image


Artigos Científicos -

Música em Geral

Artigos Científicos -

Música em Geral

Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 273p., n.2, 2015

escola brasileira de choro raphael rabello e clube do choro:

interação eficaz nos processos de significação e ensino do choro em Brasília


Magda de Miranda Clímaco (Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil)

magluiz@hotmail.com


Resumo: Esse trabalho teve como objetivo identificar e relacionar as representações evidenciadas pelos processos de ensino do choro na Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello em Brasília e pelas circunstâncias ligadas à história desse gênero musical na cidade, visando os possíveis nexos existentes entre uma prática significativa para um con- texto social e o grande investimento nessa prática. Foi considerado que o contexto significativo ligado a um gênero discursivo (BAKHTIN, 2003), junto à abordagem de diferentes modalidades de ensino desse gênero na escola brasi- liense, em estreita interação com as atividades do Clube do Choro, traz a motivação necessária que atrai, congrega, e coloca em lista de espera um grande número de alunos.

Palavras-chave: Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello; Clube do Choro de Brasília; Interação; Prática Significativa.


Brazilian choro school Raphael Rabello and choro club: effective interaction in the choro’s processes of meaning and teaching in Brasília

Abstract: This study aimed to identify and relate the representations evidencied by choro’s musical genre teaching processes at the Brazilian Choro School Raphael Rabello in Brasilia and the circunstances connected with the history of the genre in the city, to discover the potential links that occurs between a significant practice to a social context and the large investment in this practice. It was considered that the meaningful context linked to a discursive genre (BAKHTIN, 2003), with the approach of different teaching modalities of its genre in brasiliense school, stablishing circularity with the activities of the Choro Club, brings the necessary motivation that attracts, connects, and put on waiting lists one large number of students.

Keywords: Brazilian Choro School Raphael Rabello; Brasilia Choro Club; Interaction; Significant practice.


Escuela brasileña de choro Raphael Rabello e clube de choro: una interacción eficaz en los procesos de significación y de la enseñanza del choro en Brasília

Resumen: Este trabajo tuvo como objetivo identificar y relacionar las representaciones evidenciadas por los procesos de enseñanza del choro en la Escuela Brasileña de Choro Raphael Rabello en Brasilia y por las circunstancia asocia- das a la historia de este género musical en la ciudad, buscando los posibles nexos existentes entre una práctica sig- nificativa para un contexto social y la gran dedicación a esa práctica. Fue considerado que el contexto significativo ligado a un género discursivo (BAKHTIN, 2003), junto al abordaje de diferentes modalidades de enseñanza de ese género en la escuela brasiliense, en estrecha interacción con las actividades del Clube de Choro, trae la motivación necesaria que atrae, junta, y pone en lista de espera a un gran número de estudiantes.

Palabras clave: Escuela Brasileña de Choro Raphael Rabello; Club de Choro de Brasilia; Interacción; Práctica significativa.


O grande número de crianças, jovens, adultos e velhos que buscam iniciar ou de- senvolver a prática do Choro na Escola de Choro Raphael Rabello em Brasília (EBCRR), fa- zendo que a escola tenha sempre uma grande lista de espera por novas vagas, chamou a atenção no percurso de uma pesquisa (CLÍMACO, 2008) que visava entender o choro como expressão musical no cenário brasiliense. Essa primeira pesquisa tornou-se um ponto de partida deste trabalho, já que levou à percepção de dois grandes momentos de ressignifica- ção do Choro na cidade de Brasília1. Um primeiro momento, em que o gênero musical cum- priu um processo de reconstrução de identidades nas décadas de 1960 a 1970, fundamental para a adaptação dos antigos funcionários públicos cariocas na nova capital brasileira que emergia no interior do país, funcionários que ajudaram a fundar o Clube do Choro de Brasí- lia na década de 1970. E um segundo momento, em que o choro teve esse clube, desativado na década de 1980 e re-construído na década de 1990, como um elemento fundamental para a sua sobrevivência na cidade. Depois de cumprida a primeira função, pôde compartilhar o



Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 273p., n.2, 2015 Recebido em: 19/09/2015 - Aprovado em: 30/11/2015

seu espaço no clube com outros gêneros musicais, inclusive, com gêneros globais como o ro- ck e o jazz, numa circunstância em que, interagindo com a mídia e com a diversidade cultu- ral, marcou sua atuação no cenário pós-moderno brasiliense nas décadas de 1990 ao Tempo Presente. Nesse contexto descreveu inúmeras e distintas trajetórias pela cidade (CLÍMACO, 2008), provocando percepções diversas referentes à sua interação com a moderna capital do país na primeira década do século XXI. Por outro lado, foi interessante observar que nesse cenário, marcado por acentuada diversidade, a prática do choro provocou sempre a expres- são “genuína música brasileira”2 por parte de seus fruidores.

Conferindo hoje a divulgação da escola e do clube do choro de Brasília pelos seus sites na internet, a abordagem de trabalhos acadêmicos como o de Pereira (2004), Teixeira (2007), De Lara Filho (2009), Guimarães (2013), Gonçalves (2013), Carvalho (2015), dentre outros, volto ao material que colhi sobre essas instituições na primeira década do século, buscando novas reflexões. Continuo interessada em compreender a contínua difusão desse gênero musical na cidade e a significativa fila de espera por uma vaga na EBCRR, o que me levou, com fundamentação em Bakhtin (2003), a lançar mão de alguns elementos do concei- to de gênero do discurso.

Mikhail Bakhtin, partindo da valorização de uma relação dialógica, entende por gênero discursivo uma matriz cultural inerente a um campo de produção cultural específi- co, percebida na sua capacidade de atualização constante em cada tempo e espaço em que é ressignificada. Atualização essa resultante do entrecruzar de uma polifonia de vozes, ou seja, do encontro dessa matriz com elementos de diferentes dimensões culturais e tempo- rais. Em cada processo de atualização revela uma “forma composicional”, capaz de eviden- ciar um “conteúdo temático” (resultante dos encontros mencionados, que implicam em va- lorações e responsabilidades assumidas) e “características de estilo de índole contextual/ individual”. As características contextuais peculiarizam o gênero que “faz história” de um modo geral e as características individuais revelam os elementos estilísticos característicos de cada uma de suas atualizações. No caso especial desse texto, o gênero musical choro e suas práticas passaram a ser percebidos como uma matriz cultural carioca que se atualiza na cidade de Brasília em vários momentos, evidenciando na sua base, em cada um desses momentos, a polifonia de vozes mencionada, o encontro entre diferentes representações. Do mesmo modo são também consideradas matrizes culturais os relatos sobre o choro e a EBCRR colhidos através das entrevistas realizadas com o público brasiliense. São capazes de revelar o entrecruzar de representações que circulavam em Brasília na primeira década do século XXI, em especial no circuito do choro.

Assim, as reflexões realizadas num outro momento de pesquisa, que incluíram na busca dos projetos efetivados pelo Clube do Choro o contato com a criação e com as pe- culiaridades inerentes ao projeto da EBCRR (uma das primeiras escolas de choro no país), acrescidas de outras leituras e informações, levaram a algumas questões: Haveria na busca de uma vaga na EBCRR, por um público diverso e numeroso, uma relação estreita com sen- tidos e significados relacionados a um gênero discursivo que interagiu com dois diferentes momentos da curta trajetória de vida da capital brasileira? Essa relação significativa estaria determinando essa procura pela vaga, o contínuo investimento nessa prática musical e, por outro lado, interferindo no processo de musicalização? Como funciona essa escola? Qual a sua relação com o ensino musical formal, não-formal e informal? Qual o papel do Clube do Choro em todo esse contexto?

Parti da pressuposição de que existiam grandes possibilidades da circunstância significativa do choro em Brasília, integrada a uma prática do ensino musical formal, não-

-formal e informal do gênero, se consistir em mola propulsora que leva os brasilienses a cul-

tivar o gênero, reunindo na EBCRR crianças, adolescentes, adultos, de diferentes níveis so- ciais, idade e gênero. Tive como objetivo, portanto, identificar e relacionar as representações implicadas com o processo de ensino do choro na EBCRR em Brasília e com a história do gênero na cidade, investigar as práticas e métodos utilizados pelos professores no processo de ensino-aprendizagem desse gênero musical, buscando identificar e compreender os mo- tivos que levaram esse público numeroso e eclético a procurar a Escola de Choro brasilien- se, descobrir os possíveis nexos existentes entre uma prática significativa para um contexto social e o grande investimento nessa prática por parte dos alunos e professores.

A abordagem metodológica investiu no levantamento bibliográfico, que permitiu o contato com autores como Bakhtin (2003), Chartier (2002), Libâneo (2010) e Gohn (2010), que fundamentam teoricamente esse trabalho. Bakhtin, quando aborda as noções de gênero do discurso e enunciado3, o que remete ao gênero musical choro e seus processos de atua- lização/significação/ressignificação na cidade de Brasília. Chartier (2002), quando discorre sobre as representações sociais que, num processo simbólico, se evidenciam nas práticas, obras e formulações intelectuais que forjam processos identitários de um grupo, apontan- do para valorações, classificações, categorizações, conceituações, aceitas e divididas pelo grupo, nesse caso, o grupo que faz a escola de choro existir nas suas peculiaridades (alu- nos, professores, e a coordenação do Clube e da Escola). Já o embasamento em autores como Libâneo (2010) e Gohn (2010), possibilitou o enfoque do ensino formal, não-formal e info- mal. Por outro lado, a abordagem metodológica configurou-se também através da pesquisa de campo, realizada na EBCRR e no Clube do Choro de Brasília, em bares e shoppings da cidade, e da exploração de fontes como Cds, DVDs, sites na Internet, fotos, gravações e fil- magens. Entrevistas com atores sociais envolvidos com a prática, ensino, aprendizagem do choro e com as atividades do Clube do Choro também foram realizadas, buscando sempre as suas vivências e impressões sobre a Escola e o Clube, as duas instituições que estão na base do “complexo do choro”4 em Brasília. Três momentos de reflexão, que serão descritos a seguir, integram o desenvolvimento do trabalho, começando pela abordagem da escola de choro e dos processos de ensino por ela desenvolvidos.


  1. A Escola de Choro Raphael Rabello


    Um primeiro momento de reflexão levou à Escola Brasileira de Choro Raphael Ra- bello (EBCRR), vinculada ao Instituto Cultural de Educação Musical de Brasília (ICEM) e em diálogo permanente com o Clube do Choro dessa cidade. Essa instituição tem investido mui- to no cultivo do ensino formal, não-formal e informal da música, na priorização da formação e proliferação de grupos de choro e na profissionalização do músico, na apreciação e prática da música brasileira, tendo como referência o resgate de um gênero musical, cuja história se confunde com a própria história dessa música e da cidade de Brasília, segundo Clímaco (2008). A escola foi criada em 29 de abril de 1998, oferecendo o ensino do choro e de instrumentos como bandolim, cavaquinho, pandeiro, saxofone e violão de seis e sete cordas. Posteriormen- te foi acrescentado flauta, clarineta, viola caipira e gaita. Matricularam-se inicialmente 162 alunos e, no ano seguinte, o número de pedidos de vaga subiu vertiginosamente para 631. Além das aulas de instrumento, das aulas teóricas, do trabalho em conjunto, das rodas de choro no último sábado do mês, da oportunidade de participar de rodas informais, do in- centivo à frequência às apresentações do Clube, os alunos têm acesso também a workshops ministrados por alguns dos maiores músicos brasileiros que, sempre de passagem pelo Clu- be do Choro de Brasília, se dispõem a um intercâmbio com os estudantes (Hermeto Pascoal,

    Armandinho Macedo, Odette Ernest Dias, são alguns nomes, dentre muitos outros). As rodas de choro no último sábado do mês são constituídas por vários grupos que mesclam alunos de diferentes idades, profissões e níveis sociais, sempre tendo em vista grupos de iniciantes e grupos mais avançados. Circunstância de grupo em que comentam e observam o trabalho um dos outros, descobrem afinidades e o prazer de tocar juntos, de forma espontânea.

    A estrutura básica de ensino pode ser conferida atualmente no site da escola (http:// escoladechoro.com.br/site/), que traz a seguinte informação, confirmando, logo no início, o aspecto formal do ensino:


    São ministradas aulas de teoria musical, requisito básico para freqüentar o curso. Os cursos oferecem formação teórica e prática em classes coletivas. Serão ministra- das 4 aulas por semana, com a duração 50 minutos cada. Cada aluno deverá ter o seu instrumento e será obrigatória a sua participação em duas horas semanais para estu- dos, com acompanhamento de monitor. A partir do Segundo semestre uma hora de monitoria dará lugar a uma hora de prática em conjunto.


    Por outro lado, mencionando que o “caráter de informalidade é predominante” nas práticas relacionadas às Rodas de Choro, comenta:


    Nos primeiros sábados de cada mês são realizadas as Rodas de Choro, encontro dos alunos e professores, em que é estabelecido o diálogo musical entre todos os partici- pantes [...] sendo considerada como atividade pedagógica de prática de conjunto que reforça a união e o companheirismo entre músicos, alunos e professores. Os fami- liares e amigos também participam, eventualmente, e o caráter de informalidade é predominante.


    Já evidenciando a interação entre as atividades da escola e do Clube do Choro, é lembrado que


    os alunos também participam dos shows musicais e Workshops programados pelo Clube do Choro de Brasília. No final do encerramento do ano letivo, serão realizadas as apresentações dos grupos de alunos formados pela Escola durante o ano, no palco do Clube.


    Os depoimentos do professor de violão Fernando Vasconcelos sobre os processos didáticos da escola, concedidos a esse pesquisador (2006)5 e a Gonçalves (2013), assinalam o investimento na execução instrumental e na audição aliadas à leitura e à escrita musical, a importância de ouvir e desenvolver a percepção de determinados esquemas harmônicos característicos do choro, encontrados na obra dos compositores do gênero. Antunes, por sua vez, já em 2003, ressaltava que em se tratando da performance, “esses alunos estudam a obra dos grandes mestres do choro e convivem com professores que são músicos atuantes, fazendo, assim, a ligação entre passado e modernidade” (ANTUNES, 2003, p. 10), uma cir- cunstância que pôde ser comprovada também nas vezes que tive oportunidade de assistir às apresentações de final de ano dos alunos da Escola. Segundo essa autora, no contexto de apreciação e prática, eles aprendem também um sistema de composição e inventam novas produções com todas essas influências. Sève (1999), responsável pela sistematização de um trabalho relacionado a um aprendizado prático do choro, reafirma a eficiência dessas práti- cas da escola, ao observar que “analisando a música de Pixinguinha, percebe-se um estilo comum de fraseado composto por módulos (patterns, para os jazzistas) que, agrupados de diferentes maneiras, caracterizam a sua composição.” Percebendo as possibilidades didáti- cas contidas nessa abordagem, comentou ainda que,

    embora possa parecer um modo frio de olhar a música do mestre, esta análise vai contribuir para a criação e sistematização de um estudo técnico sobre o Choro, valo- rizando sua importância na formação de uma escola (de fato) para a música brasilei- ra. (SÉVE, 1999, p. 6)


    Almada (2006), autor do livro A estrutura do choro, também corrobora essa aborda- gem metodológica ao comentar que um conjunto de material básico apreendido na vivência e prática musical do choro, pode consistir em fundamento importante no momento do ensi- no, composição, improvisação e arranjo do gênero. O trabalho didático e performático que utiliza algumas passagens típicas do gênero, segundo o autor, se apóia


    não só no mais evidente – o ritmo e suas figurações típicas – mas principalmente na mais subterrânea estrutura harmônico-formal, fonte vital de referências para a cons- trução melódica. Os elementos que constituem essa arquitetura sintática são de tal forma amarrados entre si [...] que um “aparentamento” motívico parece existir em quaisquer fragmentos extraídos de Choros (ALMADA, 2006, p. 56).


    Na sua abordagem, que remete à sistematização das bases necessárias à estrutura- ção de um trabalho com o Choro, Almada utilizou a expressão “sintaxe do choro”.

    Gonçalves (2013), de forma mais direta, apresentou depoimentos de professores da EBCRR que evidenciam essa prática metodológica, a necessidade de se adquirir um “vo- cabulário” do choro através do contato com o seu repertório. “O aluno precisa adquirir um ‘vocabulário’, ouvir muito choro para aí sim começar a criar” (GONÇALVES, p. 131). Um professor entrevistado, o professor Vinícius, citado por esse autor, observou que se aprende esse vocabulário muitas vezes através das “baixarias”, padrões que se repetem em diferentes Choros de distintas tonalidades. No seu relato afirmou que o aluno primeiro tem que executar um repertório tradicional e, através de um exemplo, visando a execução do choro, mostrou o efeito desse trabalho: “um baixo que acontece, por exemplo, no ‘Carioqui- nha’, ele acontece também no ‘Vibrações’, vai acontecer em várias músicas que são nessa to- nalidade [...] e aos poucos você... vai deixando o aluno consciente disso” (Prof. Vinícius apud GONÇALVES p. 131). Insistindo na importância da prática e conhecimento do repertório do choro antes de muitas explicações teóricas, mencionou ainda que o caminho é “tocar” pri- meiro e “entender” depois, é da prática do repertório que virá a apreensão do “vocabulário” (Ibidem). Observou também que depois de aprendido o vocabulário tradicional, o aluno es- tá pronto para investir numa harmonia mais complexa, plena de notas de tensões, trabalhar com escalas pentatônicas... Segundo esse professor,


    em primeiro lugar o repertório, a partir desse repertório, ele tem que absorver o voca- bulário tradicional da frase, feito isso, ele tem que entender o que ele ta tocando, aí, quando ele entendeu, já pode começar a buscar outras gravações, começar a ouvir o Dois de Ouro [Hamilton de Holanda e Fernando César]. Aqueles baixos com pentatô- nica... (Prof. Vinícius apud GONÇALVES, p. 131)


    As circunstâncias e depoimentos de estudiosos do choro, de professores da esco- la, comprovam, portanto, que essa instituição sempre teve uma proposta didática geral que, num âmbito mais amplo, além da percepção auditiva, da teoria, leitura e escrita musical, va- loriza também uma aprendizagem musical conjunta que remete à vivência e espontaneida- de das rodas dos chorões, à apreciação musical, à prática conjunta da obra de grandes mes- tres do Choro, a um ambiente e oportunidade de fazer música com espontaneidade e cria- tividade. Remete “às circunstâncias práticas e ao conhecimento necessário”, portanto, que se constituem nos elementos básicos para que aconteça a aprendizagem e a improvisação,

    conforme abordagem também de Gainza (1984)6, que, ao referir-se à condução da prática da improvisação, permite o diálogo estreito com Seve (1999) e Almada (2006).

    Referindo-se também às modalidades de ensino relacionadas ao trabalho da EBCRR, Antunes (2003, p. 12) comenta o projeto pedagógico que evidencia a “junção do ensino in- formal com o formal, da teoria e da prática, da escrita e da oralidade, a preocupação com um espaço para encontros e formação de novos grupos”. Lembra ainda que a escola é estru- turada em níveis inicial, intermediário e avançado, realiza testes de aptidão relacionados aos objetivos de cada nível, mantém aulas de grupo e de teoria.

    O ensino formal é entendido aqui com base em autores como Libâneo (2010) e Gohn (2010). Libâneo aborda essa modalidade de educação nas suas implicações com uma educa- ção intencional que acontece em instituições educativas formais e que envolve “objetivos explícitos, ação deliberada e sistemática, estruturação didática e condições organizativas, uso de métodos e procedimentos, expectativa definida de resultados de aprendizagem” (LIBÂNEO, 2010, p. 145-146). Gohn (2010) na mesma linha de pensamento desse autor, observa:


    requer tempo, local específico, pessoal especializado. Requer normatização das for- mas de organização de vários tipos (inclusive o curricular), sistematização seqüen- cial das atividades, tempos de progressão, disciplinamento, regulamentos e leis, ór- gãos superiores, etc. (GOHN, 2010, p. 19)


    Por outro lado, a educação não-formal é percebida por Libâneo nas suas impli- cações com “atividades com caráter de intencionalidade, porém com baixo grau de es- truturação e sistematização, implicando em relações pedagógicas mas não formalizadas” (LIBÂNEO, 2010, p. 89). Acredita que essa modalidade de educação pode estar presente também nas instituições educacionais, interagindo com a educação formal. Gohn (2010, p. 16), por sua vez, afirma que “a educação não-formal não é nativa, ela é construída por esco- lhas ou sob certas condicionalidades, há intencionalidade no seu desenvolvimento, o apren- dizado não é espontâneo”. Acredita que a educação não-formal não é organizada por séries, conteúdos, ou mesmo por idades.

    Já referente à educação informal, uma terceira modalidade discutida por esses au- tores, Libâneo observa:


    [...] a educação informal perpassa as modalidades de educação formal e não-for- mal. O contexto da vida social, política, econômica e cultural, os espaços de convi- vência social na família, nas escolas, nas fábricas, na rua, na variedade de organiza- ções e instituições sociais, formam um ambiente que produz efeitos educativos, em- bora não se constituam mediante atos conscientemente intencionais, não se realizem em instâncias claramente institucionalizadas, nem sejam dirigidas por sujeitos deter- mináveis. (LIBÂNEO, 2010, p. 91) [Grifo meu]


    Gohn (2010) estabelece diálogo com esse autor, ao lembrar que os resultados da aprendizagem na educação informal não são esperados, acontecem naturalmente a partir da vivência, em ambientes que produzem efeitos educativos de forma não intencional, sejam eles ligados a instituições ou não.

    Como pôde ser observado, depois da descrição das atividades implicadas com a EBCRR, as três modalidades de ensino – formal, não-formal e informal – integram o proces- so de ensino-aprendizagem do Choro em Brasília. A educação formal é caracterizada pelo ensino da teoria musical, pela utilização dos métodos e repertórios que embasam a prática dos instrumentos, pela utilização de materiais estruturais do gênero choro, da consideração

    das etapas “escalares”, de níveis diferentes dos programas, implicados até certo ponto com a idade e experiência do aluno. A educação não formal acontece através das rodas de choro que se realizam uma vez por mês, conduzidas, corrigidas e preparadas de forma intencional pelos professores, apesar do espaço para o aluno simplesmente “tocar” na roda com cole- gas e convidados. Finalmente, a educação informal, que ocorre através da oportunidade de tocar nas rodas de choro mensais e nas constantes rodas que naturalmente são realizadas no pátio da escola e nos encontros de alunos em bares e residências. Citado por Gonçalves (2013), o professor de violão Henrique Neto, evidenciando a informalidade que caracteriza o trabalho com Rodas de Choro espontâneas que a EBCRR também não deixa de oportuni- zar, observa:


    Na roda de choro não tem ninguém te falando nada, você não aprende porque alguém ta te falando, você aprende porque você observa e isso vai da sua percepção, se você for uma pessoa desatenta, muita coisa vai passar. Agora se você é uma pessoa que se dedica realmente ao gênero, que ta assim disposto a aprender e tem essa sensibilidade para pegar cada elemento que ta sendo tocado ali, você vai aprender muito mais [...] (Prof. Henrique Neto apud GONÇALVES, 2013, p. 134)


    Essas atividades relacionadas ao ensino e aprendizagem do choro em Brasília não deixam de estar em interação com as apresentações que acontecem no Clube do Choro três vezes por semana. Essas apresentações efetivam um projeto temático elaborado por essa ins- tituição, apoiado pelas Leis de Incentivo à Cultura, que é divulgado e aproveitado no pro- cesso didático da Escola. Gonçalves (2013, p. 129-130) afirma que há um incentivo dos pro- fessores no sentido dos alunos “vivenciarem e comparecerem às apresentações do Clube na intenção de se criar de fato, um movimento cultural na Escola”. O professor Vinícius, citado por esse autor, acrescenta:


    O diferencial aqui [na Escola Raphael Rabello] é o foco do fraseado específico, do rit- mo específico, do tentar mostrar pros alunos que é importante vivenciar, ouvir, vir nos shows, assistir esse tipo de coisa, meio que criar um... meio que criar um movi- mento cultural mesmo. (Prof. Vinícius apud GONÇALVES, 2013, p. 130) [Grifo meu]


    É esse ponto que anuncia as possibilidades de troca entre a EBCRR e o Clube, que leva ao item seguinte, remetendo a um segundo momento de reflexão nesse trabalho: a in- teração acentuada estabelecida por essas duas instituições nos processos de execução, apre- ciação e ensino do gênero choro, que levou à expressão “via de mão dupla”7.


  2. A via de mão dupla estabelecida entre a EBCRR e o Clube do Choro


    Na verdade a EBCRR nasceu como um investimento especial do Clube do Choro de Brasília e em interação com suas atividades, mais precisamente um investimento de Hen- rique Lima Santos Filho – o Reco do Bandolim – responsável pela reestruturação do Clube na década de 1990 e seu presidente desde então (CLÍMACO, 2008). Isso trouxe um campo peculiar de atuação à escola, propiciando um trânsito institucional, circunstâncias que re- metem ao “sentido de mão dupla”, ou seja, à circularidade que vem sendo cada vez mais es- tabelecida entre o Clube e a Escola de Choro.

    Circularidade que se caracteriza quando as apresentações do Clube interagem com as atividades da escola, conforme já observado, se constituindo em um dos elementos que contribuem para o processo ensino-aprendizagem e para o aumento da prática do choro e

    procura pela instituição de ensino. A escola, por sua vez, tem ocupado o palco do Clube com as atividades de alunos (apresentações do final de ano – em dezembro), assim como tem integrado a sua platéia (freqüência constante nos shows).

    Circunstâncias que lembram também os depoimentos colhidos nas dependências da própria escola, em que a menção à freqüência ao Clube teve um ponto alto no comentário entusiasmado dos alunos que participaram de uma das apresentações do bandolinista Ha- milton Holanda8. Reconhecido por muitos como uma importante referência musical na ci- dade e grande estímulo ao estudo do gênero Choro e à prática das inovações estilísticas que se evidenciam na sua obra, esse músico tem investido no diálogo com o jazz e com o rock, no ecletismo e hibridismo musical pregado e vivenciado pelo clube do choro. A via de mão dupla, portanto, se incorpora também na figura desse músico, um dos principais represen- tantes dessa realidade musical. Admirado e aplaudido no palco, na sua trajetória nacional de sucesso, tem as suas composições tocadas por alunos da escola, como pôde ser consta- tado em algumas das apresentações observadas no clube. Efetivando a circularidade men- cionada, Hamilton de Holanda tem contribuído para o contato do choro tradicional com o choro moderno, para a atualização desse gênero na cidade que tem levado a uma maneira própria de chorar, ao “choro livre, multicultural e transregional, pouco apegado ao classi- cismo do gênero, mais inovador e alegre” (TEIXEIRA, 2007, 43).

    É aqui que a atualização do gênero se apresenta de forma mais radical, conforme constatado com a pesquisa de campo, fazendo que, no palco do clube, o choro tradicional conviva com o choro moderno e, através da interação entre as duas instituições, signifique de forma peculiar na EBCRR. Se a sintaxe do Choro tradicional, segundo Almada (2006), se apresenta na forma rondó (ABACA), ou binária (AB), trabalhando a harmonia funcional e um estilo improvisatório que se aproxima da variação – o que foi mantido na primeira gran- de atualização do choro em Brasília que marcou um processo de re-construção de identida- des – a sintaxe do choro moderno já apresenta uma estrutura mais livre, o diálogo com uma harmonia mais próxima do jazz, plena de notas de tensão, de acordes não resolvidos, com espaços para uma improvisação que se afasta da linha melódica. Esse foi o estilo que mar- cou o segundo grande momento de atualização do choro na cidade pós-moderna, conforme já mencionado. Por outro lado, o trabalho com o choro tradicional e com o choro moderno convive nos palcos do clube com um repertório eclético, com o jazz, com o rock, com ou- tros gêneros brasileiros, com a música regional, com a música erudita. O caráter dialógico do gênero do discurso que traz na sua base uma polifonia de vozes em cada atualização que realiza se mostra novamente evidente aí, revelando diálogos culturais e temporais. O choro brasiliense – um gênero musical percebido aqui como estrutura simbólica portadora de um conteúdo temático que se imbrica numa forma composicional – é constituído nesse momen- to não só do resíduo que estabelece o gênero estilísticamente (peculiaridades de índole con- textual), mas também da interação e diálogo com a base estilística de outros gêneros locais e globais (peculiaridades de índole individual).

    Abordagem das peculiaridades e práticas do choro em Brasília que atualmente re- mete ao ecletismo e hibridismo musical mencionados por Teixeira (2007), e a dois nomes profundamente envolvidos com essa via de mão dupla que se estabelece entre a EBCRR e o Clube do Choro de Brasília. Segundo esse autor,


    os projetos artísticos realizados por dois próceres desse processo, Reco do bandolim e Hamilton de Holanda, excelências de Brasília, atestam no sentido da existência de uma maneira brasiliense de criação artística, assim como de que já haveria, nessa ci- dade, uma maneira própria de chorar: o choro livre, multicultural e transregional, pouco apegado ao classicismo do gênero, mais inovador e alegre. (TEIXEIRA, 2007, 43)

    Considerando as trocas estabelecidas entre as duas principais instituições que inte- gram o “Complexo do Choro em Brasília”, envolvendo também o representacional, Teixeira insiste em reconhecer uma tradição musical “nacional” no cenário brasiliense ligada à prá- tica dos chorões, embora afirme ainda que criatividade e originalidade estão na base dessas instituições, percebidas como “exemplos privilegiados da usina de talentos em que Brasília já teria se tornado”. Observa: “Isso porque ambas resultam de processos híbridos de cons- trução institucional, virtuosismo artístico, flexibilidade estilística, profissionalismo e pre- servação das tradições musicais nacionais”. (TEIXEIRA, 2007, 43). [Grifo meu]

    O autor lembra que nunca é suficiente reiterar a importância da institucionaliza- ção do ensino da música e do parentesco (prática musical passada de pai para filho) como características recorrentes de transferência do capital cultural (BOURDIEU, 2003)9. Insti- tucionalização e parentesco que, através da circularidade observada, convivem no univer- so chorão brasiliense com uma feição destradicionalizante que incorpora as realizações de uma verdadeira vanguarda.

    Esse gênero discursivo, que faz com que processos de hibridação convivam com a tradição, no entanto, continua provocando no contexto da EBCRR opiniões que estabele- cem uma conexão com a sua representatividade enquanto “genuína música brasileira” que interage com a capital do país que abriga a diversidade. Capital do país que, enquanto capi- tal, num processo metonímico, é capaz também de representá-lo (PESAVENTO, 2002), con- forme vai ser abordado no próximo item. Representações se evidenciam aí, portanto, nessa via de mão dupla estabelecida entre instituições, num cenário de cidade modernista extre- mamente racionalizada e funcional que convive de forma intensa com a diversidade, o que vai permitir a observação de um trânsito mais amplo de representações entre o Clube e a EBCRR, apontando para o terceiro momento de reflexão desse trabalho.


  3. O trânsito entre representações


Esse terceiro momento de reflexão permitiu observar que o trânsito entre as ativi- dades das duas instituições brasilienses revela também um trânsito entre as representa- ções10 que objetivam. As representações evidenciadas no contexto das apresentações musi- cais do Clube, que favorecem a percepção do “cultivo do músico profissional e da boa mú- sica brasileira” no seu inevitável diálogo com o diverso e com o global, foram captadas tam- bém de forma semelhante nos depoimentos vários colhidos em rodas de choro que aconte- cem na Escola11 e nas circunstâncias ligadas a dias normais de aulas. Esses depoimentos levaram à percepção de que grande parte dos alunos busca a EBCRR porque almeja um trabalho mais elaborado com a música brasileira, um aprofundamento técnico, visando se profissionalizar. Acham que o Clube e a Escola oferecem essa oportunidade, se constituin- do numa importante referência na cidade em termos da música brasileira de muita quali- dade, assim como de acessibilidade a esse trabalho e a essa música de forma prática. Já no referente à preferência pelo investimento no gênero musical choro, registrada também a partir desses depoimentos, ficou evidente que o interesse por essa manifestação musical passa pela consciência da sua diversidade, riqueza estrutural rítmica, capaz de condensar a estrutura rítmica da própria música brasileira e de outras realidades culturais. Peculia- ridades estilísticas que possibilitam elementos para uma formação teórica e musical mais ampla, assim como o prazer de se estar praticando uma “música genuinamente brasileira” na capital da república, mesmo que essa música esteja às vezes em diálogo com manifes- tações globais.12

São várias as representações que se evidenciam, portanto, tanto na prática do gêne- ro choro, que remete a uma “forma composicional” que revela “características de estilo de índole contextual/individual”, quanto na fala dos alunos. Práticas e depoimentos que torna- ram evidentes esse interesse pela escola estruturada que ensina música popular, o apreço por um gênero musical, tendo em vista as suas peculiaridades estilísticas, inclusive, aque- las resultantes de sua inserção em um contexto social que mantém diálogo com gêneros musicais globalizados, como o jazz e o rock, um diálogo tão prestigiado pelas apresentações do Clube do Choro. Um gênero musical que o brasiliense busca ao lotar as listas de espera na EBCRR, e que aprecia, porque tem contato com ele não só na escola, mas também nos vá- rios locais em que alunos ou egressos dessa escola se apresentam em rodas de choro, como demonstrou a pesquisa realizada em bares, restaurantes, áreas de lazer de shopping centers, casas de famílias, dentre outros locais.

Enfim, considerada por muitos no cenário brasiliense como um celeiro de músi- cos, em perfeita sintonia com a filosofia do Clube, a EBCRR, através de suas práticas e dos depoimentos de seus alunos e professores, foi capaz de evidenciar enunciados13 que dialo- garam de perto com aqueles que aparecem na apresentação e/ou comentários dos projetos anuais do Clube do Choro no seu site na Internet14, tais como: “esse projeto é mais uma ini- ciativa do Clube do Choro, em sua constante luta para manter vivo esse gênero musical ge- nuinamente brasileiro, cuja importância para a cultura e formação do músico brasileiro é incontestável”; enunciados como aqueles que apontaram para o “aprofundamento, preserva- ção e divulgação de manifestações genuínas de nossa cultura popular”, ou mesmo aqueles que evidenciaram “preservação com renovação – este é o nosso lema, que abre espaço para a manifestação do novo sem esquecer de cultuar as raízes, os clássicos que dão identidade e fisionomia ao Brasil e ao povo brasileiro.”

Imagens, idéias, enunciados, enfim, representações sociais que se objetivam atra- vés das práticas e das concepções que os alunos têm da Escola e do gênero Choro, assim co- mo se objetivam através das atividades relacionadas ao Clube, capazes de evidenciar ainda, por outro lado, os “elementos constituintes” do representacional conforme esboçados por Jodelet (2001): “informações, crenças, valores, opiniões, elementos culturais, ideológicos, etc.” (JODELET, 2001, p. 38). Esses sujeitos emitem opiniões, valorizam, buscam e investem num elemento cultural, um capital cultural, um objeto imajado15 (MAFFESOLI, 1995) que cultivam porque ligado a elementos do feixe de significações que integram os brasilienses/ brasileiros como um grupo.


Considerações finais


Foram delineados até aqui os três momentos de reflexão mencionados, que, nesse ponto do trabalho, pedem que seja feita uma conexão mais efetiva entre eles. O primeiro momento remete aos investimentos dos professores e alunos no trabalho com o ensino for- mal, não-formal e informal relacionado ao gênero choro na EBCRR, e, nessa circunstância, à necessidade não só de conhecer e aprender a executar elementos estruturais desse gênero, mas também de praticar as rodas de choro mais direcionadas e mais informais que aconte- cem na escola. Rodas de choro com as quais se identificam, que os fazem se sentirem incen- tivados em integrá-las por ser natural encontrá-las em vários pontos da cidade. Essa última afirmação já possibilita observar mais uma vez que se trata aqui do investimento de profes- sores e alunos num gênero e prática musical que se tornaram um dos capitais culturais e simbólicos de Brasília, sobretudo, se forem levadas em consideração as representações evi-

denciadas e os dois grandes momentos de significação do gênero choro na cidade, mencio- nados no início do texto.

Um segundo momento de reflexão já trouxe a percepção da via de mão dupla es- tabelecida entre as duas instituições que integram de forma básica o “complexo do choro” brasiliense: o Clube do Choro e a EBCRR. Circunstância de trocas em que o Clube propi- cia constantes condições de vivência e apreciação do choro tradicional e do choro moderno aos alunos, a possibilidade de conviver com importantes frutos do “complexo do choro em Brasília”, como é o caso de Hamilton de Holanda, já citado, a possibilidade de participar de Workshops com grandes nomes da música nacional. Alunos que, por sua vez, além da fre- qüência às programações do Clube, usam seu palco para demonstrar a sua prática e inves- timento no choro.

Já um terceiro momento de reflexão possibilitou identificar representações nos rela- tos dos alunos e professores que coincidiram, no seu teor, com as representações divulgadas pelo Clube do Choro em seus sites na Internet (CLÍMACO, 2008). Representações em que o choro e suas práticas, percebidos aqui como um dos capitais culturais e simbólicos da ci- dade de Brasília, representam sempre a “genuína música brasileira”, um patrimônio que de- ve ser cultivado na cidade, aprendido e praticado na EBCRR através do ensino formal, não-

-formal e informal.

É nessa cidade, portanto, em sua condição de capital que num processo metonímico é capaz de representar o país, segundo reflexões de Pesavento (2002), que seus habitantes di- videm o significado que remete ao cultivo da “genuína música brasileira”. Música brasileira que, também num processo metonímico, é representada pelo choro brasiliense e suas práti- cas. Como já observado, há uma preocupação evidente em aprender as estruturas do choro e a necessidade de praticar as rodas de choro, mas essa realidade está sempre relacionada à menção da “genuína música brasileira”. Nessa última conexão outros sentidos brotam, evi- denciando não só o cultivo do capital cultural que tem uma história em Brasília, mas tam- bém a presença na cidade de um bem simbólico capaz de contribuir para uma “construção simbólica do nacional”. Nesse momento Ayres (2004) e Teixeira (2007) podem ser lembra- dos. O primeiro, por ter afirmado a importância do choro não somente no processo educati- vo, mas também na formação da consciência do povo brasileiro, por dizer respeito “à nossa memória e identidade cultural” (AYRES, 2004, p. 32), e o segundo, por lembrar que as duas instituições ligadas ao choro, em foco nesse trabalho, “resultam de processos híbridos de construção institucional, virtuosismo artístico, flexibilidade estilística, profissionalismo e preservação das tradições musicais nacionais” (TEIXEIRA, 2007, p. 43).

Assim, as crescentes filas de espera por vagas na EBCRR estariam relacionadas com sentidos e significados vários que estão na base da polifonia de vozes que estabelece o choro na cidade como um capital cultural e simbólico. Do mesmo modo, se de um lado, o ensino formal, não-formal e informal, tem sentido didático/ metodológico, conforme foi analisado aqui, de outro lado, essas diferentes modalidades de ensino tem sentido especial nesse contexto, contribuindo, nas suas especificidades, para que se objetivem os significa- dos que dão suporte às representações analisadas: conhecer e praticar a “genuína música brasileira”, mesmo que essa música também interaja com manifestações globais. Música que deve ser aprendida e analisada na sua parte estrutural e peculiaridades estilísticas, as- sim como deve ser também praticada nas rodas de choro, para que se cumpra o que se es- pera do seu cultivo em Brasília. Significados se aglomeram na base desse vetor identitário dos brasilienses, portanto. Se essa música deve ser racionalizada, aprendida e apreendida, realizar diálogos diversos, ela nunca deve perder o seu teor significativo, o seu potencial li- gado a uma ambiência de afeto, de confraternização, dentre os vários elementos que a fazem

ser abordada aqui como um gênero discursivo atualizado na cidade modernista. Um gênero discursivo que nas suas diferentes possibilidades de atualização apresenta sempre na sua base uma polifonia de vozes, e, consequentemente, características de estilo de índole con- textual e individual.


Notas


1 As reflexões sobre os dois momentos de ressignificação do choro em Brasília (CLÍMACO, 2008), no contexto des- se trabalho, é que possibilitaram denominar as práticas do choro na cidade de práticas significativas.

2 “Genuína música brasileira” – essa expressão foi identificada de forma insistente em vários momentos de uma pesquisa realizada, que visou o choro como expressão musical no cotidiano de Brasília (CLÌMACO, 2008). Foi muito pronunciada por Francisco Carvalho de Assis – o six – (antigo chorão muito atuante na cidade e um dos presidentes do Clube do Choro de Brasília) em vídeos caseiros e outros documentos cedidos por sua família ao pesquisador; foi pronunciada de forma insistente nas entrevistas realizadas com alunos e professores nas de- pendências do Clube e da EBCRR; nas entrevistas concedidas por uma figura central do “complexo de choro em Brasília”: Henrique Santos Filho: o Reco do Bandolim. Foi utilizada com freqüência também nos textos do site do Clube do Choro de Brasília, em matérias de jornais. Enfim, é uma expressão muito recorrente no cenário mu- sical brasiliense, muito relacionada à prática do choro.

3 Na perspectiva do tradutor da obra de Bakhtin tomada como referência nesse trabalho (BAKHTIN, 2003, p. 261), o termo viskázivania, derivado do infinitivo viskázivat, significa “enunciar”, um ato de exprimir, transmitir pen- samentos, sentimentos pelas palavras (e através de outras formas ligadas a modalidades de linguagem diferentes da verbal). Nesse contexto significativo, quando menciona “enunciado”, Bakhtin refere-se a objetivações cultu- rais cujo sentido depende do contexto sócio-histórico a que pertencem e da relação dialógica que estabelecem, alem de estarem ligadas a um campo específico de atuação. Ao abordar a noção de gênero do discurso (ibidem,

p. 262), observa que “cada campo de utilização da língua elabora os seus tipos relativamente estáveis de enun- ciados”. Considera, portanto, o gênero discursivo como um tipo relativamente estável de enunciado, que inevi- tavelmente é atualizado, ressignificado, em outros tempos e/ou novos contextos de interação social.

4 A expressão “Complexo do Choro de Brasília” foi utilizada por Teixeira (2007, 31-32), referindo-se à grande difu- são do gênero choro na cidade, percebida como resultado do investimento de duas instituições: Clube do Choro de Brasília e Escola Brasileira de Choro Rapahel Rabelo.

5 Entrevista concedida por Fernando César Vasconcelos Mendes nas dependências da Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello em Brasília, em 03 de dezembro 2006.

6 Para Gainza (1983, p. 14), a improvisação define-se “como toda execução musical instantânea produzida por um indivíduo ou grupo.” Em um sentido mais amplo, entende que improvisar é sinônimo de jogar musicalmente e, na abordagem de um sentido mais restrito, entende que “ a improvisação constitui uma atividade submetida a certas regras que se relacionam tanto com o nível interpretativo (aspectos técnicos expressivos da execução) como com a capacidade criativa (que determina a seleção, organização e manejo dos materiais musicais) do músico que a realiza. Fala, na verdade, de um processo de performance e criação musical desenvolvido a partir de um jogo ini- cial com estruturas sonoras e musicais conhecidas (melodias ritmos, harmonias, formas e estilos) que conduz à internalização das mesmas e, depois, a um processo gradativo que levará cada vez mais à capacidade de “quebrar” essas estruturas absorvidas, permitindo uma “posterior recomposição durante o processo de expressão”.

7 A expressão “via de mão dupla” é utilizada nesse artigo visando expressar a interação acentuada que se estabele- ce entre a Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello e o Clube do Choro de Brasília na efetivação dos processos de ensino e apreciação musical relacionados ao gênero choro. Existe uma contribuição mútua entre essas duas instituições.

8 Hamilton de Holanda vivenciou as rodas de choro e interagiu com o Clube do Choro de Brasília desde criança. Terminou o curso de Composição no Departamento de Música da UnB e é hoje reconhecido pela França e pe- los músicos Beth de Carvalho e Hermeto Pascoal, como um dos maiores instrumentistas da atualidade. Compôs choros que denominou de Choro exaltação; Choro jazz, que caracterizam o que foi chamado por Climaco (2008) de choro moderno. Atualmente tem investido numa música instrumental que afastou muito das características contextuais do gênero e que, segundo ele, só o tempo permitirá uma classificação (Entrevista observada no ví- deo O prazer de tocar juntos (S/D)

9 Os capitais cultural, econômico e simbólico são para Bourdieu (2003, p. 133-135), as propriedades atuantes num campo de produção cultural, são as diferentes espécies de poder ou de capital que nele atuam. Segundo esse au- tor, “as espécies de capital, à maneira dos trunfos num jogo, são os poderes que definem as probabilidades de ganho num campo determinado (de fato, a cada campo ou subcampo corresponde uma espécie de capital parti- cular, que ocorre como poder e como coisa em jogo nesse campo). Por exemplo, o volume do capital cultural (o mesmo valeria, mutatis mutantis para o capital econômico) determina as probabilidades agregadas de ganho em todos os jogos em que o capital cultural é eficiente, contribuindo deste modo para determinar a posição no espa- ço social (na medida em que essa posição é determinada pelo sucesso no campo cultural).”

10 As informações que levaram às representações aqui comentadas são resultantes da análise de entrevistas conce- didas a Clímaco (2008, p. 271-272) por alunos da EBCRR e da análise de textos integrantes de sites do Clube do Choro de Brasília.

11 Foram colhidos depoimentos em algumas rodas observadas no pátio da Escola: uma delas, quando os alunos es- tavam se preparando para tocar na apresentação do Clube em dezembro de 2005, outra em 2006 e outra ainda quando se preparavam para o workshop com a veterana Odette Dias no final de 2007.

12 Depoimentos colhidos entre alunos nas dependências da Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello em vários dias e momentos.

13 As representações, de acordo com a fundamentação teórica desse trabalho, são consideradas enunciados.

14 As informações que levaram às representações aqui comentadas são resultantes da análise de textos integrantes de sites do Clube do Choro de Brasília (CLÍMACO, 2008, p. 271-272).

15 Para Maffesoli (1995), o objeto imajado é aquele que está dado como lembrança de uma imagem primordial, fun- dante, que transcende o indivíduo e imanentiza-se no grupo estabelecendo a comunhão, trazendo a experiência de sentimentos, sensações e emoções com o outro pela forma. Objeto emblemático qualquer que mantém coesa a comunidade, instaurando o coletivo.


Referências


ALMADA, Carlos. A estrutura do choro. Rio de Janeiro: Da Fonseca, 2006.

ANTUNES, Milena Tibúrcio de O Choro: a força de um gênero na capital. Brasília: Universida- de de Brasília (UnB), 2003. [Trabalho apresentado ao Programa Institucional de Iniciação Cien- tífica (PIBIC). Departamento de Música, UnB, 2003].

AYRES, Oscar. O gênero choro na educação. Goiânia: Universidade Federal de Goiás (UFG), 2004. [Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Música Brasileira no séc. XX. Escola de Música e Artes Cênicas, UFG, 2004].

BAKHTIN, Mikhail. Estética da comunicação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

CARVALHO, Guilherme Paiva. Identidade, cultura e música em Brasília. Ciências Sociais Unisinos, v.51, n.1, jan-abr, p. 10-18, 2015.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações sociais. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.

CLÍMACO, Magda de Miranda. Alegres dias chorões: o choro como expressão musical no co- tidiano de Brasília. 2008. 393 p. Tese de Doutorado. Brasília, Universidade de Brasília (UnB), 2008.

DE LARA FILHO, Ivaldo Gadelha. O choro dos chorões de Brasília. 2009. 208 p. Dissertação de Mestrado. Brasília, Universidade de Brasília (UnB), 2009.

GAINZA, Violeta H. de. La improvisacion musical. Buenos Aires: Ricordi, 1983.

GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal e o educador social: atuação no desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010

GONÇÁLVES, Augusto Charan A. B. O ensino do choro no contexto da Escola Raphael Rabello de Brasília. 2013. 184 p. Dissertação (Trabalho de Mestrado). Brasília. Universidade de Brasília (UnB), 2013.

GUIMARÂES, Felipe Nunes. O ensino do Bandolim em três contextos letivos de Brasília. 2013. 37 f. Monografia (Licenciatura em Música). Brasília, Universidade de Brasília, 2013.

HOLSTON, James. A cidade modernista – uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Com- panhia das Letras, 1993.

JODELET, Denise. As representações sociais no campo das ciências humanas. Rio de Janeiro: Ed. Da UERJ, 2001

LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? São Paulo: Cortez, 2010.

MAFFESOLI, Michel. Objeto Imajado. In: MAFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.

NUNES, Brasilmar Ferreira. Brasília – A fantasia corporificada. Brasília: Paralelo 15, 2004.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

PEREIRA, Erika Ruas. A trajetória do Clube do Choro de Brasília. 2004. 42 f. Monografia (Espe- cialização em Turismo e Hospitalidade). Brasília, Universidade de Brasília (UnB), 2004.

SEVE, Mário. Vocabulário do Choro – estudos e composições. Rio de Janeiro: Lumiar, 1999

TEIXEIRA, João Gabriel de Lima. A Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello: um estudo de caso de preservação musical bem sucedida. In Congresso Brasileiro de Sociologia, 12º, 2007, Recife. Recife: UFPE, 2007.


DVD


O PRAZER de tocar juntos. Produção executiva: J. Procópio. Pesquisa e Produção: Flávio Carneiro. Produtor Associado: Mário Ligocki. Direção de Arte: Bruna Bittes. Finalização: Fábio Lima. Produtora: Pavirada Filmes. Extra. DVD. S/D


Sites mencionados:


Disponível em: <http://escoladechoro.com.br/site/>. Acessado em: 29 abril 2015.


image

Magda de Miranda Clímaco - Doutora em História Cultural pela Universidade de Brasília (UnB) e Mestre em Música pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Atualmente é professora e orienta trabalhos na Graduação e na Pós-Graduação da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, é coordenadora do Núcleo de Estudos Musicológicos, integra o Laboratório de Musicologia Braz W. P. de Pina dessa instituição, o Núcleo Caravelas/CESEM/Universida- de Nova de Lisboa e o Grupo de Pesquisa/CNPq Arte, Educação e Cultura.

image