleural
emphysema and hemorrhages disturbances of varied forms and intensity in
several organs were observed. There were no significant microscopic
changes in any animal. Analyses for organophosphorus and pyrethroid
insecticide derivates from rumen, reticulum, omasum and abomasum
contents were negative. Samples of livers and kidneys resulted positive
for dichlorvos and cypermethrin.
KEYWORDS: Cattle, insecticides, organophosphorus, pyrethroid.
INTRODUÇÃO
Dados do Sistema de Informações Toxicofarmacológicas (Sinitox) revelam
que os praguicidas são os principais responsáveis pelas intoxicações em
animais domésticos no Brasil (SINITOX, 2005). Dentre os praguicidas
associados às intoxicações em animais estão os organofosforados (ORFs)
e piretroides (PRTs) (OSWEILER, 1998). Inseticidas ORFs são compostos
carbonados alifáticos usados comumente em frutas, grãos armazenados,
solo e animais para prevenir ou tratar a infestação por insetos ou
nematódeos. Eventualmente, ORFs provocam surtos de intoxicação em
animais de produção e causam sérios prejuízos à pecuária (OSWEILER,
1998). Em animais de produção, as intoxicações ocorrem principalmente
pela contaminação dos alimentos, água e pastagens. Intoxicações também
ocorrem após exposição transcutânea e inalação (OSWEILER, 1998). Além
disso, existem vários fatores de risco e, dentre esses, se destaca o
método aplicação pour on (RADOSTITIS
et al., 2000).
Os ORFs mais frequentemente utilizados são diclorvós, metaminofós,
clorfenrifós, clorpirifós, triclorfon, dimixion, ethion, diazinon,
fenitrotion, fention e fosfomet (OSWEILER, 1998). Esses toxicantes
apresentam propriedades que podem causar morte imediata após um quadro
de asfixia, resultante da insuficiência respiratória associada à
constrição bronquial e aumento das secreções bronquiais, paralisia dos
músculos respiratórios e depressão do centro respiratório (ABDELSALAM,
1987).
Os PRTs são compostos largamente utilizados em medicina veterinária em
produtos de aspersão ou imersão para o controle de moscas, carrapatos,
pulgas e piolhos e seu uso excessivo pode levar à intoxicação, dada sua
alta lipossolubilidade (MURPHY, 1980). Os PRTs podem ser divididos em
duas classes, levando-se em consideração a existência de diferenças na
estrutura e mecanismo de ação. Os PRTs do tipo II, como a cipermetrina,
contêm um componente α-cyano em sua estrutura, enquanto que os PRTs do
tipo I não contêm esse componente (OSWEILER, 1998). Os PRTs atuam nos
canais de sódio da membrana dos axônios, diminuindo e retardando a
condução de sódio para o seu interior e suprimindo o efluxo de potássio
(JONES
et al., 2000).
As intoxicações por compostos que contêm inseticidas ORFs e PRTs,
embora ofereçam elevados riscos a todos os mamíferos (BLACK, 1998), têm
sido pouco relatadas em animais de produção. Por esse motivo, o
presente trabalho objetivou relatar os aspectos epidemiológicos,
clínicos e patológicos de um surto de intoxicação por diclorvós e
cipermetrina em bovinos no Estado de Mato Grosso.
MATERIAL E MÉTODOS
Os dados epidemiológicos e os sinais clínicos foram obtidos em visita à
propriedade onde ocorreu o surto. Onze bovinos morreram e, destes,
necropsiaram-se quatro. Fixaram-se fragmentos de todos os órgãos em
solução de formalina 10%, sendo processados rotineiramente e corados
pela hematoxilina e eosina (HE) nas dependências do Laboratório de
Patologia Veterinária da Universidade de Cuiabá (LPV/UNIC). Do sistema
nervoso central processaram-se, para histopatologia: córtex frontal,
núcleos da base, tálamo, córtex parietal, colículos rostrais, córtex
occipital, ponte, pedúnculos cerebelares, cerebelo, bulbo na altura do
óbex, medula cervical.
Amostras de feno e cevada que estavam sendo consumidos pelos animais
foram coletadas diretamente do cocho, para a realização de análise
química e cromatográfica. No momento da necropsia colheu-se conteúdo
dos pré-estômagos de dois animais (bovinos 1 e 2), além de fígado e
rins dos bovinos 3 e 4. As amostras, enviadas ao Laboratório de
Análises Toxicológicas Ltda. – Latox, Porto Alegre, RS, foram
analisadas pelos métodos de cromatografia em camada delgada e
cromatografia gasosa para identificação de ORFs e PRTs.
Após o diagnóstico de intoxicação os animais foram tratados com sulfato
de atropina (15 mL para cada animal uma a duas vezes por dia). As vacas
receberam, ainda, tratamento de suporte com fluidoterapia e antitóxico.
Quatro animais que apresentavam sinais clínicos menos intensos
receberam banho com água morna e sabão neutro para diminuir a
concentração do agente tóxico.
RESULTADOS
Epidemiologia
O surto ocorreu em outubro de 2006, em um lote de 25 vacas de produção
leiteira de uma propriedade localizada no Município de Cuiabá, Mato
Grosso. Desse lote, onze vacas morreram. Segundo informações, conforme
rotina após a ordenha, as vacas foram alimentadas com cevada e feno de
alfafa (
Medicago sativa) e no
mesmo dia um inseticida contendo diclorvós (fosfato de
0,0-dimetil-2,2-diclorovinila) e cipermetrina (alfa - ciano - 3 -
fenoxibenzil - 2,2 - dimetil - 3 - (2,2- diclorovinil) ciclopropano
carboxilado) foi diluído em querosene e aplicado via pour on no dorso
dos bovinos para o combate à mosca do chifre nas primeiras horas da
manhã. Para a aplicação do inseticida, calculou-se o peso dos animais
por estimativa entre 400-500 kg. Os primeiros animais afetados
apresentaram os sinais clínicos nas primeiras 24-48 horas após
aplicação.
Sinais clínicos e achados de necropsia
Os principais sinais clínicos e os achados anátomo-histopatológicos encontram-se descritos nos
Quadros 1 e
2.
No período de ocorrência do surto, uma vaca foi encontrada morta no
início da manhã, cerca de 24-30 horas após a aplicação do inseticida.
No decorrer do dia, vários animais (bovinos 1-11) apresentaram sinais
clínicos que consistiram em apatia, anorexia, mucosas oculares
cianóticas, sialorreia, fezes pastosas com estrias de sangue ou
acentuada diarreia, tremores musculares e incoordenação motora. Os
bovinos apresentavam respiração superficial, predominantemente
abdominal, e o quadro clínico se agravava para angústia respiratória e
morte. Quatro vacas (bovinos 12-15) apresentaram manifestações clínicas
menos intensas, caracterizadas por apatia, anorexia, diarreia aquosa e
sialorreia e se recuperaram após tratamento sintomático.
Os achados de necropsia consistiram em congestão e hemorragias em vários órgãos, enfisema e edema pulmonar (
Figuras 1,
2,
3,
4,
5,
6). Não foram observadas alterações microscópicas significativas em nenhum dos animais.
Nas amostras dos tecidos enviados ao Latox foram encontrados resíduos
do pesticida Ectoplus® (composto que contém diclorvós e cipermetrina)
em amostras de rins e fígados de dois animais (
Quadro 3).
DISCUSSÃO
O diagnóstico da intoxicação por diclorvós e cipermetrina foi realizado
com base no histórico da aplicação do produto pour on, sinais clínicos,
achados de necropsia e pela presença de resíduos desses produtos,
detectados por cromatografia gasosa e cromatografia em camada delgada,
no fígado e rins de dois dos animais intoxicados.
Existem vários fatores de risco para intoxicações por inseticidas em
bovinos. Os PRTs são altamente lipofílicos e facilmente absorvidos
através da pele intacta. Quando diluídos em soluções contendo
hidrocarbonetos derivados do petróleo, como o óleo diesel, os PRTs têm
sua toxicidade potencializada (HUMPHREYS, 1988). Surtos de intoxicações
por ORFs ocorrem quando produtos recomendados para instalações são
aplicados em animais, quando há superdosagem pelo fato de os compostos
serem diluídos em produtos oleosos e quando a aplicação é feita em dias
com temperatura elevada (MEERDINK, 1989; MOHAMED, 1990). Além disso,
são mais tóxicos para vacas e bezerros os ORFs como o diclorvós,
dioxation e paration (RADOSTITIS
et al., 2000). Esses três últimos fatores podem ter sido determinantes para a intoxicação dos animais.
Em bovinos, os sinais clínicos da intoxicação por ORFs e PRTs incluem
salivação, hiperexcitabilidade, tremores, convulsões, dispneia,
fraqueza, prostração e morte (MURPHY, 1980). Congestão pulmonar
acompanhada de edema é um achado importante nessas intoxicações, mas
não necessariamente constante. As manifestações clínicas apresentadas
pelos bovinos deste trabalho consistiram principalmente em alterações
relacionadas com a inibição da colinesterase. A inativação da
colinesterase por ORFs causa aumento da acetilcolina nos tecidos e na
atividade do sistema nervoso parassimpático, bem como dos nervos
colinérgicos pós-ganglionares do sistema nervoso simpático. Assim, os
efeitos tóxicos reproduzem as respostas muscarínicas e nicotínicas
causadas pela administração de acetilcolina (ABDELSALAM, 1987; BAKIMA
et al.,
1989). Os efeitos muscarínicos da acetilcolina se manifestam por
respostas viscerais do sistema respiratório, que consistem em
dificuldade respiratória acentuada em virtude de um decréscimo na
capacidade dinâmica pulmonar e da pressão do oxigênio arterial,
promovendo edema pulmonar, constrição bronquial e aumento da secreção
de muco pelas glândulas bronquiolares, responsáveis pela angústia
respiratória (
Quadros 1 e
2).
Entretanto, os tremores, a fraqueza e a paralisia flácida observados
tanto podem ser associados aos efeitos nicotínicos na musculatura
esquelética pelo excesso de acetilcolina (BARRETT
et al.,
1985; MEERDINK, 1989) quanto à interferência nos canais de sódio e
potássio no sistema nervoso central pela ação tóxica aguda da
cipermetrina (OSWEILLER, 1998; RADOSTITIS
et al., 2000).
As lesões macroscópicas, observadas nas vacas descritas neste trabalho,
caracterizadas por alterações vasculares nos tratos digestório e
respiratório, apesar de serem inespecíficas, têm sido descritas em
outros surtos de intoxicação por ORFs e PRTs em ruminantes (CASTRO
et al., 2007; BLACK, 1998; WANG
et al., 2007).
Na intoxicação por ORFs, a lesão específica é a degeneração axonal,
caracterizada por uma tumefação significativa, de até vinte vezes o
normal (JONES
et al., 2000).
Os PRTs, por interferirem na regulação do sódio e potássio celular,
podem, também, levar à degeneração axonal. Entretanto, em casos agudos
da intoxicação, como os descritos no presente trabalho, não se observam
lesões histológicas significativas (CASTRO
et al., 2007).
O sulfato de atropina, utilizado no tratamento dos animais intoxicados,
não foi eficaz para evitar as mortes das vacas com quadro severo de
exposição. Sabe-se que o sulfato de atropina não neutraliza a ligação
praguicida-enzima, mas bloqueia o efeito da acetilcolina nos terminais
nervosos muscarínicos. Dessa forma, o sulfato de atropina previne os
efeitos muscarínicos, mas não os nicotínicos, que causam a
incoordenação motora e tremores musculares (ECOBICHON
et al., 1996), os quais foram observados nas vacas deste relato.
CONCLUSÃO
A aplicação por via pour on de inseticidas contendo diclorvós e
cipermetrina diluídos em óleo diesel em vacas podem produzir sinais
clínicos de toxicose aguda caracterizados por distúrbios neurológicos e
respiratórios.
REFERÊNCIAS
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