two diveRgent visions about mass cultuRe
Guilherme Sauerbronn de Barros - UDESC guisauer@gmail.com
Resumoᆳsa, a partir de dois ensaios contrastantes. O primeiro deles, “Sobre Música Popular” (1941), de Theodor Adorno (1903-1969), é um clássico da musicologia. O segundo texto, “A Produção do Sucesso: uma Anti-Musicologia da Canção Pop” (1983), de autoria de Antoine Hennion (1952-), trata da música pop do ponto de vista da produção musical. Ambos abordam aspectos ligados à ᆳresses das agências, as estratégias de promoção e as características fundamentais do ouvinte de ᆳlacionar com esta música, diferença que se reflete nos textos em questão. Tal diferença denota, ainda, uma transformação substancial nos estudos musicológicos ao longo do século XX. Palavras-chave: Cultura de Massa; Adorno; Hennion.
Abstract: This article proposes a reflection on creation and reception of mass culture in music, ᆳᆳtimusicology of Pop Song” (1983), authored by Antoine Hennion (1952 -), comes to pop music in terms of musical production. Both texts address aspects of musical creation, transmission and reception. The authors identified, each in his own manner, the interests of agencies, the strategies for promotion and the fundamental characteristics of the listener of popular music. The authors, in turn, have radically different ways to relate to this music, and that difference is ᆳtion in musicological studies throughout the twentieth century. Keywords: Mass Culture; Adorno; Hennion.
ᆳse sócio-musicológica da música comercial norte-americana, foi escrito em ᆳᆳda Escola de Viena, Adorno enxerga na música popular um instrumento de controle e dominação das massas. O conceito fundamental que usa para caracterizá-la é o de “estandardização:” é a estrutura estandardizada da ᆳção, que transforma o ouvinte num ser passivo e irreflexivo, o que traz um caráter negativo para sua análise.
ᆳque é predominantemente positivo. Em “A Produção do Sucesso”, estudo ᆳve o mundo da indústria cultural de massa do ponto de vista da produção ᆳdo critérios estabelecidos a partir da dita “música séria”, Hennion procura ᆳca pop. Embora reconheça a existência da estrutura standard descrita por ᆳmentos que compõem um hit; tão importantes quanto a música são a letra e a performance. Uma análise deste tipo de música deveria, portanto, levar em conta esses três aspectos, estrutura, letra e performance, inseparáveis no universo da música popular.
Acreditamos que a principal diferença entre os ensaios em questão não esteja na música que Adorno escutava nos Estados Unidos nos anos ᆳsive, que, caso os objetos de um e outro ensaio fossem trocados entre si, o teor dos textos não mudasse significativamente. A maior diferença reside, ᆳᆳlo XX. O próprio Hennion reconhece esta mudança ao definir seu estudo ᆳcais se transformam, muda também o olhar do pesquisador e a maneira de se relacionar com seu objeto.
ᆳdização”, segundo ele a principal característica da música popular:1 “Toda a estrutura da música popular é estandardizada, (...). A estandardização se estende dos traços mais genéricos aos mais específicos.” (Adorno, 1986,
p. 116). A estrutura standard dos hitsᆳguintes parâmetros: parte temática (chorus) de 32 compassos, amplitude melódica limitada a aproximadamente uma oitava, gêneros característicos ᆳtante, um esquema-padrão harmônico rígido, no início e no fim de cada parte. Esse esquema, que enfatiza os “mais primitivos fatos harmônicos” (Idem, ibidem, p. 186), tem como finalidade confirmar e reforçar uma exᆳperiência musical “familiar”, evitando assim toda novidade.
Se a estrutura geral do hit obedece a esse padrão, nos detalhes a esᆳtandardização também está presente. “Breaks, blue chords, blue notes” são alguns dos recursos usados pelos compositores e arranjadores para dar um colorido peculiar às canções e produzir algum tipo de diferenciação enᆳtre obras estruturalmente semelhantes – ou quase. No entanto, são apenas efeitos, não têm implicações estruturais e sua presença não irá eclipsar a estrutura padrão do hit: “em momento algum qualquer ênfase é colocada sobre o todo como um evento musical, nem tampouco a estrutura do todo depende dos detalhes.” (Idem, ibidem, p. 117). po-
poᆳsição é algo absoluto. Cada detalhe é substituível; serve à sua função apeᆳnas como uma engrenagem numa máquina” (Idem, ibidem, p. 118)
Na dita “música séria”, ao contrário, “cada detalhe deriva o seu sentido musical da totalidade concreta da peça, que, em troca, consiste na viva relação entre os detalhes, mas nunca na mera imposição de um esqueᆳma musical” (Idem, ibidem, p. 117). Enquanto a música séria exige uma escuta ativa, na música popular “a composição escuta pelo ouvinte. (...) A construção esquemática dita o modo como ele deve ouvir enquanto torna, ao mesmo tempo, qualquer esforço no escutar desnecessário” (Idem, ibiᆳdem, p. 121). É, portanto, a estrutura estandardizada da música popular que molda os hábitos de escuta massificados.
Adorno observa ainda que essa “moldagem” do ouvinte ocorre de modo sutil, dissimulado. O ouvinte não apenas ignora que está sendo maniᆳpulado, como tem uma sensação de “realização individual” no momento em que escuta o hit. Ao identificar-se com a música e com o artista de sua prefeᆳrência ele desconhece, porém, que não está fazendo uma escolha: na verdade reflete um padrão que lhe foi imposto e que pensa ser natural:2 “Concentraᆳção e controle, em nossa cultura, escondem-se em sua própria manifestação. Não camuflados, eles provocariam resistências. Por isso precisa ser mantida a ilusão e, em certa medida, até a realidade de uma realização individual” (Idem, ibidem, p. 123). O conceito que dá nome a este processo é “pseudo-inᆳdividuação,” e denota “o envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livre-escolha ou do mercado-aberto” (Idem, ibidem, p. 123).
Mas, é na descrição das etapas de promoção do hit e na análise da idolatria dos fans ᆳvinte alienado. Segundo ele, a construção do hit se baseia na repetição: “O princípio básico (...) é o de que basta repetir algo até torná-lo reconhecível para que ele se torne aceito” (Idem, ibidem, p. 130). O processo se divide ᆳnhecimento é central: a repetição tem por função ativar o reconhecimento e a aceitação é apenas a conseqüência desse reconhecimento.
Embora o reconhecimento seja uma das funções básicas do saber humano, ele apenas dá conta daqueles elementos previamente conhecidos;
A manifestação extrema da identificação do ouvinte com seu ídolo é o jitterbug: “A comparação de homens a insetos [bugsᆳcimento de que os homens tenham sido privados de vontade autônoma” (Idem, ibidem, p. 144). Como se fossem insetos, gravitam cegos em torno da luz. O fan ᆳprio entusiasmo, pois “há algo de fictício em todo o entusiasmo quanto à música popular” (Idem, ibidemᆳço por parte do ouvinte de música popular para se conformar ao modelo ᆳma, poderia ser a chave de sua libertação: “Para ser transformado em um ᆳar a sua transformação em homem” (Idem, ibidem, p. 146).
ᆳpios conceituais e metodológicos cunhados especificamente para o estudo da música popular. A partir da análise formal da canção popular o autor ᆳseqüentemente, uma abordagem puramente musicológica não é capaz de explicar porque algumas canções fazem mais sucesso do que outras. Com essa afirmação ele se opõe às análises formalistas na linha de Adorno.
ᆳcesas, em fins dos anos 1970, o que mais lhe chamou atenção foi o fato de os profissionais da área estarem permanentemente à procura daquilo que fazia sentido para o público; essa busca, no entanto, não poderia basear-se apenas em critérios objetivos, como estatísticas ou pesquisas. “O sentido em questão deve ser procurado ‘mais no fundo’, nessas áreas que carregam ᆳnion, 1990, p. 186, tradução minha). Às categorias “sociopolíticas,” cuja natureza é objetiva, ele opõe as “sociosentimentais,” cuja definição escapa à linguagem oficial. Essas categorias “infralingüísticas” incluem palavras-chave, sons, imagens, atitudes, gestos e signos (Idem, ibidem, p. 186). Toda vez que a linguagem tenta intrometer-se e fixá-las em conceitos estáticos, ᆳno, Hennion defende que as pessoas envolvidas na produção do sucesso ᆳses significados, cuja origem está no “inconsciente coletivo” dos ouvintes; ᆳses significados e depois devolvê-los ao público.
A distribuição de atribuições na indústria cultural visa à sistematização do princípio mesmo da sua diversidade. O compositor solitário e o intérprete dão lugar a um modo de produção coletivo, um time de profissionais atuando em conjunto, cobrindo todos os aspectos da produção de uma canção popular. Para o autor, a troca de pontos de vista entre os membros da equipe tem como resultado “a fusão dos objetos musicais3 com as necessidades do público” (Idem, ibidem, p. 186).
Como o título do artigo de Hennion (“A Produção do Sucesso...”) sugere, o produtor desempenha um papel central nessa engrenagem. É sua a incumbência de introduzir o ouvido do público no estúdio de gravação (Idem, ibidem, p. 186), assim como é também ele quem deve cuidar da imagem do cantor. Hennion nega toda e qualquer possibilidade de redução desse fenômeno ao nível de uma “estrutura” imanente. Acima de todos os aspectos formais e de todas as dicotomias detectáveis está um processo de “negociação,” cujo objetivo final é permitir a “transferência” entre o cantor e o público.
Apesar da centralidade do papel do produtor, o sistema de trabalho da equipe consiste em estar constantemente passando do nível da criação musical ao da recepção, a fim de reavaliar coletivamente os resultados a cada etapa. O principal objetivo é a criação de um “objeto imaginário” – a canção – capaz de estimular e capturar a imaginação do ouvinte: “O trabalho no estúdio consiste em eliminar a complacência dos profissionais em relação ao seu estilo (...) a fim de subordinar o significado que uma canção pode ter para o compositor ao prazer que pode produzir no ouvinte” (Idem, ibidem, p. 203).
No estúdio, produção e consumo ocorrem simultaneamente e a reação provocada por uma canção indica o que está bom e o que deve ser modificado. Por trás desse investimento está uma aposta feita pelo produtor, que deverá confirmar-se ou não: “Não existe arte pela arte na música pop. Uma canção não tem realidade objetiva em si mesma. (...) Ela só existe para ser aceita pelo seu tempo como um sinal desses tempos” (Idem, ibidem, p. 204).
Num processo autofágico, o público fornece o significado e a substância das canções para depois consumí-las. Hennion critica os modelos fornecidos pela sociologia da cultura, que se baseiam num referencial cultural elitista e ideal, relegando o grande público à condição de massa passiva. O que se perde nesse tipo de análise é o “uso ativo” que as pessoas fazem da música popular, a “existência imaginária” que ela estimula. Neste momento percebemos quão distante está o público delineado por Hennion daquele apresentado por Adorno.
Hennion procura sublinhar que este acervo de códigos que escapa à análise tradicional revela aspectos da sociedade não comunicáveis por outras vias. Um mundo de fantasias frustradas, capazes de alimentar as esperanças dos menos favorecidos. “Produtores são os representantes de uma espécie de democracia imaginária estabelecida pela música popular; eles têm mais a função de sentir o pulso do público do que de manipulálo” (Idem, ibidem, p. 205).
Baseando-se em sua capacidade de projeção e identificação, o produtor musical chega a cumprir uma função social, ao organizar a juventude em grupos socialmente móveis. Ao “abrir as portas para os sonhos”, a música popular promove a identificação de classes até então separadas e fornece uma auto-imagem para aqueles que se acham socialmente deslocados. Para além da alienação que Adorno viu, há espaço para a subversão e, quem sabe, até mesmo para a revolução. Ao aproximar individualidades em torno de um mesmo interesse, de um mesmo objeto, abre-se caminho para a organização, para a tomada de consciência coletiva – ainda que essa consciência não passe do nível dos anseios compartilhados. Hennion observa que tais desejos não costumam ser confessados de outra forma e, em geral, são percebidos quando transformados em ação. Assim, a música popular serve também como “termômetro social”, apontando tendências que a sociedade deverá encontrar mais adiante.
O contexto sócio-cultural é determinante para a compreensão do significado desses ensaios. Imaginemos a cena: o marxista Adorno em seu exílio na babilônia do capitalismo; contrariado, ele escuta a música das Big Bands e do Tin Pan Alley, na rua, nos cafés, nas lojas de música; a Broadway é onipresente. Enquanto isso, sua Alemanha natal, berço da grande música, sofre a devastação do nazismo, do anti-semitismo, da intolerância política. A alegria compulsória e a superficialidade da cultura de massa americana o agridem, ele sabe que a riqueza deste país muito deve ao flagelo da guerra que devasta a Europa. Neste contexto, o que esperar senão uma musicologia ácida, pessimista?
Décadas mais tarde, o jovem Hennion acompanha, por três anos,
o trabalho das equipes de produção musical nos estúdios das gravadoras francesas. Ele está em seu próprio país, em tempos de paz, observando jovens profissionais produzirem os hits que sua geração escuta. Ele quer descobrir a mágica do sucesso, como é produzido, quem são os responsáveis. A internacionalização dos padrões de produção permite que sua reflexão se aplique não apenas ao contexto local, mas à atuação das grandes gravadoras mundo afora. Nessas condições, não é de estranhar que o tom do jovem pesquisador seja fundamentalmente otimista.
Nessas quatro décadas que separam um e outro ensaio grandes transformações ocorreram no universo da música e da musicologia. Se, por um lado, a profecia Adorniana se cumpriu e o dodecafonismo se tornou a corrente dominante no cenário da vanguarda musical, por outro, manifestações musicais consideradas “menores” passaram a ser objeto de interesse acadêmico. Paradigmas musicológicos foram relativizados sob a influência da etnomusicologia e de conceitos e práticas oriundas de outras áreas de conhecimento.
Mais do que uma verdade absoluta a respeito do valor da música popular, dos interesses a ela ligados, da passividade ou atividade do público, a comparação dos ensaios de Adorno e Hennion mostra que a musicologia, não é apenas ciência, é também arte, com todas as implicações que esta condição impõe. A par da razão, estão em jogo as paixões, as preferências, as referências, os modos de escuta do pesquisador.
1 Importante notar que a música que Adorno chama de popular em seu ensaio é a música das Big Bands e do Tin Pan Alley, termo que designa um conjunto de compositores e editores de música de Nova york na primeira metade do século XX. A música ali produzida era, em grande parte, direcionada a músicos amadores que compravam as partituras nas lojas de música. Podemos citar, dentre os compositores mais conhecidos, nomes como Scott Joplin, George e Ira Gershwin, Fats Waller, Irving Berlin, Jerome Kern, entre outros.
2 Na definição da liberdade ilusória do ouvinte ecoa a filosofia de Schopenhauer. Em O Mundo Como Vontade e Representação, Schopenhauer descobre que a aparente liberdade humana é uma ilusão, um reflexo da Vontade Cega que condiciona o Mundo.
“Objeto musical” é um conceito oriundo do Tratado dos Objetos Musicais (1966) de Pierre Schaeffer.
ADORNO, Theodor. “Sobre Música Popular” in ADORNO, T. Theodor Adorno. São Paulo: Ática, 1986.
HENNION, Antoine. “The Production of Success: An Antimusicology of the Pop Song” In: FRITH & GOODWIN (Eds.). On Record – Rock, Pop, and the Written Word. New york: Pantheon Books, 1990.
Guilherme Sauerbronn de Barros - Orientador no PPGMUS da UDESC, professor de piano e análise musical desta instituição. Como pianista, tem vasta experiência em música de câmera; como pesquisador, desenvolve projetos na área de análise musical, musicologia e performance.