APAIxONADAMENTE FROM THE SONATA NO. 1 FOR DOUBLE BASS AND PIANO BY CAMARGO GUARNIERI (1907-1993): GENERAL ASPECTS ABOUT THE TRANSCRIPTION
Sonia Ray
A escolha por uma obra a ser trasncrita pautou-se na questão idiomática. A peça ideal deveria apresentar características que a aproximasse das possibilidades de execução do contrabaixo, de forma que as modificações introduzidas não prejudicassem o cerne da concepção do compositor. Por outro lado, a peça deveria ser efetivamente tocável, além de apresentar potencial para proporcionar um resultado artístico satisfatório. Assim, os seguintes fatores foram considerados como prioridade na escolha da peça. Esta teria que: apresentar poucos ou nenhum acorde (máximo aceitável seriam acordes com quatro notas arpejadas); não possuir trechos em cantabile com muitos de saltos de quartas (dificultados em sua conexão pela afinação em quartas do instrumento); permitir o uso de toda a extensão do instrumento; oferecer grau de dificuldade avançada, de forma a se constituir em obra que possa atrair o interesse da classe profissional de contrabaixistas para inclusão em programas de recitais. Interessava-me também, encontar uma obra de grande porte que pudesse ser considerada como sugestão de repertório para estudantes de nível avançado por professores de cursos destinados a formação de contrabaixistas no Brasil.
Muitas destas qualidades foram encontradas, em particular, nas obras de Camargo Guarnieri para instrumentos de cordas friccionadas, porém, a Sonata n.1 para Violoncelo e Piano (escrita em 1931) foi a que mais se aproximou das característcas que eu buscava, sendo, portanto, a escolhida.
O processo de transcrição de toda a sonata levou cerca de oito meses e demandou vários testes e performances parciais da obra. A seguir, comentarei as características da obra em geral e centralizarei meus comentários nas soluções encontradas para a transcrição de Apaixonadamente - 2ª movimento da Sonata.
Vol. 8 - Nº 2 - 2008
A sonata apresenta três movimentos, os quais Guarnieri intitulou simplesmente, I, II e III, indicando, no entanto, o caráter de cada movimento com expressões colocadas ao lado da marcação metronômica. O primeiro movimento, “mm=60” traz a expressão “Tristonho” e apresenta várias mudanças de andamento ao longo de seus 10 minutos de duração; predomina, porém, o andamento lento. O segundo movimento também se inicia com “mm=60”. Andamento que se mantém estável, sendo alterado apenas na parte central da obra: uma espécie de interlúdio que se destaca por um curto solo de piano e traz a expressão “Apaixonadamente”. O terceiro apresenta grande contraste com os anteriores iniciando-se com “mm=120” e traz a expressão “Selvagem”, certamente inspirada pela construção de inspiração indígena que o compositor usa como tema do violoncelo na abertura do movimento. Apesar de não haver mudanças de andamento, este movimento apresenta uma complexa polirritmia entre piano e violoncelo, enriquecendo a textura e destacando o tema, agora apresentado no piano.
As expressões usadas por Guarnieri são, certamente, mais efetivas como sugestão de interpretação do que a indicação numérica, e, por esta razão, foram adotadas como títulos dos movimentos na minha edição. Toda a parte solo da sonata foi transcrita considerando o centro tonal Ré, exatamente um tom abaixo do original (escrito no centro tonal Mi). Desta forma, aproveitou-se melhor a ressonância da nota Ré no contrabaixo ao explorar a corda solta para pizzicatti (3º movimento), valorizar os acordes (abertura do 1º movimento) e prolongar a duração dos harmônicos naturais da corda Ré abaixando a 4ª corda (Mi) em um tom. Este último recurso me permitiu também tocar o tema da abertura do 1º movimento, além de outras curtas passagens, na região mais grave do instrumento, o que me pareceu necessário, em particular, para enfatizar o caráter tristonho do 1º movimento e para ressaltar os pizzicatti do 3º movimento, os quais ganharam mais projeção desta forma, i.e., em Ré. Considerando que as obras para contrabaixo solista tradicionalmente tocam suas partes em encordoamento especialmente criado para ampliar a projeção do instrumento, este afinado um tom acima da afinação usada na orquestra1, a parte do contrabaixo na transcrição da sonata um tom abaixo (usando cordas solo) vai soar exatamente na altura escrita por Guarnieri.
Primeira Impressão (p. 147-157)
A parte do piano pôde ser quase toda mantida como no original. Como a escordatura do contrabaixo em uso de cordas solo não altera a altura do resultado sonoro, ou seja, o contrabaixista lê sua parte um tom abaixo, mas tudo o que ele toca soa um tom acima, a parte do piano não teve que ser alterada por esta razão. As pouquíssimas alterações sofridas foram mais relacionadas a indicações de dinâmica e editoração.
“Apaixonadamente” tem a forma ‘ABA’, onde ‘A’ apresenta um tema melacólico predominantemento no contrabaixo. A parte ‘B’ apresenta uma brusca mudança de andamento e uma variação do tema que se inica com o contrabaixo e é concluída com um curto solo de piano. A parte ‘A’ foi escrita na região médio aguda do violoncelo. Na transcrição, optei por apresentá-la na região grave do contrabaixo, deixando para a repetição a surpresa de se ouvir o tema na oitava aguda do contrabaixo. Para que o contrabaixista tocasse a parte ‘A’ na mesma altura aguda que o violoncelo,
o âmbito da frase atingiria o Sol 6. Nesta oitava, o contrabaixo soa com pouquíssimos harmônicos e perde qualidade timbrística, dificultando também a execução de um vibrato consistente. Assim, optei por deixar a repetição do tema na região aguda uma oitava abaixo do original. O resultado foi um som mais rico em harmônicos e ainda com distância suficiente para criar o desejado contraste entre a primeira e segunda execução da parte ‘A’.
A parte ‘B’ na transcrição para o contrabaixo soa na mesma oitava escrita para o violoncelo. Em principio, o som da região média é mais encorpado, mais rico em harmônicos; uma oitava abaixo, porém, o equilíbrio entre contrabaixo e piano ficaria prejudicado em função da pouca projeção da região médio-grave do instrumento e do grande volume de material escrito neste trecho para a parte do piano. Frente à opção de simplificar a parte do piano ou subir a oitava do contrabaixo, optei pela segunda, que mexe menos com a concepção original de Guarnieri.
A pré-estréia da obra transcrita se deu em novembro de 2007, em Goiânia, no Auditório Belkiss Carneiro de Mendonça, realizada por mim e pela pianista Marina Machado. Após alguns ajustes na edição e já em sua versão final, eu e a pianista canadense Janice Felauer fizemos a estréia da
Vol. 8 - Nº 2 - 2008
Sonata na América do Norte no dia 15 de junho de 2008, em recital na University of North Texas, EUA. A estréia européia foi na Polônia, durante o III Double Bass World Festival, no dia 11 de agosto de 2008, onde toquei com
o pianista polonês Andrezj Youngiewicz. O segundo movimento está disponibilizado nesta edição com exclusividade para Música Hodie. A edição completa da obra estará disponível no início de 2009 em publicação da Irokun Brasil Edições Musicais.
Meu mais profundo agradecimento a Sra. Vera Guarnieri que me incentivou a realizar este projeto de transcrição e apoio várias etapas to trabalho. Sou igualmente grata a pianista Marina Machado, que, com muita dedicação paciência, testou as várias versões da peça até que eu chegasse à versão definitiva. Agradeço também à copista Virginia Dias, por seu trabalho profissional ao preparar esta obra para a Irokun Brasil.
As cordas são afinadas da mais aguda para a mais grave, sendo: Sol, Ré, Lá, Mi em uso na orquestra e Lá, Mi, Si, Fá# em solos (uma opção que aumenta o brilho e amplia a projeção do som).
Sonia Ray - Contrabaixista, professora e pesquisadora. È professora Associada da Universicade Federal de Goiás na Escola de Música e Artes Cênicas onde leciona contrabaixo, música de câmara, metodologia de pesquisa e música contemporânea. Sonia é doutora em Pedagogia e Performance do Contrabaixo (1998) pela University of Iowa (EUA) e recentemente concluiu estágio de Pos-Doutoramento na University of North Texas (2008). Em sua atividade solista no Brasil e exterior privilegia autores brasileiros e repertório contemporâneo. Coordena os Grupos de Pesquisa Performance Musical e Música, Corpo e Ciência (Diretório do CNPq) e o GEPEM - Grupo de Estudos em Performance Musical. Em 2001 criou a Revista Música Hodie, do PPG em Música da UFG, na qual atua como presidente do conselho editorial. É sócia-fundadora da ABC - Associação Brasileira de Contrabaixistas, através da qual idealizou e co-organizou seis encontros internacionais de contrabaixistas, dentre outros eventos afins. É presidente da ANPPOM – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (gestão 2007-2009).
Primeira Impressão (p. 147-157)