Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 233p., n.1, 2015
Suelen Scholl Matter (Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, RS)
Vocal timbres in the Catholic German-Brazilian choral singing : An ethnomusicological approach
Timbres vocales en el contexto de un coro alemán-brasileño católico: Un enfoque etnomusicológico
NINA EIDSHEIM (2009), musicóloga, entende o timbre vocal como um artefato cultural. Segundo a autora, “o corpo e o timbre são moldados por práticas de formação in- conscientes e conscientes que funcionam como repositórios para as atitudes culturais em relação a gênero, classe, raça e sexualidade” 1 (EIDSHEIM, 2009, p. 9). Ainda, segundo IAZETTA (2000), o timbre é a assinatura particular dos instrumentos musicais e da voz. No caso da voz, embora possamos observar um timbre particular para cada indivíduo, rela- cionado ao tamanho e formato do trato vocal, também é possível observar a sua capacidade de variação. Dessa forma, através de ajustes no trato vocal, somos capazes de construir di- ferentes assinaturas.
Podemos reconhecer o timbre de um piano, de um violino, e de tantos outros ins- trumentos, bem como também podemos reconhecer diferentes timbres vocais. Assim como um músico ou um pianista podem identificar as características particulares da sonoridade de diferentes pianos, assim o é com o cantor ou o profissional da voz; mas como descrever tais características?
Para refletir sobre essa construção, retorno às considerações de SCHOENBERG (2001) sobre o estágio do estudo dos timbres. Segundo ele, na década de 1910, a valori- zação da sonoridade tímbrica (cor do som), em comparação com as outras qualidades do
Revista Música Hodie, Goiânia - V.15, 233p., n.1, 2015 Recebido em: 24/04/2015 - Aprovado em: 17/06/2015
som, encontrava-se em um estágio ainda ermo e desordenado (SCHONBERG, 2001, p. 578). Contudo, o autor já considerava que se aproximava a possibilidade de ordená-los e descre- vê-los e que, no futuro, a questão poderia ser resolvida através de “alguma lógica”. Segundo ele, se já existia uma lógica para as melodias, das quais se percebia diferentes escalas mu- sicais, também deveria existir uma lógica para os timbres.
Se é possível, com timbres diferenciados pela altura, fazer com que se originem for- mas que chamamos de melodias [...] então há de ser possível a partir dos timbres [...] produzir semelhantes sucessões, cuja relação entre si atue como uma espécie de lógica (SCHOENBERG, 2001, p. 578).
A perspectiva musicológica de SCHOENBERG estava alinhada ao estudo da mú- sica “em si” enfocando, mais intensamente, questões técnicas envolvidas na criação musi- cal. Seus estudos estavam enquadrados na musicologia sistemática, área de crítica e esté- tica (CASTAGNA, 2008, p. 28). Essa disciplina resultou da divisão da musicologia em dois ramos: musicologia histórica e musicologia sistemática. A primeira agrupava as disciplinas de caráter histórico e, a segunda, reunia as disciplinas de caráter não histórico, ou seja, do estudo da música como um fenômeno entre fenômenos comparáveis (CASTAGNA, 2008, p. 14). Mais adiante, na década de 1950, houve outra divisão, agora entre a musicologia e a et- nomusicologia, a primeira responsável pela matéria musical em si e, a segunda, pelo estudo da música na cultura (CASTAGNA, 2008, p. 7).
Hoje, para além dessas divisões estritas, os pesquisadores concordam em examinar as possibilidades de interação entre os saberes. Por certo, é normal que novos eixos de in- vestigação sejam objeto de ensino especializado (NATTIEZ, 2005). Ponderando a época em que SCHOENBERG escreveu “Harmmonielehre” (1911) percebemos as transformações dos estudos, com a inclusão de mais perspectivas que podem e que devem ser abordadas nos es- tudos em música. Ainda que os timbres possam ser descritos no nível da matéria musical, também podem ser vistos no nível do fazer musical dentro de uma abordagem etnomusico- lógica. Alinhada a essa perspectiva exibo, neste artigo, a construção de timbres vocais en- tre grupos de canto coral teuto-brasileiros católicos atuantes na região da encosta da serra gaúcha no estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
Na metade do século XX, o método etnográfico reemergiu como uma prática co- mum entre os etnomusicólogos e, com isso, a história do trabalho de campo começou a ser organizada. A partir da observação da história, o etnomusicólogo passou a refletir sobre o seu fieldwork distinguindo-o daquele realizado no passado colonial, de missionários, de tu- ristas e de outros (BARZ e COOLEY, 2008) passando a identificar-se com o método etnográ- fico em sua abordagem da música enquanto processo musical.
Hoje, o método consagrado na disciplina é a etnografia, a qual trata da “observação e descrição (ou representação) de práticas culturais - no caso da etnomusicologia, o foco é nas práticas musicais” (BARZ e COOLEY, 2008, p. 4). Esse foco nas práticas pode ser pen- sado dentro da etnografia da música proposta por ANTHONY SEEGER (2008, p. 239) que, segundo o autor, é uma “abordagem descritiva da música, que vai além do registro escrito de sons, apontando para o registro escrito de como os sons são concebidos, criados, aprecia- dos”. A partir dessas atividades perceptivas, os etnomusicólogos têm incluído em suas pes-
quisas, principalmente, a percepção do ouvir 2 e, sob ela, desenvolvem estudos que atentam para além da imagem.
No ano de 2014 eu desenvolvi uma etnografia da música entre grupos teuto-brasi- leiros católicos e para dar conta da percepção auditiva, apresentei as percepções dos cola- boradores da pesquisa em relação aos timbres vocais, ao vocabulário estético, aos termos individuais acionados na construção do fazer musical e também àqueles entendimentos desvelados a partir do encontro etnográfico: situações onde as diferenças na prática musi- cal e no timbre vocal eram evidenciadas. Busco compartilhar essa experiência nesse artigo.
Em algumas situações da etnografia me foi solicitado que eu ensinasse canto, mas como ensinar canto para coralistas sem transformar suas características de timbre para dentro das concepções da academia? Questionamentos como esse também foram levanta- dos pelo etnomusicólogo BRAGA (2013) ao revisitar a sua representação e autoridade etno- gráfica no campo das expressões sonoro-musicais do Batuque no Rio Grande do Sul.
Enquanto, durante a etnografia, eu era identificada como cantora formada pela UFRGS e convidada para dar aulas de canto, BRAGA narra que ele era, muitas vezes, chama- do de jornalista. Segundo o autor, ser reverenciado a partir de tal definição traz legitimida- de e visibilidade para o pesquisador (BRAGA, 2013). Nesse sentido, buscar uma abordagem contemporânea entre pesquisador e colaborador, ao invés de manter um posicionamento de prestígio e de imposição de conhecimentos, pode desvelar entendimentos sobre as pessoas e o seu fazer musical.
-“Então você é da música?”- disse o regente Leonardo Weber3; - “Sim. Estudei mú- sica na UFRGS e me habilitei em canto” (Matter, eu). - “Tu poderias ensinar técnica vocal para o coral como troca pelo desenvolvimento da pesquisa”, disse ele. Nesse dia se iniciava a negociação da entrada em campo entre eu e o regente do grupo coral Imaculada Conceição, cujos ensaios acontecem no município de Morro Reuter, Rio Grande do Sul. Essa foi uma cena onde eu estava sendo percebida como uma mulher com conhecimento em canto, ao mesmo tempo em que o regente era conhecedor do canto coral local.
Como atender às demandas do regente sem transformar seus timbres vocais para dentro das concepções da academia? Essa preocupação é recorrente entre os etnomusicólo- gos. LUCIANA PRASS (2013, p. 298), por exemplo, denota a importância de estarmos aber- tos ao desafio de responder às demandas do grupo. Segundo ela, “é importante também que estejamos abertos ao compartilhamento de saberes, que possamos contribuir com nossas experiências vindas de ‘outros’ lugares, da academia, por exemplo” (PRASS, 2013, p. 298). Assumindo essa tarefa, procurei estabelecer uma relação responsável.
Como estabelecer uma relação responsável de troca de saberes? No decorrer do pri- meiro mês assisti aos ensaios do grupo com o intuito de observar e não de atuar diretamen- te. Eu não poderia trabalhar técnica vocal ou participar como uma das integrantes do grupo antes de entender algumas noções sobre a construção de sua performance, mas, ao mesmo tempo, eu precisava atender as suas demandas. Nessa linha de pensamento, “que relações de reciprocidade pode ter o etnomusicólogo frente aos membros de uma cultura estudada?” (COOLEY, 1997, p. 11). Como observa o etnomusicólogo TIMOTHY COOLEY (1997, p. 16-17), para que exista essa relação, o investigador não pode se situar fora da cultura apenas como
um observador, antes é necessário que explicite a sua relação com essa cultura (vivida). A partir dessa ação a reciprocidade poderá ser construída.
Através de minha presença nos ensaios do grupo, eu percebia o quanto estava in- terferindo na prática musical local. Ao mesmo tempo, eu estava consciente que a minha re- lação não poderia ser de imposição de conhecimentos. Para atender à demanda, decidi tra- balhar a técnica vocal buscando seguir as considerações de regente Leonardo.
Uma das demandas de Leonardo se sucedeu em relação às vozes femininas, que ele considerava “tensas”. Para contribuir com a sua demanda, me propus a realizar exercícios de respiração, de fraseado e de projeção, sem deixar de reiterar que eu não pretendia alte- rar os timbres vocais, mas sim estabelecer uma relação de troca de conhecimentos onde eu transmitiria as minhas concepções sobre o canto e aprenderia suas ideias sobre a sua prá- tica musical.
Durante a etnografia eu procurava esclarecer aos cantores que eu estava assistindo aos ensaios para compreender e não para avaliar, no entanto esta identidade de acadêmica do canto estava sempre presente. Enquanto acadêmica eu deveria contribuir para a prática musical do grupo, “aperfeiçoando-o”. Como eu iria “aperfeiçoar” uma prática musical que estava conhecendo? O meu conhecimento em canto “aperfeiçoaria” essa prática musical?
Para o regente eu era considerada uma acadêmica detentora de conhecimentos, tan- to que, em algumas ocasiões, eram-me feitas perguntas relacionadas ao canto e à notação musical. “Quanto tempo pode durar uma fermata? Há um tempo estipulado?” Eu sempre respondia aos questionamentos, muito embora eu objetivasse saber quanto tempo pode dura uma fermata para o grupo coral Imaculada Conceição e outros coros.
Corresponder às demandas do grupo, trabalhando a técnica vocal e impondo aquilo que me fora ensinado na academia, resultaria na reiteração da hierarquia acadêmica como um espaço onde está o conhecimento, como se não houvesse outros conhecimentos. Nessa perspectiva, não impus os meus entendimentos de canto, mas ilustrei exercícios para o de- senvolvimento da capacidade respiratória e alguns vocalizes de aquecimento vocal; tam- bém não apliquei exercícios para trabalhar as chamadas embocaduras/formantes das vo- gais, nem alterei os timbres. Ao contrário, ouvi e estabeleci trocas de conhecimentos entre o canto na academia e o canto do grupo, pois considero que o canto ensinado na academia é mais uma maneira de cantar. Dessa troca de conhecimentos resultou o entendimento sobre timbres vocais e gênero, trabalhados abaixo.
Segundo o etnomusicólogo SEEGER (2008, p. 251) para buscar analisar a música de dentro do campo semântico utilizado pelos membros do grupo em questão deve-se dar o en- foque aos conjuntos de termos nativos. No contexto de sociomusicalidades do grupo coral apresentado, os cantores acionaram um vocabulário estético e termos individuais na cons- trução de sua performance, bem como demarcaram os gêneros feminino e masculino atra- vés de seus timbres vocais.
Além disso, o etnomusicólogo STOKES (1997, p. 5), argumenta que o vocabulário estético ou os termos individuais acionados na performance musical, além de cobrirem um complexo terreno semântico de sutilezas de ritmo e textura, podem influenciar o evento musical fazendo com que ele aconteça ou pare de acontecer. Assim se sucedeu nas perfor- mances de grupos corais na Igreja Imaculada Conceição. Nesse espaço, o grupo era respon-
sável pela liturgia das missas e, para isso, os ensaios eram voltados ao desenvolvimento de uma boa performance, trabalhada pelo regente.
Na construção de uma boa performance musical, foram acionados termos nativos através dos quais observei a performance em um contexto em que outras coisas também aconteciam. Segundo Leonardo “as pessoas vão à igreja para refletir, orar. O canto coral é importante para isso”. Esse seu entendimento evidencia a construção de um espaço de refle- xão e de oração na igreja, demonstrando que a música existe dentro de um contexto maior. Ficam os questionamentos: como se constrói uma boa performance para o grupo Imaculada Conceição? Que termos com significado musical são acionados e qual o seu sig-
nificado na estética musical?
Participando dos ensaios, construí um entendimento sobre os diferentes termos na- tivos. “Mais ligadinha” foi um dos termos acionados. Segundo as considerações de Leonardo Weber, “mais ligadinha” significava que os cantores deveriam “ligar” a frase musical, ou seja, não respirar entre uma mesma frase. Para desenvolver essa habilidade ele alertava aos demais: “é preciso aprender a economizar o ar e a ‘treinar’ a respiração”.
“Tudo retinho” foi outro termo utilizado nos ensaios. “Baixos, neste trecho é ‘tudo retinho’”, disse Leonardo. Para melhor compreender o significado da expressão narro, abai- xo, uma situação de ensaio onde ele foi acionado.
Notas de campo: Em um dos ensaios, os baixos cantaram uma melodia diferente daquela que constava na partitura; ao invés de cantarem a nota Mi 2, cantaram tam- bém notas adicionais. Segundo Leonardo Weber, as notas musicais deveriam ser as mesmas no decorrer de todo o compasso, mas estavam sendo modificadas no canto, “nesse trecho é ‘tudo retinho’”, dizia Leonardo. Como resposta, os baixos cantaram somente a nota musical Mi 2, tal como constava na partitura.
Quando o regente utilizava a expressão “Fiquem vibrando” o grupo deveria manter a sustentação ao final de cada frase musical e utilizar o vibrato nas vozes. “Mulheres, ‘fi- quem vibrando’” dizia o regente, ou seja, sustentem a nota ao final da frase musical. “Vibrar no ataque” também foi uma expressão utilizada. “Vibrem no ataque”, dizia o regente, e os co- ralistas respondiam com precisão no ataque da frase musical e com a utilização do vibrato. Este vocabulário evidencia a importância da “boa” performance, tal como observou STOKES. Segundo ele, “o que é importante não é apenas a performance musical, mas a ‘boa’ performance musical” 4 (STOKES, 1997, p. 5). Nesse sentido, uma performance ruim do gru- po acarretaria em uma quebra na concentração em prol da reflexão e da oração - propiciadas
pelo canto coral nas suas performances nas missas.
Além dessas expressões e seus significados, houve aquelas que foram acionadas pelo regente na construção do timbre vocal feminino ou masculino onde “som espremido” consistia em uma expressão acionada na construção do timbre feminino e, “voz de homem”, na construção do timbre vocal masculino.
Homens e mulheres possuíam timbres vocais diferentes estabelecidos através das concepções do regente e daquelas concepções e referências vocais dos próprios cantores: os homens deveriam cantar com “voz de homem” e as mulheres não deveriam cantar com o “som espremido”; mas qual o significado dessas expressões?
O regente e o solista, homens, compartilhavam de um mesmo modelo vocal; seus timbres vocais eram semelhantes. Entre as características da voz masculina estava a vibra- ção das frequências graves na caixa torácica e a execução das formantes das vogais próxi- mas da vogal “o”. Não havia variações entre as vozes masculinas (vozes mais leves ou ágeis, por exemplo, não eram construídas). Essas vozes seguiam um padrão de voz que se asse-
melhava àquele do regente local, Leonardo Weber. Além disso, os solistas homens também tinham um timbre vocal semelhante. Eram timbres vocais com pouca agilidade vocal, ca- racterísticas que, dentro do senso comum compartilhado, demarcavam o gênero masculino. As mulheres apresentaram um timbre vocal que o regente considerava “espremi-
do”. Observei que o timbre delas possuía características como extensão e projeção vocal, mas, segundo o regente, ao atingirem as notas mais agudas, ele ficava “espremido”, “no pes- coço”, uma característica que gostaria que eu, em um futuro próximo, viesse a trabalhar através de exercícios de técnica vocal. Ao contrário das vozes masculinas, as vozes femini- nas precisavam ser leves e ágeis e não podiam estar “espremidas”. “Não tencionem o pesco- ço para cantar os agudos. Cantem com mais leveza”, dizia Leonardo. Essas construções da representação da masculinidade e da feminilidade podem ser formadas e delimitadas a par- tir de discursos sobre a voz. O que uma mulher deve representar em sua voz difere daquilo que o homem deve representar.
Em um dos ensaios para o Festival de Corais5, na Igreja Imaculada Conceição, o re- gente Leonardo Weber solicitou-me que eu realizasse uma performance vocal. Nesse mo- mento, apresentei uma preocupação principal, escolher uma obra com algum sentido den- tro do contexto do grupo. Não faria sentido cantar um lied ou uma chanson - que faziam parte do meu repertório, porque o meu objetivo era me aproximar e estabelecer boas rela- ções. Era importante escolher o repertório “certo”.
Chegado o dia do Festival, o grupo coral apresentou duas músicas, em seguida, eu iniciei a performance de “Ave Maria”. Nesse momento, as luzes da igreja foram apagadas e foi acesa uma única luz no altar, dando enfoque à imagem da Nossa Senhora Imaculada Conceição. Passados alguns dias da minha participação na abertura do Festival, retornei à Morro Reuter e ouvi as considerações de uma integrante do grupo: “Não é sempre que ou- vimos alguém cantar sozinho, às vezes isso acontece uma vez no ano, geralmente, em casa- mentos, que é quando vem alguém ‘de fora’ cantar”)7. Da mesma forma, também conversei com o regente e perguntei qual havia sido a repercussão da minha performance. Leonardo me disse “... um casal me perguntou se tu cantas em casamentos. Eu falei que era para eles te contatarem, mas os avisei que tu vais cobrar algum cachê e que havias cantado aqui na nossa igreja, de graça, porque estás realizando um estudo”.
Além da recepção positiva, houve uma recepção negativa. Observei que, embora Leonardo estivesse aprovando a minha performance, algumas coralistas não demonstravam esta mesma aprovação: “no coral não se canta assim”, disse uma coralista. Tal ideia eviden- cia a minha voz sendo considerada diferente das vozes dos demais integrantes do grupo e essa diferença de timbres vocais, embora de caráter negativo, parecia estar marcando a mi- nha identidade. Frente a isso, passei a me questionar: quem eu sou para estas pessoas? Eu sou uma solista como as que solam trechos das canções nas performances do grupo? Eu sou uma cantora “de ópera”, uma cantora lírica?
Nessa busca constante pela compreensão da alteridade em música, dos significados do conjunto de termos nativos e de entendimentos da música de dentro do campo semânti-
co utilizado pelos membros do grupo em questão, persisti nas entrevistas abertas sobre os “timbres”. Nessa tarefa, observei a existência de dois tipos de solistas na localidade, aque- les “solistas dos corais” e aqueles que “cantam em casamentos”. Segundo uma coralista “... sabe, assim como tu cantou, às vezes vem alguém ‘de fora’ cantar ‘assim’ nos casamentos, mas é muito raro. O teu canto foi algo muito bonito e que, por aqui, se ouve uma vez por ano”. Ainda, segundo ela “os solistas dos corais” cantam trechos de músicas do repertório do grupo e nunca cantam músicas inteiras. Os solistas de casamento são aqueles que vêm de outras localidades e que cantam assim bonito uma música inteira”. Ao responder “assim bonito uma música inteira” a coralista estava comparando a minha performance com a das “solistas de casamento”.
Os solistas dos corais têm como característica um timbre projetado na “máscara” e sem abertura do palato mole na execução do registro agudo. Apesar de os solistas “de casa- mento” serem de outras localidades, essa representação que construíram não estava relacio- nada apenas com o fato de eu ser considerada de outra localidade (Porto Alegre), mas tam- bém, e talvez principalmente, com o meu timbre vocal, resultado de uma construção, de um artefato cultural (EIDSHEIM, 2009, p. 1).
NINA EIDSHEIM (2009), musicóloga, investigou o timbre vocal como um artefato cultural. Segundo ela, o timbre vocal é culturalmente construído.
Considerando a minha formação em canto, entendo que o trabalho de técnica vo- cal inclui concepções sobre o timbre vocal. Na academia há modelos vocais que são busca- dos pelos cantores e ensinados como modelos a serem seguidos. Dentre alguns dos modelos de timbres vocais de referência, na minha formação acadêmica, estão aqueles das sopranos Diana Damrau, Carla Maffioletti e da mezzo-soprano Cecilia Bartoli, por exemplo.
Minha experiência profissional em canto me confirmou que o professor da área de canto, bem como o regente, podem construir ou desconstruir timbres vocais e formar ou- tros dentro dos parâmetros que considerarem adequados. Essa construção tem relação com aquilo que o profissional considera adequado e que, por isso, é aplicado na construção do timbre vocal de seus alunos. Se um cantor quer atuar como solista de orquestras na região metropolitana de Porto Alegre, por exemplo, como na Orquestra da Ulbra, na Orquestra Sacra da Ulbra, na Orquestra da PUC, na Orquestra Unisinos ou na OSPA, ele precisa de- senvolver um timbre vocal livre de qualquer tensão que possa ser percebida no resultado do canto. Além disso, esses cantores precisam agradar ao público, e uma forma de fazê-lo é através das dinâmicas de piano e fortíssimo e dos formantes das vogais articuladas dentro do formante da vogal “o”, com a abertura externa da boca e com o levantamento do palato mole na execução das notas do registro agudo. Para entrar nesses espaços de circulação, os cantores têm de padronizar o seu timbre vocal através de aulas com cantores que já con- quistaram estes espaços.
Da mesma forma com que o timbre vocal é construído entre os cantores líricos, ele também é construído entre os coralistas. Na construção das vozes dos cantores de canto co- ral as concepções sobre o timbre vocal masculino e feminino, as referências vocais e as in- dicações do regente são os elementos que compõem o resultado sonoro destas vozes.
Se eu cantasse no grupo coral Imaculada Conceição com um timbre vocal dentro do padrão lírico de canto, seria inadequado, pois “no coral não se canta assim”.
Essas diferentes descrições desvelam as diferenças de entendimentos sobre timbres vocais e práticas musicais em diferentes contextos, contribuindo, assim, para a compreen- são de diferentes culturas musicais, nesse caso, da teuto-brasileira católica em um contex- to local.
A lógica da sonoridade tímbrica pode ser pensada em nível musical através da des- crição dos indivíduos e de grupos sobre a sua própria prática musical. Para isso, o método etnográfico – de uma etnografia da música – fornece ao estudioso da música um terreno que sustenta o estudo e a descrição sobre os conhecimentos musicais em diferentes contex- tos. O timbre, por exemplo, não precisa ser descrito, necessariamente, a partir da acústica, mas pode ser descrito de dentro do campo semântico utilizado pelos membros dos grupos, o que faz todo o sentido para o grupo musical de canto coral apresentado nessa descrição etnográfica.
O método da etnografia da música contribui para a compreensão de diferentes cul- turas, nesse caso, da cultura musical de grupos corais teuto-brasileiros católicos, contri- buindo, assim, para o entendimento de sua visão de mundo e para a desmistificação de que grupos amadores não prezam pela boa música ou que fazem música por lazer (visão funcio- nalista). Nesse sentido, a etnomusicologia aborda uma linguagem sobre a música capaz de contemplar entendimentos de nível sociocultural e musical que contribuem para desvelar culturas musicais e compreendê-las.
1 Vocal timbre is not the unmediated sound of an essential body. Instead, both body and timbre are shaped by unconscious and conscious training practices that function as repositories for cultural attitudes toward gender, class, race, and sexuality (EIDSHEIM, 2009, p. 9).
2 A atenção para a percepção auditiva teve seu início no final do século XIX, tal como STERNE (2003) evidencia. Ele acredita que a partir da invenção do estetoscópio e do telégrafo, as pessoas teriam passado a atentar aos sons.
3 A atenção para a percepção auditiva teve seu início no final do século XIX, tal como STERNE (2003) evidencia. Ele acredita que a partir da invenção do estetoscópio e do telégrafo, as pessoas teriam passado a atentar aos sons.
4 “What is important is not just musical performance, but good performance’” [grifo do autor] (STOKES, 1997, p. 5).
5 O Festival de corais é um evento anual que reúne grupos corais das igrejas católicas de Dois Irmãos, Morro Reuter, Santa Maria do Herval e, eventualmente, de grupos corais de outros municípios em comemoração ao dia do padroeiro da igreja.
6 Os solistas do coral solam uma estrofe da música. Eu iria cantar uma música inteira da capo al fine acompanhada ao órgão. Qual o significado dessa performance?
7 Optei por não escrever o nome dos colaboradores a fim de preservar as suas identidades.
8 Vocal timbre is not the unmediated sound of an essential body. Instead, both body and timbre are shaped by unconscious and conscious training practices that function as repositories for cultural attitudes toward gender, class, race, and sexuality (EIDSHEIM, 2009, p. 9).
BRAGA, R. G. (2013). Revisitando o trabalho de campo e o texto etnográfico: Representação e autoridade etnográfica nas expressões sonoro-musicais do Batuque do RS. In: LUCAS, Maria Elizabeth (org.). Mixagens em campo: Etnomusicologia, performance e diversidade musical. Porto Alegre: Marcavisual, p. 271-284.
BARZ, G; COOLEY, T. (2008) Casting Shadows: Fieldwork is Dead! Long Live Fieldwork! Introduction. In: Shadows in the field: new perspectives fr fieldwork. 2 ed., New York: Oxford University Press, p. 3 – 24.
CASTAGNA, P. (2008). A musicologia enquanto método científico. Revista do conservatório de música da UFPEL. Pelotas, nº 1, p. 7-31.
COOLEY, T. (2008). Casting Shadows in the field: An Introduction. In: Shadows in the field. New York: Oxford University Press, p. 3-22.
EIDSHEIM, N. (2009). Synthesizing Race: Towards an analysis of the performativity of vocal timbre. Revista Transcultural de Música, n.13. Disponível em <http://www.sibetrans. com/trans/articulo/57/synthesizing-race-towards-an-analysis-of-the-performativity-of-vocal- timbre> Acesso em: 20 set. 2013.
IAZZETTA, F. (2014). Formantes.
Disponível em <www.eca.usp.br/prof/iazetta/tutor/acustica/formantes/formantes.html> Acesso em 09 set. 2014.
LAPLANTINE, F. (2004). A etnografia como atividade perceptiva: o olhar. In: .
A Descrição Etnográfica. Traduzido por João Manuel Ribeiro Coelho e Sergio Coelho. São Paulo: Terceira Margem. Tradução de: La description ethnographique.
NATTIEZ, J. J. (2005). O desconforto da musicologia. Revista Per Musi, n. 11, jan-jun. Tradução de Luis Paulo Sampaio.
PRASS, L. (2013). Tem que vir aqui prá saber: sobre o fazer de uma etnografia musical em três comunidades quilombolas gaúchas. In: LUCAS, Maria Elizabeth (org.). Mixagens em campo: Etnomusicologia, performance e diversidade musical. Porto Alegre: Marcavisual, p. 285 - 301.
SCHOENBERG, A. (2001). Harmonia. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
SEEGER, A. (2008). Etnografia da música. Cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 237- 259.
STERNE, J. (2003). The audible past: cultural origins of sound reproduction. Durham: Duke University Press.
STOKES, M. (1997). Introduction: Ethnicity, Identity, and Music. In: . Ethnicity. Identity and Music: The Musical Construction of Place. New York: Berg, p. 1- 27.