DuAS PEçAS DE RODOlfO CAESAR tInnItuS (2004)

E bIO-ACÚStICA (2005)1

two pieces by Rodolfo caesaR tinnitus (2004) e bio-acústica (2005)

Silvio Ferraz - UNICAMP silvio.ferraz@terra.com.br

Resumofo Caesar, Tinnitus de 2004 e Bio-acústica de 2005. Ao mesmo tempo especula sobre modo de cipal foco é a forte presença de sons cotidianos nas duas peças, fator que será tomado como base para a construção de uma tipologia simples de objetos realizada a partir de uma escuta que acompanhe a peça como um arco de transformação passo a passo. O artigo está fundamentado mático desta tipologia e sim um uso prático, visto o objetivo ser mais o de retomar uma forma descritiva de análise. Palavras-chave: Análise musical; Música acusmática; Rodolfo Caesar; Escuta; Pierre Schaeffer.

Abstract: This paper presents an analytical reading of Tinnitus and Bio-acústica, two acousmatic compositions of Rodolfo Cesar. It speculates also a musical analysis way for acousmatic music (music heard through loudspeakers). The main focus is the presence of daily sounds in jects which explains those pieces ir his gradual sonic transformations. The main concepts for tive concerns to uses a more descriptive way of analysis in consonance with the compositional procedures used in both pieces. Keywords: Musical analysis; Musique acousmatique; Rodolfo Caesar; “Écoute”; Pierre Schaeffer.

Na análise musical da música eletroacústica o analista se depara constantemente com a condição de não ter um suporte visual ou gráfico o qual possa operar sua análise. isto o coloca em embate com dois fatores. terística e conseqüente domínio de pensamento são totalmente diversos tos de análise raramente referem-se à música em situação de escuta e que dificilmente darão conta da análise de uma obra cujas referências não são mais as notas e suas durações, mas sim a escuta do som. Saliento aqui que o objeto não é o som mas a escuta do som. Nada impede que o analista sa voltado à música contemporânea (IRCAM e GRM)2. Mas mesmo que a etapa de transcrição envolva já a mediação de uma escuta, como no caso do acousmographço de escuta. O que significa uma análise no espaço gráfico? Significa que diversos elementos que não são notáveis na escuta se tornam relevantes, velando as pertinências próprias à escuta que Pierre Schaeffer chamou de acusmática: o som percebido longe das referências de fonte sonora e conotações.

ção de Tinnitus e Bio-acústica, duas obras acusmáticas de Rodolfo Caesar. do quero dizer de tudo que estou ouvindo, das sonoridades e das relações que me aparecem no campo mais pessoal (dados, digamos, simbólicos do cotidiano, sonoridades corriqueiras, aquilo que poderia chamar aqui de mundo sonoro do compositor – sua reserva sonora). Isto quer dizer que te visto realçarem a reiteração de certo tipo de material sonoro retirado do cotidiano e usado quase numa forma de colagem (veremos que não é exatamente colagem e que o procedimento de composição ele é bem mais tar-se da situação de composição, em direção a uma neutralidade, para nese não apenas composicional mas gênese de escuta. É neste sentido que do se analisa uma obra é importante ter em mente que existe uma obra e que alguém a analisa, e que tudo que está dado de antemão não é passível der-se neutro. Impossível à escuta desfazer-se de suas camadas de hábitos e reservatório musical prévio (aquilo que conforma a experiência musical ço tal história ou que a desconsidero. Neste sentido tudo aquilo que me é todo, escolhido aqui, ele não diz respeito apenas à posição do analista, diz também respeito ao compositor e às obras analisadas. Veremos ao longo deste curto artigo, como o universo referencial sonoro (seja musical, seja cotidiano) do compositor torna-se instrumento de composição de modo a, ta passam aqui a ter uma importância de ordem composicional imanente à escuta e não apenas como referência intelectual plausível em um plano de explicação da obra.

Mas pergunto: como partir da obra, partir apenas da escuta, e não de sistemas de análise musical que restrinjam a análise à revelar estruturas ou sistemas? Talvez o caminho seja o de retomar estratégias bem simples, estratégias cotidianas, e acredito que até mesmo compatíveis com a figura do compositor em questão, o carioca Rodolfo Caesar, tranqüilo morador da do da criação de sua Pasárgada.3 Na rua do Curvelo, atual Dias de Barros, no bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro, viveu Bandeira, e lá está ela citada em seus Itinerários de Pasárgada. Por que citar isto em uma análise musical? Simplesmente porque talvez seja um elemento que venha a fazer fa-numérica, que mais são afeitas a imprimirem marcadores de poder nas coisas do que a retomarem a magia de sua gênese, ou a fazerem proliferar as escutas. As leituras alfa-numéricas podem até mesmo ser relevantes em algum momento, mas não imagino tomá-las como ponto de partida visto o monstração técnica.

Mas falava de Pasárgada, de Bandeira e de Rodolfo Caesar e de duas obras, Tinnitus e Bio-acústica, e de realizar uma análise que partisse da escuta da obra. Lembro apenas que se estivesse diante a uma música ção, ou mesmo a partitura e um conjunto de gravações. No caso específico, ro digital, duas peças realizadas dentro da tradição da música acusmática. E quando me pergunto como partir da própria obra para analisá-la, ou seja, cepção puro e simples, nem do sujeito que percebe e suas idéias a priori), penso que talvez haja uma primeira operação, um tanto quanto primária, vidade simples e talvez atravessada de muito senso comum, mas da qual não temos como me afastar. Realizamos este tipo de operação todos os dias e isto já nos é um hábito: “quem vem lá?”, “quem é você?”, “o que é isso aí?”, “pra onde você vai?”. Ou seja, realizamos sempre este primeiro passo mente associada ao exercício schaefferiano de análise de objetos sonoros. O que vem a ser a tipologia, simplesmente tomar por referência primeira aqueles objetos que se fazem notáveis. Em uma composição musical nem todos os elementos se destacam enquanto objetos, nem todos os elementos taca-se enquanto objeto notável, enquanto referência. O destacar ou não,

o tornar notável ou não os objetos é resultado da relação ouvinte-música, ze com tais faculdade a escuta é resultado de uma operação de agrupar e ação de escuta em que se encontra. Não se trata então nem de capacidade samento de um pacote de informações nomináveis e sensações inominadas gia consiste então em justamente elencar objetos e sensações (procurando denominá-las) para então passar a relacioná-los entre si e com dados que chamamos de “extra-musicais”.4

Começo por Tinnitus. A escuta desta peça me chamou a atenção cessantemente (talvez presença de rugosidade irregular do som), e que sua forma era extremamente simples: um início de quase um minuto, algo como uma paisagem sonora cotidiana, típica de pequenos vilarejos, ou pequenas brechas em forma de vilarejo dentro das grandes cidades, com versando com frases irreconhecíveis de tão baixas e distantes, um pouco de água pingando, uma profundidade de sons contínuos de grilos, antes que irrompa um processamento eletrônico, nada cotidiano, um corte que separa dois mundos retirando quase que de imediato a “cotidianidade” de cuta foi a “ofegância” da eletrônica a qual destacava-se em uma espécie lar de sons vivos quando falar de Bio-acústicadianos retrabalhados trouxe à superfície sonora uma espécie de ciclos de respiração à peça.

Em seu artigo sobre a composição de Tinnitus, Caesar descreve a simplicidade dos passos tomados para compor esta peça. Sons noturnos que passam por um processo de filtros móveis e que resultam em duas pistas distintas de sinais sonoros, às quais acrescenta uma terceira, um reverb tas também é simples: a primeira, de sons noturnos, descreve uma curva mente vai voltando à cena; a segunda, a dos sons filtrados, nasce depois guezague logo nos primeiros minutos) desaparecendo; a terceira, os sons zes mas cada vez mais fraco, uma escalada lenta para sua retirada final. É te, lentamente se mesclam, ficando a terceira pista apenas como reforço da segunda pista e, por fim, faz a peça descrever este movimento em três do até que a primeira pista volte plenamente à cena: cena 1 / transição sons filtrados – cena / cena 1. Importante lembrar que não se trata de um sar por quem ouve, mesmo que pela primeira vez. A forma aqui tem sua importância pois ela realiza um jogo de desfazer um significado e refazer outro: o som que se acreditava sintetizado revela-se como parcial de um som gravado.

Ao início deste artigo comentei a necessidade de uma tipologia. Ao que serve a tipologia? Primeiro, sem a tipologia, mesmo que cotejada com a descrição que o compositor faz em seu artigo sobre a peça, não seria dado imaginar estes três momentos. Os três momentos não passam de uma impressão de escuta que é salientada por dois objetos: a paisagem sonora reconhecível e o som eletrônico proveniente dos cortes. Uma tipologia de no mínimo dois termos, que se permitem imaginar como dois extremos de uma passagem. Mas a tipologia não precisa parar aqui, nossa coleção de imagens não precisa parar neste primeiro dueto. Outras imagens nascem da coleção de filtros que o compositor utiliza para tratar o sinal sonoro da paisagem noturna. E é aqui que entramos com o título da obra. O que diz

o título da obra. Ora, analistas ortodoxos talvez não prefiram dar-se conta do título da obra, sobretudo daquilo que poderiam chamar de título de fantasia, título não exatamente estrutural (sonata, sinfonia, fuga a duas vozes, prelúdio, ricercare, mudanças, transformantes, variações, mutações, metamorfoses, modelagens). Alguns títulos não se referem tão claramente a formas e acabam ligando-se a um universo imaginário mais aberto e talvez seja este o caso de Tinnitus – assim como em Varèse temos Intégrales, Ionisation –, descrições de processos que não são necessariamente “musicais”. O termo tinnitus (tinidos) diz respeito à escuta de zumbidos muitas vezes provenientes de enrijecimento de veias no interior do ouvido, ou ainda de pequenas inflamações e que resultam na produção de micro-sons que se assemelham desde a simples assobios, conversas distantes, até mesmo melodias.5

Mas o que isto vem trazer para a análise, para a construção da tipologia que vinha imaginando e para os processos, os modos de relação entre os termos da tipologia? Aqui distinguiria pela escuta duas qualidades de tinidos: um tinido melódico (que Rodolfo Caesar estaria desenhando numa pequena seqüência de quatro notas, algo como uma seqüência a partir do 10º harmônico: aproximadamente as freqüências de 1479Hz, 1661Hz,1864Hz, 2093Hz – pequena escala-de-tons-inteiros)6 e um tinido que se manifesta como um ruído, um som raspado de uma respiração ofegante contínua mas irregular. São dois tipos de tinidos que se alternam, fazem do tempo um jogo de aparecer e desaparecer sem uma lógica que nos seja aparente ou manifesta (ao menos não antes dos cinco minutos de peça, quando irrompe a volta de um primeiro pássaro). É interessante notar que isto que observo aqui não está previsto totalmente pelo compositor – “a volta de um primeiro pássaro” –, isto é resultado de seu gráfico de aparição, desaparição, filtros e reverberações. Os dois tipos de tinidos se interferem mutuamente, a pequena escala-de-tons-inteiros ela também é ofegante. Mas o que realiza esta ofegância, este movimento de ganho e perda súbita de intensidade, é justamente a paisagem e seu fluxo irregular filtrada, realçando as freqüências que determinam as o filtro passa-banda que faz uma pequena varredura de espectro sobre

o som da paisagem sonora noturna. Mas como sei, apenas com a escuta, da existência deste processo de filtragem, que os sons em escala-de-tonsinteiros e a ofegância podem ter nascido da paisagem sonora noturna? O compositor nos mostre isto explicitamente ao final da peça. Ao final, aquilo que chamei de “o primeiro pássaro” ressurge com grande clareza contrastando com sua ocorrência ao longo da peça, do que chamei de “transição” (e que é quase que a peças toda) realçando o ritmo irregular dos ruídos ofegantes.

Talvez valha falar um pouco do “Curvelo”. Em que a “rua do Curvelo, hoje Dias de Barros,” estaria presente nesta composição. Roubo aqui uma pequena passagem de Bandeira, em seu Itinerário de Pasárgada em que diz que “o elemento humilde cotidiano” encontrado em sua poesia “não resultava de nenhuma intenção modernista. Resultou muito simplesmente do ambiente do morro do Curvelo”.7 Diria quase o mesmo de Tinnitus, seu material não nasce apenas de um posicionamento frente ao material composicional das músicas eletroacústica atuais, e também distingue-se das temáticas reiteradas nas composições de paisagens sonoras acusmáticas. Aqui vem presente a rua, os quintais das casas que se conjugam numa pequena grota que se abre da janela dos apartamentos da Dias de Barros: uma panela sonora reverberante, por onde, às madrugadas, ressoam vozes, um ou outro pássaro, e os últimos tiros do tráfico de drogas. Por que tal referencialidade nesta análise? Talvez porque componha um universo acústico ao qual eu chamaria de uma “harmonia sonora” desta fase composicional de Caesar, harmonia que reaparece em diversas de suas peças, como é o caso de Bio-acústica. Em Bio-acústica, assim como em Tinnitus, ouve-se sempre uma harmonia noturna, lembrando frase de Nietzsche em Aurora, que o compositor costuma citar em suas apresentações sobre esta peça:

O ouvido, este órgão do medo, só alcançou tanta grandeza na noite e na penumbra de cavernas obscuras e florestas, bem de acordo com o modo de viver da era do receio/.../Na claridade do dia o ouvido é menos necessário. Foi assim que a música adquiriu o caráter de arte da noite e da penumbra.8

Forma-se com tais sons noturnos o que chamei de uma harmonia sonora da música recente de Rodolfo Caesar, com o que pode-se dizer que compõe-se o idioma do compositor, fazendo sempre retornar as sonoridades cotidianas, se bem que tal quadro de sonoridades não esteja fechado e que mais nos interesse nele o modo como se articula com a eletrônica do que exatamente sua referencialidade extra-poética. Já que até o momento pensamos numa poética articulada sempre a dois termos,9 a eletrônica e os sons cotidianos, as sonoridades ruidosas e os filtros finos que deixam passar uma melodia de senóides, e, como é fácil de se escutar em Bio-acústica, uma outra copla sonora: os sons que referem pequenos animais e a natureza (sapos, grilos, cigarras, água correndo, chuva) e os sons humanos (motocicleta, música, crianças brincando).

Poderia dizer que Bio-acústica é uma música noturna, mesmo que ali se ouçam crianças que brincam e ruídos diurnos, trata-se de uma “escuta noturna”. Diria assim que a música noturna não é apenas a música de sonoridades noturnas,10 mas ela implica em uma atitude de “escuta noturna”, uma escuta realizada no escuro da casa quando se fecham as janelas e a rua entra apenas por seus sons. E o pacote de sons que atravessa esta peça é o mesmo, ou muito próximo àquele que atravessa Tinnitus. Sons cotidianos: barulhos que vêm de um quintal de casa, alguma água que corre, talvez os sons gravados num passeio às Paineiras no Rio de Janeiro, ou pássaros recolhidos de algum arquivo de áudio. A diferença entre Bio-acústica e Tinnitus é a presença mais constante dos cantos de pássaros, dos ruídos de pequenos invertebrados na mata, e uma fala – alguém que fala, uma mãe que chama a atenção de crianças que brincam numa piscina - e sapos, muitos sapos. Outra sonoridade marcante nesta peça é de um “piano” a tocar uma das Invenções a duas vozes de J. S. Bach, um piano ou um simples arquivo MIDI que imita um piano, mas como o piano é distante, o compositor o colocou bem longe, como se do quintal ouvisse alguém tocando lá dentro de casa. Em um momento passa um motor, uma motocicleta; um motor. E antes de prosseguir minha escuta, leio em um artigo de Rodolfo Caesar a anotação de um sonho, isto tudo depois de um dia meio acidentado e intensamente forte:

Passeava pelo leito seco de um riacho daquela região quando vi, na parte inferior de uma das margens, dentro de uma gruta formada pelo vão de uma pedra achatada, os pés de três ou quatro crianças que se divertiam por terem se enfiado ali. Elas estavam completamente presas, e somente conseguiriam sair recuando lentamente, talvez uma de cada vez. A graça da brincadeira era gozar da falta de espaço, era estar naquela situação inusitada de ficar lá dentro, rindo, em grupo, contido, conteúdo subjugado por toda a força e o peso de um barranco. Fez-me lembrar da minha infância e especialmente quando, durante a construção do bairro em que vivia, apreciava a sensação de perigo atravessando as ruas novas debaixo da terra, arrastando-me pelas manilhas da rede pluvial. A graça era a exigüidade, a falta de amplitude, de horizonte, de ar, e o perigo de estar ali. Para transformar a cena do sonho em horror bastava um som, justamente aquele que eu escutei no sonho, que era o de uma tromba d’água se aproximando: o leito do rio em um instante estaria cheio até as bordas, sem dar tempo para que as crianças saíssem do buraco. A partir desse pesadelo comecei a pensar sobre a falta de espaço, a claustrofobia, e outras faces do medo. Como assim? Por que? Para que falar disso em uma palestra sobre música? O que tem a vida pessoal com o interesse acadêmico pela música eletroacústica? 11

E o que esta passagem pode me ajudar a ouvir as peças que me propus “analisar” neste pequeno texto? Talvez em nada que consiga reconhecer diretamente, talvez apenas me chamando a atenção assim como a música me chamou a atenção da primeira vez que a ouvi. E além do mais, se me propus uma atividade simplória de fazer uma tipologia, de coletar as imagens que o compositor deixou ali em sua música, impossível me desfazer de outras imagens que parecem se conjugar com estas primeiras e que me foram dadas pela escuta, e é também difícil conter a vontade de ler artigos sobre as peças que ouço, de ler algo sobre a vida do compositor. Mas como fazer com que tudo isto não se torne mera pieguice, mero relato de intimidade, mero desfile de dados corriqueiros e pouco “musicais”?

O fato é que um compositor procura imagens para compor isto que poderíamos, ao modo de Hume, chamar de “espírito”: um espírito composto de idéias.12 O que poderia chamar de um lugar cheio de coisas. Estas imagens quando colocadas lado a lado, elas se intermodulam e se compõem com uma outra imagem que privilegia imagens, a esta segunda imagem chamamos de compositor. Uma imagem sonora ao lado de outra, isto um computador permutando dados recolhidos aleatoriamente de arquivos sonoros disponíveis em uma grande rede de computadores pode realizar sem problemas. Mas quando coloco um compositor, o qual é em si uma outra imagem, esta nova imagem ela privilegia certas imagens sonoras.

Ao analisar uma música, dentre as imagens sonoras percebo que algumas foram privilegiadas. Elas ocupam lugares privilegiados: a música de Bach quando irrompe em Bio-acústica, ela permanece, vai e vem, muda de amplitude e de qualidade sonora, mudam-se suas matizes, no plano espacial o ouvinte nota que ela se aproxima e se afasta; já o som de motocicleta passa e não volta mais. Há também um som mais próximo, uma cadeira que bate ou algo do gênero, mas que é um sinal bem próximo, sem nenhuma ressonância, direto, ele está próximo de quem captou o som (daquele que segurava o microfone no momento da gravação)

mesmo que microfone não haja, ou que seja mais de um microfone em mais de uma tomada sonora. A mulher que fala com as crianças, ou que fala com outra mulher ou com um homem em meio às crianças, e que pede cuidado, ela fica ali o tempo todo, as crianças também, e o piano segue até se compor com os sapos. E os sapos tocam Bach. Nada de ironia, é humor mesmo; é para rir e não para se gabar. E o humor acaba fazendo três lugares: um primeiro lugar povoado por sons de pássaros, chilros de invertebrados ruidosos e um intelectual que fala sobre espécies animais registradas e que serão dissecadas; um segundo lugar que fica à beira da piscina, as vozes, a motocicleta, Bach e os sapos; e o terceiro lugar quando os sapos sobressaem na cena e cantam com Bach e clamam por Walter-Wendy Carlos. Lembrando Tinnitus, novamente tudo seria uma simples fotografia sonora de um ambiente, uma paisagem sonora, não fosse os três momentos, o corte súbito de quando a paisagem da piscina irrompe e interrompe o intelectual biólogo, e a transição rápida do final com os sapos cantando Bach.

O que a vida pessoal tem a ver com a música? Ela é a imagem privilegiada e privilegiadora, ela é o pacote de imagens, a coletora de imagens, e compor não é mais do que dispor destas imagens privilegiadas para que outros as ouçam, e encadeá-las – ou sobrepô-las – de modo que se prenda a atenção de que alguém esteja por perto. E para se prender a atenção valem algumas estratégias: cortes, transições graduais, um pouco de humor ou um pouco de melancolia, tanto faz. Talvez deveria dizer que uma outra imagem de música se desvela aqui: nem ouvir estruturas para se mostrar inteligente, nem levar-se no sentimentalismo, ou decifrar uma anedota, mas simplesmente manter-se atento, voltar o ouvido e deixar-se levar ou penetrar por imagens sonoras, deixando também que elas componham e recomponham seus pares de uma tipologia de escuta.

silvio, são paulo. 17-11-06

Notas

1 Este artigo faz parte de uma série de análises de obras de compositores brasileiros realizadas como primeira etapa de pesquisa do projeto “Confluência composicionais em estilos musicais distintos” (bolsa CNPQ). A pesquisa visa também percorrer modos distintos de análise musical com base na mais recente crítica literária européia, sobretudo aquela relativa ao que se denominou “filosofia da diferença”, ou “pós-estruturalismo”.

2 Do IRCAM citaria o software Audio-Sculpt que permite transcrições em sonograma e análise dos dados desta transcrição. Os dados do AudioSculpt podem ser resgatado por outros softwares desenvolvido no IRCAM como o OpenMusic ou sua antiga interface PatchWork (atualmente disponível no aplicativo PWGL desenvolvido por Mikael Laurson), e ser convertido em dados compatíveis com a linguagem musical de notas e valores. Quanto ao GRM citaria o software Acousmograph de representacão do sinal do sonoro em que o usuário pode atribuir formas visuais à objetos sonoros relevantes à escuta que está operando.

3 Bandeira, Manuel. Itinerário de Pasárgada. In: Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958.pp.51-52. Moraes, Marco Antonio de (Org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp, 2001. Bandeira vive a partir de 1920 na pensão da Dona Sara, nº 43, depois no andar mais alto de um casarão em ruínas, nº 51. p. 59. ver fotografia de Bandeira em frente ao prédio em que hoje reside Rodolfo Caesar, p. 46.

4 Cada vez mais, seja nos textos sobre música e em áreas correlatas como os estudos sobre escuta, que aquilo a que que chamamos por música é talvez muito mais do que simplesmente

o resultado sonoro que temos acesso ou mesmo os procedimentos expressos em uma partitura. Esta maneira de pensar foi totalmente transformada no momentos em que compositores diversos (G. Ligeti, I. Xenakis, J. Cage, P. Boulez, S. Reich) e a etnomusicologia (citaria aqui sobretudo o trabalho de John Blacking) fizeram notáveis a visulalidade que implica a escuta, ou mesmo a tactilidade que a permea

5 Em Alucinações musicais, Oliver Sacks fala dos tinnitus também como provenientes de alterações em funções cerebrais (Cf. Sacks, 1971).

6 O compositor apresenta a resultante desta escala (arpeggio, conforme artigo de Rodolfo Caesar) a um algoritmo arbitrário extraído de uma série fibonnaciana com a qual são compostos os filtros passa-banda, sua velocidade de abertura, sua largura, etc. Cf. Caesar, Rodolfo (2004). “A confluência em Tinnitus”. in http://acd.ufrj.br/lamut/lamutpgs/rcpesqs.

7 Bandeira, Manuel. Itinerário de Pasárgada, op.cit. p51.

8 Nietzsche, F (1881,1887). Aurora. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 171. Caesar, Rodolfo. “Ela é tão tudo que é insignificante”. in: < http://acd.ufrj.br/lamut/cropsite/cc04>.

9 Vale referir aqui o processo schaefferiano de construção de tipologias, tal qual apresentado em seu Traité des Objects Musicaux, sempre articulado por dois termos antípodas, como dois pólos de uma escala preenchida por outros tipos, esses sempre interpolando os dois extremos. Ver sobretudo “Livro V”, “Morfologias e tipologias dos objetos sonoros” (p.389 seq.).

10 Na tradição ocidental da música do séc.XX as músicas noturnas estão associadas sobretudo à obra de Bela Bartok (Música para cordas percussão e celesta) ou Villa-Lobos (como em Genese: a origem do Amazonas de 1951).

11 Cf. Caesar, Rodolfo (2004). “A confluência em Tinnitus”. in: <http://acd.ufrj.br/lamut/ lamutpgs/rcpesqs>.

12 Cf. Deleuze, Gilles (1953). Empirismo e Subjetividade. trad. bras. Luiz Orlandi. S.Paulo: Ed.

34. 2001. p. 12

Recebido em 14/fev/2008. Aprovado em 13/mar/2008.

Silvio Ferraz (1959) - Compositor, professor do departamento de música do IA-UNICAMP e pesquisador do CNPQ. Desenvolve projeto temático em composição musical junto à Fapesp e coordena o Núcleo de Integração e Difusão Cultural da UNICAMP.