image


Artigos Científicos - Performance Musical

Artigos Científicos - Performance Musical

Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 233p., n.1, 2015

Iconografia, iconologia e fato musical:

análise das capas de disco do trio Sá, Rodrix & Guarabyra.


Victor Henrique Resende (UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil)

vhrjedi@yahoo.com.br


Resumo: o presente artigo tem como objetivo propor uma análise das capas de discos do trio Sá, Rodrix & Guarabyra, produzidos no Brasil, nos anos 1970. Busca-se fazer não só uma análise iconográfica, no sentido de descrição, mas também uma abordagem iconológica. Tal análise está ancorada nos pressupostos metodológicos do historiador da arte Erwin Panofsky, que propõe uma interpretação das imagens. O trabalho também dialoga com os historiadores Peter Burke e Eduardo França Paiva, que destacam, dentro de suas metodologias, as possibilidades de interpretação e trabalho com fontes visuais. Busca-se, desse modo, abordar as capas de discos como fatos musicais, como pertencentes à construção e produção de sentido do fazer musical do trio estudado.


Palavras-chave: iconografia; iconologia; capas de discos; fato musical.


Iconography, iconology and musical fact: analysis of the trio Sá, Rodrix & Guarabyra’s long-playing record covers.

Abstract: The present paper aims to propose an analysis of the trio Sá, Rodrix & Guarabyra’s long-playing record cov- ers made in Brazil in the 1970’s. Not only is an iconological analysis in the sense of description searched, but also an iconological approach. Such analysis is grounded on the art historian Erwin Panofsky’s methodological suppo- sitions, which propose an image interpretation. This paper also interacts with the historians Peter Burke and Edu- ardo França Paiva who highlight, in their methodologies, the possibilities of interpretation and the work with visual sources. This way, we aim to broach the long-playing record covers as musical facts and belonging to the built and production of the trio’s musical performance sense studied.

Keywords: iconography; iconology; long-playing record covers; musical fact.


Iconografía, iconología y hecho musical: análisis de las portadas de discos del trío Sá, Rodrix & Guarabyra.

Resumen: El presente artículo propone un análisis de las portadas de discos del trío Sá, Rodrix & Guarabyra, produ- cidos en Brasil, en la década de 1970. Se pretende hacer no solo un análisis iconográfico, en el sentido de descrip- ción, sino también un abordaje iconológico. Este análisis está anclado en las premisas metodológicas del historiador de arte Erwin Panofsky, que propone una interpretación de las imágenes. Para este trabajo también se dialogó con los historiadores Peter Burke y Eduardo França Paiva, que destacan en sus metodologías, las posibilidades de interpreta- ción y de trabajo con fuentes visuales. Se busca de este modo, abordar las portadas de discos como hechos musicales, como pertenecientes a la construcción y producción de sentido del hacer musical del trío estudiado.

Palabras-clave: iconografía; iconología; portadas de discos; hecho musical.


  1. Introdução: considerações teóricas e metodológicas


    O presente artigo tem como objetivo propor uma análise das capas de discos do trio Sá, Rodrix & Guarabyra, produzidos no Brasil, nos anos 1970. Busca-se fazer não só uma análise iconográfica, no sentido de descrição, mas também uma abordagem iconológica.

    Tal análise está ancorada nos pressupostos metodológicos do historiador da arte Erwin Panofsky (1976), que propõe uma interpretação das imagens. Nesse estudo, dialoga-se também com os historiadores Peter Burke (2004) e Eduardo França Paiva (2004), que desta- cam, dentro de suas metodologias, as possibilidades de interpretação e trabalho com fontes visuais.

    Procura-se, desse modo, abordar as capas de discos como fatos musicais, ou seja, como pertencentes à construção e produção de sentido dentro do fazer musical do trio Sá, Rodrix & Guarabyra. Conforme aponta Jean Molino (1975), o conceito e o conhecimento so- bre música passa pelo estudo do som construído e reconhecido por uma cultura. O autor de-


    Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 233p., n.1, 2015 Recebido em: 01/06/2015 - Aprovado em: 23/06/2015

    nomina de fato musical todo fenômeno musical e este, por sua vez, apresenta, para Molino, um triplo modo de existência, três níveis de percepção: objeto isolado (neutro, com suas for- mas e características físicas), objeto produzido (poiético, empírico, com seus processos de criação) e objeto percebido (estésico, passível de análise e apreciação). Como se verá adian- te, pode-se tomar as capas de discos como pertencentes à produção musical aqui discuti- da, sendo que o conteúdo imagético contido nesses encartes apresenta os três níveis aci- ma referidos. Nesse caso, procura-se articular a proposta de conhecimento musical de Jean Molino com as abordagens teóricas e metodológicas de autores que trabalham com imagens e obras de arte, procurando reconhecer esses diversos níveis de interpretação no documen- to imagético.

    Por sua vez, o musicólogo Paulo Castagna (2008), ao abordar a música como obje- to de conhecimento, trata da iconografia como uma das subdivisões da musicologia histó- rica (CASTAGNA, 2008, p. 15). Tal vertente de conhecimento musicológico é proposta por Vicent Duckles (CASTAGNA, 2008), que subdivide a musicologia histórica em nove ramos: método histórico; método teórico e analítico; crítica textual; pesquisa arquivística; lexico- grafia e terminologia; organologia e iconografia; interpretação histórica (performing practi- ce); estética e crítica; dança e história da dança (CASTAGNA, 2008, p. 15).

    Desse modo, para Paulo Castagna a iconografia pode ser considerada como o estudo de fontes visuais relacionadas à música, onde é possível encontrar informações sobre ins- trumentos, características dos espaços de apresentação, tipos de intérpretes etc. Castagna aponta, também, uma iconografia analítica e interpretativa, que estuda o significado das in- formações na imagem, ao invés de somente descrevê-las (CASTAGNA, 2008, p. 25). Procura- se, no presente estudo, articular tal abordagem com a de Erwin Panofsky. Nesse caso, o que Paulo Castagna chama de iconografia analítica aproxima-se daquilo que Panofsky denomi- na de iconologia. Para este autor, há três níveis de interpretação das imagens. Ao trabalhar, especificamente, com obras de arte do período do Renascimento, Panofsky demonstra que existe, primeiramente, uma abordagem “pré-iconográfica(PANOFSKY, 1976, p. 50), onde os elementos formais (motivos artísticos) de um quadro são percebidos pelo intérprete; em segundo, uma interpretação convencional, percebendo-se as imagens, suas “estórias e ale- gorias” (PANOFSKY, 1976, p. 51) e seu contexto (assuntos e conceitos), denominada de aná- lise iconográfica. Porém, Panofsky postula que há a necessidade de se buscar os constituin- tes simbólicos de um quadro, seus significados intrínsecos e os conteúdos dentro de um contexto em que a obra foi criada e dada a ‘ler’. Esse nível mais profundo é o que Panofsky chama de análise iconológica. Segundo o autor, “essas categorias nitidamente diferenciadas que (...) parecem indicar três esferas independentes de significado, na realidade se referem a aspectos de um mesmo fenômeno, ou seja, à obra de arte como um todo” (PANOFSKY, 1976,

    p. 64). O objetivo, então, é o de estudar não somente os aspectos formais de uma obra (nível neutro proposto, na música, por Jean Molino), como cores, linhas, textura, e nem descrever um quadro ou uma imagem reconhecendo apenas seus códigos de produção e seus concei- tos numa dada sociedade (uma Santa Ceia, uma Virgem com Menino Jesus, por exemplo), que seria o nível iconográfico (poiético) mas, também, perceber os significados intricados e por vezes ocultos numa obra, perscrutar os temas e mensagens das obras de arte (nível estésico).

    Portanto, conforme afirma o historiador Peter Burke, é possível fazer “uso das ima- gens como evidência histórica” (BURKE, 2004, p. 11). Porém, ao se analisar qualquer ima- gem como testemunha da história, deve-se considerar os “possíveis perigos” da interpreta- ção (BURKE, 2004, p. 11). Por sua vez, o historiador Eduardo França Paiva aponta que “é preciso estar atento aos limites existentes nesses procedimentos de interpretação, sob pena

    de, no extremo, inventarmos realidades históricas para podermos adaptá-las à iconografia examinada” (PAIVA, 2004, p. 31). Segundo Paiva, a iconografia pode ser interpretada como imagem registrada e como representação por meio da imagem (PAIVA, 2004, p. 15). Nesse caso, parte-se, primeiramente, para a descrição das capas dos discos do trio, para, em segui- da, analisar os possíveis significados históricos no contexto brasileiro em questão.


  2. Contexto do trio Sá, Rodrix & Guarabyra


Nos anos 1970, época de maior autoritarismo e repressão na política e na socieda- de brasileira devido ao regime civil-militar instaurado a partir de 1964, o trio de músicos Sá, Rodrix & Guarabyra pôs o pé na estrada e cantou o meio urbano e rural do Brasil. Com o chamado rock rural, esses artistas trouxeram, em suas canções, as representações sobre cidade e campo na cultura brasileira. O contexto brasileiro desse período apresentou pro- fundas mudanças e contrastes: na política, um regime de exceção, com ausência de pluri- partidarismo e forte repressão; no campo econômico, o chamado milagre brasileiro, com crescimento industrial, ampliação do mercado – inclusive, de consumo de bens culturais

– e geração de empregos; no plano social e artístico, intensa repressão e censura; além de acelerado processo de urbanização, que fez com que a população brasileira deixasse de ser eminentemente rural.

Sendo assim, os músicos do trio, pegando carona nas experimentações do perío- do, com influências da Tropicália, e apropriando-se do gênero rock, combinaram guitarras e violas, e trouxeram para o espaço musical brasileiro a ideia do rock rural. A expressão foi retirada da letra de Casa no Campo, composição de Zé Rodrix e Tavito1. A música do trio, que ficou “rotulada” pela mídia, segundo Luiz Carlos Sá, de Rock Rural (SÁ, 2010, p. 127), trazia nesses anos 70 uma arte que cantava o meio rural, a ideia de volta ao campo para descanso e ‘fuga’ do meio urbano. Tratou-se, de uma produção musical que trouxe repre- sentações urbanas de campo e de valorização da natureza pelas vivências dos músicos na cidade (metrópole de São Paulo), embora um dos componentes (Guarabyra) viesse do meio rural. Segundo, ainda, Luiz Carlos Sá, a partir do sucesso de Casa no Campo, de Tavito e Zé Rodrix, este último junto a Sá partiram para uma experiência musical “que era mais ou menos permitido para fugir daquilo que estava ali” (SÁ, 2010, p. 128), ou seja, o contexto repressor do período. Ao juntarem com Guarabyra, criaram um som que misturou violas e guitarras, trazendo um estilo próprio de cantar o Brasil. Para Luiz Carlos Sá:


Rock Rural foi um termo cunhado por Zé Rodrix para a letra de Casa no Campo. Nossa proposta como trio era unir os novos sons que chegavam de fora como o coun- try e o folk rock de Crosby, Stills, Nash & Young; James Taylor; Carole King; Eagles; Beatles e que tais com a música regional brasileira, desde o baião de Luiz Gonzaga ao caipira interiorano de raiz, passando por Jackson do Pandeiro e outras coisas que tinham sido relegadas a segundo plano com o advento da bossa nova, da qual éramos também filhotes ilegítimos[...]2


O trio produziu dois discos pela gravadora Odeon: Passado, Presente & Futuro, em 1972 e Terra, em 1973.

Luiz Carlos Sá (1945-), carioca de Vila Isabel, músico desde os dezessete anos de idade, com influências do samba e do rock dos anos 60; Zé Rodrix (1947-2009), filho de mestre de banda, com alto conhecimento em teoria musical e instrumentista múltiplo; e Gutemberg Guarabyra (1947-), baiano de Bom Jesus da Lapa, amante da música seresteira,

trouxeram em sua obra as vivências pessoais entre sertão e metrópole, meio rural e urbano, e mesclaram diversas sonoridades: ‘erudita’, ritmos nordestinos, violões, violas e guitarras elétricas. Viveram a realidade brasileira e as tentativas alternativas de inserção na moder- nidade do período3.

Tal modernidade, no contexto da ditadura civil-militar brasileira nos anos 1970, apresentou um quadro de grande avanço na economia, a ausência de participação polí- tica, além da censura aos meios de comunicação e de manifestações culturais do país. Uma modernidade conservadora, cujo conjunto de processos socioeconômicos, visan- do colocar o Brasil num patamar de sociedade industrial avançada, se deu junto ao cer- ceamento da população e vigilância por parte de setores militares e civis do período. O planejamento e a estratégia dos governos militares, calcados na Doutrina de Segurança Nacional, basearam-se no crescimento econômico do país, na vigilância à população – para manter a ordem – e na forte repressão às manifestações artísticas e políticas, que pode- riam ir contra o regime de exceção. É nesse contexto que se encontra a obra de Sá, Rodrix & Guarabyra.


  1. Análise iconográfica e iconológica


    1. LP Passado, Presente & Futuro


      Parte-se, primeiramente, para a descrição e a análise da capa do primeiro LP do trio, Passado, Presente & Futuro4. A capa do disco (Figura 1) mostra três planos fotográficos com os três integrantes. Eles aparecem posando para a foto no meio do mato. Luiz Carlos Sá está de pé, de óculos escuros. Os demais integrantes estão logo abaixo, com Guarabyra, à direita, segurando um chapéu, também de óculos escuros e bolsa (ou mochila) pendura- da de lado e, à sua esquerda, Zé Rodrix, também de bolsa e com colares no pescoço. Os três integrantes olham diretamente para as lentes da câmera fotográfica. Junto a eles, aparece um violão.

      Na contracapa do disco (Figura 2), vê-se a logomarca do trio: três árvores juntas. Aparece, novamente, um violão no canto superior direito da contracapa. Há, também, as letras das músicas, a duração de tempo de cada faixa e a descrição de cada instrumento to- cado por seus respectivos músicos, além de ficha técnica do disco, com informações sobre produção, arte gráfica, agradecimentos etc.

      image

      Figura 1: Capa do primeiro disco de Sá, Rodrix & Guarabyra


      image

      Figura 2: Contracapa do primeiro disco do trio


      O visual dos integrantes, conforme percebido na capa do LP, parece misturar urba- nidade, ruralidade e também certa estética contracultural, a julgar pelos cabelos mais com- pridos dos três músicos. A bolsa ou mochila de lado pode representar a ideia de estradeiro, de viajante, também se aproximando de uma estética da contracultura, de um visual e ima- ginário hippie.

      Sobre a concepção da capa do LP, é interessante pensar na proposta atemporal do trio. Conforme notado na capa (Figura 1), são percebidos três planos fotográficos idênticos, em que campo e natureza aparecem como uma constante.

      Luiz Carlos Sá, sobre o primeiro LP do trio, destaca:


      Quando começamos a compor tendo o disco por objetivo, nossas parcerias se conso- lidaram com mais firmeza. Decidido o nome do LP – Passado, Presente, Futuro, por- que queríamos fazer algo atemporal, longe de modismos – chamamos nossos amigos Waltércio Caldas Jr. para a concepção gráfica e Amarílio Gastal para fazer as fotos. (SÁ, 2010, p. 128-129)


      Segundo Luiz Carlos Sá, Waltércio Caldas Júnior “concebeu uma capa com a repe- tição da mesma foto em três níveis de contraste que representavam os três tempos que que- ríamos ‘in-definir’” (SÁ, 2010, p. 129).

      As temporalidades, ao longo do LP, traduzem-se e convergem na permanência do campo, seja no passado, no presente, ou no futuro. Em meio à modernidade, há o movimen- to entre cidade e campo, mas sempre com a perspectiva de exaltação e retorno ao meio ru- ral, encontrado na maioria das canções do primeiro disco. Quando se observam os três tem- pos (passado, presente e futuro) que os músicos queriam indefinir na capa, verifica-se um passado já esmaecido, se desfazendo, um presente ainda se formando, com a perspectiva de uma vida em harmonia no campo, e um futuro nítido, vivo, firme, que denota a expectativa de uma vida melhor, entre as pessoas e em paz com a natureza.

      Waltércio Caldas Júnior, amigo dos músicos e consolidando-se na carreira de artis- ta plástico, criou também a logomarca do trio, representada por três árvores ligadas (Figura 3). Elas remetem à ideia de amizade e união entre os músicos e também fazem referência à natureza.


      image

      Figura 3: Logotipo do trio


      O LP Passado, Presente & Futuro, traz composições que enfatizam o retorno ao cam- po, à vida em paz na natureza. Destaque para a música Cigarro de palha:


      Só meu cigarro de palha/ meu cavalo alazão me dá/ um momento de paz na vida.


      Percebe-se, conforme a letra acima, uma idealização do meio rural. Essa canção aparece na última faixa do LP, como uma coda5 e remete ao refúgio no campo, à volta ao meio rural para se descansar da cidade. Com os instrumentos de viola caipira, violão de aço e acordeom, a música apresenta uma sonoridade que remete a possíveis representações do meio rural. A ideia de tranquilidade e paz, presentes na letra da canção, só é possível de ser

      encontrada, para os músicos, no campo, longe do meio urbano. Segundo informações en- contradas no encarte do LP, a música foi gravada ao vivo na estrada Rio – Friburgo, com Sá na viola de ponteio, Rodrix no acordeom e Guarabyra no violão de aço. Música gravada na estrada, demonstrando a ideia de movimento entre cidade e campo. Outras músicas trazem a junção de guitarras e violas, marcando o ‘gênero’ rock rural. Destaque para as composi- ções Primeira canção da estrada e O pó da estrada. Ambas, respectivamente do primeiro e segundo discos do trio, trazem a proposta contracultural de pôr o pé na estrada e de bus- car um caminho e uma vida melhor. Em Primeira canção da estrada, os músicos declaram:


      Apesar das minhas roupas rasgadas/ eu acredito que vá conseguir/ Uma carona que me leve pelo menos à cidade mais próxima/ Onde ninguém vai me olhar de frente/ Quando eu tocar na velha guitarra/ as canções que eu conheço/ Eu tinha apenas de- zessete anos/ no dia em que saí de casa/ e não fazem mais de 4 semanas que eu estou na estrada/ Mas encontrei tantas pessoas tristes/ desaprendendo como conversar/ Que parece que eu estou carregando os pecados do mundo.


      Os instrumentos predominantes na música são o violão de aço, a viola caipira, o piano, a bateria e o baixo. O ritmo predominante é o rock6. Encontram-se acordes maiores e menores na canção (tonalidade do campo harmônico de Lá maior). Os acordes menores (Si menor, Dó sustenido menor com sétima e Fá sustenido menor), sugerem uma sonoridade mais melancólica, mostrando, provavelmente, as tensões e angústias do cantor, suas desilu- sões e o trânsito entre campo e cidade ou entre cidades. O caminho para uma cidade qual- quer, conforme aparece na letra, retrata a ideia, a ilusão, ou a percepção de busca de liber- dade e de uma vida melhor. Porém, como é percebido, há o choque com a solidão do sujeito e com as pessoas que o cantor encontra no caminho: “pessoas tristes/desaprendendo como conversar”, em suas individualidades, numa espécie de atomismo social (o indivíduo solitá- rio em meio à multidão) que a modernidade parece intensificar. O cantor, em sua subjetivi- dade, sente o peso dessas relações sociais – “que parece que eu estou carregando os pecados do mundo”. A ideia que é passada na letra é de caminho, de busca constante pela estrada, de desilusão e de desencanto percebido pelo cantor.

      O disco Passado, Presente & Futuro faz, também, um trajeto entre modernidade e tradição. Abre com a faixa Zepelim, com o tema da modernidade e fecha com a coda Cigarro de palha, retratando o bucolismo, a ideia de retorno ao ambiente rural. Como enfatiza Luiz Carlos Sá:


      ...para viver o presente e preparar o futuro tínhamos que olhar o passado. Bem verda- de que, num acesso de lucidez, eu e meus parceiros Rodrix e Guarabyra intitulamos nosso primeiro LP, lançado em 72, de “Passado, Presente, Futuro”. Pensando melhor, acho que naqueles tempos de ditadura, ‘velhos’ significava ‘opressores’. (SÁ, s/d)7


      Em Zepelim, o trio canta:


      Hoje abri um livro antigo/ Que mostrava as maravilhas inventadas pelo homem/ Há 50 anos atrás/ Uma fotografia me mostrou o que eu queria/ Todo esse tempo andei sonhando e não sabia bem porquê/ agora eu sei/ agora eu sei/ Eu queria passear de zepelim/ na cadeira ao lado do conde Ferdinando/ um balão de gás inflamável/ pelos ares da Europa viajando.


      A música retrata o desejo dos músicos de percorrerem os lugares considerados mar- cos da modernização e das realizações humanas, como a Catedral de Notre Dame, a Torre Eiffel etc. Esses marcos da modernidade são mencionados no final da canção quando os

      músicos narram, como se fossem guias turísticos, a localização desses monumentos. A can- ção demonstra a vontade dos próprios músicos de compartilharem e aproveitarem as reali- zações do mundo moderno, sem limites; percorrer a ‘estrada’ – elemento importante da con- tracultura. Diferente de Cigarro de palha, cuja vontade é de estar no campo, num “momento de paz na vida”.

      Percebem-se certas aproximações do trio com a contracultura. Carlos Messeder Pereira (1992) destaca que, nos anos 1960, entre os jovens e a intelectualidade, em diversos países do globo, surge um tipo de mobilização e contestação social diferente do engajamen- to político das esquerdas, denominado, pelos meios de comunicação, de Contracultura. Seus sujeitos históricos se opuseram ao modo burguês de vida, questionando a racionalidade da modernização capitalista representada pelo Estado. No caso brasileiro, a juventude, sobretu- do das classes médias, procurou alternativas e espaços de convívio dentro da modernização capitalista conservadora. Deram ênfase à subjetividade, ao retorno à natureza, à vida em co- munidade, abrindo até mesmo a possibilidade de diálogos extraterrenos! Encontrava-se em evidência o respeito às diferenças culturais, à liberdade sexual, numa crítica ao consumis- mo e ao intelectualismo vigente, além da ideia de abandono das cidades e o retorno ao cam- po, trocar o asfalto quente pela estrada de chão, rumo ao mato, ao meio natural.

      Sendo assim, ao cantar a natureza, a ideia bucólica de vida no meio rural, o trânsito entre campo e cidade, os músicos se aproximam de certo imaginário e estética da contracul- tura. Vários grupos, indivíduos, artistas, e aqui em destaque, o trio Sá, Rodrix & Guarabyra, se aproximaram de alguns valores contraculturais, numa crítica à sociedade capitalista, e utilizaram, inclusive, da própria modernidade – como exemplo, a guitarra elétrica – para criticar e se inserir no contexto em que viveram. Como destaca Luiz Carlos Sá, integran- te do trio em estudo, ao ser indagado sobre como percebia o regime autoritário em que vi- veu nos anos 1970: “como a de todos os artistas que sonhavam ambiciosamente em mudar o mundo: péssima, frustrante e muito perigosa”8. Ainda, em artigo para a Revista USP, o cantor enfatiza:


      [...]duramente impedida de manifestar-se em liberdade, a juventude brasileira egressa dos tempos de passeatas e luta armada era forçada a derivar então para um tipo de contestação inspirada pelo movimento hippie, que nos EUA tinha uma força contes- tatória muito mais evidente, contrária à Guerra do Vietnã. Mas enquanto os sistemas repressivos europeus e americanos tinham que se ater a leis constitucionais e à demo- cracia vigente, no que pesem os assassinatos de Chicago e Paris, nós aqui sofríamos a ausência do estado de direito. Por isso, enquanto o “flower power” vicejava nos Estados Unidos e na Europa como uma força ideológica de fato, impondo suas exigên- cias por vias políticas e através de importantes movimentos de massa que acabaram, por exemplo, demolindo o apoio popular ao intervencionismo americano na Ásia e ao tradicionalismo do ensino acadêmico francês, nós brasileiros tínhamos que nos conformar com o que a ditadura julgasse menos danoso a seus objetivos. (SÁ, 2010, p. 127-128)


      Por meio da apropriação do gênero musical rock no país, Sá, Rodrix & Guarabyra cantaram a cultura e a sociedade brasileira do período. E, diferente do que afirma Luiz Carlos Sá, não se tratou apenas de conformismo assumido pelos artistas, nos anos 1970, em relação ao que a ditadura julgasse menos danoso, mas de se situar e de encontrar espaços entre os embates contra o regime de exceção e a total ou parcial aceitação do mesmo.

      Vale lembrar, ainda, que o gênero musical apropriado pela juventude contracultural foi o rock. Segundo Carlos Messeder Pereira, a expressão mais artística da contracultura se deu com esse gênero. O rock, conforme destaca o autor (PEREIRA, 1992, p. 42-43), traduziu

      os anseios e a liberdade alternativa dos contraculturalistas e expressou a vontade de se re- tirar para o campo, na ideia de vida em comunidade, nas viagens lisérgicas e diálogos mís- ticos e psicodélicos, numa crítica ao racionalismo cientificista (PEREIRA, 1992, p. 82). Para Carlos Messeder, visava-se:


      [...]buscar saídas alternativas para expressar seu descontentamento e fazer valer suas crenças e sua voz. E, certamente, estas saídas foram encontradas. Uma delas, por exemplo, é a música. No quadro da contracultura, o rock é um tipo de manifestação que está longe de ter um significado apenas musical [...] constituindo-se num dos principais veículos da nossa cultura que explodia em pleno coração das sociedades industriais avançadas. (PEREIRA, 1992, p. 82)


      Desse modo, o trio exalta, também, o rock, como na canção Hoje ainda é dia de rock:


      Eu tô doidin por uma viola/ Mãe & pai de 12 cordas e 4 cristais/ pra eu poder tocar lá cidade/ mãe & pai êsse meu blue de Minas Gerais/ E meu cateretê lá do Alabama/ mesmo que eu toque uma vezinha só/ Eu descobri e acho que foi à tempo/ mãe & pai/ que hoje ainda é dia de rock...


      A composição demonstra o desejo de tocar viola e guitarra na cidade. Partindo de elementos e de vivências do campo, o jovem caminha para o moderno, o meio urbano (o rock, a guitarra elétrica). Destaque, também, na letra, à mistura de sons e ritmos: “blue de Minas Gerais” e “cateretê lá do Alabama”, como parte também de certa ironia e crítica em relação aos discursos nacionalistas, do nacional-popular9 sobre a autêntica música brasilei- ra. Rodrix canta, nesse caso, as possibilidades de combinações sonoras e rítmicas diversas na música do país. É instigante, por exemplo, a observação do cantor sobre o panorama mu- sical nos anos 70. Conforme afirma sobre a música engajada da época:


      Tinha essa coisa do enfrentamento das pessoas que não conseguiam admitir nenhum outro formato, ferramenta, que não fossem as ferramentas tradicionais da MPB, aque- le negócio do Violão, aquelas estruturas que tinham sido criadas e apresentadas como sendo as únicas verdadeiras, seja pelo CPC da UNE, seja pelo pessoal do Augusto Boal, a intelligentsia de esquerda mais tradicional, mais careta, que não conseguia aceitar que existissem outras formas de se fazer música no Brasil, a não ser aquela que eles preconizaram. (RODRIX, entrevista ao Museu do Clube da Esquina)


      Criticando o nacional-popular do pessoal do CPC (Centro Popular de Cultura), e ou- tros artistas da época, Rodrix não nega o caráter de nacionalidade da música produzida no período, mas defende outras formas de se cantar o Brasil, e, sobretudo, as misturas diversas

      – rítmicas, harmônicas e melódicas – do cenário musical brasileiro. E, conforme enfatiza Luiz Carlos Sá, a música Hoje ainda é dia de rock “caracterizava sucintamente nossa ambi- guidade urbano-rural, acústico-elétrica, roqueiro-caipira” (SÁ, 2010, p. 129).

    2. LP Terra


Descrevendo e analisando a capa do segundo disco do trio (Figura 4), Terra10, con- cebida também por Waltércio Caldas Júnior, e fotos de Miguel Rio Branco, percebe-se o de- senho de um violão sob um fundo amarelo, que está num outdoor. No violão, vê-se as cor- das em forma de fios da rede elétrica e os trastes do instrumento estão destacados do braço representando postes. O braço do violão se assemelha a uma estrada asfaltada. No canto in- ferior direito nota-se a logomarca do trio, também em detalhe amarelo.

image


Figura 4: Capa do segundo disco do trio


Na contracapa (Figura 5), Luiz Carlos Sá aparece de óculos escuros, vestindo cami- seta, calça jeans, sandálias e boné de motoqueiro. Rodrix está de chapéu, com uma espécie de terno preto, óculos de grau e cabelo comprido. Guarabyra veste casaco, camisa branca e calças vermelhas e aparece, também, de cabelo mais longo.

Os músicos estão parados, no meio do mato, atrás do outdoor. Como no primeiro dis- co, os artistas se apresentam numa estética próxima da contracultura, com cabelos longos e roupas mais despojadas. Seus pés estão fincados no mato e, atrás, a estrada e o violão, repre- sentados no outdoor. Pode-se interpretar que as imagens da capa e da contracapa fazem um diálogo, um caminho que leva até o campo e deste de volta à cidade. Não é possível saber se a foto do violão está realmente fixada no outdoor ou se foi uma montagem. Porém, nota-se, dentro do campo visual da imagem, que o objeto está no meio do mato. O outdoor é uma peça publicitária cuja exibição é feita às margens de estradas, rodovias e nas laterais das ruas das cidades. Aqui, não é percebida nenhuma via pública. É como se os músicos tivessem produ- zido e exibido sua publicidade em meio à natureza.

image

Figura 5: Contracapa do segundo disco do trio


Na capa (Figura 4), o braço do violão parece simbolizar a estrada, a caminhada, o trânsito entre meio urbano e rural. As cordas, os trastes e o braço do instrumento aparecem transformados em fios, postes e asfalto, metáforas da modernidade.

Percebe-se que o violão pode ser tomado, também, como símbolo de musicalidade, de música brasileira e de tradição, como no nacional-popular.

Márcia Taborda, analisando o percurso do violão11 na sociedade brasileira, esclare- ce que este instrumento


[...]difundiu-se, entranhando-se em todos os setores da cultura brasileira. Tornou- se, desde os primeiros tempos da colônia até hoje, o fiel depositário das emoções e criações do nosso povo: um acervo vivo e pulsante. Esteve presente tanto nas mani- festações das camadas mais humildes da população quanto nas vivências dos mais requintados grupos das elites econômicas, políticas e intelectuais. (TABORDA, 2011,

p. 9)


A autora destaca que, ao mesmo tempo em que o instrumento foi marginalizado, como pertencente às camadas mais pobres, o violão esteve nos salões mais abastados do Império. A partir do século XIX, período em que o violão difundiu-se na sociedade brasilei- ra, o instrumento fez parte tanto dos salões nobres, quanto das ruas, botecos, estando tam- bém entre gente anônima e desempregada.

O violão se encontra relacionado às questões de identidade brasileira. Segundo Fernanda Maria Cerqueira Pereira (2007), as discussões sobre o violão fazem parte dos dis- cursos identitários nas primeiras décadas do século XX, no Brasil: nas teorias raciais, que tratavam o violão como símbolo de atraso, ligado ao povo; na valorização da cultura popu- lar, em que se debruçam os modernistas e na questão da circulação do violão entre os vá- rios grupos sociais.

Nos anos 1920, os chorões assumem grande importância na cena musical brasilei- ra: acompanhavam “modinhas – que ganharam o nome de serestas e acabaram por incluir

os sambas-canção lentos –, lundus, maxixes, marchas, sambas” (TABORDA, 2011, p. 135) e vários outros gêneros e subgêneros musicais. Na denominada Época de Ouro, entre 1931- 1940, as gravações de sambas e marchas tinham o violão como instrumento de acompanha- mento. Nas primeiras gravações fonográficas – a chamada fase mecânica, entre 1902-1927

– não era possível o registro de certos instrumentos, como os de percussão, ficando para o violão a tarefa de preencher as harmonias e o ritmo das canções.

Nos anos 1950, com a bossa nova, o violão adquire grande representatividade na cena cultural brasileira com a ‘batida’ de João Gilberto e seus desdobramentos, na tentati- va de transpor o samba para as cordas do instrumento. O violão e a batida da bossa nova servirão de pano de fundo musical às propostas do nacional-popular. Como afirma Marcos Napolitano, nos circuitos de shows universitários, que vão desembocar nos festivais e na música de protesto dos anos 1960, “o violão, não por acaso, era o símbolo da nova musicali- dade brasileira (usado como logotipo dos festivais da Record)” (NAPOLITANO, 2001, p. 63). Nota-se o caminho percorrido pelo instrumento e seus executores, as várias apropriações do violão, de instrumento marginalizado a símbolo de brasilidade nos grandes festivais de TV. Para Taborda,


[...] se a identificação do violão com os chorões e conjuntos populares deu origem a um imaginário em que o instrumento relacionava-se depreciativamente a setores marginalizados da sociedade, o timbre do violão e o ambiente sonoro por ele cria- do tornaram-se, igualmente, símbolos emblemáticos da nacionalidade. (TABORDA, 2011, p. 161)


Tão emblemáticos que no contexto dos anos 1960, contra a investida da Jovem Guarda que ganha expressividade no mercado fonográfico e nas audiências televisivas, os artistas engajados denunciam a postura considerada alienada dos músicos do iê-iê-iê bra- sileiro e os instrumentos elétricos e eletrônicos, como os teclados e as guitarras, consti- tuintes dos arranjos desse tipo de rock. Para esses músicos “a MPB deveria se manter fiel ao violão e aos instrumentos de percussão ligados ao samba e outros gêneros ‘autênticos’” (NAPOLITANO, 2001, p. 97). O violão, que já fora vítima do discurso da alienação e da ba- derna, marginalizado por vários setores sociais, passava a figurar como elemento importan- te, senão principal, do timbre nacional. E, conforme percebido, aparece também na produ- ção musical do trio.

Analisando capa e contracapa do disco Terra, nota-se a valorização da estrada e a ideia de trânsito, também presentes nas canções do LP. Como exemplo, a música O pó da estrada:


O pó da estrada gruda no meu rosto/ Como a distância matando as palavras/ Na mi- nha boca sempre o mesmo assunto/ O pó da estrada/ O pó da estrada brilha nos meus olhos/ Como as distâncias mudam as palavras/ Na minha boca sempre a mesma sede/ O pó da estrada/ (Eu) conheci um velho vagabundo/ Que andava por aí sem querer parar/ Quando parava ele dizia a todos/ Que o seu coração ainda rolava pelo mundo/

(E) o pó da estrada fica em minha roupa/ O cheiro forte da poeira levantada/ Levando a gente sempre mais à frente/ Nada mais urgente que o pó da estrada, que o pó da estrada.


Na letra da canção percebe-se a estrada, a caminhada constante. O que fica é o pó do caminho. Uma alternativa, em meio à modernidade e ao autoritarismo da sociedade bra- sileira do período, é continuar em frente, sem parar. Encontram-se alguns elementos repre- sentativos da contracultura como a ênfase à estrada. Os instrumentos utilizados na música

são craviola12, ocarina13, violão de nylon, contrabaixo, guitarra e bateria. O solo inicial da música é feito pela ocarina com acompanhamento do violão de nylon. Na voz de Luiz Carlos Sá, é enfatizada a urgência de movimento, de caminhada pela estrada, apresentando algu- mas influências do movimento contracultural onde se destacam


[...] os três grandes eixos de movimentação que marcavam sua rebelião – da cidade, a retirada para o campo; da família para a vida em comunidade; e do racionalismo cientificista para os mistérios e descobertas do misticismo e do psicodelismo das drogas. (PEREIRA, 1992, p. 82)


Contudo, diferente do primeiro disco, cujo repertório de músicas vai da ênfase e da crítica à modernidade à perspectiva de vida no campo, no LP Terra não se percebe um tra- jeto linear de canções. Mesmo assim, músicas como Até mais ver mostra as transformações da modernidade, a intensa urbanização e como os músicos percebem o campo e o meio ru- ral como um refúgio mais distante:


Até mais ver/ Teto sem forro/ Até mais ver/ Telha de barro/ Até mais ver/ Casa de abe- lha, no morro/ Cama de palha/ Trilha de areia/ Alma-de-gato/ Rio amarelo e vazio/ Até mais ver, sertão.../ Até mais ver, copo de folha/ Até mais ver/ Couro de boi/ Até mais ver/ Vento das onze da noite/ Flor de pimenta/ Carne-de-sol/ Pomba cinzenta/ Gente morena e vivida/ Até mais ver, sertão...


No arranjo da música encontram-se craviolas, piano elétrico, contrabaixo e bateria, com solo de acordeom. A composição traz um retrato do campo e ressalta a despedida do meio rural, porém, com perspectiva de retorno.

Desse modo, após a descrição e análise das capas dos discos e de alguns aspectos das canções aqui selecionadas (como, por exemplo, letras, tipos de instrumentos), percebe- mos que os músicos desejavam transmitir a ideia de retorno à natureza, porém, pela pers- pectiva urbana: é a representação de campo de quem vive na cidade, intermediando os dois espaços. Tais representações partiram também das inúmeras viagens que os músicos fize- ram; viagens que partiram da cidade, do espaço moderno. Conforme destaca Luiz Carlos Sá sobre o segundo disco e o rock rural:


[...]conseguimos fazer de Terra um trabalho coerente e bem-acabado, e o rock rural continuava seu caminho, agora mais estradeiro ainda, reflexo das viagens que fazía- mos para shows e da minha ida com Guarabyra ao médio São Francisco, viagem que marcou profundamente minha criação musical. Esse aspecto “estradeiro” do rock rural é reflexo direto desse prazer que sempre tivemos e ainda temos em viajar de carro. (SÁ, 2010, p. 130)


Apropriando-se do rock, sobretudo com a utilização das guitarras, do contrabaixo, da bateria e dos ‘teclados’, e gêneros considerados regionais e como parte da tradição musi- cal brasileira – ritmos como o baião, o xote, a guarânia, com violões e violas, além da per- cussão – os músicos retrataram, por meio do rock rural, suas ideias e suas representações sobre campo e cidade, suas movimentações entre um e outro, além das aproximações com a contracultura. Suas ideias partiram, contudo, do meio urbano. Os artistas se encontravam na grande São Paulo e construíram seu imaginário e suas representações a partir da cidade, de suas experiências na estrada e vivências do campo.

4. Imagem e fato musical


Por meio da abordagem iconográfica (análise e descrição) e iconológica (interpreta- ção) acima, pode-se afirmar que as capas de discos analisadas integram o fazer musical do trio Sá, Rodrix & Guarabyra.

Entende-se esse fazer musical como fenômeno, manifestação e/ou evento musical. Tem historicidade, contexto, realiza-se no social. Apresenta variabilidade de elementos, como sons, conceitos, comportamentos (CARDOSO, 2006, p. 81), compondo o que se pode denominar de fato musical.

Não basta, para se entender a produção musical do trio, conhecer apenas os sons de suas canções. A manifestação musical ou fato musical é ligada a ações humanas. Visão de música que transcende o som. Segundo Jean Molino,


Não há, pois, uma música, mas músicas. Não há a música, mas um facto musical. Este facto musical é um facto social total, e as frases de Marcel Mauss valem tanto para a música como para a doação: “os factos que temos estudado são todos, permitam-nos a expressão, factos sociais totais ou, se preferirem – mas não gostamos desta palavra – gerais [...] a totalidade da sociedade e das suas instituições...” (MOLINO, 1975, p. 114).


Como já exposto anteriormente, o autor destaca que o fenômeno musical apresenta pelo menos três dimensões de existência: uma poiética, entendida como processo de cria- ção; outra estésica, ligada ao processo de recepção; e um componente neutro, a forma ‘física’ da música. Ângelo Cardoso, por sua vez, mostra que tal perspectiva tridimensional da músi- ca, do fato musical, aparece, de certa forma, nos estudos de semiólogos, de etnomusicólogos (como som, comportamento e conceito para Alan Merriam; função, estrutura e valor para John Blacking) e de linguistas, os quais determinam os significados linguísticos por meio de seu conteúdo ético (externo), êmico (interno, inserido numa cultura) e por meio do objeto de pesquisa propriamente dito (CARDOSO, 2006, p. 84-87).

Conforme aponta Cardoso, há uma convergência nessas abordagens – trazem uma perspectiva holística e evitam o foco de estudo concentrado apenas no som, em sua exis- tência física.

Percebe-se, então, a música como processo. Corrobora-se, desse modo, com a defi- nição de Ricardo Tacuchian (2001) sobre a tarefa do musicólogo, que é a de desconstruir e decodificar a obra musical, interpretando os significados sob o ponto de vista social. Significados e representações na música, no fato musical, que partem do social. O autor, ao citar Attali (1985, p. 19), aponta que “a música está inscrita entre o ruído e o silêncio, no espaço da codificação social que ela revela. Cada código da música é enraizado em ideolo- gias e tecnologias de sua época e ao mesmo tempo as cria” (Attali, citado por TACUCHIAN, 2001, p. 106).

A música é o resultado de uma prática social. Sendo assim, é possível entender e considerar a capa do disco como prática e como fazer musical. As imagens e seus signifi- cados, portanto, não podem ser tomados apenas como elementos extramusicais, “estão liga- dos à estrutura (musical) das obras” (Kramer, citado por TACUCHIAN, 2001, p. 107). Desse modo, é possível afirmar que as capas dos discos, aqui analisadas, não são dados extramu- sicais, mas, fazem parte do fato musical, da construção e do fazer musical do trio. As capas vendem as músicas, permitem a representação das ideias e do estilo dos artistas, trazem re- presentações sobre campo e cidade, são ícones e símbolos da realidade – a estrada, o trânsi- to entre o urbano e o rural, o violão que representa a música brasileira. As capas de discos,

produzidas pela indústria fonográfica, carregam conceitos relacionados ao mundo moderno e aos fazeres musicais em diferentes países.


Considerações finais


O presente trabalho, tentou mostrar as possibilidades de conjugar algumas teorias e metodologias da análise musicológica e iconográfica. Procurou-se demonstrar as relações entre as imagens contidas nas capas, as canções e os discursos dos músicos. Tais articula- ções sugerem a complexidade da música, que não está restrita a uma análise apenas sonora. Desse modo, é possível considerar a multiplicidade de percepções sobre os fatos musicais. Ficam abertas, contudo, as diferentes possibilidades de análise e interpretação

das imagens aqui trabalhadas.


Notas


1 Vencedora do Festival da Canção de Juiz de Fora, em 1971, e gravada por Elis Regina (LP Elis, 1972, Phonogram).

2 Entrevista concedida ao autor, por meio eletrônico, nos meses de maio e junho de 2010.

3 O conceito de modernidade é tomado de empréstimo dos autores Michael Löwy e Robert Sayre, que o entendem como a “ci- vilização moderna engendrada pela revolução industrial e a generalização da economia de mercado” (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 34-35).

4 LP gravado pela Odeon, em 1972. Traz as seguintes faixas: Zepelim; Ama teu vizinho como a ti mesmo; Juriti Butterfly; Me faça um favor; Boa noite; Hoje ainda é dia de rock; Primeira canção da estrada; Cumpadre meu; Crianças perdidas; Azular; Ouvi contar; Coda: Cigarro de palha.

5 Trecho de encerramento de uma obra musical.

6 Pode acontecer, como no caso da composição estudada, a ausência da guitarra elétrica no arranjo. Nesse caso, prevalece a ideia do rock, ou seja, a execução rítmica do gênero em discussão, como parte da estrutura musical.

7 Too old to rock, too young to die: muito velho para o rock, muito novo para morrer”. Disponível em: <http:// luizcarlossa.blogspot.com> Acesso em: 19 jun. 2009.

8 Entrevista concedida ao autor, por meio eletrônico, entre os meses de maio e junho de 2010.

9 O nacional-popular, aqui, diz respeito à música engajada, de protesto, cantada por artistas como Geraldo Vandré, Edu Lobo, Chico Buarque, ou presente no teatro e show Opinião, entre outras manifestações artísticas. Sua proposta era de conscientizar o povo de seu real papel na sociedade, voltar ao homem do campo ou do morro, como verdadeiro símbolo de brasilidade (cf. RIDENTI, 2000).

10 LP gravado pela Odeon, em 1973. Traz as seguintes faixas: Os anos 60; Desenhos no jornal; Mestre Jonas; Blue Riviera; Adiante; Pendurado no vapor; O pó da estrada; O brilho das pedras/ Paulo Afonso; Até mais ver.

11 Em termos organológicos, o violão caracteriza-se por ser um instrumento que contém: “cordas pinçadas para produção de som, mecanismo de afinação, braço e escala que permitem modificar o comprimento da corda e produzir notas diferentes, corpo e caixa de ressonância. O formato oitavado da caixa é distintivo do violão” (TABORDA, 2011, p. 34).

12 Instrumento de doze cordas, com formato parecido com o do violão e uma sonoridade de cravo misturada à da viola. Projetado pelo músico brasileiro Paulinho Nogueira, em 1969, e patenteado pela empresa Giannini.

13 De formato oval, a ocarina, da família das flautas, é um dos mais antigos instrumentos que se tem notícia.


Referências bibliográficas


BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, SP: Editora Edusc, 2004. 264p.

CARDOSO, Ângelo Nonato Natale. A linguagem dos tambores. (Doutorado em Etnomusicologia). Universidade Federal da Bahia, 2006, pp. 78-94.

LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da moder- nidade. Petrópolis: Vozes, 1995.

MOLINO, Jean. “Facto Musical e Semiologia da Música”. In: SEIXO, Maria Alzira (Org.).

Semiologia da Música. Lisboa: Veja, 1975. p. 109-164.

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). SP: Anna Blume/FAPESP. 2001.

PAIVA, Eduardo França. História & imagens. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, 119pp. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. SP: Perspectiva, 1976. 444p.

PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. Coleção Primeiros Passos. 8. ed. SP: Editora Brasiliense, 1992.

PEREIRA, Fernanda Maria Cerqueira. O violão na sociedade carioca (1900-1930): técnicas, es- téticas e ideologias. Dissertação de Mestrado em Música, sob a orientação da professora douto- ra Vanda Lima Bellard Freire. RJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007, 127 pp.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da tv. RJ: Record, 2000.

SÁ, Luiz Carlos. “Rock Rural: origens, estrada e destinos”. In: Revista USP. São Paulo, n. 87, p. 124-133, setembro/novembro 2010.

TABORDA, Márcia. Violão e identidade nacional: Rio de Janeiro 1830-1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

TACUCHIAN, Ricardo. “O simbolismo na cantata BWV 147 Herz und mund that und le- ben”. In: SEKEFF, Maria de Lourdes (org.). Arte e culturas: estudos interdisciplinares. SP: Annablume, FAPESP, 2001, pp. 105-122.


Documentos eletrônicos


CASTAGNA, Paulo. “A Musicologia Enquanto Método Científico”. Pelotas: Revista do Conservatório de Música, 2008, n.1 p. 7-31. Disponível em: <http://www.Academia. edu/1209983/CASTAGNAPaulo._A_musicologia_enquanto_metodo_cientifico._R evista_do_ Conservatorio_de_Musica_da_UFPel_Pelotas_n.1_2008._p.7-31._ISSN_198 4-350X> Acesso em: 30 nov. 2014.

RODRIX, Zé. Entrevista, s/d. Disponível em: <http://www.museuclubedaesquina.org.br> Seção “anos 60”. Acesso em 19 jun.2009.

SÁ, Luiz Carlos. “Too old to rock, too young to die: muito velho para o rock, muito novo para morrer”. Disponível em: <http://luizcarlossa.blogspot.com> Acesso em: 19 jun. 2009.

SÁ, Luiz Carlos. Entrevista concedida ao autor, por meio eletrônico, nos meses de maio e ju- nho de 2010.


Discografia


SÁ, RODRIX & GUARABYRA. Passado, Presente & Futuro. Odeon, LP MOFB 3710, 1972.

. Terra. Odeon, LP XSMOFB 3761, 1973.


image

Victor Resende - Músico, doutorando em Música pela Universidade Federal de Minas Gerais, graduado em História e mestre em História (História e Música) pela Universidade Federal de São João Del-Rei. Tem experiência na área de História da Música, História da Arte, História Cultural (música popular) e na área de ensino de música.

image