DuAS CADênCIAS PARA A SOnAtA EM Ré MAIOR, PARA flAutA E CRAvO ObblIgAtO, Wq. 83, DE C. Ph. E. bACH

two cadences foR the d-majoR sonata, foR flute and haRpsichoRd obbligato, wq. 83, by c. ph. e. bach

Marcelo Fagerlande - UFRJ contato@marcelofagerlande.com.br

Resumo: O artigo mostra o processo de elaboração de duas cadências – para o primeiro e para o segundo movimento – da Sonata em Ré maior para flauta e cravo obbligato Wq. 83, de Carl Philipp Emanuel Bach. Duas obras serviram de orientação para a composição das cadências: o método Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen de J. J. Quantz, e o tratado Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen, 2ª parte (1762), do próprio

C. do ao assunto, enquanto na segunda preciosas informações a respeito desta prática são encontradas. Palavras-chave: C.Ph.E. Bach, 1714-1788; Cadências; Flauta e cravo; Ornamentação.

Abstract: The present paper deals with the elaboration process of two cadences – for the first and for the second movement – of the D-major Sonata for flute and obbligato harpsichord, Wq. 83, by Carl Philipp Emanuel Bach. Two works served as a basis for the composition of these two cadences:Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen se Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen, 2nd part (1762), by C. Ph. E. Bach himself. In the first work, published in 1752, a whole chapter is dedicated to the subject, while precious information about this practice is found in the second one. Keywords: C.Ph.E. Bach, 1714-1788; Cadences; Flute and harpsichord; Ornamentation.

Um dos assuntos mais instigantes para quem quer interpretar uma obra em estilo barroco ou galante é a ornamentação, mais especificamente tos, exemplos de diminuições e de cadências livres e descrições – contidos tuição desta prática quase perdida, habitualmente restrita nos nossos dias aos intérpretes que se dedicam à música anterior a 1800. O presente artigo meiro e/ou para o segundo movimento – da Sonata em Ré maior, Wq 83, para flauta e cravo obbligato de C. Ph. E. Bach. Em uma execução poderão ser usadas ambas as cadências ou poder-se-á escolher apenas uma delas, para o primeiro ou para o segundo movimento.

les o próprio compositor da Sonata Wq. 83, deixaram recomendações de como proceder para elaborar cadências. J. J. Quantz, em seu método “Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen” de 1752, dedica sas informações a respeito desta prática em seu tratado “Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen” tes autores traçaremos as linhas diretrizes para a elaboração de nossas cadências.

mente surpreender o ouvinte inesperadamente uma vez mais no fim da peça, e deixar uma especial impressão no seu coração”. O fator surpresa é freqüentemente mencionado pelo autor neste capítulo – zen, que trata das cadências – e deve ser uma característica da cadência. Ainda que Quantz considere a cadência um “mal necessário,” referindo-se às cadências exageradas e de mal gosto, sobretudo quando realizadas por cantores, sua falta é considerada um defeito ainda mais grave. Em seguida menciona que nunca foram prescritas regras para cadências, uma vez que devem soar como improvisação, não constituindo uma melodia formal. ração de cadências.

“Cadências precisam originar-se do principal sentimento da peça, e incluem uma curta repetição das mais agradáveis frases contidas nela.” (Quantz, 1752, p. 154). Esta recomendação, ainda do mesmo autor, ajuda mentos de dois motivos com fortes características. O primeiro, também o primeiro a aparecer na sonata, começa na parte do cravo:

Figura 1: C.Ph.E. Bach, Sonata Wq. 83, Allegro um poco, c. 1-9, parte do cravo

O segundo material usado na cadência é um fragmento do motivo iniciado pela flauta no c. 73, respondido pelo cravo no c. 74:

to, transposto. A escolha dos dois fragmentos deveu-se a várias razões: a) ambos são contrastantes – o primeiro mais enérgico e enfático, devido às notas repetidas; o segundo, retirado de um motivo bem mais expressivo, nos incisivo que o primeiro; aqui observamos que teria sido muito óbvio usar o início do segundo motivo no segundo fragmento. Assim, optou-se colhido está bem no início da peça enquanto o segundo no meio, ambos to, seguindo as recomendações deste autor, será agradável ouvir mais uma vez o primeiro motivo da peça e uma parte do motivo ”doce” do meio do movimento.

cas. A escolha do esquema harmônico das cadências poderia, portanto, se constituir num problema delicado, que foi solucionado a partir de dados te um capítulo, o de número 41, dedicado à livre fantasia. Neste trecho o mo de improvisação, apresentados sob a forma de baixos cifrados. De um destes exemplos foi retirado, com ligeiras alterações, o modelo harmônico sição do baixo original de sol para ré e com a realização do baixo cifrado (BACH, 1762, p. 330):

Figura 3: C.Ph.E. Bach, Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen, 2ª parte (1762), p. 330

co, a construção final consistiu basicamente em submeter o primeiro ao ção de vozes e uma fluência musical. Assim, na primeira cadência temos

o primeiro motivo do movimento iniciando-se na flauta, ao contrario do começo do Allegro un poco no arpejo. Desta maneira o ouvinte lembrará do primeiro motivo só que com a surpresa de ouvi-lo primeiro na flauta e com a variante do arpejo. ras, figuração muito presente no movimento. No final deste trecho, após a fermata, a cadência segue com um fragmento do segundo motivo. Daí em micolcheias, com alternância de flauta e cravo – tanto para a mão direita quanto esquerda -, bem como a escala característica de improvisação livre para unir a cadência aos dois últimos compassos do movimento, originais do autor:

Figura 4: Cadência para o Allegro un poco, que contém fragmentos de dois motivos escolhidos do movimento (c. 1 e 2; c. 79)

Na escolha do material para a cadência do segundo movimento meiro motivo do movimento, iniciado na parte da flauta:

Figura 5: C.Ph.E. Bach, Sonata Wq. 83, Largo, c. 1-8

passo 18:

Figura 6: C.Ph.E. Bach, Sonata Wq. 83, Largo, c. 18-21

Ainda no fim da cadência foi utilizado um fragmento bastante expressivo de uma figura que aparece várias vezes no movimento, em notas repetidas, como no compasso 62:

A escolha de fragmentos de motivos, ao invés da utilização integral, deveu-se simplesmente a uma recomendação de Quantz, que condena a repetição demasiada de intervalos ou figuras, o que poderia causar certa monotonia.

O modelo harmônico para a segunda cadência foi construído a partir do próprio motivo escolhido, com algumas mudanças de acordes, como por exemplo, a introdução de um arpejo a mais no quarto compasso (acorde de lá maior com sétima) e da pequena fermata no acorde de quarta e sexta, no meio da cadência. A segunda metade da cadência foi construída sobre um modelo harmônico semelhante ao da primeira, apresentado no método de C. Ph. E. Bach:

Figura 8: Modelo harmônico para a segunda cadência; os seis primeiros acordes derivam da harmonia do primeiro motivo escolhido. Após a fermata, o modelo é também do compositor: C.Ph.E. Bach, Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen, 2a parte (1762), ex. (e), p. 330

Uma vez que o tratamento dado às partes é diferente para ambas as cadências, o perigo de repetição e eventual monotonia não existe, caso ambas sejam usadas. Convém ainda lembrar que Quantz menciona a possibilidade da cadência ser dividida em duas partes.

A cadência para o segundo movimento inicia-se com um arpejo no cravo conduzindo ao motivo inicial do movimento (ver Figura 5). Em seguida fragmentos do mesmo motivo (ver figura 6) são usados até o acorde de sol menor (compasso 10 da cadência) onde entra a flauta novamente com uma pequena citação do motivo inicial. No final da cadência está o fragmento do motivo em notas repetidas (ver Figura 7) que fará a ligação com os dois últimos compassos, originais do compositor. Nesta cadência escolhemos material motívico e alguns arpejos, tanto na flauta quanto no cravo, que conferem um caráter improvisatório, como recomendado por Quantz (1752, p. 154) – “devem soar como improvisadas espontaneamente...”.

Figura 9: Cadência para o Largo, com fragmentos de motivos escolhidos do movimento

(c. 1; c. 18; c. 62)

Procuramos não apenas nos guiar pelas preciosas indicações de Quantz e de C.Ph.E. Bach, mas também por algum tipo de intuição e bom senso musical. Há ainda alguns aspectos nas cadências propostas que aparentemente estariam em conflito com o recomendado por Quantz, como, por exemplo, no que diz respeito à duração. Este autor sugere que cadências vocais e para sopros sejam curtas, em uma única respiração, enquanto para cordas podem durar o quanto quiserem. Mesmo que as cadências apresentadas não possam evidentemente ser realizadas em uma única respiração, ainda assim podem ser consideradas de curta duração, se constatarmos que o primeiro movimento tem 158 compassos e a cadência apenas

9. A utilização de duas cadências em uma mesma Sonata pode ficar a critério do intérprete. Quantz (1752, p. 153) sugere apenas “uma única cadência seria suficiente em uma peça”, porém aqui se refere claramente a uma peça vocal (ária) e neste caso, somando-se as reprises as cadências seriam em número de cinco, o que realmente seria um exagero. Uma vez que as cadências são bem diferentes entre si, como é o nosso caso, não se corre o risco de cansar o público, nem o intérprete, perigo apontado por Quantz. Tomamos a liberdade de expandir as cadências para ambos os instrumentos, a flauta e o cravo, uma vez que não se trata de sonata com baixo contínuo, mas sim com cravo obbligato, configurando-se uma textura a 3 partes de igual peso.

Não há como negar que incluir alguns compassos ao texto musical de um compositor da qualidade de C. Ph. E. Bach é uma atitude que requer certa coragem. Procuramos, entretanto, apenas reproduzir células do próprio compositor, apoiadas em uma base harmônica também dele, com um mínimo de interferência. Ao incluir uma cadência estamos em consonância com o espírito indicado por seu contemporâneo Quantz, que a descreve como “ornamento extemporâneo criado de acordo com o divertimento e prazer do executante numa parte concertante no fim de uma peça...” (1752,

p. 151). Assim, trazemos uma novidade à interpretação atual de uma conhecida obra do repertório para flauta e cravo. Se por acaso o resultado não estiver do agrado de alguns, recorremos a um outro trecho de Quantz que poderá nos desculpar e também encorajar outros a tentarem escrever cadências para esta ou outras obras (QUANTZ, 1752, p. 157): “...Fraquezas são também freqüentemente encontradas mesmo em cadências de músicos muito capazes...”

Referências:

BACH, Carl Philipp Emanuel. Sonata em Ré maior para flauta e cravo obbligato Wq.

83. Ed. G. Scheck e H. Ruf. Lörrach, Deutscher Ricordi Verlag, G.Ricordi & Co., 1954.

BACH, Carl Philipp Emanuel. Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen. Wiesbaden: Breitkopf & Härtel, 1762/1981.

QUANTZ, Johann Joachim. Versuch einer Anweisung die Flöte traversière zu spielen. Kassel: Bärenreiter Verlag, 1752/1997.

Recebido em 09/mai/2008. Aprovado em 28/jun/2008.

Marcelo Fagerlande -Graduado em cravo pela Staatliche Hochschule für Musik Stuttgart (1986), Doutor em Musicologia pela Uni-Rio (2002) e pós-doutor no Institut de recherche sur le patrimoine musical en France, Paris (IRPMF/CNRS) em 2004/2005. Professor da Escola de Música da UFRJ desde 1995, é responsável pelas classes de cravo (graduação e pós-graduação) e baixo contínuo. Dirigiu óperas barrocas, realizou concertos e gravou cds no Brasil e em outros países da Europa e das Américas do Sul e do Norte.