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Artigos Científicos -

Regular: Música em Geral

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Regular: Música em Geral

Revista Música Hodie, Goiânia - V.16, 209p., n.1, 2016

A experiência de ócio e sua dimensão criativa: um estudo de caso sobre a performance de Water music (2004) de Tan dun (1957)


Tatiana Vargas (Universidade do Minho, Braga, Portugal)

tatiana.vargas@ua.pt

Luís Bittencourt (Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal)

bittencourt.mail@gmail.com

José Clerton de Oliveira Martins (Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil)

jclertonmartins@gmail.com


Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a relação entre o conceito de experiência ócio e o investimento cria- tivo na performance da obra Water Music de Tan Dun. Trata-se de uma investigação qualitativa, do tipo exploratória, feita a partir de um estudo de caso sobre a performance do percussionista Luís Bittencourt nesta obra. Seu processo de estudo foi observado, descrito e analisado, através do conceito de experiência de ócio autotélico, e sua dimensão criativa, e o conceito de experiência estética. Conclusões sugerem relações entre seis categorias da experiência de ócio e características da obra musical e exemplos do investimento criativo do músico.

Palavras-chave: Experiência de ócio; Dimensão criativa; Performance musical; Water Music; Tan Dun.


Leisure experience and Its creative dimension: a case of study on the performance of Water Music (2004) by Tan Dun (1957)

Abstract: This article aims to analyze the relationship between the concept of the leisure experience and a musi- cian’s creative effort in the performance of Water Music by Tan Dun. This qualitative research, with an exploratory approach, was conducted with a case study based on the performance of Water Music by percussionist Luís Bitten- court. His study process was observed, described and analyzed through the concept of the autotelic leisure experi- ence, in its creative dimension, and the concept of aesthetic experience. The results suggest relationships among six categories of the leisure experience, characteristics of the musical work and examples of the musician’s creative effort.

Keywords: Leisure experience; Creative dimension; Music performance; Water Music; Tan Dun.


La experiencia de Ocio y su dimensión creativa: un estudio de caso en la obra Water Music (2004) de Tan Dun (1957)

Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar la relación entre el concepto de experiencia de ocio y la apues- ta creativa en la performance de la obra Water Music de Tan Dun. Se trata de una investigación cualitativa, de ti- po exploratória, realizada a partir de un estudio de caso sobre la performance del percusionista Luis Bittencourt. El proceso de estudio fue observado, descrito y analizado a través del concepto de experiencia de ocio autotéli- co y su dimensión creativa, y el concepto de la experiencia estética. Los resultados sugieren relaciones entre seis categorías de experiencia de ocio y las características de la obra musical, así como ejemplos del proceso creativo del músico.

Palabras clave: Experiencia de ocio; Dimensión creativa; Actuación musical; Water Music; Tan Dun.


A importância do ócio para o indivíduo contemporâneo está na capacidade de mo- tivação, de aprendizagem e de adquirir conhecimentos inovadores que facilitam o desen- volvimento completo da personalidade e colaboram para a formação de uma individua- lidade e vida social equilibrada e saudável (BRASILEIRO, FRANCILEUDO e MARTINS, 2011, p. 5).

A partir dessa concepção, este artigo tem como objetivo central refletir sobre as ex- periências vividas pelo músico com a música contemporânea através da relação entre o ócio humanista e seu investimento criativo na obra Water Music (2004) do compositor chinês Tan Dun (1957). Foi realizado um estudo de caso, a partir das experiências do músico Luís Bittencourt com a referida obra. Neste caso, o envolvimento de Bittencourt originou perfor- mances1 e a sua pesquisa de mestrado (BITTENCOURT, 2012).


Revista Música Hodie, Goiânia - V.16, 209p., n.1, 2016 Recebido em: 10/09/2015 - Aprovado em: 05/11/2015

O referencial teórico reflete a vivência do ócio, segundo a perspectiva humanista, através do conceito de ócio autotélico: aquele cujas vivências têm fim em si mesmas (CUENCA, 2000, p. 84-85). Nosso intuito foi pensar sobre as características da produção subjetiva do músico e as suas possibilidades de experiências de ócio que, segundo Cuenca (2000, p. 114) podem promover o desenvolvimento pessoal e as potencialidades criativas. Nesse sentido, abordamos especialmente a dimensão criativa que é uma das manifestações do ócio auto- télico referidas por Cuenca (2000, p. 84). A abordagem em torno da criatividade possibili- tou reflexões sobre o conceito de experiência de ócio estético, aqui refletida pelo estudo de Maria Luisa Arroyabe (2008), de experiência estética e criatividade em que recorremos às ideias de Manuel Cuenca (2000; 2006) e Mihaly Csikszentmihalyi (1998).

Este artigo desenvolveu-se através de um recorte sobre a experiência de ócio, em sua abordagem humanista, e de alguns alinhamentos sobre a atuação do músico no con- texto contemporâneo, seu autocondicionamento de tempo e ação e investimento criativo na condução das atividades musicais.


  1. O ócio na contemporaneidade e a perspectiva humanista


    Os estudos sobre ócio, lazer,2 trabalho e tempo livre são temas em discussão laten- te que evocam uma mudança de paradigma de uma sociedade que instiga o consumo, o excesso de informação e a supremacia das tecnologias da comunicação para uma socieda- de que prioriza o ser humano e a sua busca pelo desenvolvimento pessoal. A valorização das subjetividades individuais, das expressões de liberdade e de uma noção de constru- ção pessoal de tempo revela-se contundente no momento em que são mediatizadas doen- ças emocionais decorrentes dos fenômenos pós-modernos como a depressão e a síndrome do pânico.

    Para estudarmos as relações entre ócio e música é necessário, primeiramente, en- tender que, apesar da ideia do ócio ser estudada há muito tempo, é notável o difícil enten- dimento sobre o tema nas culturas contemporâneas. Segundo Martins, Pinheiro e Rhoden (2010, p. 2-3), após a revolução industrial, o ócio, juntamente com o surgimento do tem- po livre, foi uma conquista para as classes trabalhadoras regidas pelo capitalismo, sendo uma forma de tempo de recuperação física e mental. Confirma-se, então, a distinção entre o tempo de trabalho e o tempo de descanso. Sobre a característica de tempo, Martins, Bri- to e Souza (2010B), no estudo “Potencialidades do tempo livre para além do lazer”, obser- varam que a dinâmica da contemporaneidade obedece a um fluxo de aceleração, através do qual não se deve perder tempo com atividades não produtivas. Os indivíduos agem em nome de um status social, de uma satisfação ilusória regida pelo consumismo e pelos pra- zeres do corpo.

    A classificação dos diferentes tempos sociais fornece indícios sobre a forma de compreensão ou imagem atual sobre o conceito de ócio. Entretanto, esses indícios não são suficientes para definir o tempo específico em que uma experiência de ócio pode ser vivi- da. Conforme classificação sobre tempo social de Frederic Munné (1980), no livro “Psicoso- ciologia del tiempo libre: Un enfoque crítico”, a sensação de mais liberdade revela um tempo autocondiconado e a sensação de menos liberdade equivale a um tempo heterocondiciona- do. As classificações de tempos sociais são assim divididas e representadas pela Tabela 1 (MUNNÉ, 1980 apud Aquino e Martins, 2007, p. 482).

    Tabela 1: Classificação dos tempos sociais de Munné (1980).


    Tempo psico-biológico

    Tempo socioeconómico

    Tempo sociocultural

    Tempo livre

    Conduzido pelas necessidades psíquicas e biológicas como o tempo ocupado pelo sono, nu- trição, atividade sexual, entre outras atividades. Esse empo é condicionado endogenamento. É um tempo individual.

    É empregado para suprir as ne- cessidades econômicas funda- mentais como as atividades labo- rais, domésticas, os estudos. São demandas pessoais e coletivas, sento que esse tipo de tempo es- tá quase que inteiramente hetero- condicionado, somente sendo au- tocondicionado nas circunstâncias que visam à realização pessoal.

    Corresponde às ações que se re- ferem à sociabilidade dos indivi- duos. Refere-se aos compromis- sos resultantes dos sistemas de valores e pautas estabelecidos pela sociedade. É objeto de dese- jo social. Esta categoria de tempo pode ser jetero ou autocondicio- nada, podendo existir um equilí- brio entre os dois pólos.

    Refere-se às ações humanas realizadas semque ocorra uma necessidade externa. Neste ca- so, o sujeito atua com percep- ção de fazer uso desse tempo com tal liberdade e de manei- ra criativa, dependendo de sua consciência de valor sobre seu tempo.

    Fonte: Tabela criada pelos autores, tendo como base o artigo “Ócio, lazer e tempo livre na sociedade do consumo e do trabalho” (Aquino e Martins, 2007, p. 482).


    Tendo em conta essas divisões, a experiência de ócio poderia efetivamente existir no tempo livre. Contudo, a sensação de tempo livre percebida pelo indivíduo não significa, necessariamente, a reunião de condições para a vivência do ócio. Cuenca (2000) menciona que não se pode confundir tempo e experiência de ócio, pois o tempo em si mesmo não de- fine a ação humana. O autor refere que identificar a ocorrência do ócio no tempo livre, co- mo aconteceu em vários estudos sociológicos, realizados entre os anos 50 e 80, dificultou o entendimento sobre o quê significam essas experiências. É necessário compreender que as diferentes possibilidades de atividades realizadas durante o tempo livre não constituem, es- sencialmente, a experiência de ócio e sim são maneiras de tentar vivê-la. Sobre isso, Cuen- ca afirma que “a ação é uma referência que, junto com a percepção de quem a realiza, pode transformar-se ou não em vivência de ócio. Isso explica que os pensadores idealistas consi- derassem que a essência do ócio está no modo de ser, referindo-se a um modo de sentir pes- soal” (2000, p. 62-63, tradução nossa).3

    O exercício da experiência de ócio pode ser dificultado pela sociedade hipermoder- na, referida por Gilles Lipovetsky (2004) em “Tempos hipermodernos”, através de uma ideia que reduz o tempo apenas ao que estaria dentro ou fora do trabalho. Desse modo, o tempo ad- quire um teor heterocondicionado, ou seja, com menos liberdade. “A hipermodernidade pro- move a cultura do excesso em que aspectos como o consumismo e a aceleração4 geram pesso- as angustiadas e solitárias” (MARTINS, PINHEIRO e RHODEN, 2010, p. 4). Sobre a socieda- de de consumo, Zygmunt Bauman (apud PEDROZA, 2008, p. 487), em “Vida para Consumo” salienta a transformação dos consumidores em mercadoria em que os sujeitos não podem transmitir suas subjetividades sem antes se situarem como produto e agentes do consumo.

    Tendo como base essas problemáticas da sociedade contemporânea, a concepção proposta pelo ócio humanista retoma valores contrários ao movimento hipermoderno. O in- divíduo volta-se a si mesmo, reflete sobre a importância da qualidade de vida, do descanso, da diversão, da satisfação pessoal, ao invés de apenas seguir as tendências sociais.

    Segundo a visão do Instituto de Estudios de Ocio da Universidade de Deusto/Es- panha, um dos núcleos mais representativos dos estudos de ócio, a experiência de ócio é uma vivência gratuita e enriquecedora que sempre está contextualizada e se relaciona com os nossos valores e significados profundos. O autor ainda refere que a experiência de ócio tem um caráter emocional, é coerente com os valores e os modos de vida, opõe-se à vida de trabalho e rotinas, possui um tempo tridimensional (passado, presente e futuro) e pro- move aprendizagem. Ocorre em diferentes níveis de intensidade, não precisa ser justifica- da e sim desfrutada, promove conhecimento interdisciplinar e desenvolvimento humano (CUENCA, 2000).

    Segundo Cuenca (2000):


    O conceito de ócio faz-se realidade no momento que tem fim em si mesmo, quando proporciona uma sensação gratificante e é eleito libremente. Sua realização é dada através de cinco dimensões que se relacionam com diferentes estilos de vida, com di- versos entornos, ambientes e recursos. (p. 116)


    O enfoque principal da abordagem do ócio humanista é o “autotelismo”, que signi- fica a vivência de atividades que possuem fim em si mesmas, ou seja, que tenham uma fi- nalidade intrínseca. Falar de ócio como fim e meio é uma questão que suscita discussões, pois há uma visão tradicional de que o ócio seria uma recompensa às atividades laborais. Contudo, a visão atual de ócio não é justificada em comparação ao trabalho. Ócio e traba- lho são âmbitos vitais e diferentes da vida de uma pessoa, mas não são, necessariamente, dependentes um do outro. Trabalho é uma maneira de prover o sustento dentro do contex- to social. O ócio, em seu sentido mais puro, possui fim em si mesmo e promove a satisfação pessoal e o encontro consigo mesmo (CUENCA, 2000, p. 68).

    Para que o indivíduo tenha a possibilidade de desfrutar de uma experiência de ócio autotélico é preponderante a existência de três pilares: sensação de liberdade, sentido de gratificação e autotelismo. A partir desses pressupostos, o ócio autotélico pode ser diferen- ciado em torno de cinco dimensões que representam uma ferramenta para a compreensão e análise dos fenômenos decorrentes do ócio humanista. As dimensões referem-se ao recriar da vida e dos pensamentos, portanto, jamais se configuram como experiências superficiais (CUENCA, 2000, p. 96). Neste sentido, é possível refletir que as atividades que desejamos ou efetivamente participamos no nosso cotidiano são apenas meios para tentar atingir a experi- ência de ócio e não, necessariamente, são garantias de vivencias gratificantes, livres e com fim em si mesmas. Assim, de acordo com a perspectiva humanista, as cinco dimensões do ócio autotélico correspondem às variáveis lúdica, festiva, criativa, ambiental ou ecológica e solidária (CUENCA, 2006).


    1. A relação entre a dimensão criativa do ócio e a performance musical


      O investimento criativo está relacionado com a natureza da obra musical e com a produção subjetiva construída pelo músico em relação à obra. Por isso, interessa-nos fazer um recorte no sentido de compreender as possibilidades de experiências de ócio através da interpretação de Luís Bittencourt para a obra Water Music. Para além da teoria relaciona- da ao ócio, é importante compreendermos que a interpretação de uma obra musical envol- ve etapas que, geralmente, estão ocultas ao público durante o momento da performance. Guerchfeld (1996) afirma que:


      É necessário dar-se conta que interpretar uma obra musical através de um instru- mento é na verdade o resultado de um processo extremamente complexo, de nature- za interdisciplinar, que inclui múltiplas etapas e que, portanto, embute em si mesmo uma intensa e extensa atividade de pesquisa. A decodificação de um texto musical em todos os seus níveis e o preparo técnico para a execução abrangem a tomada de uma série de decisões que são o resultado de profunda elaboração intelectual. (p. 62)


      No entanto, Guerchfeld não deixa claro quais são estas “múltiplas etapas” inerentes à performance musical. Para o filósofo Luigi Pareyson (1989), a leitura de uma obra de arte envolve três estágios diferentes: decodificação, mediação e realização. Através da transpo-

      sição destes processos para o contexto da música observa-se que: na decodificação ocorre a relação da grafia musical com os conhecimentos teórico-musicais; na mediação, o conteúdo decifrado é avaliado e transformado e, por fim, a realização é o próprio ato de execução ou performance. É justamente durante a mediação que o músico/intérprete se centra em formu- lar pensamentos, reflexões, conexões, transformando e repensando o conteúdo da partitura concebido pelo compositor. Conforme Laboissiére (2002):


      Essas reflexões mergulham o intérprete no processo performático, como ser conscien- te, sensível, criativo, pensante, repertoriado num determinado contexto cultural e so- cial, afetando e sendo afetado pelo mundo que o circunda, alimentando a sua perfor- mance com sua própria maneira de ser. E, a despeito do atendimento ao gênero, estilo e forma da obra, ele injeta a sua recriação de sentidos que resultam do seu repertório cultural e musical, marcando uma singularidade que não permite estabelecer uma significação a priori. (p. 112)


      Face à sua natureza reflexiva, percebemos que a etapa de mediação, mencionada por Pareyson, relaciona-se intimamente com os fundamentos do ócio humanista. Sobretu- do, vemos que a mediação é um processo de reflexão correspondente ao que propõe a di- mensão criativa do ócio. Para compreendermos melhor a dimensão criativa do ócio recor- remos a Cuenca (2000):


      A dimensão criativa do ócio possui um caráter formativo, cultural, de desenvolvi- mento pessoal mediante à aprendizagem e formação. Tem uma finalidade em si mes- ma e há de ser eleita livremente. É um ócio que se diferencia dos demais pela sua na- tureza reflexiva. A experiência, eleita livremente, que surge através do contato com as diferentes técnicas criativas, produz um sentimento gratificante de auto-realização devido ao desenvolvimento pessoal gerado pela aprendizagem (p. 114).


      Mesmo que se opte por manter o foco em uma das dimensões do ócio autotélico, é importante deixar claro, através de Cuenca (2006, p. 17), que as cinco dimensões não são âmbitos excludentes. Pelo contrário, atuam de forma complementar, podendo-se encontrar várias dimensões em uma mesma atividade ou através da experiência de um grupo ou pes- soa. Juntas, as dimensões auxiliam na análise, compreensão e planificação da realidade global do fenômeno subjetivo.

      Podemos resumir que as experiências de ócio autotélico podem ocorrer através de atividades variadas e de formas diferentes para cada indivíduo. Essas experiências consti- tuem projetos pessoais de descoberta ou reencontro com os sentidos que nos são mais valo- rizados e, portanto, não necessitam ser justificadas. Por consequência, acreditamos que as gratificações produzidas por essas vivências podem contribuir para o desenvolvimento do nosso repertório cultural individual. Pela visão de Martins e Ponte (2010, p. 1), o ócio carac- teriza-se como “o âmbito para o recriar e também se refere àquelas vivências pessoalmen- te satisfatórias e transformadoras oriundas do exercício da autonomia e do protagonismo”. No contexto dessas experiências satisfatórias, o investimento criativo constitui um momen- to de desenvolvimento pessoal do indivíduo e está entre as características da experiência de ócio mencionadas por Martins, Brito e Souza (2010A):


      As experiências de ócio, muitas vezes, significam autodescobrimento, pois encon- tram prazer em vivências que, todavia, não haviam sido experimentadas, talvez por falta de estímulo e de tempo. Em outras situações, o ócio pode ser visto como poten- cial para o desenvolvimento dos talentos humanos que antes poderiam estar ofusca- dos. Esses talentos não se referem às competências exigidas e valorizadas no mercado

      laboral e sim às intrínsecas e naturais, das quais cada sujeito necessita potencializar e desenvolver. (p. 112)


      Ao pensar na atividade do músico, percebemos sua condição dicotômica referente à música como atividade laboral e como expressão do ser e sentir. Dentre as suas diversas pos- sibilidades de experiências, o músico alimenta um envolvimento pessoal e intrínseco com a atividade em exercício. Isso pode ocorrer mesmo que ele esteja a exercer funções de trabalho. Visto que o artista parece produzir seu trabalho ao mesmo tempo em que expres-

      sa suas sensibilidades, ele pode apresentar dificuldades em desvincular suas produções. Podemos apreender daí que o músico tem possibilidades de viver experiências fluidas atra- vés de um tempo psicológico. Também podemos pensar sobre a relação entre a vivência do ócio autotélico e as experiências ótimas. Cuenca (2000, p. 94), ao referir o estudo de Mihaly Csikszentmihalyi sobre as experiências ótimas, afirma que a relação delas com a vivência do ócio está na possibilidade dessas experiências atuarem em diferentes âmbitos e dimen- sões. Para que ocorra uma experiência ótima são necessários: equilíbrio entre sensação de desafio e habilidades (sentir liberdade e capacidade para realizar determinada ação), satisfa- ção pela vivência da atividade, metas claras, alto nível de motivação, noção distorcida sobre o tempo e retorno (feedback) imediato. O ócio autotélico, como gerador de experiências gra- tificantes, livres e de finalidades intrínsecas é também responsável por experiências satis- fatórias reafirmadoras do self (CUENCA, 2000, p. 95). Podemos inferir que, junto às experi- ências ótimas, ligadas ao desempenho e organização do músico, podem coexistir experiên- cias de ócio potencializadoras de aspectos mais subjetivos e, portanto, menos estratégicos. Ou seja, há experiências que fogem ao controle de uma meta clara ou não representam desa- fios pré-determinados pelo indivíduo, por exemplo, e por isso promovem sensações intrín- secas, fluidas, de extrema subjetividade e livre atuação da criatividade.

      Para analisar as características das possíveis vivências de ócio em nosso estudo de caso, destacamos as seguintes constatações sobre o contato do músico com a obra Water Music: a obra foi escolhida livremente para integrar o repertório do músico; consistiu em produção subjetiva em que o músico teve possibilidades de criação ou recriação; ainda pro- moveu apreensão de conhecimento, partindo de um pressuposto de interesse pessoal.


    2. A potencialidade criativa e as experiências subjetivas


      A dimensão criativa do ócio autotélico caracteriza-se essencialmente pelo exercício da reflexão, conscientização e autorealização em relação às ações que envolvem aprendiza- gem e formação (CUENCA, 2000, p. 114). Os aspectos referentes à aprendizagem e à forma- ção são especialmente importantes na reflexão do nosso estudo de caso sobre o músico e seu investimento criativo na performance da música contemporânea. O estado de liberda- de, inerente ao ócio autotélico, somado às sensações de consciência, reflexão e autorealiza- ção, próprias da dimensão criativa, são pontos que, segundo Cuenca (Ibid.), possibilitam ao indivíduo colocar em prática as suas ideias de maneira mais aprimorada. O ócio entendido dessa forma tem origem na cultura clássica e representa amor, sabedoria, diversão e ânimo, aspectos fundamentais para o processo criativo.

      A experiência de ócio possui sentidos convergentes à ideia da experiência estética. Pela visão de Arroyabe (2006, p. 42), a experiência estética revela um conjunto de atitudes que se distanciam das necessidades e desejos da vida cotidiana e proporciona novos olha- res e respostas sobre a vida. Os estudos teóricos em torno da experiência estética falam em

      sentidos de contemplação através de uma atitude passiva e estática. Já os estudos empíricos negam essas características e argumentam que a visão estética requer um esforço dinâmico de construção de relações, identificação de sistemas simbólicos e interpretação de signifi- cados. A principal relação entre o pensamento estético e os estudos de ócio deve-se à ideia de experiência.

      Segundo Arroyabe (2006):


      A experiência de ócio é um pilar chave nas diferentes ramificações do estudo do ócio humanista relacionado com os valores da pessoa e seu desenvolvimento integral. Em termos de reflexão estética a experiência é também um núcleo fundamental: a expe- riência estética é um ponto de partida para muitos pensadores. (p. 42)


      A autora acrescenta que a atitude estética possui diferentes níveis de atuação e não é propensa à imposição de limites devido à sua natureza subjetiva e reflexiva, assim como também se configura a experiência de ócio (ibid.). A atitude com a qual o indivíduo reage diante de um efeito de natureza estética é um dos princípos que marcam a ideia de experi- ência estética de ócio (ARROAYABE, 2008). Segundo a autora, a experiência de ócio estético inicia com a admiração perante um objeto, o que decorre através de uma dimensão sensível. A partir desta manifestação, atribui-se sentidos menos pragmáticos que estimulam a subje- tividade e a busca por novos processos desta mesma natureza. Neste momento, entra em ce- na a função da atitude individual como suporte de apreensão do sentido estético.

      Sobre a experiência de ócio estético Arroyabe (2008) refere que:


      As experiências de ócio estético de maior riqueza são fenômenos que proporcionam emoção, desfrute, gozo e conhecimento. Vinculam-se com a dimensão expressiva, criadora ou recriadora do ser humano. Não podemos restringí-las a um só âmbito, porque dependem da intencionalidade da pessoa que as vivencia e de sua interação com o objeto a que tem contato. Podem ocorrer através da contemplação da natureza e, sobre tudo, por meio da criação e recepção da arte. (p. 124)


      A partir dessas concepções teóricas, refletimos que a experiência estética seria um dos suportes de Luís Bittencourt para o desenvolvimento de suas atividades criativas e das suas experiências subjetivas vividas através da dimensão criativa do ócio. As consequên- cias podem ser sentidas não só na performance musical, mas também como parte do seu desenvolvimento pessoal que reflete em sua produção artística.

      Cuenca destaca o filósofo alemão Joseph Pieper como defensor da dimensão criati- va do ócio através da ideia de que, de modo geral, as pessoas têm procurado especializar-se em seus campos de conhecimento e profissões e, dentro desse processo, acabam por perder uma noção mais ampla da vida e de seus sentidos fundamentais (CUENCA, 2000, p. 114). Se refletirmos sobre o campo de atuação e conhecimento do músico, através da sua experiência com a música contemporânea, e sobre as formas de aplicação do rigor técnico e científico no desenvolvimento de suas atividades, observamos um ponto crítico que pode, de certa ma- neira, desqualificar a subjetividade e fluxo de criatividade. Conforme afirma Santos (2007),


      O rigor científico, porque fundado no rigor matemático, é um rigor que quantifica e que, ao quantificar, desqualifica um rigor que, ao objetivar os fenómenos, os objectu- aliza e os degrada, que, ao caracterizar os fenómenos, os caricaturiza. É, em suma e finalmente, numa forma de rigor que, ao afirmar a personalidade do cientista, destrói a personalidade da natureza. Nestes termos, o conhecimento ganha em rigor o que perde em riqueza e a retumbância dos êxitos da intervenção tecnológica esconde os limites da nossa compreensão do mundo e reprime a pergunta pelo valor humano do afã científico assim concebido. (p. 33)

      Desse modo, é fundamental pensar na ideia de recuperação dos sentidos subjetivos e pessoais, especialmente no que concerne à criatividade do músico. Dentro do contexto da manifestação do ócio, a dimensão criativa faz-se realidade através de duas vertentes, segun- do Cuenca (2000, p. 116): o “criar” e o “recriar”. A criação promove o prazer de se inventar algo ou simplesmente uma sensação gratificante típica da criatividade. Stenberg e Lubart (apud, CUENCA, 2000, p. 116) defendem que todos os seres humanos têm potencialidades criativas, no entanto, nem todos são realmente criativos. Csikszentmihalyi (1998, p. 17) pon- tua que a criatividade é o processo no qual um domínio simbólico é modificado. Para tanto, é necessario um esforço para que se gerem essas novas ideias, novas músicas, novas máqui- nas. É preciso esforço para mudar tradições.


      As pessoas criativas não precisam ter um único objetivo, serem especializadas ou egoístas. De fato, elas parecem ser o oposto disso. Gostam de fazer conecções com áreas adjacentes do conhecimento. Tendem a ser carinhosas e sensíveis. No entanto, as exigências de seu papel, inevitavelmente, empurram-nas para a especialização e o egoísmo. (CSIKSZENTMIHALYI, 1998, p. 19)


      Com o intuito de estimular o desenvolvimento da criatividade, destacamos a segun- da vertente da criatividade: o recriar. Ele relaciona-se ao fato dos produtos e das experiên- cias culturais precisarem ser reconstruídas a partir do exercício de imaginação construído originalmente pelo seu criador. “É necessário refazer a experiência básica e descobrir a in- tuição fundamental que a experiência vislumbrou através do espírito do criador. Do diálogo produzido entre as pessoas e as obras, surge um novo diálogo e um campo de iluminação” (CUENCA, 2000, p. 118).

      A partir da análise do nosso estudo de caso, percebemos que a construção da per- formance da obra Water Music promove a interação entre compositor e intérprete de for- ma que o contributo criativo do intérprete tem tanta influência no caráter da performance quanto a própria partitura. Sobre o processo de interpretação Rajagopalan (2003) refere que:


      Trata-se da ideia de que a interpretação é um processo de ampliação, de alargamento do significado original, para cuja apreensão tal e qual seria reservado o termo “com- preensão”. Ou seja, nessa abordagem, a interpretação sucede a compreensão no senti- do de que a primeira se dá a partir do produto da segunda. Desse modo, a interpreta- ção acaba sendo uma atividade em que ao “significado original” são acrescidos novos matizes de significação. (p. 64)


      Esta definição de interpretação pode ser percebida como uma imersão reflexiva de um indivíduo consciente, pensante, sensível, criativo, portador de repertório cultural e so- cial, que altera e é alterado pelo mundo que o cerca. Na medida em que tais reflexões não são indiferentes às circunstâncias que o constituem (tempo, formação, ideologia, psicologia, momento histórico, inconsciente, repertório estrutural, etc.), percebemos o performer como um recriador (LABOISSIÈRE, 2002, p. 110-111). Nesse contexto, observamos o encontro do músico consigo mesmo e a manifestação das suas subjetividades e do seu potencial criati- vo, em que o intérprete transcende a função de mero executante e assume, de certo modo, a coautoria da obra, uma vez que esta é recriada sob sua perspectiva interpretativa.


    3. O investimento criativo em Water Music (2004)


      Water Music é originalmente escrita para solo ou quarteto de percussão e sua dura- ção é de aproximadamente 20 minutos. Nessa obra, o compositor explora sonoridades inco-

      muns através de diversos instrumentos e objetos que são colocados em contato com a água, além de utilizar o próprio líquido como um genuíno instrumento de percussão. A água é um objeto de constante exploração nas obras do compositor. Dun descreve a experiência de ouvir os sons do primeiro exame de ultrassom durante a gravidez de sua esposa: “De repen- te eu ouvi um som de água maravilhoso, e no momento percebi que esse é o primeiro som que os seres humanos ouvem” (DUN, s/d, s/p).5

      Water Music também traz consigo a ideia criada pelo compositor de “música para ser ouvida de maneira visual e observada de maneira sonora” 6 (DUN apud BITTENCOURT, 2012, p. 86-87) através da inclusão de elementos que geralmente possuem um valor secun- dário, ou mesmo inexistente na criação musical tradicional, tais como o espaço, a visuali- dade, a performance e a plasticidade. Sobre isso, Bittencourt (2012) pontua: “além do mate- rial musical, são também encontradas na partitura instruções de performance relacionadas a componentes visuais como luz, cor, espaço e até orientações para gestos e movimentos do percussionista” (Ibid.).



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      Figura 1: Performance de Water Music por Luís Bittencourt.


      O interesse na performance de Water Music surgiu a partir de razões de natureza pessoal de Luís Bittencourt. A obra possui características bastante peculiares, as quais se destacam o uso da água como instrumento musical e a diversidade de sons que podem ser obtidos através do uso deste elemento como fonte sonora, entre outras. Estas características, por sua vez, despertaram a curiosidade e o interesse de Bittencourt para a aprendizagem e a performance da obra. Water Music incitou a procura por outras obras do gênero e acabou por se tornar também o tema de sua dissertação de mestrado, uma vez que se constatou a escassez de informações sobre este tipo de repertório.

      A obra é notável por dois aspectos que consideramos essenciais para este artigo: a utilização de fontes sonoras incomuns (água, copos, cabaças, entre outros) e a liberdade ofe- recida ao intérprete para recriar o conteúdo da partitura. A utilização de um objeto do coti- diano como um instrumento musical convencional traz consigo novas perspectivas que es- timulam o músico a explorar novas possibilidades deste novo elemento. “A ideia de o músi- co percutir água, pensar nesse elemento como um instrumento musical e desprover-se dos

      seus significados e utilidades cotidianas, incita-o a novas explorações sobre timbre, técni- ca instrumental, interpretação e performance” (Bittencourt, 2012, p. 82). Estas possibilida- des, por sua vez, geram questionamentos que poderão não ser respondidos apenas através da prática do músico, mas sobretudo, através do pensamento criativo e subjetivo. Sobre isto, Ostrower (1977) afirma o seguinte:


      Através das formas próprias de uma matéria7, de ordenações específicas a ela, esta- mos nos movendo no contexto de uma linguagem. Nessas ordenações a existência dessa matéria é percebida num sentido novo, como realizações de potencialidades latentes. Tratam-se de potencialidades da matéria bem como potencialidades nossas, bem na forma a ser dada configura-se todo um relacionamento nosso com os meios e connosco mesmo. Por tudo isso, o imaginar – esse experimentar imaginativamente com formas e meios – corresponde a um traduzir na mente certas disposições que es- tabeleçam uma ordem maior da matéria, e ordem interior nossa. (p. 33-34)


      Assim, compreendemos que o uso da água como instrumento musical é recebido pelo músico como uma nova forma de expressão que traz consigo várias possibilidades e também limitações, de modo que o pensamento criativo e subjetivo desempenham um pa- pel fundamental para a exploração e superação das mesmas. Nesse sentido, Ostrower (1977,

      p. 32) emprega a expressão “imaginação criativa” quando se refere a “um pensar específico sobre um fazer concreto”.

      São utilizados para produzir som em Water Music, além da água, diversos objetos tais como molas, copos, escoador de água, garrafas, cabaças, tubos cilíndricos, entre outros. A obra também emprega alguns itens desenhados pelo compositor exclusivamente para a sua performance, não sendo possível encontrá-los com facilidade. Face a esta dificuldade, é disponibilizado, nas páginas iniciais da partitura, o contato de uma empresa que oferece a possibilidade de alugar o material completo necessário para a sua performance. Em nosso estudo de caso, optou-se por não utilizar o serviço de aluguel do material. Isso estimulou um extenso trabalho de pesquisa, experimentações e adaptações para a obtenção dos ins- trumentos e acessórios requeridos, que se iniciou muito antes da aprendizagem da música.

      Outro aspecto de interesse observado em Water Music é a liberdade oferecida ao músico para recriar a estrutura da obra. Apesar de ser originalmente escrita para quatro percussionistas, a obra também pode ser executada apenas por um único percussionista (solo). Além disso, uma instrução encontrada na partitura estabelece que em uma perfor- mance solo o músico é livre para interpretar quaisquer partes, em qualquer ordem, ao seu critério. Assim, o solista poderá escolher um dos quatro papéis a desempenhar (percussio- nista 2 ou percussionista 4, por exemplo) e também trechos da obra que deseja interpretar e em qualquer ordem.

      Frente ao desafio da performance solo, de uma obra escrita originalmente para qua- tro músicos, a enorme flexibilidade de execução, oferecida pelo compositor, incita o músi- co a questionamentos antes mesmo do estudo da partitura: qual papel devo executar? Devo executar apenas um único papel ou alternar entre mais de um? É possível executar papéis simultâneos? Qual será a estrutura que devo adoptar? Devo executar todas as secções da pe- ça? Devo excluir alguma secção? É possível executar, na versão solo, todas as secções? Co- mo criar uma estrutura, que permaneça coerente com as ideias concebidas pelo compositor? Mesmo que eu opte pela execução de um único papel, como manter a qualidade do conteú- do musical apresentado nos trechos em que os quatro papéis atuam simultaneamente?

      Acreditamos que a liberdade oferecida ao músico, ao estruturar a obra ao seu crité- rio, tem consequências positivas sobre o resultado musical final da performance. Sob nosso

      ponto de vista, tal liberdade constitui um convite ao intérprete para recriar a obra de forma autônoma. Sobre isto, Cossin (apud Bittencourt, 2012) afirma que:


      Eu acho que tal liberdade ajuda porque ele (o compositor) está solicitando o intérprete a compor e arranjar a música. Eu penso que isso ajuda a trazer sua criatividade para a performance, por causa da liberdade. E você tem que fazer seu próprio trabalho. Não é apenas uma questão de ler a partitura, aprender as notas e tocá-la. É mais uma ques- tão de pensar um longo tempo sobre aquilo, sobre o que você irá fazer e então criar a obra[...] É como um convite, e é isso que eu gosto, como nas Composed Improvisations de John Cage. Você pode apenas improvisar, ou você pode colocar todo o seu trabalho em imaginar [...] quando você toca, uma vez que você colocou todo um investimento em preparar a estrutura, você toca de forma muito diferente do que se você apenas improvisar livremente sobre alguns elementos da partitura, entende? Eu penso que é como um investimento [...] Você investe nisso, um investimento criativo, e então você irá abordar a música de forma diferente. (p. 94)


      Assim, observamos que a criatividade do intérprete, em nosso estudo de caso, es- tá relacionada com todas as etapas inerentes ao processo de aprendizagem e performance da obra Water Music, desde a preparação e confecção de alguns dos instrumentos, passan- do pela estruturação das suas secções até a execução e experimentação sonora com a água. Deve ser observado que usamos a palavra “criatividade” aqui não no sentido geralmente atribuído em outras áreas da performance musical como o jazz ou a livre improvisação, mas sim no sentido do músico conceber ideias e soluções acerca do material oferecido pelo com- positor para, assim, recriar a obra. Compreende-se, sob nosso ponto de vista, que o intérpre- te de Water Music não pode se isentar da responsabilidade de criar, pois o resultado final do que será apresentado depende, ainda que parcialmente, da sua capacidade de envolvimento criativo com a música.

      Acreditamos que a performance de Water Music requer um verdadeiro envolvimen- to do intérprete com a obra de modo que o resultado final apresentado ao público ouvinte é construído através de uma profunda interação entre os papéis do intérprete e do composi- tor. Assim, dadas as variadas dificuldades inerentes à sua performance – confecção e obten- ção de instrumentos, aprendizagem de novas técnicas instrumentais, planejamento acerca da forma da obra, construção de elementos interpretativos, criação de soluções para execu- ção de trechos complexos, desenvolvimento de um repertório pessoal nos instrumentos re- queridos, entre outros – ratificamos que o intérprete deve se encarregar não apenas da tarefa de executar, mas, sobretudo, da incumbência de criar – o que sugere relações com as possi- bilidades de experiências de ócio que buscamos estabelecer neste artigo.


    4. Da performance à experiência de ócio: uma análise interpretativa de Water Music


Compreendemos que os processos de aprendizagem, execução e performance mu- sical da obra Water Music possuem características que revelam sentidos para as reflexões em torno da dimensão criativa de ócio no contexto da perspectiva humanista. Os sentidos de gratificação, autotelismo e liberdade de ação são características comuns a todas as di- mensões do ócio. A diferença da componente criativa está no caráter consciente, global, re- flexivo, de aprimoramento e encontro, referentes ao processo de formação e aprendizagem, aspectos inerentes à dimensão criativa do ócio (CUENCA, 2000).

Nossa análise inicia pela ideia da exploração de sonoridades invulgares propostas por pelo compositor Tan Dun. O músico confronta-se com novos objetos, instrumentos e

com uma fonte sonora específica e incomum a um contexto musical: a água. O músico ini- cia uma busca por formas de produzir sons através do seu conhecimento musical prévio. Nesse caso, a precisão da técnica percussiva não se mostra suficiente. A sensibilidade musi- cal, o envolvimento de tempo e pré-disposição de criar formas de executar o “instrumento” são aspectos fundamentais para a construção da performance. Também, a decisão do intér- prete em compor a estrutura da música configura a assinatura do músico junto ao composi- tor original. Para essas características, a sensação de autonomia e autocondicionamento de tempo são cruciais, indicando um forte protagonismo do intérprete – categorias fundamen- tais da experiência de ócio autotélico.

Uma característica peculiar desta obra é a integração da música com elementos cê- nicos e visuais como gestos, espacialização sonora, cor e o uso obrigatório de iluminação específica. Essa aproximação com componentes oriundos de outras formas artísticas posi- ciona o músico como um artista dinâmico que não se detém à sua especificidade de conhe- cimento (a música) e sim elabora sentidos e potencializa suas experiências estéticas. Essa amplitude do olhar, preconizada pelo compositor da obra, pode diferenciar as performances musicais através de aspectos como: gestos, design de luz, interpretação e comunicação da obra (em um sentido amplo: da produção de sentidos do compositor e do intérprete, à exe- cução da obra e recepção do público espectador). As diferentes experiências estéticas vivi- das pelo intérprete (sem explorar os efeitos diversos nos espectadores) impede o exercício de delimitações de conhecimentos e experiências no âmbito musical. O que nos faz lembrar da quebra de paradigma do rigor científico e de conhecimento, anteriormente mencionada por Santos (2007, p. 33), e do princípio de liberdade comum à experiência estética e à expe- riência de ócio.

O desenvolvimento das habilidades criativas do músico é marcante nesta obra, já que, neste caso em especial, o intérprete escolheu customizar alguns objetos e materiais re- queridos pelo compositor. Isso constituiu um esforço de criar e recriar ao invés de adquirir produtos finais, optando-se por autocondicionar o tempo e o investimento criativo, propo- sições fundamentais da dimensão criativa do ócio autotélico.

O contato com a obra Water Music pode promover uma experiência de contempla- ção entre o músico e a água em suas diversas possibilidades. A água como elemento natu- ral e essencial à sociedade remete à origem da vida, como demonstrou Dun ao se referir aos sons aquáticos gerados pela gravidez de sua esposa. A partir do envolvimento com esta obra, o percussionista Luís Bittencourt demonstrou que a água passou a ser um objeto de contemplação em seu cotidiano. O encantamento das pessoas com paisagens, fotografias e outras obras que trazem a água como tema, ou até mesmo a sensação de tranquilidade sim- bolizada por sons de fontes de água, são observações apontadas durante seu processo de construção da dissertação de mestrado e criação da sua performance musical. Esse estado de contemplação, intermediado pela água e suas possibilidades estéticas do cotidiano, com- põe um aspecto primordial da dimensão criativa de ócio e da experiência estética do ócio mencionadas, respectivamente, por Cuenca (2000) e Arroaybe (2008).

Por fim, as observações e análises realizadas, através deste estudo de caso, demons- tram que o uso da água como fonte sonora, na obra de Dun, origina novas formas de expres- são do músico enquanto artista, pois instiga a imaginação criativa, as experiências estéticas bem como outros tipos de experiências subjetivas. Portanto, podemos afirmar que a obra musical analisada atua a um nível de sentidos subjetivos para o intérprete, reunindo ou per- passando condições possíveis de vivências de ócio.

No Quadro 1 abaixo, foram sintetizadas categorias que relacionam a experiência de ócio e o investimento criativo do intérprete através do contato com a obra Water Music.

Quadro 1: Obra, criatividade e ócio.


Catacterística da obra

Investimento criativo do intérprete

Categoria da experiência ócio autotélico

Contato com objetos, intrumentos e fonte sonora invulgares.

Produzir novos sons e novas formar de exe- cutar a obra.

1. Pontencialidade criativa.

Flexibilidade da estrutura da música.

Composição da estrutura de execução (for- ma e tempo).

2. Autocondicionamento de tempo, poten- cialidade criativa, protagonismo do indiví- duo.

Reflexão com elementos visuais e cénicos.

Não se limitar ao âmbito da música e sim mantes intersecção com outras modalida- des artísticas.

3. Olhar subjetivo e amplo da atividade, li- berdade de ação e potencialidades para ex- periências.

Liberdade para adaptar, criar e recriar obje- tos e instrumentos.

Opção do músico de recriar através da cus- tomização de materiais.

4. Recriação, criação e autonomia.

Envolvimento como uma fonte sonora invul- gar que se constitui um elemento natual do cotidiano.

Visão de água em suas diferentes possibili- dades estéticas.

5. Sentido de contemplação e reflexão so- bre envolvimento/encantamento das pesso- as com água.

Água como fonte sonora percussiva.

Novas formas de expressão da performan- ce musical.

6. Aprendizagem e reflexão.


Reflexões finais


Nossa análise sobre este estudo de caso construiu-se em torno da compilação de algumas, entre as diversas, especificidades do contato do músico com a obra Water Music. Nosso quadro teórico, realizado através da visão do ócio humanista, demonstrou que as di- ferentes possibilidades de investimento criativo, propostas pela obra e desenvolvidas pelo músico, vão ao encontro de categorias da experiência de ócio. A obra musical em questão, em nosso estudo exploratório, constituiu um objeto rico para análises sobre a dimensão criativa do ócio e suas concepções sobre o “criar” e o “recriar” (CUENCA, 2000, p. 116).

A música contemporânea, através da abordagem do compositor Tan Dun, demons- tra um desejo de flexibilizar formas e concepções musicais, o que propicia a elaboração de uma performance criativa e mais integrada com os valores subjetivos do intérprete. Ou seja, ao propor uma certa coautoria, o compositor não apenas concede mais liberdade à performance, mas também exige do intérprete a reflexão constante, o que incita a busca por soluções criativas que irão definir o caráter de sua interpretação. Nesse sentido, obser- vamos a importância de serem realizados estudos em que as experiências subjetivas, so- bretudo criativas, desempenham um papel primordial na construção da performance mu- sical. Assim, há um campo a ser explorado que destaca o papel formativo do ócio como elemento estimulante à sensibilidade humana, o que é inerente ao denvolvimento integral do músico.

Portanto, fica-nos o pequeno contributo a uma possível mudança de perspectiva re- ferente à valorização da subjetividade pelo indivíduo, em detrimento à tendência linear do consumismo, aceleração e liquidez abordada pelas culturas contemporâneas. Supervalori- zar as ideias da globalização e enfraquecer o olhar subjetivo sobre a vida pode deixar de agregar sentidos verdadeiros à busca pela qualidade de vida e pela sensação de liberdade. Protagonizar sua própria vida é ter a opção de viver suas escolhas, desenvolver suas habili- dades criativas e refletir, de forma global, sobre seus processos subjetivos.


Notas


1 Excertos da performance de Luís Bittencourt na obra Water Music, de Tan Dun, podem ser visualizados em http://www.luisbittencourt.com/media/.

2 Lazer, neste contexto, refere-se às atividades que potencializam experiências de ócio. A palavra lazer é utiliza- da na língua portuguesa e pode ser traduzida para o inglês como leisure. Em espanhol ou castelhano, a palavra lazer não existe, daí que pode ser substituída pela expressão “actividad de ocio” como forma de diferenciar da experiência de ócio.

3 Todas as traduções deste artigo foram realizadas pelos autores a partir da língua estrangeira original.

4 “O processo de aceleração provocou mudanças na sociedade, permitindo o deslocamento de um ritmo intergera- cional, nas sociedades pré-modernas, para um ritmo geracional, na modernidade clássica e, atingindo, por con- seguinte, um ritmo intrageracional nas sociedades pós-modernas” (MARTINS e PONTE, 2010, p. 85). Sobre o efeito de aceleração nas culturas contemporâneas, consultar BERIAIN, Josetxo. Aceleración y tirania del presen- te: la metamorfosis en las estructuras temporales de la modernidad. Xochimilco: Anthropos, 1999. 222 p.

5 “Suddenly I heard this beautiful water sound and I realized: this is the sound all human beings hear first”. Dis- ponível em: http://www.musicsalesclassical.com/composer/work/33598. Acedido em: 17/06/2015.

6 “What I want to present... is music that is for listening to in a visual way, and watching in an audio way”. Tan Dun. “Water Concerto for water percussion and orchestra”. G. Schirmer Inc. Acedido em http://www.schirmer. com/default.aspx?tabId=2420&State_2874=2&workId_2874=33596 e consultado em 21/09/2012.

7 Usamos aqui a definição de matéria dada pela artista plástica e escritora Fayga Ostrower em que o termo é usado “[...] para abranger não somente alguma substância, e sim tudo o que está sendo formado e transformado pelo ho- mem. Se o pedreiro trabalha com pedras, o filósofo lida com pensamentos, o matemático com conceitos, o músico com sons e formas de tempo, o psicólogo com estados afectivos, e assim por diante”. (OSTROWER, 1977, p. 31).


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Tatiana Vargas - Doutoranda em Estudos Culturais pelas Universidades de Aveiro e Minho/PT, Mestre em Ciências da Comunicação (Cultura, Património e Ciência) pela Universidade do Porto/PT e Bacharel em Comunicação Social (Relações Públicas) pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM/BR.


Luís Bittencourt - Músico, compositor e pesquisador. Doutorando em Música pela Universidade de Aveiro/Portu- gal, Mestre em Música (Performance) pela mesma instituição e Bacharel em Música (percussão) pela Universidade Federal de Santa Maria UFSM/Brasil.


José Clerton de Oliveira Martins - Doutor em Psicologia pela Universidad de Barcelona/España, Pós-doutorado pe- la Universidad de Deusto/España no Instituto Multidisciplinar de Estudios de Ocio (IEO). Professor no Programa de Doutorado em Psicologia da Universidade de Fortaleza UNIFOR/BR. É membro fundador do OTIUM – Associa- ção Ibero-americana de estudos em ócio.

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