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Artigos Científicos - Performance Musical

Artigos Científicos - Performance Musical

Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 233p., n.1, 2015

Lendas capixabas para violão solo de Carlos Cruz:

decisões editoriais na elaboração de uma edição crítico-interpretativa


Renan Colombo Simões (UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil)

renansimoes@hotmail.com

Leonardo Loureiro Winter (UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil)

llwinter@uol.com.br


Resumo: O artigo aborda as decisões editorais na elaboração de uma edição crítico-interpretativa da obra Lendas ca- pixabas (2000), para violão solo, do compositor brasileiro Carlos Cruz (1936-2011). Cruz compôs uma produção sig- nificativa para violão, entre as quais se destaca Lendas capixabas, obra do período maduro do compositor, e cons- tituída por três movimentos. Apesar disso, os manuscritos apresentam algumas passagens não idiomáticas para o instrumento que dificultam ou tornam impossível sua execução ao violão, além de algumas inconsistências. A ela- boração da edição crítico-interpretativa se processou através da comparação entre as diferentes partituras existentes da peça e da resolução das passagens não idiomáticas, em um processo que informou e foi informado pela perfor- mance musical.

Palavras-chave: Edição crítico-interpretativa, Performance musical, Violão, Carlos Cruz, Lendas capixabas.


Lendas capixabas for solo guitar by Carlos Cruz (1936-2011):

editorial decisions in the development of a critical-interpretative edition

Abstract: This article discusses the editorial decisions in the development of a critical-interpretive edition of the work Lendas capixabas (2000), for solo guitar, by Brazilian composer Carlos Cruz (1936-2011). Cruz composed a sig- nificant production for guitar, among which stands out Lendas capixabas, composer’s mature period work, in three movements. Nevertheless, the manuscripts present non-idiomatic passages for the instrument that turn the execu- tion difficult or impossible on the guitar, plus some inconsistencies. The development of the critical-interpretive edi- tion was processed by comparing the different scores of the piece and the resolution of non-idiomatic passages, in a process that informed and was informed by the musical performance.

Keywords: Critical-interpretative edition, Musical performance, Guitar, Carlos Cruz, Lendas capixabas.


Lendas capixabas para guitarra de Carlos Cruz (1936-2011):

decisiones editoriales en la elaboración de una edición crítico-interpretativa

Resumen: Este artículo analiza las decisiones editoriales en la elaboración de una edición crítico-inter- pretativa de la obra Lendas Capixabas (2000), para guitarra sola, del compositor brasileño Carlos Cruz (1936-2011). Cruz compuso una cantidad significativa de obras para guitarra, entre las cuales se desta- ca Lendas Capixabas, obra del período de madurez del compositor, y se constitue de tres movimientos. Sin embargo, los manuscritos poseen algunos pasajes no idiomáticos en el instrumento que dificultan o hacen imposible su ejecución en la guitarra, además de algunas inconsistencias. El desarrollo de esta edición crítico-interpretativa fue realizado mediante la comparación entre las diferentes partituras exis- tentes de la pieza y la resolución de los pasajes no idiomáticos, en un proceso que informa y fue infor- mado por la interpretación musical.

Palabras clave: Edición crítico-interpretativa, Performance musical, Guitarra, Carlos Cruz, Lendas capixabas.


  1. Introdução


    O artigo aborda as decisões editoriais na elaboração de uma edição crítico-inter- pretativa da obra Lendas capixabas (2000), para violão solo, do compositor brasileiro Carlos Cruz (1936-2011), em um processo de influências recíprocas com a performance musical. No processo de reconstrução do texto musical de Cruz, são explicitados os critérios utili- zados para a elaboração de uma edição crítico-interpretativa da obra, através da descrição, análise e comparação das fontes que transmitem a obra e da resolução de passagens não idiomáticas1 para o instrumento. Lendas capixabas foi interpretada ao longo de um ano pelo


    Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 233p., n.1, 2015 Recebido em: 30/04/2015 - Aprovado em: 12/08/2015

    primeiro autor deste trabalho, ao passo em que se estabeleciam as decisões editorias e digi- tações da obra; desta forma, a performance musical informou e foi informada pela elabora- ção da edição crítico-interpretativa.


  2. Carlos Cruz e sua Produção Composicional


    Carlos Vianna Cruz (1936-2011) nasceu em Vitória (ES) no dia 11 de setembro de 1936. Iniciou sua orientação musical com o pai, Clovis Cruz2 e transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1957, onde estudou com Hans Graf, Esther Scliar, Roberto Schnorrenberg (nos Seminários de Música da Pró-Arte) e, a partir de 1970, com César Guerra-Peixe. Cruz é au- tor do Hino oficial da Cidade de Vitória, premiado em 1979 em um concurso promovido pela prefeitura local; em 1982, conquistou os três primeiros lugares entre doze obras finalistas no I Festival de Música Capixaba, respectivamente com Sonatina para piano, Igreja dos ne- gros para piano a quatro mãos e Três peças para violão. Lançou, em 1994, o livro A here- sia de pensar e criticar. Cruz também atuou como diretor e supervisor musical em diversas emissoras de rádio e TV do país, onde produziu programas e compôs trilhas sonoras para novelas. Cruz faleceu no Rio de Janeiro no dia 30 de março de 2011, aos 74 anos.

    A produção composicional de Cruz abrange diversas formações instrumentais e gê- neros musicais, conforme representado abaixo:

  3. Cruz e a Obra para Violão


    Dentre a produção composicional de Cruz, o violão ocupa posição de destaque, através de um número representativo de obras compostas para este instrumento e diferentes combinações instrumentais com sua utilização, conforme representado no quadro abaixo:


    Quadro 1: Obra para violão de Carlos Cruz.


    Ano

    Título

    Instrumentação

    1970

    Passacalha

    Flauta (ou violino) e violão

    1981

    Três peças

    Violão

    1987

    Imagens do agreste

    Duas flautas, cordas e violão

    1997

    Imagens do agreste

    Violino solo, duas flautas, violão e cordas

    1998

    Imagens do agreste

    Dois violões

    1999

    Banda de congos

    Dois violões

    2000

    Lendas capixabas

    Violão

    2001

    Lendas capixabas

    Violão e orquestra de câmara

    2002

    Banda de congos

    Quatro violões

    Ano

    Título

    Instrumentação

    2003

    Suíte em três movimentos

    Trompete e violão

    2005

    Gravuras de Debret

    Violão

    s/d

    Engenho

    Flauta e violão

    s/d

    Imagens do agreste

    Quatro ou oito violões


    Cruz não tocava violão, e costumava contar com a colaboração de instrumentistas na revisão e digitação das obras, os quais solucionavam eventuais passagens problemáticas, tornando-as mais idiomáticas para o instrumento. Os principais intérpretes que trabalha- ram com Cruz em suas obras para violão foram Nélio Rodrigues, Moacyr Teixeira, Fabiano Mayer e Pedro Pedrassoli.

    Em 2012, ao consultar a única fonte pública da obra Lendas capixabas para violão solo3, percebemos que esta continha algumas inconsistências4, além de trechos com escrita não idiomática para o violão. Assim sendo, consideramos a elaboração de uma nova edição de Lendas capixabas, o que permitiu uma revisão mais pormenorizada do texto musical e uma execução mais fluente da obra, e se deu a partir dos seguintes passos:

    Neste artigo, apresentaremos os dois primeiros passos deste processo, excetuando-

    -se o processo de comparação entre fontes, que já foi abordado em outro trabalho (SIMÕES & WINTER, 2013). O estabelecimento do texto musical consiste em decisões editoriais a partir da performance musical e da comparação entre as fontes.


  4. Sobre Edições Musicais


    O processo de edição musical consiste em registrar, além do texto musical aborda- do, um momento histórico, uma tradição da época, através das lentes do editor. O termo edi- tar, por sua vez, pode ser entendido de duas maneiras: como sinônimo de publicar ou como o ato de revisar e preparar uma publicação (FIGUEIREDO, 2004, p. 39). Figueiredo catego- riza os diferentes tipos de edição de acordo com o nível e a natureza das intervenções rea- lizadas pelo editor:


    A classificação de tipos possíveis de edição varia de autor para autor. Feder propõe, por exemplo, oito tipos: fac-similar, diplomática, impressão corrigida em notação mo- derna, crítica, histórico-crítica, “musicológica e prática”, Urtext e “edição baseada na história da transmissão da obra”. Grier, após constatar que os cinco últimos tipos de Feder não são claros, é mais econômico, propondo apenas quatro: fac-similar, diplo- mática, crítica e interpretativa. Caraci Vela propõe cinco: prática, diplomática, Urtext, fac-similar e crítica. (FIGUEIREDO, 2004, p. 40)


    Figueiredo (2004) estabelece as seguintes categorias de edições musicais e suas finalidades:

    A Edição Fac-similar é aquela que reproduz uma fonte fielmente, através de meios fo-

    tográficos ou digitais. [...] A Edição Diplomática está um passo adiante da Edição Fac- similar, ao apresentar um texto musical fiel o mais possível ao original, porém trans- crito pelo editor, acrescentando, pois, um componente interpretativo [...]. A Edição Crítica é aquela que investiga e procura registrar, prioritariamente, a intenção de es- crita do compositor, a partir daquilo que está fixado nas várias fontes que transmitem

    a obra a ser editada. [...] O Urtext verdadeiro enfatizaria [...] o aspecto do texto fixado na fonte, apenas uma, com um mínimo de intervenção editorial, não se distinguindo muito da Edição Diplomática. [...] A Edição Prática, também chamada de Didática, é destinada exclusivamente a executantes, sendo baseada em uma única fonte, na verdade qualquer fonte, com utilização de critérios ecléticos para atingir seu texto. [...] Podemos classificar as Edições Genéticas em dois tipos: a) aquelas que trazem apenas diversas versões, ou seja, redações consideradas definitivas pelo compositor em dife- rentes momentos, de uma determinada obra. [...] b) aquelas que trazem [...] também os rascunhos, sketches, anotações de vários tipos, que precederam o estabelecimento do texto considerado definitivo. [...] [A Edição Aberta apresenta] as modificações trazi- das ao texto pela tradição. (FIGUEIREDO, 2004, p. 41-55, grifos nossos)


    Ainda que os autores não concordem entre si quanto à categorização dos tipos de edição, podemos sugerir que suas propostas coadunam-se e complementam-se. As quatro categorias propostas por Grier (fac-similar, diplomática, crítica e interpretativa) são também citadas por Feder, Caraci Vela e Figueiredo, e abrangem, de maneira ampla, outras catego- rias citadas por esses autores: em relação a Feder, podemos considerar que as edições cor- rigidas em notação moderna, as edições histórico-críticas e as edições baseadas na história da transmissão da obra – estas últimas próximas da edição aberta de Figueiredo – se enqua- dram no conceito de edição crítica proposto por Grier. Há de se considerar, ainda, que os li- mites entre essas categorias não são por vezes tão claros, e que o termo Urtext, que propõe um texto original, com o mínimo de intervenção editorial, é utilizado amplamente de ma- neira equivocada (FIGUEIREDO, 2004, p. 48).

    Como o presente trabalho está focado nos aspectos performáticos da obra e em como a performance pode informar a elaboração da nova edição, optou-se pela utilização do termo edição crítico-interpretativa, dado que este cumpre, de certa maneira, o requerido por Gossett (2005) para que uma edição possa ser considerada crítica:


    Que tipos de decisões precisam ser tomadas? Onde as fontes diferem uma da outra? Como podemos avaliar as fontes comparativamente? É possível estabelecer um stem- ma, ou ao menos agrupar os manuscritos e edições impressas de uma maneira que auxilie na explicação de suas peculiaridades? E sob quais circunstâncias os editores devem se sentir na incumbência de corrigir ou completar a leitura de fontes contem- porâneas? Essas são as questões que todas as edições críticas precisam responder. Nenhuma edição pode ser designada por “crítica” a menos que haja um comentário escrito disponível para pesquisadores e intérpretes5 (GOSSETT, 2005, p. 141, tradu- ção nossa)


    O conceito de edição crítico-interpretativa a ser utilizado neste trabalho, portanto, não se resume apenas à digitação instrumental e a alterações não justificadas do texto mu- sical, mas propõe uma fundamentação crítica das decisões editoriais, a partir do estudo e comparação das fontes que informam a obra, e das decisões interpretativas advindas de sua performance. A utilização deste aporte musicológico em uma edição interpretativa coaduna com o conceito apresentado por Honea (2002):


    […] há duas tradições distintas da prática editorial que emergiram e persistem ainda hoje na produção de textos musicais. Na primeira tradição, da edição prática ou per- formática, o editor incorpora livremente sua interpretação pessoal do texto musical. A segunda tradição, posterior, é baseada no método filológico, que procura estabele- cer um texto original, autêntico. Os dois tipos não são sempre completamente distin- tos. As duas tradições influenciam-se, e eu argumentaria que as melhores edições são um híbrido das duas.6 (HONEA, 2002, p. 26, tradução nossa)

    Embora não seja pertinente o julgamento de valor do que viria a ser a melhor edi- ção, e devido ao fato de muitas edições não prescindirem um aparato prático, Honea discor- re sobre a importância das edições práticas aprofundarem-se, cada vez mais, em questões musicológicas, sem que percam seu caráter inicial, o que requer um criticismo aprofunda- do do editor. A importância da postura crítica do editor, independente do gênero de edição abordado, é indicada por Grier já no título de seu livro, The critical editing of music, onde defende que o ato de editar é crítico por natureza (GRIER, 1996, p. xiii); ou seja, o editor é levado, constantemente, à tomada de decisões no processo de preparação da edição, ainda que esta seja diplomática ou fac-similar. Grier afirma que


    Editar […] consiste em uma série de escolhas, educadas e criticamente informadas, brevemente, no ato de interpretação. Editar, além do mais, consiste na interação entre a autoridade do compositor e a autoridade do editor.7 (GRIER, 1996, p. 2-3, tradução nossa)


    Assim, a autoridade do compositor é comunicada através das fontes – autógrafas ou não – que contêm o texto musical; a autoridade do editor consiste em sua interpretação des- sas fontes e em suas decisões para o estabelecimento de uma edição. No presente trabalho, serão apresentadas as seguintes decisões editoriais:

    Após escolhida a fonte principal, a partir da qual foi realizada a edição, procede- mos com o estabelecimento do texto para a nova edição, o que compreendeu decisões edito- riais concernentes a alterações, omissões e adições no texto musical, com base na compara- ção entre fontes, na compreensão do idioma musical por parte do editor e na proposição de novas possibilidades em passagens não idiomáticas para o instrumento. Durante o proces- so, as decisões editoriais foram revisadas e confrontadas com as decisões interpretativas e performáticas da obra, em um processo de retroalimentação contínuo.


  5. Lendas capixabas: descrição e análise das fontes


    A obra Lendas capixabas foi composta para violão solo em 2000 e adaptada para violão e orquestra de câmara em 2001. Trata-se de uma obra da maturidade do compositor, que neste período contava com 63 anos de idade. A versão solo de Lendas capixabas foi a se- gunda das três obras escritas por Cruz para violão solo, e cada um dos seus três movimen- tos representa uma lenda do estado do Espírito Santo: Juparanã, O frade e a freira e Itabira. Novaes (1968) discorre detalhadamente sobre cada uma destas lendas: Juparanã refere-se a uma batalha entre índios e brancos, ocorrida nas cercanias de uma lagoa homônima, situ- ada no município de Linhares; O frade e a freira refere-se a um conjunto de dois rochedos que se assemelham a um monge e uma devota, petrificados por viverem um amor proibido; Itabira refere-se a um fogo assombrado que percorria, todas as noites, um mesmo trajeto, em um sítio situado no município de Cachoeiro do Itapemirim (NOVAES, 1968, passim).

    Ao realizar o mapeamento do acervo de manuscritos do compositor Carlos Cruz, o autor coletou três fontes primárias8 que transmitem a obra Lendas capixabas; ademais, uma edição eletrônica foi realizada pelo violonista Moacyr Teixeira em 2012.9 As quatro fontes que informam a obra Lendas capixabas encontram-se detalhadas no quadro a seguir:

    Quadro 2: Fontes da obra Lendas capixabas.


    Categoria

    Instrumentação

    Páginas

    Ano

    F1

    Fonte primária

    Violão

    7 + capa

    2000

    F2

    Fonte primária

    Violão

    12 + capa

    2000

    F3

    Fonte primária

    Violão e orquestra de câmara

    52 + capa

    2001

    F4

    Fonte secundária

    Violão

    12

    2012



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    Figura 1: Fluxograma das fontes de Lendas capixabas.


    F1 é caracterizada por uma escrita menos idiomática para o instrumento do que F2 e F3; algumas passagens são de impossível execução. F2 corresponde ao conteúdo musical de F1, porém com algumas modificações: as passagens correlatas às de impossível execução da fonte anterior são aqui mais idiomáticas; esta fonte serviu de base para a edição eletrô- nica realizada posteriormente (F4). A escrita idiomática de F3 corresponde à de F2; o conte- údo musical, entretanto, está distribuído entre o solista e a orquestra. F4, edição eletrônica realizada a partir de F2, é a única fonte pública da obra, e consiste, assim, em sua fonte de maior visibilidade.

    Pode-se conjecturar, portanto, que F2 seja uma versão revisada de F1, ainda que da- tem do mesmo dia, dado que as passagens de impossível execução de F1 tornam-se possí- veis em F2; isto sugere uma revisão do compositor para uma melhor acomodação da obra ao instrumento. Por este motivo, elegemos F2 como fonte principal na elaboração desta nova edição crítico-interpretativa. F4, elaborada após o falecimento do compositor, fora também baseada em F2, porém em uma fotocópia de má qualidade que Teixeira recebera de Cruz, o que justifica a grande quantidade de divergências ao compará-la com uma nova cópia da mesma fonte. Não há, em nenhuma das fontes, digitação instrumental.

  6. Decisões editoriais no estabelecimento do texto musical


No processo de estabelecimento do texto musical, procuramos manter a maior fide- lidade possível a F2, em relação a todos os elementos informados: alturas, durações, pausas, articulações, expressões, dinâmicas, ligaduras, indicações de caráter e andamento, sinais de crescendo e decrescendo, repetições e direção das hastes. Entretanto, realizamos algu- mas intervenções editoriais na nova edição, o que envolveu alterações, omissões e adições no texto musical, com o intuito de tornar a obra mais idiomática para o instrumento. Estas intervenções, por sua vez, foram fundamentadas pela performance musical, pela compara- ção entre as fontes e pela compreensão do idioma musical por parte do editor. Por fim, cabe ressaltar que muitos dos exemplos a seguir foram sugeridos ou endossados pelo professor Daniel Wolff em sala de aula10.


    1. Alterações


      Nos compassos 15 e 16 de Juparanã, foram realizadas duas alterações com base em F1. As duas últimas notas da linha superior, Si4 e Sib4, são notadas como harmônicos em F2 (Fig. 2), o que foi mantido em F3. Ainda assim, o efeito proposto em F1, no qual não há harmônicos, é mais regular: a linha melódica torna-se mais homogênea e presente do que com a utilização de harmônicos. Uma vez que se realizam o Si4 e o Sib4 em harmônicos, há uma queda abrupta do volume do som desta linha melódica, uma vez que esta tende a soar mais suave do que a voz inferior, constituída por acordes de quatro sons com acentos. Foram também mantidos os acentos e sinais de staccato no Si4 e no Sib4 da nova edição (NE), tal qual em F1 (Fig. 3).


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      Figura 2: Juparanã, F2, compassos 15-16.


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      Figura 3: Juparanã, NE (com elementos de F1), compassos 15-16.


      No compasso 49 (50 em NE) de Juparanã, propomos uma solução mais idiomática ao oitavar todos os Si4 e Sol4 para Si3 e Sol3. Desta maneira, há muito mais clareza e facili- dade técnica na condução da passagem, antes dificultada pela rápida mudança de apresen- tação e aberturas da mão esquerda (ME).

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      Figura 4: a) Juparanã, F2, compasso 49; b) Juparanã, NE, compasso 50.


      No compasso 50 (51 em NE), o Mi4 do acorde inicial fora substituído por Sol3, para uma melhor acomodação técnica da ME, o que permite um maior fluxo do compasso ante- rior ao início deste; assim, a oitava Mi4-Mi5 dá lugar à oitava Sol3-Sol4.


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      Figura 5: a) Juparanã, F2, compasso 50; b) Juparanã, NE, compasso 51.


      As alterações no segundo movimento, O frade e a freira, consistem na transposi- ção à oitava de duas linhas melódicas e na correção de dois erros de notação. Entre os com- passos 18 e 19, a linha do tenor (Fig. 6) foi transposta uma oitava acima (Fig. 7); este proce- dimento facilita a fluência na execução e o efeito de legato da passagem, por proporcionar uma maior acomodação técnica de ambas as mãos: as aberturas de MD são evitadas, bem como as mudanças de apresentação de ME.

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      Figura 6: O frade e a freira, F2, compassos 18-19.


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      Figura 7: O frade e a freira, NE, compassos 18-19.


      Ao se transpor uma oitava acima o Sol2 e o Fá#2 do compasso 21 (e omitir as no- tas Lá3 do segundo e terceiro acordes), tem-se a possibilidade de sustentar as semínimas pontuadas por completo, além de facilitar a execução e resultar em uma sonoridade mais regular, como no exemplo anterior. Além disso, e para concluir a condução da voz inferior, a disposição do primeiro acorde do compasso 22 foi modificada, de Fá2-Ré3-Lá3-Fá4, para Fá3-Lá3-Ré4-Fá4 (Fig. 8-9).


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      Figura 8: O frade e a freira, F2, compassos 21-22.


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      Figura 9: O frade e a freira, NE, compassos 21-22.


      No compasso 31 de F2, Cruz provavelmente esqueceu-se de colocar, por duas ve- zes, uma linha suplementar inferior; assim, a terça Fá2-Lá2 de F1 (e F3) transformou-se em Lá2-Dó3 (Fig. 10b). Ademais, nesta fonte, a distância vertical entre as notas e o pentagrama sugere as notas Fá2-Lá2, que transcrevemos na nova edição (Fig. 10a).

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      Figura 10: a) Itabira, NE, compasso 31 (com base em F1 e F3); b) Itabira, F2, compasso 31.


      Ainda que as três fontes analisadas apresentem um Fáb4 no compasso 67, acredi- tamos que este possa ter sido um descuido do compositor, cometido na primeira fonte e co- piado nas fontes seguintes, erro este comum em repetições ou passagens paralelas, como no caso. Portanto, substituímos Fáb4 (Fig. 11a) por Fá4 (Fig. 11b), a fim de manter o provável paralelismo, que ocorre também em passagens similares, como nos compassos 4, 42 e 66.


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      Figura 11: a) Itabira, F2, compasso 67; b) Itabira, NE, compasso 67.


    2. Omissões


      As omissões foram realizadas por razões técnicas, com o principal intuito de man- ter o fluxo proposto pelo texto musical, e com o máximo de respeito às intenções de Carlos Cruz. Aliás, uma omissão em prol do fluxo se justifica exatamente pela transmissão mais clara e fluente das intenções do compositor. Na nova edição, as notas omitidas foram redu- zidas de tamanho, a fim de diferenciá-las das outras. A seguir, três omissões realizadas em Juparanã:

      • Mib3 do segundo tempo do compasso 53 (54 em NE), por conta do fluxo musical;

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        Figura 12: Juparanã, NE, compasso 54.

      • Segundo Fá4 do compasso 63 (64 em NE) e todos Fá4 do compasso 64 (65 em NE);


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        Figura 13: Juparanã, NE, compassos 64-65.


      • Os dois Mi3 dos compassos 69-70 (70-71 em NE).


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        Figura 14: Juparanã, NE, compassos 70-71.


        A seguir, três omissões realizadas em Itabira:

      • Voz intermediária dos compassos 33-34;


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        Figura 15: Itabira, NE, compassos 33-34.


      • Mib3 do compasso 36;


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        Figura 16: Itabira, NE, compasso 36.


      • Segundo Mi2 do compasso 76, devido à impossibilidade de se tocar, simultane- amente, o Mi2 e o Láb2;


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        Figura 17: Itabira, NE, compasso 76.

    3. Adições


      As adições foram realizadas com o intuito de reforçar ideias do compositor ao ins- trumento, bem como de incluir na transcrição algum possível esquecimento por parte deste, e foram notadas, na nova edição, entre colchetes. As duas adições realizadas em Juparanã foram as seguintes:


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Figura 19: Juparanã, NE, compassos 75-76.


A fim de uma maior acomodação técnica, notamos como harmônico o Lá3 do com- passo 80 de Itabira; este procedimento permite que esta nota seja prolongada, funcionando também como voz inferior (Fig. 20). A indicação de harmônico fora dada tal qual notado pelo compositor no compasso 27 de O frade e a freira.


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Figura 20: Itabira, NE, compasso 80.

Conclusão


Apresentamos, neste artigo, parte da complexa teia de informações envolvidas na elaboração de uma edição crítico-interpretativa, que consistiu na identificação, descrição e análise das fontes que informam a obra, e no estabelecimento do texto musical.

As intervenções editoriais foram realizadas com o intuito de tornar a obra mais exequível ao violão, ao aumentar sua fluência e seu potencial sonoro, sem modificar, entre- tanto, a essência da obra, ou ir de encontro à linguagem do compositor.

Um grande elemento facilitador de todo este processo foi a clareza de escrita e cali- grafia musicais de Cruz. Talvez a maior dificuldade tenha sido a de organizar e verbalizar todas as decisões editoriais, provenientes da análise e comparação entre fontes, e da cons- tante experimentação e reflexão do editor-performer.

Por fim, terminamos este trabalho com a consciência de que o realizamos da ma- neira mais idônea e sincera possível, e nossa tranquilidade perante a futura recepção da nova edição crítico-interpretativa de Lendas capixabas para violão solo, de Carlos Cruz, está garantida com estas palavras de Grier (1996):


Esta edição representa apenas um dos vários caminhos possíveis de apresentar este material. Ela não tem o intuito de resolver todos os problemas com a música, e sem dúvidas alguns críticos vão dizer que ela cria alguns problemas novos. […] Minha intenção foi promover novos diálogos críticos entre o público para a edição e a música nela presente. […] se a música é agora mais acessível àqueles que vão estudá-la e in- terpretá-la, a edição fez seu trabalho.12 (GRIER, James, 1996, p. 199, tradução do autor)


Notas


1 Kreutz (2012) refere-se a idiomatismo como o conjunto de “peculiaridades e possibilidades técnicas e expressi- vas que determinado meio sonoro possibilita. Sendo que como meio sonoro se entende qualquer instrumento/ voz ou formação instrumental/vocal/mista.Dentre os assuntos que o termo engloba pode-se destacar: técnicas específicas de execução; possibilidades físicas e mecânicas; possibilidades expressivas, procedimentos típicos da escrita; nível de exequibilidade dos procedimentos; conhecimento de obras relevantes para o meio, etc.” (KREUTZ, 2012, p. 3); “Quando as limitações são superadas pela escrita, e o discurso musical flui [...] podemos dizer tratar-se de uma escrita idiomática.” (FERNANDES; GLOEDEN, 2012, p. 528); “[...] uma escrita idiomática funcional, mais do que uma escrita repleta de recursos idiomáticos, é aquela que aproveita as características intrínsecas do instrumento, potencializando suas possibilidades e fazendo uso dos mais diversos recursos do instrumento em prol do discurso musical.” (FERNANDES; GLOEDEN, 2012, p. 531)

2 Trombonista, compositor e líder de grupos populares e sinfônicos; natural de Campos (RJ); radicou-se no Es- pírito Santo em 1931, e foi de fundamental importância para o desenvolvimento da cultura musical capixaba. Clovis Cruz foi um dos fundadores da primeira grande orquestra sinfônica do estado, em meados da década de 30. (SILVA, 1986, 17-19)

3 Edição eletrônica disponível no site SESC Partituras: http://www.sesc.com.br/sescpartituras

4 Alturas, ritmos, dinâmicas, articulações, indicações de agógica e de tempo provavelmente equivocados.

5 What kinds of decisions needed to be taken? Where do the sources differ one from another? How can we evalu- ate the sources comparatively? Is it possible to establish a stemma, or at least to group manuscripts and printed editions in a way that helps explain their peculiarities? And under what circumstances should editors feel it incumbent to correct or complete the readings of contemporary sources? These are questions every critical edi- tion needs to answer. No edition can be called “critical” unless a written commentary exists and is available to scholars and performers. (GOSSETT, 2005, p. 141)

6 [...] two distinct traditions of editorial practice have emerged and persist today in the production of musical texts. In the first tradition, that of the practical or performance edition, the editor freely incorporates personal interpretation of the music text. The second, and later, tradition is based on the philological method, which seeks to establish an original, authoritative text. The two types are not always completely distinct. The two tra- ditions influence each other, and I would argue that the best editions are a hybrid of both. (HONEA, 2002, p. 26)

7 Editing […] consists of series of choices, educated, critically informed choices; in short, the act of interpretation. Editing, moreover, consists of the interaction between the authority of the composer and the authority of the editor. (GRIER, 1996, p. 2-3)

8 Neste trabalho, fonte primária refere-se às fontes manuscritas do próprio compositor (inclui esboços, rascunhos e anotações) ou às fontes realizadas sob sua supervisão direta.

9 Esta edição consiste em uma fonte secundária, por não ter sido realizada sob a supervisão direta do compositor.

10 Nas disciplinas de Instrumento III e Instrumento IV, do curso de Mestrado em Música, área de concentração Práticas Interpretativas – Violão, em 2013/1 e 2013/2, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Sobre Daniel Wolff, consulte: http://www.danielwolff.com.br

11 Neste exemplo, tal qual na nova edição, a voz inferior, constituída por notas mais longas, fora escrita logo após a voz superior; nos manuscritos de Cruz, entretanto, a voz inferior é escrita antes da voz superior. Optamos por manter a primeira configuração por se tratar de uma resolução automática do programa de editoração eletrônica utilizado.

12 This edition represents only one of many possible ways to present this material. It does not attempt to solve all problems with the music, and undoubtedly some critics will say that it create some new ones. […] My intention was to foster new critical dialogues between the audience for the edition and the music presented in it. […] if the music is now more accessible to those who would study and perform it, the edition has done its job. (GRIER, 1996, p. 199)


Referências


FIGUEIREDO, Carlos Alberto. Tipos de edição. Debates, Rio de Janeiro, n. 7, p. 39-55, 2004.

GOSSETT, Philip. Critical editions: musicologists and copyright. Fontes artis musicae, vol. 52, issue 3, p. 139-144, jul.-set., 2005. ISSN 0015-6191; número de acesso 22728905.

GRIER, James. The critical editing of music: history, method and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 267 p.

HONEA, Sion. How to select a performing edition: an understanding of music editorial prac- tices can help teachers choose appropriate performance editions for themselves and their students. Music educators journal, vol. 88, issue 4, p. 24-57, 2002.

KREUTZ, Thiago de Campos. A utilização do idiomatismo do violão na Ritmata de Edino Krieger. In: Simpósio Acadêmico de Violão da EMBAP, VI, 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: EMBAP, 2012.

MADEIRA, Bruno; SCARDUELLI, Fábio. Ampliação da técnica violonística de mão esquerda: um estudo sobre a pestana. Per Musi, Belo Horizonte, n. 27, p. 182-188, 2013.

NOVAES, Maria Stella de. Lendas capixabas: lendas e estórias. Vitória: Editora Franciscana, 1968. 163 p.

PEREIRA, Marcelo Fernandes; GLOEDEN, Edelton. Apontamentos sobre o idiomatismo na escrita violonística. In: Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, XXII, 2012, João Pessoa. Anais... João Pessoa: ANPPOM, 2012. p.526-533.

SILVA, Osmar. Música popular capixaba – 1900-1980. Vitória: DEC-SEDU, 1986. 81 p.

SIMÕES, Renan Colombo; WINTER, Leonardo Loureiro. Lendas capixabas de Carlos Cruz: descrição, análise e comparação das fontes manuscritas. In: Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, XXIII, 2013, Natal. Anais... Natal: ANPPOM, 2013.

Partituras


CRUZ, Carlos. Lendas capixabas. Violão solo. Rio de Janeiro: partitura manuscrita, 2000.

. Lendas capixabas. Violão solo. Rio de Janeiro: partitura manuscrita, 2000. capa

. Lendas capixabas. Violão e orquestra de câmara. Rio de Janeiro: partitura manuscrita, 2001.

. Lendas capixabas. Violão solo. SESC-ES: edição eletrônica, 2012. Disponível em:

<http://painelgti.sesc.com.br/partituras.nsf/0/49DD8004DA8F9F2F832579E30054D211>.


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Renan Simões – Doutorando e mestre em Música (Práticas Interpretativas – Violão) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Como solista, venceu seis concursos competitivos de âmbito nacional e internacional, e gravou três CDs. Realizou apresentações artísticas e publicou artigos nos congressos da ANPPOM, ABRAPEM e no Simpósio Acadêmico de Violão da EMBAP. Apresentou-se como solista no sudeste e nos estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte.


Leonardo Loureiro Winter – Professor Associado de Flauta e do Programa de Pós-Graduação em Música na Uni- versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), procura conciliar intensa atividade artística como camerista, solista e integrante da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) com suas atividades acadêmicas. Publica regu- larmente artigos em revistas especializadas, enfocando o repertório brasileiro, análise, interpretação e ansiedade na performance musical.

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