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Artigos Científicos

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Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 269p., n.2, 2014

Investigando Procedimentos Poéticos e Estruturais em “Prologue” de Gérard Grisey


Felipe de Almeida Ribeiro (Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Curitiba, PR)

feliperibeiro@feliperibeiro.org


Resumo: Este artigo busca investigar a poética de Gérard Grisey (1946-1998) e a estrutura composicional na obra Pro- logue (1976) para viola solo. Esta pesquisa apresenta não somente uma análise da obra contida na partitura publica- da, mas também explora os manuscritos e rascunhos contidos nos arquivos da Paul Sacher Stiftung (Basiléia, Suíça) para o ciclo Les Espaces acoustiques e uma versão de Prologue com live-electronics.

Palavras-chave: Prologue; Grisey; Espectralismo.


Investigating Poetic and Structural Procedures in “Prologue” by Gérard Grisey

Abstract: This article investigates Gérard Grisey’s poetics and the composicional structure in Prologue (1976) for solo viola. This research presents not only an analytical approach to the work but also explores the manuscripts and sketches stored at the Paul Sacher Stiftung (Basel, Switzerland) revealing plans for the cycle Les Espaces Acoustiques and a live-electronics version of Prologue.

Keywords: Prologue; Grisey; Spectralism.


  1. Quarenta anos de Espectralismo


    Eu não gostaria de repetir o famoso ‘inútil’ de Boulez quando descreveu aqueles não familiarizados com o serialismo; entretanto, considero os compositores de hoje que são insensíveis ao espectralismo como no mínimo menos interessantes. (HARVEY, 2001, p. 11)1


    Em 2013 completaram-se 40 anos da criação do grupo l’Itinéraire (1973-), um dos ‘ensembles-laboratórios’ musicais responsáveis pelo florescimento e desenvolvimento da música espectral. Prologue (1976), de Gérard Grisey (1946-1998), foi composta no início dessa vertente musical francesa e é hoje um obra/objeto de estudo que representa a autenticidade proferida no início do movimento. Entretanto, isso não faz de Grisey um compositor exclusi- vamente espectral, como pode-se verificar em peças como Vortex temporum (1995) e Quatre chants pour franchir le seuil (1998). Nas palavras do próprio Grisey, “No início, comecei com espectros reais que eu analisava e depois transformava em tipos de escrita externos. Mas agora, não mais. Eu desisto. Isso foi a 20 ou 30 anos atrás.” (GRISEY in BUNDLER, 1996, p. 3)2 O espectralismo recebeu muitas definições assim como muitas críticas. Por cau-

    sa do caráter quase didático das primeiras peças espectrais – isto é, pela forte exploração técnica de fenômenos acústicos em contextos musicais –, o movimento espectral sofreu (e ainda sofre) críticas que, em muitos casos, não alcançaram na experiência auditiva a po- ética profetizada nos escritos de Grisey e Tristan Murail (1947). De acordo com Grisey (in BUNDLER, 1996, p. 3):


    Espectralismo não é um sistema. Não é um sistema como a música serial ou mesmo música tonal. É uma atitude. Ela considera os sons, não como objetos mortos que você pode facilmente e arbitrariamente permutar em todas as direções, mas como objetos vivos com nascimento, vida e morte. Isto não é novidade. Creio que Varèse pensava nesta mesma direção. Ele foi o avô de todos nós. A segunda afirmação do movimento espectral – especialmente no início – foi tentar encontrar uma equação melhor entre conceito e percepção – entre o conceito da partitura e a percepção que o público pode ter. Isso foi extremamente importante para nós.3


    Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 269p., n.2, 2014 Recebido em: 02/06/2014 - Aprovado em: 24/07/2014

    A estética, propriamente dita, foi concretizada em diversas obras musicais, como por exemplo Prologue (1976) e Partiels (1975) de Grisey e Treize Couleurs du soleil couchant (1978) e Désintégrations (1982) de Murail. Grisey ressaltou alguns pontos cruciais no es- pectralismo, como por exemplo: uma interpretação e integração mais natural entre timbre e harmonia; uma expansão do sistema fixo temperado para um sistema aberto microtonal; uma escrita que valoriza a fenomenologia da percepção; o entendimento da temporalida- de como elemento catalisador de forma (GRISEY, 2000). Ressalta ainda que “(...) a aventura espectral permitiu a renovação, (...) pois não é uma técnica fechada mas sim uma atitude.” (GRISEY, 2000, p. 3)4

    Do ponto de vista poético, o espectralismo pode ser compreendido como uma ex- ploração da rede de conexões entre som enquanto fenômeno acústico e referencialidade cul- tural. O aspecto técnico do espectralismo, como a análise espectral ou síntese instrumen- tal por modulação de frequência por exemplo, não deve ser interpretado como a gênese ou elemento crucial para sua existência. A poética está acima dessas técnicas. Nesse sentido, o espectralismo é resultado de uma formulação muito mais complexa. A questão da expansão da referência cultural sonora foi uma das grandes demandas de desenvolvimento e conse- quências da pesquisa espectral. Retirar do timbre o próprio material para o desenvolvimen- to musical, e não necessariamente depender das relações entre alturas e/ou ritmos, como tem se desenvolvido a música ocidental de concerto até então.

    O que gera um pouco de confusão entre compositores e teóricos, às vezes levando a um irritamento geral, é o fato de que muitos simplificam o movimento espectral a um re- pertório de técnicas. Grisey, mais tarde, também se irritou bastante ao ser associado a esse tipo de música. David Bundler, em uma entrevista a Grisey, perguntou se ele se considera um compositor espectral. Grisey (in BUNDLER, 1996) explica:


    Bem, eu não me importo! (risos) Eu realmente não me importo. É apenas – como havia lhe dito – apenas uma etiqueta que recebemos em um determinado período. Creio que minha atitude é basicamente a mesma, mas o ponto de partida do espectralismo foi (...) a fascinação pela expansão temporal e pela continuidade. Como compor um tipo expandido de tempo em uma composição sem escrever os tipos de clusters cromá- ticos como Ligeti em Atmosphères. Que linguagem essa expansão temporal implica? Isso é realmente o ponto de partida do espectralismo e não a escrita de espectros ou seja o que for. (p. 3)5


    Apesar disso, Grisey foi associado como um dos principais ícones da música espec- tral, uma vertente composicional originada e desenvolvida em Paris durante os anos 1970 – junto com Tristan Murail (1947-) e o Ensemble l’Itinéraire. Como já afirmado muitas vezes por Grisey, assim como Murail, a música espectral não deve ser resumida a uma coletânea de técnicas. A ideia não é a aplicação de técnicas composicionais, como a orquestração de um determinado espectro, geração de material via modulação por anel ou por FM, nem tan- to o uso de sistemas microtonais. Tudo isso são consequências exigidas por um pensamento de natureza complexa e profunda. Música espectral repensa a temporalidade, nos convida a refletir como percebemos música: “(...) assim como a série [dodecafônica] não trata a ques- tão do cromatismo, música espectral não é uma questão de cor sônica. Para mim, música espectral tem uma origem temporal.” (GRISEY, 2000, p. 1)6

    Grisey, assim como Murail, sempre defendeu que as experiências realizadas, prin- cipalmente na década de 70, tiveram o intuito de repensar a música erudita como um todo, levando em consideração não somente a questão do elemento gerador de material harmôni- co, mas principalmente aspectos relativos à temporalidade e nossa percepção em geral, re- pensando historicamente o que gerações passadas experienciaram. Assim como Schönberg

    advertiu uma nova geração sobre as minúcias estilísticas relacionadas à técnica dodecafôni- ca, Grisey fez o mesmo em diversos de seus textos. Uma das grandes contribuições da músi- ca espectral foi a demanda criada por uma concentração por parte do ouvinte na sonoridade exposta, isto é, de não exigir do ouvinte pré-requisitos para escuta. A compositora israelen- se Chaya Czernowin (1957) nos alerta da necessidade do compositor em buscar isto: “Cada obra deve ensinar o ouvinte como ouvi-la: o que importa, o que não importa, o que está em jogo” (CZERNOWIN, 2008, p. 3)7


  2. Les Espaces Acoustiques


    “Música espectral é aliada à música eletrônica [eletroacústica]: juntas alcançaram um renascer da percepção” (HARVEY, 2001, p. 11).8 Durante um período de mais de 10 anos, Grisey trabalhou em um ciclo de peças intitulado Les Espaces Acoustiques – os espa- ços acústicos. Neste ciclo, Grisey compôs seis peças de instrumentação e densidade dife- rentes: Prologue (1976) para viola solo, Périodes (1974) para 7 instrumentistas, Partiels (1975)

    para 18 instrumentistas, Modulations (1977) para 33 instrumentistas, Transitoires (1981) para grande orquestra e Épilogue (1985) para 4 trompas e grande orquestra.

    Les Espaces Acoustiques foi para Grisey um grande laboratório no qual permitiu ex- plorar os fundamentos do que ficou conhecido posteriormente como espectralismo. O ciclo inteiro baseia-se na ideia de proporcionar um grande crescendo instrumental: partindo de um instrumento solo até grande orquestra com quatro solistas. Baseia-se também em um mesmo material harmônico: o espectro extraído de uma nota pedal do trombone. “No ciclo Les Espaces acoustiques, o harmônico de referência (...) é o Mi (41,25 Hz).” (DELIEGE, 2003,

    p. 877)9 Curiosamente, Prologue foi escrita após Périodes e Partiels e apresenta-se como a única peça para instrumento solo do ciclo, completando o formato de crescendo instrumen- tal e de densidade deste.

    Apesar de primeiro movimento no ciclo, mas terceira obra na ordem cronológica de criação, Prologue apresenta a viola como instrumento solista. Essa escolha foi feita com base no movimento seguinte – Périodes. Este, já existente no período de criação de Prologue, apresenta material inicial expositivo com características similares ao material final de Prologue. Este material sonoro – mais especificamente na quarta página da edição publica- da de Prologue – funciona como um prelúdio/transição para a exposição inicial de Périodes. Em {4 5 6} Grisey apresenta dois caminhos para o intérprete: execução de Prologue enquan- to peça solo ou execução seguida de Périodes em se tratando da peça dentro do ciclo.10 Na figura 1, podemos verificar uma flecha em {4 5 6} que sinaliza a mudança para Périodes.


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    Figura 1: Transição de Prologue e início de Périodes

    Iniciaremos agora uma análise musical de Prologue apresentando a fundamenta- ção teórica do movimento espectral. Trechos desta investigação abordarão os manuscritos de Grisey existentes na Paul Sacher Stiftung, revelando o a poética do compositor, estrutura geral da peça e o planejamento de uma versão com live-electronics.11


  3. Prologue


    Em uma entrevista com Guy Lelong, Grisey (in BAILLET, 2000) sintetiza a genesis de Les Espaces Acoustiques e o surgimento de Prologue:


    “Tudo começou com Périodes para sete músicos, que foi criada em 1974 na Villa Médicis. Esta peça consiste, do ponto de vista formal, em uma sucessão de episódios e, no último deles, experimentei pela primeira vez uma técnica que me parecia dever ser desenvolvida. Foi-me necessário então compor uma outra que foi Partiels para de- zoito músicos que incluem os instrumentos de Périodes. Em seguir decidi finalmente constituir um ciclo inteiro que começaria com uma peça para instrumento solo e terminaria com a grande orquestra. Como a viola teve um papel preponderante em Périodes, a peça solo devia ser escrita para este instrumento e foi Prologue para viola solo.” (p. 97)12


    Escrita em homenagem ao violista francês Gérard Caussé (1948), Prologue apre- senta uma característica singular dentro do repertório espectralista: o uso de melodia.13 Grisey criou uma obra na qual envolveu o conceito de melodia de uma maneira diferente às análises ‘polifônicas’ de timbre – trabalhou com a melodia expondo o material harmô- nico. Nesta peça, de aproximadamente dezoito minutos, a melodia em si é limitada a um padrão facilmente reconhecível e de duração extremamente curta, se comparada à dura- ção da peça inteira. O que dá um caráter novo à melodia é a maneira com a qual é desen- volvida, não por variações tonais ou seriais (direcionais), mas por permutações de har- mônicos – influência oriunda, provavelmente, de seu antigo professor, Olivier Messiaen (BAILLET 2000).

    A estrutura geral do ciclo Les Espaces Acoustiques é inteiramente baseada na análise espectral de um Mi grave de um trombone. A performance deste instrumento apoia-se no conceito da série harmônica enquanto método de obtenção das alturas – sal- vaguardando as amplitudes dos respectivos harmônicos desse instrumento. Levando em consideração as diferenças microtonais e os diferentes níveis sonoros de cada harmôni- co, Grisey adaptou um pequeno trecho deste espectro para todas as peças do ciclo Les Espaces Acoustiques. O compositor trabalhou com o conceito de espectro como funda-

    mental geradora de material harmônico para a peça. A coleção de harmônicos da figura abaixo são orquestrados por ele neste ciclo de obras e diretamente aplicados em Prologue (Figure 2). A exceção são os dois primeiros harmônicos (as duas notas Mi), em que Grisey os exclui em função da natureza do instrumento executante. O terceiro harmônico, Si, será abordado a seguir.


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    Figura 2: Espectro de Mi grave de um trombone


    Grisey começa a peça com os seguintes harmônicos: [5 4 6 9 7 3] ou Sol#, Mi, Si, Fá#, Ré e Si – sendo [5] o quinto harmônico, [6] o sexto harmônico, etc. É importante salien- tar que o compositor fez uso de scordatura baixando a quarta corda da viola em um semi- tom (de Dó para Si). Desta maneira, Grisey adaptou o instrumento ao espectro gerado pela análise do Mi grave (Figure 2 e 3).


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    Figura 3: Uso de scordatura


    O sétimo harmônico (Ré) apresenta uma alteração microtonal a partir da notação da nota temperada. Grisey utiliza o sétimo harmônico do espectro original que é aproxima- damente 31 cents abaixo da nota correspondente da escala temperada.14 Para obter resulta- dos mais satisfatórios, Grisey utiliza, às vezes, os harmônicos naturais da corda. Esse pro- cedimento reforça o uso daquilo que Grisey julga ser um uso mais ecológico do som: uma integração entre altura definida e ruído. A peça apresenta diversas seções, e cada uma apre- senta níveis diferentes de harmonicidade e inarmonicidade, ou consonância e dissonância. Trataremos disto na seção “Divisão Formal”.

  4. Objetos sonoros


    Prologue é inteiramente construída com o uso de três gestos/objetos sonoros. Em seus manuscritos contidos na Paul Sacher Stiftung, Grisey classifica esses objetos em três categorias: batimento cardíaco, eco e melodia (Figure 4).


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    Figura 4: Batimento cardíaco, eco e melodia, respectivamente.


    Porém, o próprio Grisey, em seus manuscritos e rascunhos, pensa esses três elemen- tos enquanto um conceito apenas: neumes. Essa interpretação é bem parecida com aquela realizada por Stockhausen em seu famoso artigo ...wie die Zeit vergeht... em que trata ritmo e altura como percepções de uma mesma escala (frequência). Grisey parte do princípio que o batimento cardíaco é 1 unidade, passando para gestos com 2, 3, 5, 7, 9, 11, 13 unidades até atingir uma sonoridade contínua – ruído –, muito similar com a escala em Hertz, em que teoricamente passamos a ter a sensação de ritmo – unidades – abaixo de 20Hz e de altura – contínuo – acima de 20Hz.

    Em Prologue, cada evento é seguido por uma pausa com fermata ou por outro objeto sonoro dos acima citados. A peça possui o forte caráter de uma grande permutação dinâmi- ca desses materiais: tanto o batimento cardíaco quanto eco e melodia se desenvolvem a par- tir dos baixos harmônicos {1 1 1}, passando pelos altos harmônicos com alto caráter disso- nante {3 6 1} e finalizando com o próprio ruído {3 8 7}. Esta obra é um grande crescendo de vários parâmetro: densidade, consonância/dissonância, andamento, entre outros.

    A melodia {1 1 1}, ou os neumes responsáveis por aquilo que percebemos tradicio- nalmente enquanto melodia, apresenta um agrupamento de harmônicos em grupos de 3 a 13 notas. A peça apresenta a tendência de aumento proporcional entre número de harmôni- cos e dissonância; isto é, ao introduzir grupos com mais notas, Grisey caminha para os altos harmônicos que apresentam, por sua vez, uma maior tendência à inarmonicidade. Nota-se na Figura 5 o crescimento na quantidade de harmônicos e naturalmente o caminhar para notas mais agudas (clave de sol).

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    Figura 5: Trechos com 3, 5, 7, 9, 11, 13 notas e contínuo (da esq. para dir.)

    Um aspecto interessante e muito importante nesta obra é o uso de permutação de harmônicos na melodia. Os grupos de harmônicos apresentam uma tendência gravitacio- nal (fundamental da série harmônica), mas sem contudo externar um sentimento tonal no sentido romântico. O uso da permutação acaba exaltando um caráter não-teleológico desta peça, pois a saturação do material traz uma perda de significado após diversas repetições caleidoscópicas. O material sonoro se liberta de referências culturais externas e se afirma enquanto sonoridade independente. Por exemplo: os primeiros quatro objetos sonoros apre- sentam a seguinte permutação de harmônicos: [5 4 6 9 7], [5 6 4 9 7], [5 4 6 10 7] e [4 6 5 9 7 ]. Esse procedimento é utilizado em toda peça, independente da quantidade de harmôni- cos utilizados em cada grupo. Temos na figura 6 os seguintes harmônicos: [6 5 4 10 8], [5 4

    6 11 8], [3], [4 8 6 7 10].


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    Figura 6: Permutação de 5 harmônicos em {1 1 7}


    A figura do eco {1 8 1} é quase que inteiramente precedido pela figura da melodia. Seu conteúdo, na verdade, é gerado pelo objeto-sonoro melódico, quase sempre a partir das duas últimas notas. Em uma primeira análise, pode-se concluir que o objeto melódico da figura 7 aparenta possuir 17 notas. Entretanto, uma investigação mais cautelosa revela uma estrutura de 11 notas enquanto que as outras 6 representam o eco – a própria indicação de dinâmica do compositor mostra essa tendência fraseológica, sem contar a indicação textual na partitura: “como um eco” (Figure 7).


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    Figura 7: Eco em {1 9 2}


    O eco é muitas vezes repetido com distorção; não é um eco estático, mas as frequ- ências das repetições são levemente alteradas, normalmente por um quarto-de-tom abaixo para cada eco via glissando. Isso nos lembra um empréstimo conceitual da acústica, mais precisamente com o conceito de Efeito Doppler, em que a percepção da frequência muda conforme a movimentação do ouvinte e/ou da fonte sonora.15

    Finalmente, o batimento cardíaco {1 1 2} é sempre representado com o Si na quar- ta corda (scordatura). Normalmente, cada instância do batimento cardíaco é caracterizado por dois ataques seguidos de harmonics-stop (leve abafamento da corda com a mão esquer- da, obtendo assim um harmônico). Esse objeto sonoro é o único que não sofre considerável modificação ao longo da peça – exceção é a mudança da quantidade de repetições dentro de cada barra de ritornelo (Figure 8).

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    Figura 8: Batimento cardíaco no fim da primeira ideia musical da peça.


    Baillet (2000, p. 100) faz uma analogia do contorno melódico das melodias com uma onda senoidal – novamente um empréstimo conceitual da acústica. Segundo ele, o tra- tamento dado à melodia respeita o caráter oscilatório da onda senoidal, isto é, a alternância entre +1 e −1. Na prática, Grisey abstrai deste conceito cartesiano e cria uma ideia orgâni- ca, salvaguardando a poética encontrada no conceito acústico (Figure 9).


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    Figura 9: Onda senoidal {1 4 1}


    Esse empréstimo da acústica se repete em outras obras do autor. Em Vórtex tempo- rum (1995), por exemplo, Grisey faz uso dos conceitos de onda senoidal, onda quadrada e onda dentes de serra no tratamento melódico dos instrumentos (HERVE, 2001, p. 21).


  5. Divisão formal


Como visto anteriormente, Prologue é uma obra exemplo daquilo que Grisey afir- mou em relação à ecologia do som: basear uma obra no som em si. A peça é arquitetada para caminhar da harmonicidade à inarmonicidade – da consonância à dissonância. Isto é atingido ao atribuir a cada seção um seleto grupo de harmônicos. Ao respeitar-se esta estrutura, gera-se uma seleção de notas referentes ao espectro analisado. A Figura 10 e Tabela 1 mostram a estrutura de alturas em Prologue e sua consequente influência na di- visão formal da peça.

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Figura 10: Seções A a H.

Tabela 1: Divisão formal


Seção

Quantidade de notas por grupo

Localização

Harm./Inarm.

A

5

{1 1 1}

CONS.

B

3

{1 2 5}


Transição gradual

C

7

{1 2 11}

D

11

{1 4 8}

E

9

{2 3 3}

F

13

{2 9 4}

G

não medido/gliss.

{3 6 2}

H

ruído

{3 8 7}

DISS.

I

glissandi longo

{4 1 1}

-

J

glissandi ornamentado

{4 2 2}

-

K

Périodes

{4 5 6}

-


O número de harmônicos agrupados em um objeto sonoro melódico determina a es- trutura geral da obra. O seu conteúdo revela o nível de harmonicidade e inarmonicidade. Por exemplo, a seção A é mais consonante que C, pelos harmônicos envolvidos (e da densidade resultante): A (harmônicos 3 a 12) e C (harmônicos 3 a 21). Um fato curioso é que Grisey, em seus rascunhos, chega a esboçar o trecho {1 2 5} enquanto um gesto contínuo, apenas com uso de glissando ou, nas suas palavras, de uma forma a “deslizar os dedos bem lentamente”.16


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Figura 11: Seções A a H.


Esse aspecto de crescimento em direção a uma inarmonicidade também é realizada não somente pelo acréscimo de altos harmônicos, mas também pelo aumento da densidade. Como exemplo, analisemos {3 7 1} e {3 8 1} (Figure 12):


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Figura 12: {3 7 1} e {3 8 1}


Nesta seção (G, não medido), apenas a primeira e última notas são notadas com al- tura precisa. Toda parte do meio é um longo glissando, pontuado por novos ataques (>). Note como Grisey move de objeto {3 7 1} para {3 8 1}. Ele comprimi os ataques aumentando

o número de ocorrências (como um stretto): de seis ataques {3 6 3} até treze não medidos {3 8 6}. Essa ideia de aumentar um parâmetro para saturar a ideia de dissonância também é presente no número de repetições de glissandi. Por exemplo, na seção F, repare no aumento do número de glissandi: de dois {3 3 1} para doze {3 6 1} glissandi (Figure 13).


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Figura 13: {3 3 1} e {3 6 1}


Há também a tendência natural de aumentar a velocidade e dinâmica dos even- tos ao mover-se para os altos harmônicos. Aqui, Grisey distorce a característica natural de nossa percepção dos harmônicos de um timbre. Em sons com alto grau de harmonicidade

– como o som de trombone analisado por Grisey – sabemos que à medida que caminhamos para os altos harmônicos, perdemos energia (dinâmica). Em Prologue há uma certa inversão das dinâmicas se comparado à série harmônica, pois a viola executa os baixos harmônicos com menos intensidade do que os altos.

A última página de Prologue pode ser classificada como uma peça com final ‘em aberto’ – ou mesmo como uma transição astuta para a próxima peça do ciclo, Périodes. Quando o intérprete alcança o sinal de flecha em {4 5 6}, deve-se imediatamente começar Périodes. Ou, em sua versão solo (fora do ciclo), continua-se até o fim da página quatro. A fi- gura 14 mostra o início de Périodes marcado pela nota Ré, ponto exato de transição no even- to {4 5 6} de Prologue (também um Ré).


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Figura 14: Primeiro compasso de Périodes, parte da viola

Nos arquivos da Paul Sacher Stiftung, encontram-se nos manuscritos de Périodes anotações que sugerem que o compositor estava de fato pensando na quarta página como um prelúdio para o próximo movimento de Les Espaces Acoustiques. Podemos concluir, de certa forma, que Prologue é representada pelas primeiras três páginas da partitura. A quar- ta é a transição para Périodes.

Finalmente, vale também frisar a estrutura planejada para os parâmetros de anda- mento, dinâmica e técnica de execução. Existe uma tendência gradual e linear em Prologue de se acompanhar a trajetória dos harmônicos. Em {1 1 1} temos uso de scordatura, sur- dina e andamento de colcheia = 70/90 bpm. Em {1 4 8} temos senza surdina e colcheia = 160/260. Já em {2 9 4} temos colcheia = 190/300 (BAILLET 2009). O desenvolvimento com- pleto da obra em relação a esses parâmetros é representado na Tabela 2:


Tabela 2: Técnica de execução, andamento e dinâmica


Seção

Técnica de execução

Andamento

Dinâmica

{1 1 1}


scordatura, surdina

colcheia = 70/90

ppp, mp

{1 2 5}

colcheia = 100/60

pp, mp

{1 2 11}

colcheia = 100/160

pp, mp

{1 4 8}


sem surdina

colcheia = 160/260

mp, f

{2 1 2}

semínima = 60/a tempo

mp

{2 3 3}

colcheia = 190/130

p, mf

{2 6 3}

colcheia = 130

p, mf

{2 7 1}

colcheia = 190/130

mf, ff

{2 9 4}

colcheia = 190/300

mf, ff

{3 8 7}

segundos

fff


Para concluir, nota-se em Prologue um certo tratamento cartesiano dos parâmetros. Dos baixos harmônicos, para os altos harmônicos; de sonoridades pianíssimo para outras fortíssimo; de andamento lento à frenético; etc. Apesar disso tudo, é exatamente essa sim- plicidade que possibilita ao ouvinte perceber as relações, as permutações do material esco- lhido. Música espectral exige tempo para a percepção. Este é o cuidado com a escuta sonora que Grisey referenciava.


Conclusão


Grisey morreu aos 52 anos de idade. Foi um compositor com uma carreira re- lâmpago. De suas obras editadas, a composição mais antiga data de 1968 quando tinha 22 anos – Echanges, para piano preparado e contrabaixo – e sua última de 1998 – Quatre chants pour franchir le seuil, para uma voz e de dez a vinte e cinco instrumentistas (RIGAUDIÈRE).17 Coincidentemente, sua última obra trata da questão da morte. Aluno e admirador de Olivier Messiaen, Grisey foi um dos compositores marco na história da mú- sica do século XX.

O espectralismo trouxe uma maneira diferente de refletir o som daquelas já abor- dadas na história da música. Tem sua gênesis com figuras como Claude Debussy e Edgar Varèse, além do próprio Stockhausen (Stimmung). Nas próprias palavras de Grisey, o es- pectralismo apresenta uma atitude diferente em relação à composição musical e percep- ção sônica. Prologue é uma obra que apresenta essa característica de uma maneira bem didática ao leitor, pois desenvolve seus parâmetros de forma linear e gradual sem se trans- formar em uma peça técnica, no sentido banal da palavra. Prologue é uma das grandes obras para viola solo do repertório musical do século XX, escrita por um dos compositores

mais criativos deste período. Espera-se, por meio deste artigo, tornar a poética composi- cional de Grisey e do espectralismo mais acessível ao leitor. Refazer os caminhos e passos dos grandes mestres já é um bordão na rotina de estudo de um compositor, mas reitero aqui a importância de refletir uma obra “aos avessos” para se aproximar de sua realidade e essência durante seu processo de criação. Nas palavras de Philippe Leroux, Grisey “(...) lançou as bases para o que poderia ser uma nova forma de compor.” (LEROUX in COHEN- LEVINAS, 2004).18


Notas


1 Tradução nossa. Texto original: “I would not want to echo Boulez’s famous ‘inutile’ when he described those not acquainted with serialism; nevertheless, I find those composers working today who are completely untouched by spectralism are at least less interesting.”

2 Tradução nossa. Texto original: “At the very beginning, I started with real spectrums that I would analyze and then transform into external types of writings. But now, not any more. I quit. That was 20 or 30 years ago.”

3 Tradução nossa. Texto original: “Spectralism is not a system. It’s not a system like serial music or even tonal mu- sic. It’s an attitude. It considers sounds, not as dead objects that you can easily and arbitrarily permutate in all directions, but as being like living objects with a birth, lifetime and death. This is not new. I think Varese was thinking in that direction also. He was the grandfather of us all. The second statement of the spectral movement

– especially at the beginning – was to try to find a better equation between concept and percept – between the concept of the score and the perception the audience might have of it. That was extremely important for us.”

4 Tradução nossa. Texto original: “The spectral adventure has allowed the renovation, (...) because it is not a clo- sed technique but an attitude.”

5 Tradução nossa. Texto original: “Well, I don’t care! [laughs] I really don’t care. That’s just – as I told you – just a sticker that we got at a certain period. I think my attitude is basically the same, but the departure point of spectralism was (...) the fascination for extended time and for continuity. How to compose an extended type of time in a composition without writing the sort of chromatic clusters like Ligeti in Atmospheres. What language does that extended time imply? That is really the starting point of spectralism and not the writing of spectrums or whatever. “

6 Tradução nossa. Texto original: “(...) just as the [12-tone] series is not a question of chromaticism, spectral music is not a question of sonic color. For me, spectral music has a temporal origin.”

7 Tradução nossa. Texto original: “Every piece has to teach the listener how to listen to it: what matters, what does not matter, what is at work.”

8 Tradução nossa. Texto original: “Spectral music is allied to electronic music: together they have achieved a re-

-birth of perception.”

9 Tradução nossa. Texto original: “Dans le cycle Les Espaces acoustiques, la basse harmonique de référence (son 1) est le MI (41,25 Hz).”

10 A partitura desta peça raramente utiliza barras de compassos. As poucas existentes são atribuídas à mudança de tempo e seção. Para fazer referência à partitura, realizarei a seguinte metodologia: {1 1 1}, no caso, se refere à primeira página, primeiro sistema da página, e primeiro material musical so sistema.

11 Estadia do autor deste artigo na Paul Sacher Stiftung em outubro de 2013 na Basiléia, Suíça, enquanto pesquisa- dor visitante. Foram analisados 13 folhas A3 e 38 folhas A4 contendo anotações, esquemas, tabelas, além de um versão quase finalizada de Prologue. Importante notar que fotocópias de manuscritos são proibidos pela funda- ção, apenas anotações à mão pelo pesquisador.

12 Tradução nossa. Texto original: “Tout a commencé avec Périodes pour sept musiciens, qui a été créé en 1974 à la Villa Médicis. Cette pièce consiste, d’un point de vue formel, en une succession d’épisodes et, dans le dernier d’entre eux, j’expérimentais pour la première fois une technique qui me paraissait devoir être développée. [...] Il me fallait donc écrire une suite et ce fut Partiels pour dix-huit musiciens qui inclut les instruments des Périodes. Puis je décidai finalmente de constituer un cycle entier qui commencerait par un pièce pour instrument seul, et finirait par le grand orchestre. Comme l’alto jouait un rôle prépondérant dans Périodes, la piece soliste se devait d’être écrire pour cet instrument et ce fut Prologue pour alto seul.”

13 Originalmente intitulada de Essai pour Alto, pode se verificar nos manuscritos a existência de uma versão com live-electronics para Prologue. Esta versão, não oficializada pelo compositor e nem por sua editora, foi intitulada de Prologue pour Alto et quelques résonateurs. Foi implementada pelo Ircam em 2011, em Paris. Desde então, alguns instrumentistas a executam nesta versão, como o faz Christophe Desjardins (1962).

14 Toda quantia de cents referente à série harmônica leva em consideração o sistema temperado enquanto padrão de referência.

15 Cabe aqui lembrar a importância e reconhecimento que Grisey tinha no Ircam, instituto de pesquisa e coordena- ção acústica-musical em Paris. Verifica-se isto, por exemplo, na tela de abertura do software Ircam OpenMusic em que é dedicado a Grisey além da forte inclinação da pesquisa do Ircam em geral à música espectral – algo minimamente curioso visto que o Ircam foi fundado por Pierre Boulez, um compositor pouco inclinado à estéti- ca em questão.

16 Anotações e ilustrações do próprio autor do artigo. Texto original contido no manuscrito em questão: “glisser très lentement les doigts”.

17 Disponível em <http://brahms.ircam.fr/gerard-grisey>. Acesso em 31 maio 2014.

18 Tradução nossa. Texto original: “(...) il a aussi posé les fondements de ce qui pourrait être une nouvelle manière de composer.”


Referências


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COHEN-LEVINAS, Danielle. Le temps de l’écoute – Gérard Grisey, ou la beauté des ombres sono- res. Paris: L’Harmattan, 2004.

CZERNOWIN, Chaya. The other tiger. Search Journal for New Music and Culture, 2008, issue 2. Disponível em: http://www.searchnewmusic.org/index2.html. Acesso em: 31 maio 2014.

DELIÈGE, Célestin. Cinquante ans de modernité musicale: de Darmstadt à l’IRCAM. Contribution historiographique à une musicologie critique. Paris: Mardaga, 2003.

GRISEY, Gérard. Did you say spectral? Translated by Joshua Fineberg. Contemporary Music Review, 2000, v.19, Part. 3, p. 1-3.

. Périodes, per sette strumenti. Partitura. Milano: Ricordi, 1974.

. Prologue: pour alto seul. Partitura. Milano: Ricordi, 1978.

HARVEY, Jonathan. Spectralism. Contemporary Music Review, 2001, v.19/3, p. 11-14.

HERVÉ, Jean-Luc. Dans le vertige de la durée. Vortex Temporum de Gérard Grisey. Paris: L’Harmattan, 2001.

RIGAUDIÈRE, Pierre. Gérard Grisey. Disponível em: <http://brahms.ircam.fr/gerard-grisey>. Acesso em: 31 maio 2014.


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Felipe de Almeida Ribeiro - Doutor em Composição Musical (Ph.D.) pela State University of New York at Buffalo (Estados-Unidos). Sua música tem sido executada e premiada nos Estados-Unidos, Canadá, Alemanha, Hungria, Brasil, Inglaterra, México, e interpretada por artistas como o Ralf Ehlers (Arditti Quartet), New York New Music Ensemble (EUA), Norbbotten Neo (Suécia), Thresensemble (Hungria), Arditti Quartet (Reino Unido), Nieuw En- semble (Holanda), etc. Atualmente é professor na Escola de Música e Belas Artes do Paraná.

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