Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 273p., n.2, 2015
Marcos Antonio Cardoso Sobral (Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, Sergipe, Brasil)
marcosantoniovioloncelista@gmail.com
Danielle de Gois Santos (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Rio Grande do Norte,
Brasil)
danielledegoissantos@gmail.com
Resumo: O presente estudo versa sobre a verdade, conforme abordada pelo filósofo Martin Heidegger, e observada em contexto de ensino em música. O trabalho destaca os diversos modos de observância da verdade. Para observa- ção desses modos, recorremos a escritos que abordam o assunto, em especial os de Heidegger, que pautou boa parte de sua filosofia no privilégio às experiências cotidianas, as quais nos interessam nesta oportunidade. Também se fez mister a análise ao seu exímio ensaio sobre as obras de arte, devido à estas serem um modo específico de atuação do ser e, consequentemente, desveladora de seu mundo portador da verdade. O foco do trabalho incide no ensino ins- trumental, onde observamos maior proximidade quanto ao pensamento heideggeriano. A hipótese levantada quer, a todo instante, que nos remetamos à verdade como um modo ideal de tratamento. As considerações alcançadas con- cernem à verdade como princípio pertinente ao ato docente alusente às suas possibilidades infindas.
Palavras-chave: Verdade; Obras de arte; Docência; Heidegger.
Truth in music on the thought of Martin Heidegger
Abstract: This article touches on the truth as addressed by the philosopher Martin Heidegger, seen in the context of teaching in music. The work highlights the various modes of observance of the truth. To observation these modes, we seek help to writings that discuss the matter, especially those ofHeidegger, who guided much of his philosophy the embrace to everyday experiences, which interest us. Also it was necessary the analysis your expert essay on the works of art, due to these be a specific mode of action of being and, consequently, revealing its supported world of truth. The focus of the work focuses on instrumental education, where we see greater proximity as to Heidegger’s thought. The hypothesis wants, all the time, we turn to the truth as an ideal mode of treatment. The achieved con- siderations attribute to the truth as relevant principle to teaching act with respect to their endless possibilities.
Keywords: Truth; Works of Art; Teaching; Heidegger.
La verdad en la música en el pensamiento de Martin Heidegger
Resumen: Este estudio se ocupa de la verdad como se discute por el filósofo Martin Heidegger, visto en el contexto de la enseñanza de la música. El trabajo pone de relieve los diversos modos de la práctica de la verdad. Ver a estos mo- dos, nos volvemos a los escritores que abordan el tema, especialmente los de Heidegger, quien guió gran parte de su filosofía el privilegio de experiencias cotidianas, que nos interesan esta oportunidad. También hace el señor revisar su ensayo de expertos sobre las obras de arte, debido a que esto sea una modalidad específica de la acción del ser y, por tanto, desveladora su mundo portador de la verdad. El enfoque del trabajo se centra en la educación instrumen- tal, donde vemos una mayor proximidad en cuanto a pensamiento de Heidegger. La hipótesis quiere, todo el tiempo, lo que nos lleva a la verdad como un modo ideal de tratamiento. Las consideraciones alcanzados en relación con la verdad como principio pertinente a la enseñanza alusente acto a sus infinitas posibilidades.
Palabras clave: la Verdad; Obras de arte; Enseñanza; Heidegger.
Falar sobre verdade é tarefa árdua que exige muito do pensar humano, ainda mais quando falamos de verdade em música, uma arte que, de acordo com a fundamentação des- se texto, por si só se apresenta não dita e, tal como o ser ontológico, exige nossa compre- ensão de fenômenos inerentes à ontologia do ser, como tempo1, linguagem2 e pensamento etc. Essa experiência de busca da verdade, conforme abordada por Heidegger, permite com- preender o que pode se mostrar do ser ontológico através do pensamento musical. Compre- endendo-a, nos aproximamos de forma mais efetiva de uma experiência musical vultosa. Assim, já podemos delinear alguns questionamentos que circundarão tal texto, a saber: co- mo se caracteriza a verdade no âmbito da abordagem desse texto fundamentado em Martin
Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 273p., n.2, 2015 Recebido em: 12/08/2015 - Aprovado em: 08/11/2015
Heidegger? Como se demonstra em música a verdade aqui contextualizada? É relevante essa compreensão para o ato docente em música?
Para podermos esclarecer3 tais questionamentos, pautamo-nos nas investigações sobre a filosofia de Martin Heidegger, buscando outros posicionamentos em autores que se dispuseram a estudar a verdade sobre os mesmos horizontes. Vemos que a verdade é um ter- mo que adquire posição notória sobre as reflexões do ser nos textos de Heidegger, por isso, a adoção por tal filósofo para conduzir nossa produção.Incorporados ao mesmo autor, nos aproximamos também de sua Fenomenologia hermenêutica, oportuna para compreensão da verdade. Tal perspectiva metodológica nos fornece um caminho seguro para discutir os aspectos concernentes à verdade, seguindo um viés a partir das compreensões textuais que nos direcionam ao exercício fenomenológico.
A palavra verdade adquire compreensões variadas na esfera acadêmica. Contudo, neste trabalho, a abordagem está guiada pelo sentido proposto por Heidegger através de sua tradução da palavra alethéia, como desvelamento ou aquilo que se mostra a nós mesmos. Em uma palavra, alethéia compreende fazer aparecer o que ainda é incompreensível.
A abordagem de exemplos do cotidiano se faz presente neste trabalho como forma de elucidar ao leitor a aplicação de ideias do filósofo. Admitimos a dificuldade de encon- trarmos um paralelo com situações de especificidade musical, para melhor contextualizar o trabalho no âmbito referido, mas o filósofo em questão eleva a experiência cotidiana a um patamar substancial, porque ela consolida a compreensão e posteriormente abre espaço pa- ra novas acepções próprias do ser.
Nossa primeira missão se resume a nos aproximarmos de uma compreensão apro- priada do que seja a verdade, por meio da análise dos textos do autor delineado, a fim de ad- quirir uma proximidade com o que queremos essencialmente expor, a saber, as contribuições para a prática docente em música. Em seguida, percorremos uma observação às obras de arte, com a pretensão de nos aconchegarmos às abordagens heideggerianas disponíveis sobre o ser e a arte. Como texto-base para a seção, utilizamos a tradução feita por Moosburguer (2007) em sua dissertação de mestrado de A origem da obra de arte, de Martin Heidegger.
Como a obra de arte aponta para uma abertura de compreensões das quais não per- cebemos na vivência dial, nos aproximamos da temática deste trabalho no tocante à aber- tura proporcionada por ela. Sabemos que uma abertura do ser é tônica comum aos textos heideggerianos, devido ao ser nunca limitar-se às definições postas sobre ele, isto é, não en- contramos conceituações que o representem em sua integridade. Por isso, nada mais opor- tuno do que abordá-las.
Por fim, apresentamos uma seção direcionada ao âmbito docente em música, mani- festando as reflexões adquiridas nas seções anteriores e apontando fatos relevantes para a área.
Vejamos o posicionamento de Heidegger a respeito da verdade em sua clássica obra
Ser e Tempo, publicada em 1927.
Três teses caracterizam a apreensão tradicional da essência da verdade e a opinião gerada em torno de sua primeira definição: 1. O “lugar” da verdade é o enunciado (o juízo). 2. A essência da verdade reside na “concordância” entre o juízo e seu objeto.
3. Aristóteles, o pai da lógica, não só indicou o juízo como o lugar originário da ver- dade, como também colocou em voga a definição da verdade como “concordância” (HEIDEGGER, 2012a, p. 284).
Atentemos à tese 2: a essência da verdade reside na “concordância” entre o juízo e seu objeto. Como Heidegger demarcou na tese 1, juízo pode ser compreendido como enun- ciado, como o que se diz, e entenda-se objeto como ao que me refiro, a quem direciono o enunciado. Percebemos que a verdade como “concordância” ocorrerá quando a minha posi- ção verbal (meu enunciado) estiver de acordo com os princípios de compreensão de mundo a quem me direciono (objeto). Dessa forma, a verdade se estabelece pela relação de concor- dância, pelo fato da minha compreensão se adequar aos preceitos do referente. Mas, quan- do não nos relacionamos com seres ontológicos4e sim com entes5, como podemos identificar uma verdade? Por exemplo, quando uma ideia é verdadeira? Quando há concordância, onde há manifestação de sentido. Nesse sentido, o que interessa em tal concordância é o que se descobre, o que se mostra na relação enunciado-objeto.
A partir dessa reflexão, percebemos ainda que a verdade como concordância en- contra-se intrinsecamente relacionada à definição, como o que permite uma adequação. Ou seja, “a essência da adequação se determina antes pela natureza da relação que reina en- tre a enunciação e a coisa” (HEIDEGGER, 1970, p. 5, grifo nosso).
É o vocábulo entre que nos leva a pensar em uma definição, justamente porque para haver uma concordância entre dois entes, faz-se mister algumas definições congêne- res entre ambos. A adequação diz respeito à necessidade da totalidade humana alcançar as mesmas conclusões, em determinados aspectos, para permitir a coerência do convívio. Por exemplo, é inevitável que todas as pessoas – até mesmo as que não dirigem – compre- endam o significado de cada cor do semáforo: o sinal verde, continuar o percurso; amarelo, atentar; vermelho, aguardar. Sem a definição conjunta desses parâmetros, é impossível es- tar em adequação. Todos precisam chegar à mesma conclusão. Caso não, se algum homem, por circunstâncias desconhecidas, tenha definido que a cor vermelha representa a continu- ação do trajeto, todos os demais não estarão adequados a ele devido à obtenção de conclu- sões distintas.
Em um contexto de execução musical, podemos ainda estabelecer a seguinte rela- ção com base nessa reflexão. Dois músicos apenas poderão ler uma partitura que soe de for- ma semelhante se o conhecimento alcançado entre ambos tenha definido que tal nota repre- senta aquela tecla (comparando a um piano) e não outra.
Nesse exemplo de uma situação em música, vemos a clara aplicação das noções de concordância e definição. A definição é necessária para permitir a concordância com o outro. Em seu texto Sobre a Essência da Verdade, Heidegger nos aponta outro argumento.
O que, pois, se entende ordinariamente por ‘verdade’? Esta palavra tão sublime e, ao mesmo tempo, tão gasta e embotada designa o que constitui o verdadeiro enquanto verdadeiro. O que é ser verdadeiro? Dizemos, por exemplo: ‘É uma verdadeira alegria colaborar na realização desta tarefa’. Queremos dizer que se trata de uma alegria pu- ra, real. O verdadeiro é o real (HEIDEGGER, 1970, p. 3).
Quando Heidegger nos afirma na última frase da citação que o verdadeiro é o re- al, logo podemos articulara uma verdade dentro de algum contexto. O que queremos dizer? Ao nos depararmos com a palavra real, expressa na frase, imediatamente nos remetemos ao que ela possa significar: algo que vivenciamos, a própria realidade humana, o que existe efetivamente. Então, se um professor estabelece uma relação – nos apoiando na verdade co- mo uma relação de concordância explicitada anteriormente – com seus alunos e essa rela- ção efetivamente existe, acontece, dizemos, assim, que o verdadeiro é o real. A relação que existe é real, pura, única, isto é, não foi vivenciada anteriormente. Ela apenas existe naque- le momento, e mesmo que queiramos construí-la novamente em um momento ulterior, não
é possível; já nos encontramos numa outra condição, que arrola novas relações edificadas pelos pregressos contatos.
Sabemos que em cada relação lapidamos o ângulo de percepção dos fatos, mesmo em vil grau, a ponto de dizermos que nada de pertinente retiramos daquele momento. Mas através do simples estar na relação, alguma mudança de conceito dos pensamentos corren- tes já pode ser concebida. Observe a seguinte ocorrência. Certa pessoa, ao estar almoçando, estabelece que amanhã, ao acordar, fará uma determinada tarefa. Até lá, ela ainda partici- pará de muitas relações que, possivelmente, alterem seus pensamentos sobre as atividades a serem desenvolvidas no dia seguinte. Com isso, o ato de estar presente nas relações de hoje pode resultar em não mais executar a tarefa programada para amanhã, e se dirigir a outra. Qual a expectativa do ocorrido acontecer? Sempre. Basta perceber que muitas ações planejadas anteriormente não são desenvolvidas em razão que, no ínterim do até lá, vive-se momentos não alcançados, melhor dizendo, não imaginados, que possam alterar os planos. Assim, nos amparando na concepção fenomenológica de observar os fenômenos, é de total importância considerar as relações que cada homem conserva em sua convivência diária.
Observamos tal exemplo em música quando, por estar presente na aula, o aluno co- nhece novas formas de tocar uma mesma nota (em um violoncelo, por exemplo) com dedi- lhados diferentes. As possibilidades de um maior domínio instrumental se ampliam com o conhecimento de novas maneiras de dedilhar trechos de peças em estudo. Isso é possível por estar na relação, que faz com que novas interpretações se instalem.
Seguindo uma nova perspectiva, no texto A compreensão grega da verdade, Heide- gger escreve que “a verdade, em relação ao ente, pode ser constatada quando toda e qual- quer possibilidade da inverdade está excluída em todos os aspectos” (HEIDEGGER, 2012b,
p. 115). Talvez por isso, o ato espontâneo e criativo que acompanha a música – e em geral todas as artes – seja considerado uma verdade, por não estar baseado em “regras”, mas de- pendente da capacidade inventiva do homem. Este “criar”, para Heidegger, pode ser entendi- do como uma possibilidade a mais de alcançar uma verdade, atentando para a ideia de que a nova criação permite ao ser conhecer novas alternativas. E isso é perceptível na música. Quando um músico constrói um caminho interpretativo próprio e, portanto, desconhecido até o momento de exibição, ali está à verdade, alimentada pela noção de que o novo mostra outra possibilidade. O que nós, homens, queremos acreditar é que a verdade habita quando uma maneira ideal de lidar com qualquer situação irrompe-se, sendo adaptável a todos. Mas o que se constata é que essa concepção não é aceita pelo olhar heideggeriano. Ele encontra, como exposto, a verdade na exegese criativa e inerente ao ser.
Vemos que noções como definição, relação de concordância, aquisição de novas possibilidades são aspectos relevantes a serem considerados no ensino instrumental. A se- guir, discorremos sobre a relevância das obras de arte e sua relação com a verdade estuda- da neste artigo.
No mole chão andais Do éter, gênios eleitos!
Ares divinos Roçam-vos leve
Como dedos de artista As cordas sagradas [...]
F. Holderlin, Canto do Destino de Hiperíon
Nesta segunda seção, analisaremos a verdade por meio das obras de arte, fato digno de destaque porque o filósofo delineado encontrou nas obras de arte um modo de acesso ao ser, por serem elas uma forma de manifestação do mundo humano e individual do artista. São elas que guardam a verdadeira significação, que, em relação a um sapato, por exemplo, não percebemos, na vivência cotidiana, a sua real serventia, por estarmos tão habituados a vê-lo como um simples instrumento de uso cotidiano. Quando observamos algo comum à nossa rotina sendo representado em obra de arte, concebemos novas interpretações. Como assinala Heidegger (apud MOOSBURGER, 2007, p. 21): “Na proximidade da obra nós estive- mos repentinamente em outro lugar do que aquele em que habitualmente cuidamos de es- tar.” Complementa que “é somente através da obra e somente na obra que o ser-utensílio6 do utensílio vem expressamente a aparecer.” (Ibid., p. 21, grifo nosso).
Heidegger, na tradução de Moosburger (2007, p. 5), deixa inferir que a arte aconte- ce quando o artista está em relação com a obra de arte, fazendo gerá-la a partir e apenas do momento em que se executa, no nosso caso da música. Depois que a execução se finda – quando o artista e a obra não estão mais em relação –, só existe a obra e o artista, ambos em sua posição devida. O que resta são lembranças da arte no momento em que ela acontecia. Assim, obra de arte e artista existem, concomitantemente, no passado, presente e futuro, ao ponto que arte só encontramos no tempo presente, como dito, no relacionar-se da obra com o artista. Portanto, “o ser-criada da obra deixa-se abarcar abertamente apenas a partir do transcurso do criar.” (MOOSBURGER, 2007, p. 42).
Dizemos isto porque o artista, como também a obra, não é criado em um dado mo- mento, mas sim em vários, para tornar válida a crença de artista. É um processo de vir-a-
-ser7do artista, que exige uma laboriosa continuidade para o alcance da meta. Este vir-a-ser
constitui-se de acontecimentos, remetendo ao aparecimento da verdade.
As gravações, por serem execuções de momentos findos, também remetem à cria- ção da arte, uma vez que também podemos reencontrar nelas o mundo do artista. Se houver relacionamento com o que se ouve, se houver captação de sentidos, brota-se aí a arte. Vol- tamos a dizer: o acontecer da arte é verificado no tempo presente, no relacionar-se da obra com o artista. Isso como tarefa de quem a produz, e quem a contempla, é preciso observar, exegeticamente, para haver o irrompimento da arte.
Assim, nessa proposta, a arte emana da relação do artista em contato com a obra.
Mais uma vez, a verdade como relação pode ser percebida.
Trouxemos apontamentos sobre a arte, mas em relação à obra de arte, como é que a verdade se mostra? Vejamos: “A obra pertence como obra somente ao âmbito que é aberto por ela mesma. Pois o ser-obra8 da obra se essencializa e somente se essencializa em tal abrir-se. Dissemos que na obra está em obra o acontecimento da verdade (MOOSBURGER, 2007, p. 27, grifo nosso).Esse abrir-se ocorre por meio de uma busca representativa nossa, que anseia com- preender o real significado da obra. Encontramos o real significado da obra quando alcança- mos o mundo que nela existe. O mundo permite que uma pintura, por exemplo, deixe de ser coisa e seja elevada à categoria de obra. Quando há ausência de mundo, a obra volta a ser coisa. Na imanência do mundo, apreendem-se as intenções, os sentidos, valores etc. A vi- sibilidade de sentido se encontra na observação do mundo da obra. Como em uma compo-
sição musical, que conserva e revela toda a experiência do compositor.
Sobre tal mundo, bem observamos no caráter díspar das composições de Mozart e Beethoven. O primeiro evidencia sua índole jubilosa em boa parte de sua música; já o segundo, com seu temperamento agressivo manifesto na maioria de suas composições. No imo das composições, a compreensão da existência diluída em sons. Por isso, a partir delas, constrói-se uma conexão ao mundo do artista.
Sobre a perspectiva dos textos de autores que também fizeram uso da filosofia de Martin Heidegger para depreender algo significativo sobre a verdade, encontramos aproxi- mações mais diversificadas.
No texto de Silva (2013), permite-se inferir que as obras de arte não carregam uma verdade única. Os entes podem ser determinados, ou seja, cumprem uma finalidade, mas a obra de arte, não. Esta é um ente extra (no sentido de ente superior) porque não traz uma síntese final; ela é atuação do ser. Dessa forma, como a obra de arte apresenta uma indefini- ção, uma não-síntese, ela é portadora da verdade.
Como já exposto, em relação à verdadeira arte, de acordo com a fundamentação te- órica e filosófica desse trabalho, a música não é uma obra de arte quando analisada com a pintura, a escultura, visto que ela acontece no tempo (atemporal), e não é uma forma fixa passível de análise em relação à compreensão de seu significado. Queremos dizer que: não podemos chegar a uma definição do que ela representa para cada homem. As experiências que cada homem carrega constroem parâmetros compreensivos sobre a realidade à sua vol- ta. Tanto é que ela pode ser considerada como lógos (não dito). O exposto corrobora-se quan- do Heidegger (MOOSBURGER, 2007, p. 24) aponta: “Verdade, como se diz, é algo atemporal e supratemporal.”
As proposições expostas nos levam a traçar uma perspectiva de muita significação para o ensino em música, e por isso, apresentamos nossas reflexões.
Verdade é abertura. Portanto, não há esgotamento das possibilidades. Isso nos leva a pensar que nunca existirá a forma ideal de abordagem de qualquer assunto em uma au- la de música. O que existe são maneiras, modos, possibilidades de abordagem. E sempre se buscará a possibilidade mais coerente de abordagem, que permita que a compreensão seja a mais clara possível. Espera-se que seja indispensável o esforço por variadas abordagens, e não a uma abordagem fixa. A partir da abertura, isto é, a busca por “formas de tratamento” de qualquer conteúdo, pode-se alcançar a “possibilidade de ‘algum lugar’ e de um local ple- no de presença” (MOOSBURGER, 2007, p. 45, grifo do autor).
A verdade como relação se apresenta como o modo de maior aproximação para o nosso contexto. É na relação que a verdade vai acontecer. Qualquer relação vivida irá ex- primi-la. Com isso, surge o seguinte questionamento: a verdade não se aproximaria de uma forma ideal, sublime? Não. Qualquer relação que seja vivenciada e promova sentido, é uma verdade. Não é apenas estar lá, mas fazer do estar lá uma busca de sentidos que possa pro- duzir mudança das concepções mundanas.
Se nos aproximarmos da verdade tendo-a como algo ideal, estaremos nos entregan- do a uma situação impossível, visto que, como saberemos que na abordagem de um profes- sor não há mais nada a ser modificado, no sentido de que ele não pode mais avançar na sua maneira de ensino?Toda exposição em uma aula revela o total conhecimento do assunto? Entenda-se o adjetivo total como: não há algo mais a ser desvelado? Estaremos expostos a estes questionamentos quando ansiarmos pela busca de um modo ideal de ensino.
Sabemos que é comum querermos a todo instante pensar a verdade de tal forma, co- mo algo sublime. Mas nem algo que se diz sublime é um modo ideal ou, digamos, perfeito. Esmiuçando o significado da palavra através deum simples utensílio como o dicionário Au- rélio, encontramos que uma das conceituações da palavra sublime é quase perfeito. Atente-
-se: quase perfeito nos diz que ainda há algo a se fazer. Com isso, alegamos, mais uma vez,
a veemência da palavra verdade como não esgotamento das possibilidades, permitindo ao professorbuscar incessantemente a rearticulação de seu pensamento perante sua posição de docente.
Como Heidegger deixou patente ao longo do texto A origem da obra de arte (MOOSBURGUER, 2007), uma das palavras que mais representam a percepção da verdade é o verbo acontecer. E fazendo uma sondagem elementar do significado deste verbo, encon- trar-se-á uma ação a ele inerente, um movimento que revela um aparecimento de algo, qual seja: a verdade. Em qualquer relação – que não deixa de ser um acontecimento – que revele um mundo, encontramos o irromper da verdade.
A partir daqui, confluímos esse acontecer na relação e o acontecer na música co- mo representações da verdade. O fato de que a música, conforme a fundamentação desse trabalho, não é uma obra de arte – é apenas arte – pelaincapacidade de ser visualizada, is- to é, apenas ouvida, diferenciando-a das demais artes que podem ser observadas, como a pintura e a escultura, nos leva claramente à pertinência que o verbo acontecer sustém. Os sentidos que qualquer música guarda em si, só podemos percebê-los no momento em que estaacontecer.
Suscitou-se outro apontamento ao longo das leituras. Sustentando-nos no texto A questão da técnica (HEIDEGGER, 2007), entendemos que, para o acontecimento da ver- dade, o homem precisa dispor de algumas compreensões, ou seja, estar abrigado na lingua- gem para permitir uma relação. A ideia de abrigamento introduz as noções de conhecer, onde afirmamos que um homem está abrigado quando ele sabe o que fazer na relação que está situado. Aproximamos a verdade aqui, pois ela se apresenta como uma compreensão que nunca estará totalmente abrigada. Por isso afirmamos anteriormente a não existência de uma verdade ideal.
Consideram-se as definições de mundo, oriundas da necessidade de convivência e que servem como um pressuposto de partida para o abrigamento.À medida que avançamos na compreensão, encontramos o limite, originado para manifestar a entrada ao desabriga- mento e que se mostra como o momento real da aprendizagem. Como o principal aspecto que sinaliza o desabrigamento é a ausência de referência (SOBRAL; SANTOS, 2014, p. 2), o homem inicia, orientando-se pelas noções que estejam em consonância com o seu mundo, uma busca pelas possibilidades de “livrar-se” da experiência, como tentativa de abrigamen- to.Com isso, ele cria uma relação inexistente, evidenciando a verdade. Como dito por Hei- degger (2007, p. 6, grifo nosso): “nele (o desabrigar) repousa a possibilidade de todo aprontar que produz algo.”
Observemos. No momento da aula em que entregamos uma nova peça (Eis o desa- fio!) para o desenvolvimento de habilidades ainda não adquiridas pelo aluno, estamos pos- sibilitando seu acesso à experiência do desabrigamento, principal característica de qual- quer desafio. No desafio, aspectos técnicos ainda incapazes de serem executados pelo alu- no são apresentados.
Defrontado com ascaracterísticas próprias do novo estudo – dificuldades rítmicas, de entonação, andamento, fraseado, interpretação de estilo etc. –,o aluno inicia o processo de se abrigar. A resolução de cada um desses aspectos musicais aproxima-o cada vez mais ao abrigamento; um processo semelhante ao vir-a-ser.
Com tais aspectos sanados – ao mesmo tempo com o abrigamento suficientemente es- tabelecido –, encontramos manifestações que não se observavam em momentos findos. Mani- festações estas clareadas pelo toque ao solo desabrigado que solicitava uma superfície segura. Esse alcance do abrigamento aponta, ainda e sempre, um manifestar do desabri- gamento. O que queremos afirmar é que, mesmo com o abrigamento presente, o desabriga-
mento também está, porém, em mínima manifestação. É semelhante ao dualismo saúde-
-doença, ou seja, um homem doente traz consigo também a saúde. O que acontece é que os sintomas atuais do paciente favorecem a progressão da doença que, simultaneamente, ocul- tam sinais favoráveis à saúde. Quando o organismo encontra condições favoráveis à saúde, o quadro se reverte. Assim, o estudo se torna tarefa contínua para que haja, cada vez mais, um distanciamento do não saber (desabrigamento).
Por fim, evidencia-se como a verdade se manifesta de modos diversos, caminhando para uma abrangência cada vez maior e ilimitada em possibilidades.
Um dos modos mais efetivos para alcançarmos uma compreensão significativa do que seja a verdade, passa pelo crivo do conhecimento de seus modos de manifestação. O que tais modos possibilitam são formas de compreender o que vivenciamos, de maneira a trazer reflexões edificantes quanto ao processo compreensivo do fazer docente para a experiência em sala de aula. Reflexões que, em um primeiro momento, são consideradas irrelevantes de- vido ao conteúdo destas partirem de temas já consolidados pelo aluno, como as definições de leitura da partitura (rever exemplo do pr. 2, pg. 4). Sim, inicialmente irrelevantes porque a compreensão do como fazer já foi adquirida e se torna desprezível pensar o que já domina- mos. Mas, e se agora que dispomos de certas habilidades, aprofundarmos o discernimento destas para permitir que os inexperientes adquiram um olhar ademais abrangente sobre o que estão experimentando nos seus estudos de música?
O que ansiamos, substancialmente, vara o terreno do exercício compreensivo, que é – como Heidegger tanto lutou por isso – tãoessencial para nos apoderarmos da abertura existencial constitutiva da nossa categoria de seres pensantes. Mencionamos tal abertura porque, para uma compreensão ampla, faz-se relevante o conhecer das mais variadas possi- bilidades de tratar uma questão, seja ela em qualquer âmbito.
As formas de percepção da verdade discorridas neste trabalho apontam vários meios onde o seu encontro é possível. Inicialmente, na primeira seção, tratamos dela em contexto puramente filosófico a fim de abordar as concepções mais correntes, buscando respaldo em acontecimentos diais. Em seguida, versamos acerca das obras de arte com a fi- nalidade de trazer apontamentos alusentes ao mundo do ser que nelas existem, buscando, ao máximo, aconchegarmos ao mundo das interpretações em música, já que esta figura en- tre as artes e a ela que estudamos. Isso porque, se no mundo interpretativo que um músico nos revela houver sentido, aí contemplamos a verdade. Tentamos expor esse olhar ao longo do trabalho, de que a verdade se manifesta no sentido. Na terceira seção, de caráter mais restrito à música, buscamos confluir significações que sejam coerentes para a área.
Por fim, retomamos o questionamento inicial de quem, por não compreender, con- fia que a verdade seja uma compreensão completa, sublime, exata, superior, perfeita, impe- cável... O que trouxemos no decurso deste trabalho nos permitiu convergir para uma pers- pectiva que observa a verdade como uma compreensão que não se fecha, mas que procura, incansavelmente, por possibilidades de encontrar olhares distintos sobre cada situação. São olhares que almejam ampliação, atualização do que se conhece. Utilizemos a metáfora do vácuo no espaço, que, como sabemos,nele nada existe. Ou seja, em um primeiro momento, temos a impressão que não chegamos a lugar algum se seguirmos essa perspectiva da ver- dade como uma compreensão que não se fecha. Mas, diferentemente do vácuo que é despro- vido de conteúdo, a verdade opera para a existência de sentido no que se vive.
1 Entenda-se tempo aqui não como um aspecto técnico-musical abstrato, mas o tempo sob uma perspectiva do ser.
2 Linguagem, não no sentido restrito de comunicação, mas no sentido existencial.
3 Esclarecer no sentido de buscar uma aproximação, não de responder os questionamentos feitos.
4 Podemos considerar os seres ontológicos, representados por um ser singular, como o ser que pode pensar a sua própria relação com o mundo, com sua existência e que não está limitado a quaisquer determinações.
5 Entenda-se por ente como tudo aquilo que existe (objetos, coisas) e que pode ser determinado. Não se refere ao ser do homem, ao ser ontológico.
6 Pode ser entendido como a utilidade a qual serve o objeto.
7 Expressão filosófica que pode ser compreendida como um processo de tornar-se algo/alguém que ainda não é.
8 Conceba-se como a verdadeira significação da obra e que a faz ser uma obra.
HEIDEGGER, Martin. A compreensão grega da verdade. In: HEIDEGGER, Martin. A essência da liberdade humana: introdução à filosofia. Tradução Marco Antonio Casanova. 1. ed. Rio de Janeiro: Via Veritas, 2012, p. 115-124.
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HOLDERLIN, Friedrich. Canto do Destino de Hiperíon (1834). Disponível em: http://www.algu- mapoesia.com.br/poesia2/poesianet178.htm. Acesso em: 02 jun 2015.
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SOBRAL, Marcos Antonio; SANTOS, Danielle de Gois. Compreensão de uma aula de instru- mento musical aliando noções heideggerianas: relato de experiência. In: VI Simpósio Sergipano de Pesquisa e Ensino em Música, 2014, Aracaju. Anais... Aracaju: UFS, 2014, p. 87-93. Disponí- vel em: https://www.sigaa.ufs.br/sigaa/verProducao? idProducao=550401&key=4b8dfccb221a0 e7f1930c358836dd8d9
Marcos A. Cardoso Sobral - Graduando do Curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal de Sergi- pe (UFS) cursando o sétimo período. Bolsista PIBID/UFS 2014-2015. Professor de violoncelo na escola de música Santa Barbara, no interior de Sergipe. Violoncelista estágiario na Orquestra Sinfônica de Sergipe (ORSSE) durante a temporada de 2013.
Danielle de Gois Santos - Psicóloga, mestre em Psicologia, professora substituta de Psicologia na Universidade Federal de Sergipe (2013-2015), doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e orientadora desta pesquisa.