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Artigos Científicos -

Música em Geral

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Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 273p., n.2, 2015

Algumas questões sobre a significação musical e

suas implicações para o ensino da música1


Silvia Cordeiro Nassif (Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo)

scnassif@terra.com.br


Resumo: Este trabalho propõe uma discussão sobre a questão da significação musical como ponto de partida para uma reflexão sobre a educação musical. Partindo de concepções polarizadas sobre o tema, vai se aproximando de au- tores que propõem uma visão mais integradora, até chegar à abordagem dialética dos sistemas simbólicos de Mikhail Bakhtin, cujo pensamento permite pensar a questão de maneira bastante abrangente. Toda essa discussão é trazida, então, para o campo da educação musical, dando-se ênfase à necessidade de considerar, nos processos educativos, os vários modos de relação significativa que os indivíduos estabelecem com a música e, portanto, as várias portas de entrada para o conhecimento musical.

Palavras-chave: Significação musical; Educação musical; Estética; Semiologia da música.


Some aspects about musical signification and its implications on the teaching of music

Abstract: This work proposes a discussion regarding the aspects of the musical signification as a bottom line to a re- flection on musical education. Starting off from polarized conceptions about the theme, it converges to authors who propose a more integrative vision, culminating at a dialetic approach of the symbolic systems of Mikhail Bakhtin, whose ideas allow a rather broad interpretation of the topic. All this discussion is then brought to the field of mu- sical education, giving emphasis to the necessity of considerating, in educative processes, the various ways of sig- nificative relationship that individuals establish towards music and hence the various forms in which to access the musical knowledge.

Keywords: Musical signification, Musical education, Aesthetic, Music semiology.


Algunas cuestiones sobre el significado musical y sus implicaciones para el proceso de enseñanza de la de música

Resumen: El presente trabajo propone una discusión sobre la cuestión de significado musical siendo un punto de partida para una reflexión sobre la educación musical. Partiendo de concepciones polarizadas, sobre el tema pro- puesto, se va aproximando de autores que proponen una visión más integradora, hasta llegar al abordaje dialéctico de los sistemas simbólicos propuesto por Mikhail Bakhtin, cuyo pensamiento permite pensar la cuestión de una forma bastante amplia. Toda esa discusión es traída para el campo de la educación musical, dando un énfasis a la necesi- dad de considerar, en los procesos educativos, varios modos de relación significativa que los individuos establecen con la música y, por tanto, las diferentes puertas de entrada para la adquisición de conocimiento musical.

Palabras clave: Significad musical; Educación musical; Estética; Semiología de la música.


A questão da significação musical há muito tempo vem sendo estudada e discuti- da por teóricos das mais variadas áreas, que vão da filosofia e semiologia à análise musical. Todo esse conhecimento produzido nesses estudos tem causado interesse no campo educa- cional da música, uma vez que parece ser consensual hoje na educação em geral e na edu- cação musical, em particular, que os processos de aprendizagem estão fortemente vincula- dos ao significado que determinado conhecimento possui para o aluno. No caso específico da música, se a sua aprendizagem depende de alguma forma dos modos como essa lingua- gem é significada pelos indivíduos, para que seja possível um ensino mais efetivo, precisa- mos saber de que maneiras a música, enquanto uma forma simbólica, engendra significa- dos, ultrapassa o estatuto de mero estímulo psico-fisiológico e torna-se para as pessoas algo efetivamente “com sentido”. Assim sendo, acredito que os estudos sobre significação musi- cal podem colaborar para que os educadores musicais organizem suas práticas levando em conta, entre outros aspectos, essa importante questão.

Visando dar uma contribuição nessa direção, este trabalho parte de algumas vi- sões clássicas e dicotômicas sobre o tema, passa por posições mais integradoras que bus- cam uma conciliação entre as oposições, para em seguida apresentar a abordagem dialé-



Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 273p., n.2, 2015 Recebido em: 01/08/2015 - Aprovado em: 30/09/2015

tica de Mikhail Bakhtin, considerada dentre as apresentadas a mais promissora para as especificidades da educação musical. Com base nessa perspectiva, propõe ainda um mo- do de pensar a significação musical que leva em conta não apenas a música, tomada em si mesma, como também as suas condições de produção e recepção e as particularidades de cada ouvinte, aspectos considerados de extrema importância para as práticas educativas musicais.


1. A significação musical: visões dicotômicas


A ideia de que a música possa significar alguma coisa parece não ser consensu- al. Se poucos teóricos negariam a existência de uma sintaxe musical, ou seja, o fato de que a música é composta por unidades menores que, agrupadas segundo determinadas re- gras combinatórias, dão origem a unidades maiores, o mesmo não se pode dizer em rela- ção à possibilidade de que exista uma semântica musical. E, mesmo entre os que a admi- tem, não há consenso em relação a como seria essa semântica ou mesmo onde procurá-la. De maneira geral, grande parte das elaborações teóricas que visam discutir a questão da significação musical podem ser agrupadas em dois grandes blocos: 1- os que procuram sentidos para a música nas remissões que o material sonoro musical possa fazer ao mun- do extra-musical; 2- os que pleiteiam uma autonomia para a linguagem musical em rela- ção ao mundo exterior e, portanto, buscam sentidos nas suas próprias relações internas. Caznok (2003) denomina essas duas correntes, respectivamente, estética referencialista e vertente absolutista:


A primeira acredita que a música tenha seu significado assentado sobre a possibilida- de de o mundo sonoro remeter o ouvinte a um outro conteúdo que não o musical: ele se torna meio para atingir algo que está além dele. Expressar, descrever, simbolizar ou imitar essas referências extramusicais – relações cosmológicas ou numerológicas, fenômenos da natureza, conteúdos narrativos e afetivos, entre outras possibilidades – seriam a razão de ser de um discurso musical. [...]

A corrente absolutista, ligada prioritariamente à música instrumental, concebe a mú- sica como linguagem autônoma em relação a quaisquer outros conteúdos, consideran- do-a auto suficiente na construção e no estabelecimento de relações puramente so- noras, intramusicais. Imitações, descrições e referências a outros conteúdos que não o sonoro são consideradas interferências a uma suposta “audição verdadeira” e dimi- nuem o valor de uma obra (CAZNOK, 2003, p. 23-24).


Embora cronologicamente essas duas formas de conceber a significação musical te- nham se sucedido2 e, inclusive, sido a causa de inúmeras polêmicas, podemos dizer que, na atualidade, elas coexistem de modo razoavelmente pacífico e, de acordo com Caznok, não necessariamente excludente.

Neste trabalho, aprofundarei um pouco cada uma dessas vertentes, mostrando al- guns de seus defensores históricos e atuais, bem como os argumentos a favor de uma ou ou- tra. Buscando fundamentação em concepções de autores da perspectiva histórico-cultural e da semiologia da música, procurarei mostrar que, quando se leva em conta o caráter relacio- nal e convencional dos signos (e das formas simbólicas), torna-se necessário buscar outros modelos, mais abrangentes, que sejam capazes de ampliar a visão de significação musical, possibilitando também, ainda que de uma maneira indireta, uma revisão e ampliação das possibilidades educativas com a música.

2. A música como meio


Entre as teses mais comuns a respeito da significação musical, encontra-se a ideia de que a música é uma forma de provocar determinadas respostas emocionais. A música seria, então, para aquele que cria ou interpreta, uma espécie de catarse, uma forma de res- tabelecimento do equilíbrio emocional. Essa teoria faz parte do senso-comum e é talvez a mais difundida, colocando a música como um meio de atingir alguma forma de sentimento ou estado emocional.

Na mesma linha explicativa, mas com um embasamento teórico mais consisten- te, está a versão de alguns ramos da psicanálise freudiana, que veem na arte de modo ge- ral (e não apenas na música), uma forma de expressão de desejos inconscientes, que possui a capacidade de corporificar, através das obras artísticas, as fantasias secretas do artista (LANGER, 1989, p. 207)3. De acordo com essa abordagem o verdadeiro sentido de uma obra de arte estaria centrado sempre em um “conteúdo oculto”.

Historicamente, a ideia de que a música tem como função representar, simbolizar ou mesmo descrever algo é bastante antiga. Teve o seu período de ouro entre os séculos XVI e XVIII, logo após começou a perder força, dando lugar aos ideais românticos de arte, aos quais até hoje ainda estamos muito atrelados (TODOROV, 1996). A chamada “música des- critiva”, que prevaleceu nesse período, tinha como objetivo a imitação não somente dos sons da natureza e da vida cotidiana, mas, de um modo musicalmente convencionalizado, repre- sentar também estados de ânimo. Criaram-se, com essa finalidade, uma série de padrões composicionais relacionando elementos musicais a estados ou movimentos físicos e emo- cionais. A Teoria dos Afetos4, por exemplo, já no período barroco, foi uma tentativa de sis- tematizar essa vinculação de elementos musicais a estados de ânimo ou afetos específicos. Também data dessa época o famoso tratado de harmonia de Rameau (1683-1764), o primeiro livro teórico que reconhecia “cientificamente” – por meio de estudos acústicos e matemáti- cos – o poder musical de imitação da natureza (CAZNOK, 2003, p. 93-94).

Além da imitação, outro modo de atribuir sentidos à música a partir de referências externas é estabelecer paralelos entre a estrutura formal musical e a estrutura social em vi- gor na época em que ela foi composta. Essa tese é defendida, entre outros, por Ernest Schur- mann (1990), especificamente em relação ao sistema tonal. Também Wisnik (1999), a partir de outra perspectiva, procura mostrar homologias entre aspectos da tonalidade e caracterís- ticas da história da modernidade.

A despeito de algumas exceções, podemos dizer que a procura por sentidos em re- missões à realidade exterior à materialidade sonora da música parece ser menos comum nos teóricos atuais, muitos dos quais, conforme veremos a seguir, ainda estão ligados a um ideal romântico de arte. Vamos, então, conhecer alguns autores que propuseram teorizações so- bre o significado musical e que, de um modo ou de outro, estão sob essa influência.


3. A música como fim


De acordo com a ideologia romântica, nascida no final do século XVIII, a obra de arte não diz respeito a nada que lhe seja exterior (não é imitativa e nem representativa), a não ser o próprio artista (é subjetiva e expressiva), e tem um significado e uma finalidade em si mesma (é auto-referente e, portanto, autônoma em relação ao mundo real): “A obra de arte significa a si própria, pelo jogo das suas partes; ela é, portanto, sua própria descrição, a única que lhe pode ser adequada” (TODOROV, 1996, p. 207).

Esse modo de conceber a arte e o seu significado influenciou, profundamente, muitos dos pensadores que se debruçaram sobre a questão da significação musical e, guar- dadas algumas diferenças, é absolutamente predominante entre os teóricos atuais. Entre as variantes da vertente estética absolutista, Caznok (2003)5, coloca uma distinção entre os que “apreendem o significado musical de uma forma mais intelectual, racional e catego- rizante” (p. 24), os quais ela denomina formalistas, e “os que estabelecem com o discurso musical um relacionamento mais emocional e afetivo” (p. 24), chamados expressionistas. É importante assinalar que não se trata de posturas fechadas, conforme enfatiza a autora, pois pode-se transitar de uma para a outra de acordo com o tipo de música em questão, ou seja, pode-se olhar para determinadas músicas de um modo totalmente formalista e apre- ender outras de uma maneira predominantemente emotiva. Vamos, a seguir, conhecer al- gumas tentativas de buscar o significado da música entre autores mais ligados a cada uma dessas posturas.


3.1 O expressionismo


A postura expressionista concebe o significado musical como algo que, de certo modo, está sempre ligado a sentimentos (no sentido mais amplo possível da palavra) ou estados de ânimo. Não há, contudo, a ideia de “representação” dos sentimentos, como na vertente referencialista, pois essa vinculação ao mundo emotivo acontece, segundo essa visão, de um modo bem mais sutil. Para Langer (1989), por exemplo, a música existe não para provocar emoções ou mesmo para apenas anunciá-las, mas tem um conteúdo emocio- nal simbólico. Nas suas próprias palavras, a música é a “expressão lógica” dos sentimentos, pois revela não os sentimentos particulares de um compositor, mas o seu “conhecimento do sentir humano”. Há, desse modo, um certo distanciamento entre as emoções pessoais do compositor e as emoções formalmente expressas em sua obra, as quais, inclusive, não têm necessariamente que fazer parte da experiência dele. Marca-se assim uma linha divi- sória bem clara entre a expressão artística e a autoexpressão, com a qual ela não deve ser confundida:


Assim como as palavras podem descrever eventos que não presenciamos, lugares e coisas que não vimos, a música pode apresentar emoções e estados de espírito que não sentimos, paixões que antes não conhecíamos. Seu tema é o mesmo que o da “au- to-expressão”, e seus símbolos podem até ser emprestados, de vez em quando do rei- no dos sintomas expressivos; todavia os elementos sugestivos tomados de emprésti- mo são formalizados, e o tema “distanciado” em uma perspectiva artística (LANGER, 1989, p. 221, grifos e aspas da autora).


A relação da música com a emoção, de acordo com Langer, não acontece num ní- vel meramente superficial, mas existem pesquisas que, segundo a autora, revelam uma se- melhança lógica entre as estruturas musicais e aspectos formais da nossa vida interior (fí- sica ou mental): “padrões de movimento e repouso, de tensão e alívio, de concordância e discordância, de preparação, de efetuação, de excitação, de mudança súbita etc.” (LANGER, 1989, p. 226).

Esse modo de conceber a significação musical como algo que diz respeito à vida emotiva de uma maneira paradoxalmente racional tem seguidores também entre os pensa- dores da educação musical. K. Swanwick (2003), por exemplo, expõe detalhadamente como seria o processo de apropriação simbólica da música. De acordo com esse autor, o lugar por

excelência da significação musical, a genuína experiência estética com a música, dar-se-ia no momento em que as formas musicais percebidas fundem-se com as nossas experiências prévias e os materiais sonoros são ouvidos como se tivessem uma expressividade intrínse- ca. Aí estaria, para esse autor, “a transformação metafórica compartilhada com todas as for- mas simbólicas” (SWANWICK, 2003, p. 35).


3.2 O formalismo


Entre os defensores mais radicais de uma estética que poderíamos chamar de ab- solutista formalista está Eduard Hanslick (1989), cuja obra Do Belo Musical (publicada pe- la primeira vez em 1854) é uma crítica severa tanto à música imitativa quanto às concep- ções musicais dominantes na época, que atribuíam um papel primordial aos sentimentos na música. Hanslick criticava tanto a ideia de que a função da música seria despertar sen- timentos, quanto a ideia de que o sentimento é o conteúdo a ser expresso pela música. Em- bora admitindo que toda arte tenha relação com sentimentos, esse filósofo considerava-os apenas um efeito secundário, que de modo algum poderia explicar os seus princípios es- téticos. A beleza só poderia ser encontrada, nesse modo de ver, na própria obra e não na relação entre esta e o ouvinte. O autor atestava também que o conteúdo de uma música dizia respeito apenas à sua estrutura interna, às suas “formas sonoras em movimento” (HANSLICK, 1989, p. 62):


A música compõe-se de séries de sons, de formas sonoras; estas não têm outro conteú- do senão elas mesmas. [...] Cada um pode avaliar e designar o efeito de uma peça mu- sical segundo sua individualidade, mas o conteúdo dela nada mais é do que as formas sonoras ouvidas, porque os sons não são apenas aquilo com que a música se expressa, mas também são a única coisa expressa (HANSLICK, 1989, p. 155-156).


Como o juízo estético estava ligado exclusivamente ao modo como os sons se estru- turam numa obra musical, tanto os sentimentos do compositor quanto as condições sociais e políticas de sua produção eram consideradas totalmente estranhas à obra: “A pesquisa estética nada sabe e nada saberá das relações pessoais e do ambiente histórico do compo- sitor; ela só ouvirá o que a própria obra de arte exprime e acreditará nisso” (HANSLICK, 1989, p. 81).

Temos, em suma, uma concepção da música como totalmente autônoma em relação ao seu contexto de produção e cujos significados são intrínsecos e autorreferentes. Como a beleza estética é tida como uma característica inerente a algumas músicas (as “artísticas”), considera-se que não esteja sujeita (como os sentimentos) a variações históricas e culturais e não dependa da interpretação de um ouvinte para que possa existir.

Esse formalismo radical de Hanslick teve como inimigas as concepções de músi- ca predominantes naquele tempo, contra as quais foi declaradamente formulado e encontra eco ainda hoje nas ideias de pensadores atuais. Pierre Schaeffer (1993), por exemplo, embo- ra admitindo que a percepção de sentido na música dependa de uma familiarização prévia com ela, coloca como uma das principais diferenças entre o signo linguístico e o signo mu- sical a não arbitrariedade do último:


Qual é a diferença fundamental entre esses dois jogos de sinais [língua e música], tão evidentemente oriundos do mesmo suporte? Em um caso, o da linguagem, acon- tecerá agora disjunção do suporte sonoro significante e do conceito significado. [...]

No outro caso, se ainda falamos de sinais, isso não é mais no sentido saussureano do termo, como de um elo arbitrário, que remete a alguma coisa, a menos que se susten- te a tese acrobática de uma valorização caprichosa, exclusivamente social, dos va- lores musicais. Tese pouco provável. Por que as sociedades haveriam de fixar capri- chos improváveis, que não se justificariam por muito tempo junto a outros ouvidos? (SCHAEFFER, 1993, p. 273)


Já num outro momento, diz o autor: “O sinal musical, este não é arbitrário. Vejamos a quinta e a oitava: são relações simples, inscritas na natureza, e que não foram adotadas pe- las sociedades arbitrariamente, mas logicamente” (SCHAEFFER, 1993, p. 261, grifos meus). O que percebemos aqui é uma postura absolutista formalista (nos termos de Caznok, 2003) onde os sentidos musicais estão vinculados a signos (que por um equívoco da tradução aparecem como “sinais”) não convencionalizados, onde existe uma relação neces- sária entre significante e significado. O argumento é a inscrição desses signos na natureza e a sua autor-referência (não remetem a outra coisa). Compreender o significado da música, nesse sentido, passaria pelo conhecimento das determinações acústicas de suas unidades significativas. Assim como em Hanslick, também para Schaeffer os valores musicais não

têm nenhuma relação com os valores sociais.

Ainda outra forma de abordar a significação musical de um modo formalista en- contramos em Maria de Lourdes Sekeff Zampronha (1996). Essa autora faz uma transposi- ção das categorias peirceanas de primeiridade, secundidade e terceiridade para o universo musical, colocando que toda música pode ser apreendida: 1- como uma experiência global e indistinta com a materialidade sonora; 2- como uma vivência fenomenológica que causa uma reação tal que permite algum tipo de classificação do que foi ouvido; 3- como um dis- curso musical formalmente estruturado. De acordo com Zampronha (1996), a dimensão sig- nificativa da música estaria na terceiridade, ou seja, no modo de apreensão musical predo- minantemente intelectual:


Sendo o significante suporte do significado, a significação na música é manifesta- da tendo por base a relação de seus elementos constitutivos, o que vale dizer que a linguagem musical é relacional. O seu sentido surge da relação em que se inscreve, do efeito do fecho, do corte na cadeia de significantes, tudo inscrito numa ordem constitutiva. Sem esquecermos que o significante é sempre polívoco, entrando as- sim em contradição com o conceito de código (ZAMPRONHA, 1996, p. 29, grifos da autora).


Assinala-se também no pensamento dessa autora a ideia de que não somente o as- pecto estrutural é o que torna a música significativa, mas sobretudo o que lhe confere valor e importância.

Em suma, temos, entre os modos predominantes de pensar a questão da significa- ção musical como algo que deve ser buscado nos limites de sua materialidade sonora, uma vertente que, embora considere que as formas sonoras são significativas por si mesmas, atri- bui a possibilidade de perceber sentidos musicais na ligação que essas estruturas teriam com a nossa vida interior (física e mental), e outra que considera a percepção estrutural, pu- ramente intelectual, suficiente para que se tome a música como significativa. Em comum a essas duas vertentes o fato de desconsiderarem as relações contextuais (históricas e sociais) da obra musical para sua apreensão como algo dotado de sentido e valor, uma vez que estes aparecem aqui como qualidades intrínsecas. De outro lado, em oposição a essas duas ver- tentes, temos a ideia de que os sentidos da música estão sempre fora dela, em possíveis re- ferências a sua exterioridade.

  1. Integrando as dimensões sonora e extrassonora


    Além desses posicionamentos mais polarizados descritos acima, podemos perce- ber, sobretudo em pensadores mais atuais, formulações teóricas que demonstram uma pre- ocupação com a totalidade do fenômeno musical, ou seja, que tentam dar igual peso às du- as dimensões da música (interior e exterior) na discussão sobre “onde” estaria o seu signi- ficado.

    Nessa linha temos, por exemplo, Lucy Green (1997) que, falando do ponto de vis- ta da sociologia da música, reconhece que o significado musical tem dois aspectos comple- mentares, um que “lida com as inter-relações dos materiais sonoros” (p. 27) e outro que diz respeito aos contextos de produção, distribuição e receptividade da música e que, segundo a autora, “afetam a nossa compreensão musical” (p. 29). Ao primeiro, ela denomina signifi- cados inerentes, fazendo a importante ressalva de que, apesar da denominação, trata-se de algo construído historicamente:


    Significados inerentes não são nem naturais, essenciais, nem não históricos: pelo contrário, eles são artificiais, históricos e aprendidos. As respostas e compreensão dos ouvintes a eles dependem da competência e referência em relação ao estilo mu- sical. O ouvinte deverá ter alguma experiência musical prévia desse tipo de música e estar familiarizado ou deter algum conhecimento com o estilo musical para perce- ber algum conhecimento inerente. Do contrário, poucos significados serão percebi- dos (GREEN, 1997, p. 28).


    Ao segundo aspecto a autora dá o nome de significados delineados, os quais tam- bém são construídos a partir dos referenciais (coletivos e individuais do ouvinte), afetando de tal modo a audição de uma obra, que são considerados parte do seu significado. Green chama a atenção também para o fato de que esses dois aspectos da significação musical nor- malmente aparecem-nos de modo indiferenciado, a tal ponto que é muito comum atribuir-

    -se a razões internas formais de determinada música uma qualidade que advém exclusiva- mente de suas delineações contextuais. Assim, por exemplo, podemos rejeitar um tipo de música atribuindo-lhe uma qualidade musical inferior só porque socialmente ela não é va- lorizada (ou porque não faz parte de nossas experiências pessoais).

    Como segundo exemplo dessa posição integradora, temos também o trabalho do semiólogo da música Jean-Jacques Nattiez (2004). Em sua proposta explicativa, ele divide a significação musical em natural (que seria a capacidade da música ser expressiva por ela mesma, como, por exemplo, através da imitação stricto sensu de sons produzidos por ani- mais, na qual a compreensão supostamente é imediata) e convencional (associações funda- das no hábito e não em características naturais musicais, cuja percepção depende de um conhecimento prévio dos códigos da cultura). Segundo o pensamento de Nattiez, nas atri- buições de sentido convencionais, o contexto (social, situacional) exerce um papel extrema- mente importante, pois é ele que cria uma ligação possível entre uma música e suas signifi- cações. Nesse sentido, é impossível, por exemplo, entender o conteúdo de determinada mú- sica programática baseando-se apenas na sua materialidade sonora, sem nenhuma informa- ção prévia sobre o tema retratado. Por conceder à música um nível natural de significação, porém, Nattiez considera que o papel do contexto exterior é apenas o de reduzir o número de conotações possíveis associadas à música:


    Dito de outra forma, pode-se bem ter dentro das características desta ou daquela mú- sica qualquer coisa que a predisponha a ser utilizada em um contexto dramático, ale- gre, solene, humorístico, etc., mas uma associação semântica mais precisa entre essa

    música e um objeto ou uma situação só é possível se um elemento contextual – ceno- gráfico ou linguístico – venha reduzir o número de conotações possíveis associadas a essa música, ao ponto, por vezes, de reduzir essa proliferação de significações poten- ciais a uma denotação estável (NATTIEZ, 2004, p. 279, tradução livre).6


    Podemos dizer, então, que, para Nattiez, a música produz sentidos pela combinação de características intrínsecas e contextuais.

    Ainda outro semiólogo da música, Jean Molino (s/d), amplia a discussão enfatizan- do a necessidade de se considerar não apenas a música em si, mas o que ele denomina o fato musical, constituído pela produção do objeto sonoro, o objeto sonoro e a recepção des- se mesmo objeto. Segundo esse autor, nessas três dimensões se fundamenta a especificida- de do simbólico (p. 112) e, portanto, não é possível mais falar em música como uma coisa única: “Não há, pois uma música, mas músicas. Não há a música, mas um facto musical. Este facto musical é um facto social total [...]” (Op. cit., p. 114, grifos do autor, grafia por- tuguesa).

    Além de alertar para a necessidade de se considerar a totalidade do fato musical e diretamente ligada a ela, Molino estabelece ainda uma importante distinção nos fenôme- nos simbólicos que interessa de perto a esta discussão: a dimensão poiética (ponto de vista do produtor) e a dimensão estésica (ponto de vista do receptor). De acordo com sua visão, não há coincidência entre essas duas dimensões, de modo que a percepção musical (este- sia) normalmente tem como norte os nossos hábitos perceptivos e não necessariamente as intenções composicionais do compositor (as quais estariam no âmbito da poiética). Em ou- tras palavras, a significação musical nunca é unívoca e deve levar em conta no mínimo dois pontos de vista distintos: o compositor e o ouvinte. Essa distinção assinala de maneira cla- ra a natureza relacional e convencional da significação musical que em muitos pontos se aproxima da visão bakhtiniana dos fenômenos simbólicos a seguir delineada. Vejamos essa questão mais de perto.


  2. Signo e produção de sentidos na música


    Falar de significação, de produção de sentidos, leva quase sempre a uma discussão sobre o signo, pois, embora o sentido não seja o signo e não esteja no signo, produz-se a par- tir dele (SMOLKA, 2004, p. 38). De acordo com Bakhtin (2002), o signo é por natureza inte- rindividual, o que torna impossível lhe atribuirmos um valor intrínseco. Sendo, portanto, relacional e convencional, “um signo é caracterizado por sua flexibilidade semântica e ide- ológica, a qual o torna disponível e adaptável a contínuas renovações e diferentes contex- tos” (PONZIO, 1984, p. 277). Em outras palavras, a ideia de que possa haver conotações fi- xas e significações inerentes é incompatível com essa visão do signo, que é concebido “não como uma coisa, mas um processo, um entrelaçamento de relações nas quais uma relação social é sempre incluída” (Idem, ibidem, p. 281). Entretanto, olhando atentamente para as abordagens estudadas, constatamos que há, em muitos teóricos, uma ênfase muito grande no significado musical como algo que está na música, bastando apenas que alguém devida- mente preparado para tal o interprete para que ele venha à tona (nos autores mais radicais nem mesmo isso é necessário). Conforme vimos, entre os autores citados uma das exceções ficou por conta de Lucy Green que enfatiza a importância social e histórica na produção dos sentidos musicais. Além disso, essa autora propõe uma visão da significação da música que engloba tanto as suas relações internas quanto as externas. Entretanto, Green, ao ten-

    tar uma síntese dessas duas dimensões, não consegue escapar de um pensamento dualista: existe um significado interno e outro externo. De acordo com Bakhtin (2002), contudo, não há como separar a significação de sua “encarnação material”, ou seja, se há um significa- do externo, ele de algum modo deve estar imbricado no interno. Se fazemos associações da música com elementos/situações/sentimentos etc. para além de sua materialidade, o faze- mos a partir de possibilidades estruturais da própria música, caso contrário não estaremos falando de significados musicais, mas de significados outros, ligados a outros sistemas sim- bólicos, e que, por coincidência, têm uma relação qualquer com a música. Nesse sentido, o modelo proposto por Nattiez, por estabelecer uma relação necessária entre o material sono- ro, o contexto e a significação chega bastante perto dessa perspectiva dialética. Todavia, co- mo vimos, para esse autor o contexto social funciona apenas como uma forma de reduzir a um denominador comum as significações (intrínsecas) potencialmente existentes nas mú- sicas. Ou seja, embora ressaltando a importância dos fatores sociais, ele também parece não escapar de uma visão dualista da significação musical. Ora, se é verdade que todo signo só se constitui como tal numa relação social, então essa relação de algum modo faz parte do seu significado, ou, dito de outro modo, mesmo numa dimensão estrutural, os sentidos não se descolam de sua natureza social, não há como conceber os signos somente em relação a outros signos, como se eles tivessem uma existência independente (não é possível, portanto, numa perspectiva bahktiniana, falar em significações naturais):


    Desse modo, o signo não é concebido numa relação “abstrata” entre signos (caracte- rística de uma posição idealista, representacional, estruturalista, formalista...). Ele é concebido como produzido a partir de condições materiais de existência, resultante, portanto de relações sociais de produção. A significação é concebida como a produ- ção material, de natureza social, de signos e sentidos (SMOLKA, 2004, p. 43).


    Já Molino, ao incorporar na discussão sobre os processos simbólicos musicais os convencionalismos, relativismos, diferentes pontos de visão e remissões a outros sistemas simbólicos, amplia de tal modo as possibilidades de compreensão sobre o que seja a signi- ficação musical que em muito se aproxima da perspectiva histórico-dialética de Bahktin, assumida neste trabalho como um ponto de vista que se mostra bastante promissor, sobre- tudo quando o principal objetivo é trazer toda essa discussão para o campo da educação musical.

    Sintetizando a perspectiva bakhtinana e trazendo-a para o campo musical, pode- mos dizer que a música, enquanto uma forma simbólica que produz sentidos, o faz a partir de relações e convenções sociais, as quais permanecem nas significações que lhe atribuí- mos, quer olhemos para o seu interior, quer olhemos para o seu exterior. Por mais formal que seja o nosso olhar, a significação musical nunca é unívoca e muito menos autônoma em relação à história. Ao contrário, a música é essencialmente polissêmica e seus sentidos to- talmente ligados às condições históricas de sua produção e/ou recepção. A autorreferência pura é uma ilusão criada pela cultura ocidental no período romântico e que, como vimos, se perpetua em parte do pensamento atual.

    Com base nessas premissas, assumindo uma concepção dialética do signo (pensan- do no signo como resultado da interação de várias dimensões significativas) e tomando a música no seu nível discursivo (na sua concretude sonora, como algo que está em constante processo de reelaboração), proponho, então, que se pense a significação musical como algo complexo, que permeia vários níveis de apreensão e que não pode ser reduzido a nenhum deles, muito embora comumente, conforme o tipo de música e/ou nossa familiaridade com ela, nos fixemos em algum7. Assim, podemos dizer que toda e qualquer música pode ser

    apreendida significativamente pelo menos de três modos distintos: num nível predominan- temente sensorial (próximo do puramente biológico, embora não se reduza a ele), num ní- vel referencial (como referência de algo extra-musical) e num nível estético (com ênfase nos modos de organização sonora)8. Em qualquer desses níveis – que não são absolutamente ex- cludentes entre si, há apenas uma predominância de um sobre os outros em determinadas situações de escuta – as dimensões interna e externa da música encontram-se totalmente imbricadas, embora aparentemente poderíamos estar descartando uma delas, uma vez que direcionamos nosso olhar para a outra. Vejamos, então, com mais detalhes como seria cada um deles.


    5.1 Nível sensorial


    Numa apreensão predominantemente sensorial da música, estabelece-se com ela, na sua totalidade, uma relação fortemente corporal. Ela nos afeta de tal modo que provoca uma alteração na nossa tonicidade muscular (mas não necessariamente provocando algum tipo de movimento). Essa reação, contudo, nunca é demais frisar, por mais próxima do re- flexo inato ou do puramente biológico, é algo aprendido e significado através de relações sociais e culturais. Trata-se de uma sensorialidade humanizada, (trans)formada pelas expe- riências vividas. Pessoas diferentes, com experiências diferentes, reagem corporalmente à música de modo completamente distinto9.

    É importante assinalar que não me refiro aqui aos efeitos fisiológicos da música, já amplamente pesquisados sobretudo pela psicologia e neurologia, uma vez que não fica cla- ro em muitas dessas pesquisas o que realmente é efeito da música (o que está condicionado às suas formas de organização sonora) ou apenas do som enquanto um estímulo psico-fisio- lógico. Entretanto, no caso específico da mobilização da atividade motora à qual me refiro, esta se deve principalmente (mas não só) à organização temporal da música, o que já é um elemento da linguagem musical e não uma propriedade do som. Ao ouvir a bateria de uma escola de samba, por exemplo, a maioria das pessoas da nossa cultura tem uma tendência a reagir com um aumento da tonicidade muscular, como que se preparando para acompa- nhar o ritmo corporalmente de algum modo. O mesmo não acontece se ouvirmos um ritmo forte e constante provocado, por exemplo, pelo bater de estacas de uma construção próxima. Não somente o modo de organização rítmica é diferente, mas principalmente as situações a que remete cada uma (alegria, no primeiro caso, e irritação, no segundo) são determinantes nessa nossa forma de reação corporal. Além do caso da bateria de escola de samba, poderí- amos citar como exemplos o rock ou as músicas dançantes atuais para os jovens, as antigas “músicas de baile” para as pessoas que viveram essa experiência, a música sinfônica para os regentes etc. Em todos esses casos, geralmente a música provoca uma predisposição ao mo- vimento. Vemos, então, que o significado da música, nesse caso, acontece como resultante ao mesmo tempo das suas características estruturais e situacionais.


    5.2 Nível referencial


    No nível referencial a significação da música está vinculada a associações que se possa fazer em relação à sua exterioridade. Essas associações, contudo, só podem ser feitas a partir de aspectos intrínsecos à materialidade sonora da música, ou seja, mesmo que nos- sa atenção esteja concentrada em algo extramusical, não devemos considerar que se trata de

    sentidos totalmente extrínsecos, existentes a priori, e que, por acaso, podem ser percebidos através de determinadas músicas. Mais do que no nível sensorial, aqui o caráter convencio- nal e, portanto, social/cultural da significação é evidente, pois o tipo de associações que po- demos fazer a partir de uma música depende completamente de nosso referencial cultural. Outra característica dessa forma de apreensão da música é que ela não depende de experi- ências musicais sistematizadas. O simples fato de estarmos inseridos na cultura nos torna aptos a estabelecer essas relações. Por essa razão, é o nível de apreensão por excelência das pessoas que não têm nenhuma familiaridade mais profunda com a linguagem musical, as quais, ao ouvirem música, procuram imediatamente uma referência externa que lhes dê um ancoradouro seguro para algo normalmente percebido de modo abstrato e fugidio10.

    Podemos reconhecer diversos tipos de significação referencial, que variam desde as intencionalmente provocadas por procedimentos composicionais específicos – como por exemplo o uso de signos musicais motivados –, até as mais imprevistas e casuais, que acon- tecem sem que haja nenhum planejamento anterior. Assim, temos, por exemplo, os efeitos daquelas músicas que, utilizando diversos recursos técnicos, criam onomatopéias musicais (imitações de galope de cavalo, canto de diversos pássaros, relógios etc.) ou mesmo “pin- tam” cenas completas (paisagens campestres, tempestades, cachoeiras etc.)11. Temos tam- bém as associações convencionais entre elementos musicais e determinados estados de âni- mo ou movimentos (modo maior/alegria, modo menor/tristeza; dominante/tensão, tônica/ repouso etc.). No caso específico das canções (músicas com letra), podemos ter ainda signi- ficações referenciais de outro tipo. É muito comum, ao ouvirmos uma canção, transportar- mos os sentidos da letra para a música, de tal modo que, ao ouvirmos a mesma música sem a letra (numa versão instrumental, por exemplo), reconhecermos na sua estrutura aqueles mesmos sentidos trazidos antes pelas palavras. Na verdade, isso pode ocorrer por diversas razões que vão desde uma mera associação por contiguidade até uma escolha deliberada do compositor de elementos musicais cujos sentidos convencionais estabelecem algum tipo de relação com a letra (nesse caso estaríamos próximos do caso descrito anteriormente)12. Temos ainda as grandes referências musicais coletivas de uma comunidade, que vinculam determinados estilos musicais a situações específicas (hinos patrióticos ou litúrgicos, can- ções de ninar, músicas para brincar, canções para o trabalho etc.), e também as referências individuais, que associam músicas particulares a experiências pessoais vividas.


    5.3 Nível estético


    O nível estético de apreensão significativa é o mais abstrato de todos e o que mais depende de um processo de familiarização com a música. A atribuição de sentidos nesse ní- vel se dá pela percepção dos modos de organização sonora no tempo e no espaço (contras- tes e repetições, formas, texturas, fluxos temporais etc.) e, ao mesmo tempo, da sua vincu- lação a uma tradição musical qualquer. É no nível estético que conseguimos perceber a fi- liação de uma obra musical a um gênero específico e, ao mesmo tempo, a sua singularidade dentro desse gênero. Esse ponto é particularmente importante e merece um esclarecimen- to maior, visto ser alvo comum de equívocos. Normalmente existe uma tendência (tanto no meio musical quanto entre os “leigos” em música) em se achar que o simples (re)conheci- mento estrutural de uma obra é suficiente para compreendê-la significativamente, pois, de acordo com essa visão, os próprios elementos gramaticais teriam identidades significativas próprias13. Entretanto, uma obra musical corresponde, em relação à linguagem verbal, a um enunciado e tem os seus sentidos totalmente voltados para o contexto enunciativo. Sendo

    assim, não basta identificar temas e desenvolvimentos, cadências harmônicas, estruturas rítmicas. É necessário perceber esses elementos como progressões, como eventos sonoros que se articulam de modo a dar conta de uma proposta estética particular. E isso só pode ser feito reconhecendo-se a natureza social e dialógica da música: para entender o sentido de uma música é preciso confrontá-la com outras, às quais ela de algum modo está vincula- da. Só identificamos gêneros, filiações, elementos estetizados etc. se possuímos referenciais musicais, se temos onde buscar sentidos. O universo estético é um universo relacional – as significações surgem da comparação entre materiais sonoros – e relativo – as possibilida- des significativas da música estão diretamente ligadas às condições históricas de quem es- tá olhando para ela. Desse modo, quanto mais referências possuirmos, mais rica será nossa audição. Assim, por exemplo, uma pessoa habituada a frequentar concertos ou ouvir grava- ções de música erudita terá maiores chances de desenvolver ferramentas analíticas que lhe permitam compreender esse tipo de música do que outra para a qual ela é totalmente estra- nha (o mesmo poderia ser dito em relação ao jazz, à MPB ou à música sertaneja). O simples hábito de ouvir um tipo de música específico, contudo, não garante uma apreensão estética, pois as mediações necessárias a qualquer apropriação simbólica, neste caso, envolvem cer- ta sistematização (o que não significa necessariamente “aulas” de música, mas pelo menos um interesse analítico mais acentuado). Vemos aqui, mais do que nos outros níveis de sig- nificação, que a possibilidade de atribuição de sentido depende tanto de aspectos internos quanto externos/contextuais.


  3. Desdobramentos educacionais


Como podemos notar, o tema da significação musical é uma discussão bastante complexa e que permite várias abordagens. A proposta aqui apresentada não visa, eviden- temente, fechar a questão, fornecendo um modelo definitivo, mas tão somente abrir a dis- cussão de modo a contribuir para uma ampliação das reflexões sobre a educação musical.

Já se vão muitos anos (na verdade praticamente um século) desde que teóricos da educação começaram a questionar um modelo de ensino demasiadamente intelectualiza- do, diretivo, reprodutivista, calcado na ideia de conhecimento como algo pronto e imu- tável e na passividade do educando nos processos de ensino/aprendizagem14. Contrarian- do esse modelo, teóricos de ontem e de hoje advogam a favor de um ensino contextualiza- do, que considere o aluno um ser ativo no processo de aprendizagem e leve em conta seus conhecimentos prévios, seus modos de significar o mundo já construídos nas vivências cotidianas.

No caso específico da educação musical, não seria exagero dizer que, dada a forte presença da música na sociedade e na cultura, todos os indivíduos possuem alguma forma de conhecimento musical15, todos possuem diversas relações de sentido musicais já cons- truídas. Se essa premissa é verdadeira, então todo processo de educação musical deveria ser, antes de qualquer coisa, um processo dialógico, no qual a troca de experiências seria a tônica. Não é bem isso que acontece normalmente nas aulas de música, pois, partindo do pressuposto de que os significados musicais, sejam eles quais forem, estão a priori na mú- sica, muitas práticas educativas se limitam a tentar transmitir esses supostos significados. Isso é mais ou menos óbvio no chamado ensino “tradicional” de música erudita (tanto nas disciplinas técnicas, quanto de história e até mesmo estética), no qual o objetivo princi- pal talvez seja dar a conhecer e perpetuar certa tradição e o ponto de vista é sempre o poi- ético (daí talvez a predominância da visão absolutista formalista). Entretanto, mesmo em

abordagens mais em sintonia com os preceitos inovadores da pedagogia musical, vemos muitas vezes certa dificuldade em se articular as várias camadas de sentido propiciadas pelas músicas.

O que ocorre com frequência, sobretudo nas propostas que buscam fugir do ensino tradicional, é a prática de um ensino de caráter totalmente espontaneísta, no qual apenas o nível de significação sensorial – às vezes também o referencial – é trabalhado, e de uma maneira em que o aluno fica completamente abandonado a seus próprios recursos de apre- ensão musical. Principalmente quando se trabalha com crianças pequenas, parece que há uma espécie de consenso de que elas ainda não possuem maturidade suficiente para serem capazes de uma apreensão estética. Contudo, se não faz sentido trabalhar questões estéticas conceitualmente com essas crianças, com certeza elas já podem vivenciar elementos de na- tureza estética (como o caráter geral da música, os grandes e pequenos contrastes, os fluxos temporais e espaciais etc.) de uma maneira corporal e lúdica16.

O mergulho no mundo simbólico começa no nascimento e cabe à escola ampliar ao máximo as experiências simbólicas das crianças e não aprisioná-las nas formas de sig- nificação que elas adquirirão independentemente de um ensino sistematizado. O que mui- tas vezes ocorre, porém, é que, na ânsia de respeitar as vivências anteriores dos alunos (um dos principais preceitos da educação contemporânea), muitos educadores não os estimulam a construírem/ampliarem um conhecimento musical, um modo de relação com a música a partir dessas referências. Os significados musicais, de acordo com a visão aqui proposta, não estão na música nem tampouco nas pessoas, mas na relação que os indivíduos estabe- lecem com as músicas, relação essa perpassada pelo social. Isso significa, na prática, que, em se tratando de educação musical, não podemos prescindir nem das relações de sentido individuais, sempre únicas, mas que serão a porta de entrada para um conhecimento mais sistematizado, nem das coletivas, socialmente mais estáveis e tributárias de todo conheci- mento musical elaborado.

Por outro lado, mesmo considerando que possibilitar que o aluno adentre no nível estético de apreensão musical é o objetivo por excelência do ensino de música sistematiza- do, penso que a educação musical não deveria, em nenhum contexto educativo (mesmo na formação do músico profissional), desconsiderar os outros níveis de significação, pois é so- bre eles ou a partir deles que aquele será construído. Nesse sentido, a busca pelo equilíbrio é sempre o melhor conselho: nem um aprisionamento nos níveis sensorial e referencial de significação musical, nem uma limpeza completa deles em busca de uma pureza musical impossível e que fragmenta o ser humano. Como diz Molino (s/d), a música é uma fato mu- sical total e, nesse sentido, não dá para pensar em uma apreensão musical “pura”, comple- tamente destituída de fatores contextuais e extra-sonoros17. Ademais, o próprio nível estéti- co de significação musical pode dialogar de maneira bastante produtiva educacionalmente com outros fenômenos simbólicos da cultura (sobretudo com outras linguagens artísticas). Ao invés de lutar contra isso, penso que a educação musical deveria, ao contrário, procurar fazer dessas relações com o contexto extra-sonoro, desses modos “impuros” de nos relacio- narmos com a música, verdadeiros aliados nos processos educativos18.

Em suma, podemos dizer que conhecer as possibilidades de significação musical, ou seja, os diversos modos como a música pode se tornar uma linguagem significativa às pessoas, as múltiplas maneiras que possuímos de nos relacionarmos significativamente com ela, amplia enormemente as suas possibilidades educativas. As portas de entrada pa- ra o conhecimento musical são muitas. Cabe ao educador musical ser sensível a esse fato e buscar recursos e estratégias adequados a cada situação, a cada modo de relação com a mú- sica, a cada aluno.

Notas


1 Este trabalho amplia uma discussão iniciada em minha tese de doutorado. Agradeço à FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) pelo apoio financeiro recebido para a realização daquela pesquisa.

2 Como veremos mais adiante, entre os séculos XVI e XVIII houve um predomínio da “estética referencialista” e, posteriormente a esse período, começa a ganhar força a “vertente absolutista”.

3 Para um maior aprofundamento nessa questão, c.f. Langer (1989) que enumera uma lista bastante representativa de textos nos quais essa teoria aparece explicitada. Vale assinalar, contudo, que essa não é a posição defendida pela autora. Também em Vigotski (1999) encontramos extensa discussão a esse respeito.

4 Doutrina dos Afetos: “Termo utilizado para descrever um conceito teórico da era barroca, derivado das ideias clássicas de retórica, sustentando que a música influenciava os ‘afetos’ (ou emoções) do ouvinte, segundo um conjunto de regras que relacionavam determinados recursos musicais (ritmos, motivos, intervalos etc.) a estados emocionais específicos” (SADIE, 1994).

5 Essa distinção é feita por Caznok (2003) com base em Meyer (1956).

6 No original: “Autrement dit, il peut bien y avoir dans le caractère de telle ou telle musique quelque chose qui la prédispose à être utilisée dans un contexte dramatique, joyeux, solennel, humoristique, etc., mais une associac- tion sémantique plus précise entre cette musique et un objet ou une situation n’est possible que si un élément contextuel – scénographique ou linguistique – vient réduire le nombre de connotations possibles associées à cette musique, au point, parfois, de réduire cette prolifération de significations potentielles à une dénotation stable.”

7 Vale assinalar que o termo “níveis” será aqui usado sem nenhuma conotação de valor (superior/inferior). A esco- lha do mesmo se deve ao fato de que cada nível representa um tipo de mergulho distinto nas várias camadas de sentido musicais.

8 É importante ressaltar que essa maneira tripartite de se pensar a apreensão musical já foi colocada de diferen- tes formas por diferentes autores (ver, entre outros, Moraes, 1985; Molino, s/d; Copland, 2013). Além disso, não podemos esquecer que Charles Peirce (1972), embora não tenha nenhuma preocupação específica com a música, construiu toda sua teoria assentada sobre um pensamento triádico. Nesse sentido, a proposta aqui delineada não tem a pretensão de ser original, mas apenas organizar essa questão de tal maneira que possa iluminar questões educacionais. Assinalo, ainda, a proximidade dessa minha categorização com a semiótica peirceana em relação ao entendimento de que estudar a significação não é propriamente estudar o signo, mas a semiose, ou seja, “a ação do signo”, o “processo no qual o signo tem um efeito cognitivo [não apenas cognitivo, no caso da arte] sobre o intérprete” (Peirce, 1931-58, vol.5, p. 484, apud Nöth, 1995, p. 68).

9 Em algumas abordagens teóricas, esse modo de apreensão poderia ser chamado de “emotivo”, já que toda emo- ção tem um substrato orgânico ligado à tonicidade muscular, mas entendo que nos três níveis a dimensão afeti- va entra em jogo, às vezes de maneira muito intensa. Prefiro, então, não dar um destaque especial para a questão da emoção em nenhum dos níveis.

10 Para quem trabalha com apreciação musical para não músicos, isso fica bem claro. Ao serem convidados a ex- pressarem o que perceberam em determinada música, geralmente os alunos se atém a estabelecer associações com paisagens imaginadas, lembranças de fatos vividos, cenas de filmes etc.

11 Caznok (2003, p. 98-100) faz um extenso levantamento de obras, dentro da tradição erudita ocidental, que têm esse tipo de proposta.

12 Para um aprofundamento sobre essa relação entre a significação da música e da letra, cf. Tatit (1997).

13 Procedimento semelhante é detectado por Bakhtin (2002b) em relação à análise literária: “o poeta toma a pa- lavra já estetizada, mas interpreta o elemento estético como pertencente à essência da própria palavra e assim transforma-a numa grandeza mítica ou metafísica” (p. 45). Na música, da mesma forma, tomam-se os elementos gramaticais (harmônicos, melódicos ou rítmicos) já dotados de significação estética em contextos específicos e atribui-se a eles uma essência estética.

14 Podemos dizer que esse questionamento teve início, na educação em geral, no movimento conhecido como Es- cola Nova, que viria a influenciar em grande medida os educadores musicais da primeira metade do século XX, os quais acabaram fundando a pedagogia que conhecemos hoje por “Métodos Ativos”.

15 É importante assinalar que a noção de conhecimento musical aqui colocada inclui não apenas o conhecimen- to de música, mas também o conhecimento sobre música, o qual inclui, por exemplo, informações contextuais diversas (TAGG, 2011). Acrescenta-se, ainda, que, de acordo com perspectiva proposta neste trabalho, qualquer modo de escuta musical com uma carga significativa pode ser considerada uma forma de conhecimento, ainda que de um tipo completamente distinto do conhecimento técnico musical.

16 Em pesquisa realizada com crianças em idade pré-escolar, constatamos, na observação de campo, que valores estéticos podem ser fortemente percebidos nessa faixa etária através de um trabalho devidamente mediado pela educadora. A esse respeito, ver Schroeder, S. C. N.; Schroeder, J. L. (2011).

17 Semelhante posição é adotada também por alguns pesquisadores da educação musical, que enfatizam a neces- sidade de se considerar, no ensino de música, as diversas maneiras como as pessoas a vivenciam no cotidiano. Ver, por exemplo, Souza (2008).

18 Diversos autores de propostas didáticas na atualidade exploram essas relações estéticas da música com outras linguagens. Nessa linha, ver, por exemplo, os livros didáticos da educadora musical e pesquisadora Cecília Cavalieri França.

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Silvia Cordeiro Nassif - Graduada em Letras e Música e Doutora em Educação pela Unicamp. Foi docente da Facul- dade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP de 2007 a 2014 e, desde então, é docente do Departamen- to de Música do Instituto de Artes da Unicamp. Pesquisadora dos grupos de pesquisa Laboratório de Estudos sobre Corpo, Arte e Educação (LABORARTE) e Música, Linguagem e Cultura (MUSILINC), desenvolve pesquisas na área de educação musical na sua interface com a linguagem, o desenvolvimento humano e a cultura.

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