PAISAGEM SONORA DA PAIXÃO VILABOENSE (SéCULO XIX)

SOUNDSCAPE OF VILA BOA´S HOLY WEEk (19TH CENTURY)

Ana Guiomar Rêgo Souza - UFG anagsou@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo resulta da investigação do universo sonoro inferido a partir de documentação diversa relativa às celebrações da Semana Santa vilaboense no século XIX (crônicas, jornais, relatos de viajantes, litogravura, manuscritos etc., bem como resíduos sonoros do passado ainda presentes nas atuais celebrações). A proposta foi transformar as sonoridades emergidas de diferentes suportes em potência capaz de viabilizar uma narrativa histórica. Assim, com base em Murray Schafer, a pesquisa buscou reconstruir a “paisagem sonora” da Paixão no corte cronológico anteriormente apontado, evidenciando um espaço festivo cuja efervescência sonora contraria a mítica do “silêncio sepulcral” que muitos associaram ao tempo das Paixões antigas. Palavras-chaves: Paisagem Sonora; História Cultural; Cidade de Goiás; Semana Santa.

Abstract: This article is a result of sounds inquiry inferred from a wide range of documentation concerning Vila Boa’s Holy Week celebrations during the 19th century (chronicle, newspapers, travelers’ stories, lithograph, manuscript and others sources, as well as sounds past residues still presents in the current celebrations). The proposal was to transform the sonorities emerged from different supports in potency able to make possible a historical narrative for the way of the sonorous one. Thus, based on Murray Schafer, the research intended to reconstruct Passion’s “soundscape” over the time frame previously mentioned, showing a festive space whose sound effervescence denies the mythical “sepulchral silence” that many related the old time Passions.

Keywords: Soundscape; Cultural History; Goiás City; Holy Week.

Introdução

Delinear a “paisagem sonora” da Semana Santa da Cidade de Goiás (antiga Vila Boa), no século XIX, significa abordar não só músicas, mas também sons e ruídos que lhe são peculiares. No primeiro caso, trata-se de um trabalho facilitado pela existência de peças musicais que resistiram ao tempo. Porém, tal repertório se constitui apenas em vestígios parciais do passado musical. Como conhecer a dimensão daquilo que não foi registrado ou que se perdeu? Como reconstruir o efêmero sonoro? Uma saída, conforme o musicólogo Manuel Carlos de Brito (1989, p. 25), é dialogar com outras fontes documentais buscando sua inserção em contextos espaços-temporais dos quais emerge os sons produzidos por uma sociedade. Procedimento que não é outra coisa senão considerar qualquer tipo de som não como um conjunto de signos “desencarnados”, mas como fato cultural e social.

Para Murray Schafer (2001, p. 23), uma paisagem sonora consiste em quaisquer eventos ouvidos: uma composição musical, um programa de rádio, um espetáculo, uma cidade, uma festa etc. No entanto, a sua reconstrução não é tarefa simples. Com uma câmera é possível captar cenários de maior amplitude e precisão. Já o microfone opera colocando em close determinados elementos, o que acaba por deixar difuso muito do campo sonoro. Quanto à perspectiva histórica a tarefa é ainda mais delicada. Conforme Schafer (2001):

Embora disponhamos de muitas fotos tiradas em épocas diferentes e, antes delas, de desenhos e mapas que nos mostram como um determinado cenário se modificou com o passar dos anos, precisamos fazer inferências no tocante às mudanças sobrevindas na paisagem sonora. Podemos saber exatamente quantos edifícios foram construídos numa determinada área ao longo de uma década ou qual foi o crescimento da população, mas não sabemos dizer em quantos decibéis o nível de ruído ambiental pode ter aumentado em um período de tempo comparável. Mais do que isso: os sons podem ser alterados ou desaparecer e merecer apenas parcos comentários, mesmo por parte do mais sensível dos historiadores. Assim, (...) para fundamentar as perspectivas históricas teremos que nos voltar para o relato de testemunhas auditivas da literatura e da mitologia, bem como aos registros antropológicos e históricos. (p. 24)

Busquei, pois, a contrapelo da história oficial – “surda” à vida social dos sons – “ouvir” os vestígios sonoros que ressoam nos relatos de viajantes, memorialistas, nas páginas dos jornais, bem como a partir de dados relativos ao visual cidade e suas procissões.1 Também fiz uso de resíduos sonoros presentes nas atuais celebrações.

Seguindo o caminho indicado por Schafer (idem, p. 26/27), principio identificando os “sons importantes por causa de sua individualidade, quantidade ou preponderância”, denominados por ele como “sons fundamentais, sinais e marcas sonoras”. Os sons fundamentais de uma paisagem são aqueles criados pelo ambiente natural: água, vento, pássaros, insetos etc. Encerram um significado arquetípico, ou seja, gravam-se tão profundamente nas pessoas que a vida sem eles perde em significação. Tais sons não precisam ser ouvidos conscientemente; são, na verdade, entreouvidos. Os sinais constituem-se nos sons percebidos conscientemente, muitas vezes funcionando como avisos acústicos tais quais sinos, sirenes etc. Já a marca sonora diz respeito a um som que possui qualidades especialmente significativas para uma comunidade. Tanto sons fundamentais como sinais afetam o comportamento e o estilo de vida de uma sociedade, e, em muitos casos, se tornam marcas sonoras, ou, em outras palavras, expressão identitária de um grupo social.

Inventariada as sonoridades relativas ao tempo da Paixão, a classificação privilegiou em muitos casos aspectos referenciais do som, sem, contudo, perder de vista a arbitrariedade do processo classificatório, posto que “nenhum som possui um significado objetivo e o observador terá atitudes culturais específicas em relação a esse tema”. (idem, p. 194) Cabe acrescentar que o fator estético é inerente à classificação, vez que as sonoridades cotejadas emergem de atitudes culturais nas quais os sons vieram a se consubstanciar em marcos sonoros cultivados como aspecto distintivo da sociedade vilaboense.

Por entre sons, ruídos e “silêncio”

“Riqueza cromática dos sinos, mística religiosa, sonora...”. Assim Cora Coralina (2001, p. 107) se refere à Semana Santa vilaboense. Ressonâncias que contrariam os relatos tradicionais que falam das antigas celebrações pascais. Silêncio e contrição. São com essas palavras, ou outras de teor semelhante, que muitos cronistas quase sempre abrem suas descrições. Focando nessa visão, seria possível falar sobre uma paisagem sonora da Paixão frente a dias que se diziam de um “silêncio sepulcral”? Onde fica a musicalidade apreendida por Cora?

De fato, a quietude natural das cidades pequenas aumentava na Quinta e Sexta-feira Santa. Ofélia Sócrates Monteiro (1974, p. 38), dentre outros, diz que na antiga Vila Boa, a partir do meio-dia da Quinta-feira Santa a cidade parecia morta. “Silêncio nas casas, silêncio nas ruas. Não se ouve grito de criança brincando. A corneta do quartel não toca a chamada noturna. Mudo em seu campanário permanece o sino da cadeia”. Esse silêncio, no entanto, deve ser relativizado. Os próprios cronistas, mesmo enfatizando essa silenciosa maneira de viver, deixam escapar uma série de sons que quebram o tão falado silêncio desses dias. Na Sexta-feira Santa, por exemplo, “em lugar de sinos ouvia-se as batidas das matracas anunciando as cerimônias religiosas”. Também corria as ruas da Cidade de Goiás um tipo de pregão próprio desse dia: “anúncio de venda de anéis da paixão (instru-mentos portadores de virtudes especiais), oferecidos de porta em porta pelos agentes dos ourives, geralmente crianças”. (Lacerda, 1957, p. 82)

Procissões, por sua vez, estavam longe de ser totalmente silenciosas. De J. E. Pohl (1976, p. 143-144), naturalista austríaco que esteve na cidade de Goiás em 1819 por ocasião da Semana Santa, desprende-se o ressoar da matraca, os sons “cavos e abafados” arrancados de um “longo chifre” por um encapuzado (um berrante?), o ruído de cruzes e correntes a desgastar as pedras do velho calçamento, cânticos da Paixão, o dobre dos sinos abrindo e encerrando as procissões e o rufar obstinado dos tambores. Estes assim especificados por Ofélia Sócrates (1974, p. 37) no seu relato sobre a procissão do Encerro: “lentamente, muito lentamente, sustidos por grande número de homens, desce o andor ao som da marcha batida tocada pela banda de tambores da Polícia”.

Também deve-se levar em conta que a passagem das procissões intensificava o fragor da devoção popular. Conforme Pohl (1976, p. 143), à exposição do sudário na procissão do Enterro, o povo caía de joelhos apresentando todos os sinais de compunção. Sinais que o francês Castelnau (2000, p. 140) identificou, em 1844, como o clamor dos penitentes – sons dionisíacos irrompendo do peito do homem para ganhar o espaço vivencial das celebrações. Nas suas palavras:

Hei de me lembrar sempre do efeito que em mim produziram os cantos sacros, a música militar, os homens e as mulheres pitorescamente trajados, ajoelhados nas ruas. Di-ser-ia estar assistindo a uma cena da inquisição. O que mais nos impressionou foi ver pessoas andando de joelhos, com enormes pedras na cabeça e algumas chegavam a prostrar-se de joelhos na entrada das igrejas pedindo ao povo que as pisasse.

E por falar em fé e devoção, as lágrimas e soluços se constituíam em parte essencial do cenário da Paixão. Em vários relatos sobre celebrações do Mistério Pascal, realizados em diferentes lugares, evidencia-se a elaboração de um roteiro pensado em atingir as pessoas no âmago de suas emoções, tendo como propósito que estas fossem às lágrimas. Como diz Maria Helena Flexor (2001, p. 527), mais do que sinal de sentimento, as lágrimas serviam para a purificação da alma:

De acordo com os autores de muitos manuais devocionais populares, as lágrimas tinham um efeito purgativo, e muitos benefícios eram esperados para quem chorasse de maneira apropriada. (...) Um grande papel da procissão da Semana Santa era prover uma alta e poderosa arena pública para a expiação coletiva dos pecados.

Choro provocado pela dramatização da morte, pela encenação do sacrifício pascal, por cânticos pungentes como o da Verônica e das Heús. Conta Ofélia Sócrates (1974, p. 37) que a cerimônia do Canto do Perdão levava às lágrimas tanto os que participavam cantando, como os que participavam assistindo:

Não raro alguma menina cantava com a voz embargada de soluços, dando à cerimônia um ar extremamente patético. No corpo da Igreja, emocionada fortemente, muita gente chorava, não podendo conter os soluços.

Outro vetor deflagrador de emoções eram os sermões dos oradores sacros, muitas vezes especialmente contratados para tais ocasiões. Por um lado, a mística do latim: sons impregnados de magia ritual incluindo uma gama de intensidades e alturas vocais, a voz grave e monotônica dos oficiantes, a fala em voz baixa, o texto recitado “em secreto” visando o decoro da liturgia, conforme orientação do Concílio de Trento (Sotuyo, 2005); por outro lado, a predica grande abrindo espaço para o extravasamento verbal, para o estremecimento causado por inflamadas homilias realizadas sob o tremeluzir de velas, pela arte do “terceiro tom”.2 Na procissão do Encontro vilaboense, nos oitocentos, à sombra das imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, representação dos martírios, estrategicamente colocadas bem na porta da Igreja, um sacerdote assomava ao púlpito para fazer o Sermão do Encontro, e, “quando o orador era eloqüente, muitas pessoas choravam”. (Monteiro, 1974, p. 37)

No Ofício das Trevas a retórica do medo, herdeira das práticas evangelizadoras medievais, se fazia explícita. O tropel do povo, representado pelo som dos pés percutindo o assoalho de madeira, associado ao aspecto lúgubre da igreja toda “vestida” de preto e roxo e à escuridão do templo ao final da cerimônia, causava grande comoção, conferindo ao referido ritual visões apocalípticas. (Passos, s/d, p. 27)

Não obstante a ambientação sombria e a intenção piedosa, nem todos se envolviam com a mesma contrição nos eventos da Semana Santa. O burburinho de conversas paralelas provavelmente também compunha uma paisagem que se esperava construída apenas com os sons da devoção.

Pelo menos é o que se percebe a partir de uma litografia figurando a procissão dos Passos, originária da expedição de Francis Castelnau nos idos de 1840.3 A maioria dos participantes parece de fato contritos. No entanto, é possível identificar grupos de pessoas aparentemente não tão devotas: homens bem vestidos parecendo confraternizar-se fora do cortejo; pessoas ajoelhadas fora dos cordões da procissão, voltadas uma para outra, em atitude que alude à prosa; senhores de costas para o cortejo etc.

Contraria também a mítica do “silêncio sepulcral” o fato de que gente reunida em profusão é sempre ruidosa. Castelnau (2000, p. 140) relata que a população se “acotovelava de todos os lados” durante as celebrações litúrgicas. Já Pohl (1976, p. 143-144) assinala que ao final da procissão do Encontro, a grande multidão que acompanhava o cortejo se comprimia na Igreja do Rosário a fim de beijar o cordão que cingia a imagem do Senhor dos Passos. Em tais situações não é absurdo supor – mesmo frente à compostura exigida pelos rituais de morte – que o espaço sacro fosse preenchido por uma infinidade de sons, desde o burburinho feito de preces até os ruídos da socialidade.

Deve-se igualmente ter em mente que a Semana Santa era (e ainda é) uma festa que atraía para a Cidade de Goiás gente de toda a Província, isso desde o Domingo da Paixão. Conforme Pohl (1976, p. 143), “para assistir a essas solenidades religiosas vem gente de regiões longínquas, de até 30 léguas de distância”. Castelnau (2000, p. 140) confirma essa informação dizendo: “havia várias semanas que as estradas estavam cheias de romeiros, que demandavam à cidade. Alguns, segundo dizem, para contemplar este espetáculo, chegam a fazer viagens de mais de cem léguas”. Os forasteiros emprestavam à cidade um ar festivo avivando-lhe o ambiente urbano. Era uma ocasião para rever familiares e amigos, por assuntos em dia, discutir o desempenho dos pregadores, cantores, a qualidade da arte efêmera; ocasião que apresentava um comportamento oscilante entre contrição e alegria. Como esses forasteiros vinham a cavalo e de carroça o nível de decibéis da cidade aumentava certamente. A chegada das comitivas era uma festa sonora:

Depois de ligeiro descanso, organizou-se o desfile a pé (dos integrantes do Seminário da Santa Cruz). A banda de música foi à frente, padres e seminaristas seguiam-na no compasso cadenciado das marchas. A chegada constitui-se em verdadeira apoteose. Grande massa de povo lotava a pequena praça nas imediações do palácio episcopal, em frente à Igreja de São Francisco de Paula, e, sob os aplausos da multidão e espocar de foguetes e das marchas executadas pela banda de música do batalhão de Polícia. (Passos, s/d, 25-26)

Euforia que se recolhia na Quinta e Sexta-feira Santa. Mas, depois do estremecimento causado pela representação do sofrimento de Cristo até sua morte no madeiro, voltavam a soar na manhã do Sábado os alegres timbres da ressurreição. Conta Ofélia Sócrates (1974, p. 41): “quando a missa pontifical chegava ao Glória, os sinos que permaneciam mudos desde a quinta, bimbalhavam festivamente”, preenchendo a paisagem com os sons da “boa nova”

Foguetes, fortes rojões, espocavam na porta da Boa Morte. (...) As crianças gritavam: Aleluia! Aleluia! Em revoada, grandes bandos de passarinhos, assustados pela foguetaria ensurdecedora, cortavam os espaços, ruflando as asas e piavam... piavam. (idem).

E depois da procissão da Ressurreição, ao raiar do Domingo de Páscoa, o povo vinha às ruas junto com os noctívagos e boêmios da cidade, se aglomerando às margens do Rio Vermelho para assistir à queima do Judas. (Lacerda, 1957, p. 83) A Francis Castelnau surpreendeu essa prática medieval, certamente já estranha à religiosidade francesa dos oitocentos. Sacrifício caricatural precedido pela leitura do testamento do Judas lavrado em versos por um humorista popular. O tom sério dos sermões sacros, dos efeitos lúgubres, das lágrimas, é trocado pelos sons da galhofa, em representação na qual se misturam o grotesco e o humorístico. E para completar, o Domingo encerrava-se com os sons do Batalhão de Carlos Magno: longas falas que se misturavam à sonoridade da justa e à efervescência da multidão. Dionísio ostensivamente manifestando-se na Semana Santa, ou, como diz Cláudio Paiva (2002, p. 4), a consciência trágica fazendo com que indivíduos e grupos, face à finitude que atormenta o ser humano, comemorem com júbilo a existência, sempre animados pela idéia de um novo recomeço.

Por entre cânticos

Esboçado o universo de sons e ruídos ouvidos na Semana Santa vilaboense, passo agora a abordar o seu passionário musical.4 Trata-se de cantos sacros que chegaram aos dias de hoje, vários deles ainda utilizados nas celebrações mesmo que deslocados do contexto ritual oitocentista; trata-se igualmente de músicas que desapareceram junto com ofícios caídos em desuso ou que se perderam em decorrência do incêndio da Igreja da Boa Morte em 1921. Cotejando em textos de jornais e relatos de memorialistas consegui identificar algumas dessas peças. Também inferi a existência de outras, a partir da estrutura do rito tridentino, 5 então usado na Semana Santa, visando com isso ampliar a perspectiva musical referente à paisagem sonora da Paixão vilaboense no século XIX. Nesse sentido, foi necessário investigar algumas das antigas práticas litúrgicas e para-litúrgicas.

Para começar, Lindolpho E. dos Passos ao falar sobre a Procissão e Missa de Ramos revela a existência de peças que hoje não são mais cantadas na Semana Santa vilaboense – o Eternar e Salmos dos textos da Paixão. Nas suas palavras:

Ao retornar à Catedral, o cortejo parou à porta, que estava fechada. No interior da Igreja o coro entoava o cântico ETERNAR (‘Glória, Louvor e Honra a Vós, Cristo Redentor’). Externamente o clero e os seminaristas repetiam o canto do coro (...). Em seguida o bispo, figurando Cristo, bateu à porta da Igreja com o báculo, pronunciando frase em latim. De novo, alteando a voz, bateu pela segunda vez e, finalmente, após a terceira intimação, abriu-se a porta. Entoando hinos, a procissão adentrou ao templo e seguiu-se a missa concelebrada pelo bispo e sacerdotes, no curso da qual os Salmos dos textos da Paixão foram cantados por três sacerdotes, com a participação do coro. (Passos, s/d, p. 27)

O cântico Eternar corresponde ao Hymnus ad Christum Regem Glória, laus, cantado no interior da Igreja e repetido pelo coro processional localizado no exterior do templo. Quanto aos salmos mencionados devem se referir à Antífona para a entrada (baseada nos Salmos 21/20/22) e ao Gradual (baseado nos Salmos 72/24/1-3).6 Já a “paixão cantada por três sacerdotesdiz respeito, provavelmente, à prática de se cantar a Paixão segundo os evangelistas. Prática tradicionalmente estruturada ou como “canto de órgão” (polifonia) ou como “canto responsorial” (alternância entre polifonia e cantochão).7

No Ofício de Ramos musicava-se a Paixão segundo São Mateus e no Ofício da Sexta-feira Santa a Paixão segundo São João. Corrobora a suposição de que os evangelhos da Paixão eram cantados na Cidade de Goiás, o fragmento de um Bradado – anônimo, sem data, localizado em uma coletânea de músicas próprias para a Semana Santa, organizada por Monsenhor Pedro Ribeiro da Silva nas duas últimas décadas do século XIX, e re-escrita por Darcília Amorim depois do incêndio da Igreja da Boa Morte em 1921.8 Pohl (1976, p. 143) também menciona essa prática em seu relato das cerimônias por ele presenciadas na Sexta-feira Santa: “De dois púlpitos (como aqui tem cada igreja) e de um altar lateral é a paixão cantada por três padres, depois do que são iniciadas as cerimônias usuais”. O jornal Estado de Goyaz (1892), por outro lado, traz a seguinte nota referente às celebrações do Domingo de Ramos: “No canto da Paixão serviram os revdos. cônego vigario geral, padres Pedro Ribeiro e Brom”. Já Eduardo H. de Souza Filho (1981, p. 19/20), lamentando o incêndio da Igreja da Boa Morte, na segunda década do século XX, faz igualmente menção ao canto da Paixão: “Há muito não mais existem as galerias populares de onde os sacerdotes cantavam o evangelho da Paixão e morte de Cristo”. (1981, p. 19/20)

Ainda segundo as memórias de Lindolpho dos Passos (s/d, p. 27), matinas, laudes e salmos eram cantados no extinto Ofício das Trevas, sendo que destes cânticos apenas o Miserere Mei Deus9 foi por ele especificado:

(...) A cerimônia teve início com todas as velas do triângulo acesas. Os cânticos dos salmos foram revezados pelas turmas do seminário, dispostas em duas alas ao longo de toda a igreja, e coro. Ao fim de cada salmo, o mestre-de-cerimônias, no caso um civil trajado de preto com opa vermelha, empunhando uma haste de madeira encimada por uma mão artificial de cor preta apagou as duas primeiras velas a partir da base do triângulo. A cena foi se repetindo até as duas últimas velas negras, o apagar dessas velas lembra o silêncio das três Marias e a fuga dos onze apóstolos. Depois, do cântico do último salmo, o mestre-decerimônias retirou a vela branca, levando-a acesa para o interior da sacristia, momento que foram apagadas as luzes da igreja e ouvidos barulhos imitando tropel do povo. Seguidamente foi cantado a salmo Misere Mei Deus, terminando esse ofício às vinte e uma horas

É de se crer, no entanto, que nesse Ofício das Trevas também se cantava o Benedictus, cuja entoação era simultânea ao apagar das velas, ou a antífona Traditor autem, cantada no momento em que a última vela era retirada do altar. A respeito dessa celebração, cabe acrescentar que foi introduzida, nas duas ultimas décadas do século XIX, uma Via Sacra composta por Monsenhor Pedro Ribeiro da Silva (1867/1920) - hoje cantada em cerimônias como o Descendimento da Cruz.

Na antiga liturgia da Quinta-feira Santa, a Missa do Santíssimo (comemoração da última ceia de Cristo) revestia-se de grande solenidade, sendo que após a homilia realizava-se o tradicional Lava-Pés. Várias antífonas tiradas principalmente do Evangelho de João (capítulo 13, versículos 13-35) eram cantadas nessa ocasião. Dentre estas, sobrevive na Cidade de Goiás - em partitura e na liturgia - o Domine, tu mihi lavas pedes (Senhor, Tu lavar-me os pés?) atribuído ao compositor goiano José do Patrocínio Marques Tocantins (1851-1891).

Conforme o rito tridentino, no fim da referida celebração, o Santíssimo era transladado para uma capela lateral em procissão solene, enquanto o coro se encarregava do canto das primeiras quatro estrofes do Pange Língua. Somente quando se colocava o Santíssimo no tabernáculo eram entoadas as suas duas últimas estrofes, ou seja, o Tantum Ergo, cantado dentro de uma capela lateral durante a incensação. Por se tratar de momentos relativamente separados na liturgia, era costume abordar as quatro primeiras estrofes como música distinta das duas últimas. Dessa forma, encontram-se, desde o século XVI, composições baseadas ou no primeiro grupo de estrofes - denominadas como Pange Língua – ou no segundo grupo, ou seja, o Tantum Ergo. Na Cidade de Goiás ainda é cantado um Tantum Ergo atribuído ao goiano Pedro Valentim Marques (18??/!9??) junto com um Pange Língua copiado, segundo Belkiss S. C. de Mendonça (1981,

p. 191) por Monsenhor Pedro Ribeiro da Silva nas últimas décadas do século XIX.

Na Sexta-feira Santa, a Igreja não celebra propriamente uma missa, mas um ofício de comunhão. Conforme o rito tridentino, na primeira parte desta celebração se davam as leituras: duas breves e o Canto da Paixão segundo São João. A terceira parte constituía-se na Adoração da Cruz

-ritual que incluía uma série de outros cantos, entre eles a antífona Adoremus te, Christe, o hino Salvator Mundi, as antífonas Popule Meus, Crux Fidelis e Felle Potus. Todos esses cantos integravam uma obra maior denominada como Impropérios.10 Deste conjunto ritualístico, chegaram à atualidade um Adoremus (anônimo e sem data), um Salvator Mundi (anônimo, cópia datada de 1851) e um Popule Meus. Esses cantos também integravam a procissão dos Passos (ou do Encontro), precedendo e/ou antecedendo o Moteto dos Passos.11 Considerando a existência do Popule Meus na Adoração da Cruz vilaboense, é possível que o hino Felle Potus e o Crux Fidelis também fossem cantados, vez que, tradicionalmente, seguiam o Popule Meus na referida celebração.

Nas últimas décadas do século XIX, o Canto do Perdão passa a fazer parte das celebrações da Sexta-feira Santa na Cidade de Goiás – cerimônia introduzida pela Igreja romanizada como contraponto às práticas devocionais das Irmandades consideradas pelo clero como pouco espiritualizadas. Conta a memorialista Célia Seixo de Brito (1975, p. 75), que o bispo D. Joaquim Xavier de Azevedo encontrou no Rio de Janeiro - em um livro de orações do Colégio Episcopal São Pedro de Alcântara (1872)12 – um relato sobre cerimônias de súplicas realizadas por ocasião do surto de cólera que assolara o país durante a Guerra do Paraguai. Considerando-as pungentes e tocantes, Dom Joaquim copilou a letra de uma dessas poesias sacras e a trouxe para a Cidade de Goiás, onde foi musicada pelo dominicano Frei Ângelo Dargainatz. Era cantado por um grupo de meninas, ou adolescentes, em todas as igrejas da cidade às três horas da tarde. Às dezoito horas, na Igreja de São Francisco de Assis, acontecia o Canto das Sete Palavras, cujos versos foram adaptados por Maria Camargo à música da Via Sacra de Monsenhor Pedro Ribeiro. No decorrer da última metade do século XX, a prática de se cantar as Sete Palavras entrou em desuso, mas o Canto do Perdão ainda é realizado na Igreja de São Francisco: por homens, às nove horas da manhã; por moças: às dezoito horas.

Completava o conjunto ritual da Sexta-feira Santa a procissão do Enterro. Seguindo costume que na Cidade de Goiás se diz remontar ao século XVIII, ainda hoje a imagem do Cristo morto é retirada da Cruz e colocada em um esquife para desfilar pelas ruas. Durante o percurso a “Verônica” canta por sete vezes o seu tradicional canto monódico O Vos Omnes, intercalado com o Heú! Heú! Domine (polifônico), entoado pelas carpideiras – personagens bíblicas popularmente conhecidas como as “Três Ma-rias”, “Marias-Beús” ou, simplesmente, as “Heús” (Maria Madalena, Maria Salomé e Maria de Cleofas).

Johann Emanuel Pohl, em seu relato sobre a Semana Santa vilaboense de 1819, faz referência explícita ao canto da Verônica, mas não menciona o lamento das Heús, o que leva à suposição da sua inexistência por esta época. Não obstante, tanto Ofélia Sócrates (1974, p. 40) quanto Lindolpho dos Passos (s/d, p. 29) confirmam em fins do século XIX e início do século XX, a presença das Heús e da Verônica na procissão do Enterro. No dizer de Passos:

As bandas de música e de tambores corneteiros da Força Pública tocaram marchas fúnebres durante todo o trajeto, intercaladas pelo canto das Heús e Verônica. Foi proferido o sermão das lágrimas pelo Padre Salomão Pinto Vieira, grande orador sacro.

O fato de o lamento das Heús integrar tais relatos não significa, evidentemente, a sua existência em épocas anteriores. Contudo, a tradição oral vilaboense confirma a presença dessas personagens na procissão do Enterro desde o século XVIII. Informação que deve ser levada em conta, pois parece estranho que, do conjunto do cerimonial herdado do devocionário ibérico, tenha sido deixada de fora justamente uma de suas unidades mais dramáticas e tradicionais, introduzida nessa procissão, conforme Castagna (2001, p. 857), em época anterior à introdução do Canto da Verônica. Nesse sentido, cabe apontar que no Manual da Semana Santa (1775) de Francisco de Jesus Maria Sarmento, o mais antigo documento até agora localizado que registra o Canto da Verônica, este cântico aparece em meio ao lamento das Heús. (apud Castagna, p. 847) Como a performance da Verônica é situada por Pohl “entre cantos tristes” (1976, p. 143), não é demais inferir que esses “cantos tristes” referem-se ao lamento das Heús. Por outro lado, localizei no arquivo pessoal de Belkiss S. Carneiro de Mendonça música para a segunda parte da Procissão do Enterro: momento que ocorre no interior da igreja e, diante do “túmulo” de Jesus, o coro canta estribilhos que seguem o refrão Heu! Heu! Domine! No caso do documento localizado, trata-se das partes vocais de um Sepulto Domino a 4 vozes.13

Na missa pontifical do Sábado de Aleluia - ritual pomposo e extenso -Lindolpho dos Passos (s/d, p. 28) relata que nessa ocasião o Canto das Profecias,14 a Ladainha de Todos os Santos e Salmos alusivos a este ato litúrgico eram cantados pelos seminaristas e coro. Nesta mesma celebração, Eduardo H. Souza Filho (1981, p. 19/20) menciona ainda um Gloria in excelsis Deo. Das celebrações referentes à Ressurreição resta ainda um Surrexit Dominus (Invitatórium das Matinas da Ressurreição, anônimo, sem data).

O culto à Paixão desenvolveu-se de modo peculiar na Cidade de Goiás. Suscitou não só a criação da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos e da Irmandade dos Pardos da Boa Morte, com sede em igrejas próprias, como também ensejou o estabelecimento de um ciclo festivo de 15 dias culminando na Semana Maior (a Semana Santa propriamente dita) – a Semana dos Passos e a Semana das Dores. Com relação a esta última, o jornal A Tribuna Livre (apud Rodrigues, 1982, p. 48), em 1879, cita peças que desapareceram ao longo dos tempos – uma Missa atribuída a Lysias Momogny e trechos de um Stabat Mater (em específico o Cuyus Animas).15 Fala também de outras peças ainda existentes na Cidade de Goiás: um Miserere (sem referência de autoria ou data) e o Moteto das Dores.

Motetes e Miserere. Missa: -de Lysias Momigny e trechos do Stabat Ma-ter, sobressaindo a execução de D. Anna F. Xavier de Barros no Cuyus Animas. As cantoras eram: Messias Amorim, Emerenciana Albernaz, Josepha de Amorim, Ilidia Curado, Victorina de Castro, Mariquinhas Albernaz e Anna Gabriela – acompanhadas pela Phil’harmônica e mais Anna X. de Barros, M. Nazareth X. de Barros e Leonor Xavier de Barros. Estas últimas senhoras são do número das mais adiantadas discípulas do Sr. Tocantins.

Rodrigues relata ainda que durante a Semana das Dores, cada noite era dedicada a uma das sete dores de Maria, sendo que, após a reza solene, cantava-se o Septenário das Dores constituído pelos seguintes motetos: Domine, Anadjurand, Dolores, um dos Motetos da Dores, o Stabat Mater,

o Tantum Ergo e, finalizando, o Solo das Dores (“Salve, Virgem dolorosa), composto pelo cônego José Iria Serradourada (1831/1898).16 O jornal O Goyaz de 1899, referindo-se igualmente a essas celebrações, menciona outros cantos sacros (grifados por mim):

Ângela Bulhões Natal leva o Stabat Mater de Rossini e a missa do padre José Maurício. Cantoras: Anna X. de Barros Tocantins, Esther Veiga, Mariquinhas Costa, Dirce e Gesy Natal, Maria Nazareth de Barros Azeredo, acompanhamento de Luthergard Bom-Olhos. Cantou o solo ‘Salve, Virgem dolorosa’ (José Iria) Mariquinhas Souza, ‘Inflamatus’ (Stabat Mater Rossini) Ângela de Bulhões Natal, ‘Fac ut portem’ M. de Nazareth de Barros Azeredo. (apud Rodrigues, 1982, p. 49) (grifos meus)

Quanto à missa do Padre José Maurício Nunes Garcia, não há notícia de qual delas se trata dentre as muitas que compôs. Pode-se aventar que seja um Gradual da Festa de N. S. das Dores. Por outro lado, o redator pode ter usado o termo “missa” de forma indistinta para indicar uma das várias obras que o referido compositor escreveu para as celebrações dedicadas às dores de Maria, a saber: Moteto para o Septenário das Dores de Nossa Senhora (1809); Moteto das Dores (1810); Stabat Mater das Dores; Septenário Doloroso a 4 vozes; Salmos 1º, 2º e 3º das Vésperas das Dores de Nossa Senhora. (Mattos, p. 269 a 331)

Conclusão

Matracas, sermões, cânticos, choro, o arrastar de cruzes e correntes, marchas etc., todo um universo sonoro que esvazia a noção de “silêncio sepulcral” imputado a esses dias. O fato a considerar é que jamais se pode falar de silêncio absoluto, em qualquer que seja a circunstância. O mundo que habitamos é sempre sonoro. Como diz Murray Schafer (1991, p. 7072), mesmo depois que um som aparentemente deixa de soar, continua a reverberar até que outro som o substitua ou se perca na memória. O que acontecia nos dias “mais tristes do ano” é um tipo de situação que Schafer (2001, p. 71) denomina de “sistema hi-fi”: uma paisagem sonora onde os sons “podem ser claramente ouvidos em razão do baixo nível de ruído ambiental”, o qual se contrapõe ao “sistema lo-fi”, onde os “sinais acústicos individuais são obscurecidos em uma população de sons superdensa”.

No ambiente hi-fi das procissões noturnas, com a visão reduzida pela escuridão e o ouvido sendo conseqüentemente supersensibizado, podia-se ouvir quase tudo (o que acontece ainda hoje em algumas procissões vilaboenses); fato que na Cidade de Goiás é potencializado pela acústica natural produzida pelo “abraço” da Serra Dourada e pelo paredão de casas geminadas que protege a disseminação dos sons. Em vez de silêncio o que se tem, de fato, é uma grande estrutura polifônica: os cânticos, rezas,

o badalar dos sinos, a matraca, marchas, conversas paralelas etc., sustentados pelo crepitar de velas e archotes, dos passos cadenciados, da batida dos bastões das Irmandades nas pedras centenárias e na madeira das pontes, do burburinho das águas do Rio Vermelho, elementos que funcionavam (e ainda funcionam) como um baixo contínuo para a “polifonia” processional.

A Paixão, enfim, à sombra do crucificado e da cruz, experimentou intensamente o embate entre o som, ruído e silêncio. Santo Agostinho até mesmo compara Cristo a um tambor: “pele esticada na cruz, corpo sacrificado como instrumento para que a música (ou ruído) do mundo se torne a cantilena da Graça, holocausto necessário para que soem as aleluias”. (apud Wisnik, 1999, p. 35) Nesse sentido, a ritualização do Mistério Pascal deveria alçar-se em som “celestial” através do expurgo dos “demônios da música”: os ritmos dançantes, os timbres variados, a 4a aumentada. Por outro lado, os dias santos dedicados à rememoração da “dor maior do mundo” deveriam primar pelo silêncio penitencial. No entanto, nos dois casos, o tempo dos homens, demonstraria a fragilidade do intento. De uma maneira ou de outra, as músicas do mundo - com sua diversidade rítmica, melódica e instrumental - invadem os espaços do sagrado, “pervertendo-o” junto com a ruidosa profanidade da vida. A Paixão ecoa, pois, por muitos meios: são motetes, bradados, turbas etc., coexistindo com expressões sonoras (e ruidosas) da dor, do martírio, de júbilo,, sustentados por um relativo silêncio penitencial, modelando um ambiente acústico que identifica não apenas os festejos pascais, mas também modos de ser e de fazer próprios de uma determinada sociedade.

NOTAS

1 Muito embora tenha sido estabelecido como corte temporal da pesquisa o século XIX, as fontes utilizadas vão desde 1819 às primeiras décadas do século XX. Justifica-se essa ampliação temporal, primeiro em função da natureza do fenômeno, o qual sofre processos mais lentos de transformação, ainda que não menos significativos. Por outro lado, a delimitação temporal da pesquisa também foi pensada levando em conta a dinâmica estrutural. Nesse sentido, dialogando com Eric Hobsbawn (2006, p. 22), abordo o corte cronológico privilegiado enquanto “um longo século XIX”, que tanto retroage quanto extravasa os oitocentos. Em outras palavras, entende-se que a Cidade de Goiás, desde finais do século XVIII (com

o esgotamento do ciclo do ouro) até por volta de 1930 (com a desintegração do sistema oligárquico goiano), viveu um longo processo de reorganização de suas forças produtivas (materiais e simbólicas), que originou um perfil cultural de características relativamente estáveis.

2 O ”terceiro tom” – o tom da entoação do discurso – era o acompanhamento indispensável da chamada “prédica grande”, a qual não era um sermão comum, mas um tipo de declamação que em determinados momentos assumia o tom melódico de uma cantilena: um movimento oscilante da voz, ora desenvolvido sobre uma única nota, ora retornando à entoação falada. O terceiro tom era, de fato, o acompanhamento obrigatório da famosa exibição do crânio durante homilias, se prestando com perfeição, segundo autores da época, a essa encenação macabra. Tal prática, com raízes na tradição religiosa hebréia e mesmo nos trágicos gregos, se manifesta na Igreja primitiva em cânticos para recitação de orações e leituras da Bíblia, se colocando na fronteira entre a fala e o canto. Consistia de uma única nota recitativa na qual cada verso do texto é rapidamente cantado, sendo denominada como tenor. Ocasionalmente poderia ser introduzida a nota vizinha superior ou inferior para acentuar uma passagem ou palavra importante. Cf. Delumeau. J. (2003, p. 21- 32). Cf. Salazar, Adolfo. (1982, p. 67/68).

3 Arquivo visual do Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central (IPEHBC). Universidade Católica de Goiás.

4 Passionário, passioneiro, paixoneiro, são termos que indicam coisas relativas à paixão. Também é utilizado para denominar livros que contém a narração da Paixão de Cristo. Faço uso do termo no seu sentido amplo, para significar as músicas utilizadas no tempo da Paixão

Quaresma e Semana Santa.

5 O Concílio de Trento em sua reação às reformas protestantes buscou fortalecer o catolicismo utilizando, dentre muitas outras medidas, uniformizar a liturgia. Sendo assim, a partir do referido conclave foram impressos livros com três tipos de repertório – liturgia sacrificial, laudativa e sacramental – referentes, respectivamente, a celebrações eucarísticas, a ofícios e a sacramentos específicos; um conjunto de normas que passou a ser conhecido como rito tridentino, o qual, de maneira geral, vigorou de 1570 a 1970.

6 Antífona e Gradual correspondem às partes móveis da missa, ou seja, aquelas que se modificam de acordo com a temática do dia. As primeiras compreendem Antífonas de Entrada (no caso dos dias festivos resumem o espírito da celebração em pauta), Antífona de Ofertório e Antífona de Comunhão. Já o Gradual corresponde aos salmos cantados entre as leituras (a primeira do Antigo Testamento; a segunda de uma carta de São Paulo; a terceira do Evangelho). Nas missas festivas os salmos eram cantados de um degrau (gradus) mais alto do altar e de um degrau mais baixo nos dias comuns, daí vindo o nome gradual. No rito tridentino, entre a segunda e a terceira leitura também se cantava o Aleluia (Alleluja, Alleluja e um versículo de um salmo terminado com a palavra Alleluja). Durante a Quaresma em vez do Aleluia canta-se o Tractus, ou seja, um salmo inteiro. Cf. Cullen, Thomas Lynch, S.J. Música Sacra: subsídios para uma interpretação musical. Brasília: Musimed, 1983, p. 37-39.

7 A Paixão cantada apresenta-se nas seguintes tipologias: texto – a fala do cronista; versos – ditos vários ou ditos de Cristo; bradados – a parte que cabe à voz mais aguda da composição, representando personagens individuais ou coletivos, estes denominados como Turba.

8 O original do chamado “Livrão de Dona Darcília” encontra-se sob a guarda do Dr. Fernando de Passos Cupertino de Barros, atualmente um dos responsáveis pela música da Semana Santa na Cidade de Goiás. Também existe uma cópia nos arquivos da OVAT (Organização Vilaboense de Artes e Tradições) sob a responsabilidade de Elder Camargo de Passos.

9O Miserere Mei Deus (Salmo 50/51) é um ato de contrição. O versículo 9 revela que só a ação divina pode limpar o homem e renová-lo pela nova criação. Conforme Paulo Castagna, no rito tridentino o Miserere também foi utilizado como primeiro Salmo das Laudes dos Mortos e Salmo da Procissão dos Funerais, além dos seus três primeiros versículos aparecerem em várias cerimônias paralitúrgicas da Quaresma. Cf. Castagna, Paulo. Quinta-Feira Santa. Restauração e Difusão de Partituras. Vol.VI. Belo Horizonte: Fundação e Educacional da Arquidiocese de Mariana, 2002, p. 22.

10 Antigo canto do séc. VI, com 12 censuras dirigidas por Jesus Cristo ao povo eleito pelos maus tratos a Ele infligidos. Neste canto repete-se o seguinte refrão: Povo meu, que te fiz Eu? As queixas são apresentadas em contraste com os benefícios com que Deus prestigiou o povo escolhido. Os episódios bíblicos as quais se referem são tirados do Livro do Êxodo. Cf. Cullen, Thomas Lynch, Op. Cit., p. 95.

11 O conjunto de peças que integra o Moteto dos Passos, variando de sete a doze motetes – aí incluindo o Popule meus – e o Moteto das Dores (constituído por seis motetes) é atribuído na Cidade de Goiás a Basílio Martins Serradourada. No entanto, essa atribuição de autoria é bastante duvidosa e tem sido objeto de pesquisas realizadas por mim e pelo musicólogo goiano Marshal Gayoso.

12 O referido livro é a Coleção Preciosa de Poesias Sacras, Edição de 1872, do Colégio Episcopal São Pedro de Alcântara no Rio de Janeiro.

13 O texto do Sepulto Domine é tirado do Evangelho de Mateus 27, 62-66. Fala do pedido dos fariseus a Pilatos para que colocassem um guarda no túmulo de Jesus Cristo. Responde Pilatos: Tendes uma guarda; ide e guardai o sepulcro como entendeis. Cf. Cullen, Thomas Lynch S. J. Op. Cit., p. 105.

14 O Canto das Profecias constitui-se na primeira parte das ladainhas que integravam a segunda parte da Vigília Pascal.

15 O Stabat Mater é a Seqüência (parte móvel da Missa cantada depois do Aleluia) para a festa de Nossa Senhora das Dores. Trata-se de uma meditação sobre o sofrimento de Nossa Senhora quando ao pé da cruz viu seu filho em Agonia. Pede a cada cristão para sentir o peso desta dor, sofrer com ela, e encher-se de compaixão. Foi musicado por inúmeros compositores desde a Idade Média. Cf. Cullen, Thomas Lynch, S. J. Op. Cit., p. 38/124.

16 Dessas músicas ainda são cantadas na Cidade de Goiás o cântico Dolores (anônimo e sem data), um Stabat Mater (anônimo e sem data), e o Solo das Dores de autoria de José Iria Serradourada. Tais músicas (copiadas por Dona Darcília Amorim na segunda década do século XX, depois do incêndio da Igreja da Boa Morte onde se achava grande parte do acervo de música sacra da Cidade de Goiás), e o Moteto das Dores foi gentilmente cedidas a mim para cópia por Sebastião Curado, regente do Coral Solo da Cidade de Goiás.

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Recebido em 10/12/2008 Aprovado em 23/12/2008

Ana Guiomar Rêgo Souza – Bacharel em Piano, Especialista e Mestra em Música pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutora em História Cultural pela Universidade de Brasília (UnB). Professora da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG. Lidera o grupo de pesquisa do CNPq “Arte, Educação, Cultura”, atuando nas linhas de pesquisa “Música, Cultura e Sociedade” e “Musicologia: Identidades, Representações e Processos Interdisciplinares”. É atualmente Vice-Diretora da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e coordenadora do curso de Especialização em Ensino da Música e Processos Interdisplinares em Arte.