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Artigos Científicos

Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 269p., n.2, 2014

Nancy de Bertram Turetzky: Cinesiologia e Prática Deliberada da Técnica Estendida Arco + Pizz. no Contrabaixo


Fausto Borém (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG)

faustoborem@gmail.com

Leonardo Lopes (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG)

leodoublebass@gmail.com

Guilherme Menezes Lage (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG)

menezeslage@gmail.com


Resumo: Estudo de caso sobre Nancy, quinta peça da suíte Poems, portraits ballades and blues, para contrabaixo sem acompanhamento, do compositor-contrabaixista-pedagogo norte-americano Bertram TURETZKY (Poems..., 1987). A partir de seu livro seminal sobre o contrabaixo (TURETZKY, The Contemporary..., 1989) e entrevistas exclusivas (TURETZKY e BORÉM, Questions..., 2014; TURETZKY e BORÉM, More questions..., 2014), discute-se o contexto his- tórico e realização da obra, especialmente em relação à cinesiologia dos movimentos dos membros superiores envol- vidos na técnica estendida privilegiada em Nancy: arco + pizzicato simultâneos. São propostos exercícios educati- vos no contrabaixo, a partir de modelos de seleção de excertos de música sinfônica (BALDWIN, 1995) e do campo da educação física (NOGUEIRA, 2013), visando a aprendizagem dos movimentos e sua coordenação motora em partes e no todo (MAGILL, 2000).

Palavras-chave: Bertram Turetzky; repertório para contrabaixo no século XX; técnicas estendidas para contrabaixo; cinesiologia da performance musical; exercícios educativos na performance musical.


Bertram Turetzky’s Nancy: Cinesiology and Deliberate Practice of the Arco + Pizz. Extended Technique on the Double Bass

Abstract: Case study about Nancy, fifth piece from the suite Poems, portraits ballades and blues, for double bass alone, by North-American composer-double bassist-pedagogue Bertram TURETZKY (Poems..., 1987). Departing from his seminal book on the double bass (TURETZKY, The Contemporary..., 1989) and exclusive interviews (TURETZKY e BORÉM, Questions..., 2014; TURETZKY e BORÉM, More questions..., 2014), it discusses the piece’s historical con- text and its realization, especially in relation to the kinesiology of the upper limbs involved in the extended technic favored in Nancy: simultaneous arco + pizzicato. It proposes drill exercises on the double bass, departing from mod- els of selection of symphonic music excerpts (BALDWIN, 1995) and from the physical education field (NOGUEIRA, 2013), aiming at the learning of its movements and motor coordination in parts and in the whole (MAGILL, 2000). Keywords: Bertram Turetzky; twentieth-century double bass repertory; extended techniques on the double bass; ki- nesiology in music performance; instructional exercises in music performance.


  1. Turetzky: compositor, arranjador, intérprete e pedagogo


    Quando vieram ao Brasil em 2000, Bertram Turetzky (n.1933), Distinguished Emeritus Professor da Escola de Música da University of California em San Diego, e sua es- posa Nancy Turetzky se encantaram com a natureza virgem das cachoeiras de Pirinópolis. Nessa pequena e pitoresca cidade de Goiás, Bert (como é chamado afetivamente no meio contrabaixístico) participou do V EINCO (Encontro Internacional de Contrabaixistas), even- to realizado pela UFG (Universidade Federal de Goiás) e organizado pela “madrinha” dos contrabaixistas brasileiros e fundadora da Associação Brasileira de Contrabaixistas, Profa. Sônia Ray (GOMES, 2000). Nancy se animou a descer o despenhadeiro que leva a uma das mais bonitas quedas d’água da região e Bert, mesmo cansado da viagem dos EUA ao Brasil, não teve como dizer não. Ali, mais uma vez, se via o gesto de amor do “contrabaixista” pela “flautista”, cuja união com mais de 55 anos1 tem sido celebrada como o duo que formam na vida e na profissão (TURETZKY e TURETZKY, Spirit song, 2009):


    Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 269p., n.2, 2014 Recebido em: 20/05/2014 - Aprovado em: 22/07/2014

    Em 2009, Nancy e eu celebramos 50 anos de parceria no casamento e na música. Para celebrar, gravamos esse álbum [Spirit song] para documentar parte da música que amamos e temos realizado juntos todos esses anos.


    A trajetória de Turetzky como pedagogo se estende além das diversas gerações de contrabaixistas que tem formado, especialmente na sua marcada atuação junto aos compo- sitores no desenvolvimento de suas habilidades de compreender o contrabaixo na sua to- talidade, cuja imagem, em alguns meios, ainda é associada ao “...Elefante de Saint-Saëns, com suas citações satíricas dos Sonhos de uma noite de verão de Mendelssohn e o Ballet des Sylphes de Berlioz.” ou às famigeradas, mas nem sempre eficientes, transcrições “...uma oita- va abaixo e mais lentas...” de obras concebidas para o violoncelo (TUREZTKY, 1989, p.ix-x). Turetzky não é avesso às transcrições, mas defende a ideia de uma escrita sempre idiomá- tica, que respeite os limites e valorize as potencialidades do instrumento. Entre suas trans- crições e arranjos para o contrabaixo, está seu arranjo de Oh! Susannah (1848) de Stephen Foster (1826-1864), no qual dá uma aula de como utilizar cordas duplas e triplas em pizzi- cato (TUREZTKY, 1989, p. 19). Noutro exemplo, na sua transcrição de três madrigais de Jacopo de Bologna (c.1340-1386) para flauta e contrabaixo, ele aproxima o contrabaixo da sonoridade da flauta piccolo por meio dos harmônicos naturais, sons que doravante chama- remos apenas de harmônicos. Turetzky diz que ficou


    ...intrigado pela possibilidade de emparelhar o registro grave do piccolo com os har- mônicos naturais do contrabaixo... [o que revelou] como a sonoridade colorida mais aguda das madeiras no registro grave e o arco no instrumento mais grave das cor- das orquestrais no seu registro mais agudo produzem uma textura sem precedentes, bastante evocativa daquilo que muitos instrumentistas pensariam como a música medieval poderia soar” (TUREZTKY, 1989, p. 127).


    Esse último recurso, Tureztky volta a utilizar em Nancy, como veremos mais à fren- te. O continuado interesse pedagógico de Turetzky em ampliar as possibilidades composi- cionais e de práticas de performance do contrabaixo, o levaram a ampliar e revisar seu livro The Contemporary contrabass, de 1974, cuja segunda edição saiu 13 anos depois. A segun- da edição, de 1989, contem cerca de 5 páginas a mais de informações sobre pizzicato e cer- ca de 22 páginas a mais de informações sobre harmônicos.2 Assim, Nancy é uma peça da fase madura de Turetzky, na qual o compositor já detinha grande conhecimento sobre es- sas duas formas de produção sonora em que a peça é baseada. O livro seminal de Turetzky reverberou não apenas nos EUA, mas nos meios musicais eruditos de todo o mundo. Havia uma nova curiosidade pelo contrabaixo enquanto um instrumento autônomo, pelos novos recursos desenvolvidos, muito além do contexto sinfônico ou do seu papel tradicionalmente subserviente na música de câmara. Da Europa, chegavam pedidos para a realização de pa- lestras e gravações com as novas sonoridades anunciadas apenas em forma de texto, reve- lando a origem da peça Nancy, para contrabaixo sem acompanhamento:


    ...Comecei a escrever peças curtas sem acompanhamento, por volta de 1985, para atender a demanda de diversas estações de rádio europeias, que me convidavam para fazer gravações... depois de um tempo, me dei conta que tinha uma pequena suíte e, então, a publiquei [em 1987, sob o título de Poems, portraits ballades and blues pela editora Elkan-Vogel], e vejo essas peças dançando e cantando pelo mundo afora. Nancy era uma das minhas favoritas! (TURETZKY e BORÉM, Questions..., 2014).


    O longo e contínuo trabalho de Bertram Turetzky junto aos compositores (o que in- clui ele mesmo), instrumentistas eruditos e populares e maestros em prol de uma nova cul-

    tura da produção sonora no contrabaixo, desde o início da década de 1950, (TURETZKY, The Contemporary..., 1989, p.x), principalmente nos Estados Unidos e Europa, até os dias de hoje, tem reverberado significativamente não apenas no surgimento de um repertório solís- tico, de câmara ou sinfônico do contrabaixo mais atualizado (como será discutido no pre- sente artigo, antes de sua conclusão), mas também na divulgação de novas práticas de per- formance de seu instrumento e sua realização mais eficiente. Por outro lado, se percebe um maior interesse científico sobre os processos de produção sonora no contrabaixo, a exemplo das teses de doutorado de PAYTON (1988) e DENSON (2010), cujas pesquisas experimentais são frutos posteriores e decorrentes do ativismo acadêmico de Bertram Turetzky.


  2. A suite Poems... e Nancy de Turetzky: variedade de práticas de performance


Apesar de escritas individualmente, as seis miniaturas que formam a suíte Poems, portraits, ballades and blues, da qual Nancy faz parte, trazem uma grande variedade de téc- nicas do contrabaixo, tanto tradicionais quanto estendidas. Revelam também a orientação pedagógica de Turetzky em ampliar o vocabulário dos contrabaixistas, especialmente da- queles que tem ou tiveram contato apenas com aprendizagens ou repertório predominante- mente tradicionais. Ele diz: “...a maior parte de minha música tem uma intenção pedagógi- ca, assim espero; sutil, mas está sempre lá...” (TUREZTZKY e BORÉM, Questions..., 2014).

Na primeira peça, Numerology: “A song”, TURETZKY (Poems..., 1987, p. 3), ele utili- za um texto da obra Vienna blood do poeta norte-americano Jerome Rothenberg (n.1931; da chamada Escola de Nova Iorque), que deve ser sussurrado, falado ou cantado simultanea- mente com outra linha independente tocada no contrabaixo, com diversos tipos de pizzicato (hammer on no c.1, Bartok no c.7, fingertip roll no c.8, a la guitarra no c.10, e harmônico de mão esquerda no c.15) e outros tipos de articulação (como arco, em harmônico, percussão com rufo de pontas de dedos no tampo do contrabaixo).

A segunda peça (TURETZKY, Poems..., 1987, p. 4-5), Lou Harrison, é uma homena- gem ao compositor norte-americano Lou Silver Harrison (1917-2003), conhecido por sua afi- nidade com culturas não-ocidentais. Em meio a métricas cambiantes (5/8, 6/8, 7/8, 9/8, 2/4, 3/4, 4/4, 5/4, 6/4) e dispostas assimetricamente, Turetzky utiliza a técnica estendida de alter- nar timbres, ora percutindo as cordas do contrabaixo com palitos chineses (chopsticks), ora tocando o contrabaixo tradicionalmente com o arco.

Na terceira peça, Lament, TURETZKY (Poems..., 1987, p. 6-7) integra a voz com o contrabaixo em cordas duplas com arco (melodia sobre pedais de corda solta). Longas li- nhas modais em cantabile criam um ambiente reflexivo, que esporadicamente repousa em fermatas, sobre as quais o contrabaixista deve realizar a leitura dramática de frases de texto do poeta e filósofo judeu da Andaluzia Solomon Gabirol (c.1012-c.1058): “Veja o sol em di- reção à noite vermelha...”.

Na quarta peça, Segovia, toda em pizzicato, TURETZKY (Poems..., 1987, p. 8) pres- ta uma homenagem ao célebre violonista espanhol Andrés Segovia (1893-1987), na qual ele adapta a técnica do violão clássico espanhol, tanto arpejado como em plaqué, ao contrabai- xo, técnica que “...é um pouco diferente da técnica do violão folk. A utilização tradicional de cordas duplas e acordes em cordas adjacentes ainda acontece, mas há cordas duplas em cordas não adjacentes e que demanda uma técnica diferente de pizzicato e não apenas o ras- gueio do polegar” (TURETZKY, The Contemporary..., 1989, p. 19).

Na sexta peça, Mingus, TURETZKY (Poems..., 1987, p. 10-11) homenageia o também contrabaixista Charles Mingus (1922-1979), considerado um dos ícones do jazz norte-ameri-

cano e com o qual chegou a tocar. Assim, deixa uma opção para não-improvisadores e outra em que o instrumentista deve estar familiarizado com a realização de cifras em meio a ter- mos como funky, swing, send off, double time. Outra característica que remete ao universo do contrabaixo popular é o fato do compositor deixar as dinâmicas a cargo da “...expressi- vidade e criatividade do intérprete.” (TURETZKY, 1989, p. 10).

Voltando à quinta peça, Nancy, que é tratada em detalhe no presente estudo, TURETZKY (Poems..., 1987, p. 9) contrapõe duas técnicas contrastantes. Primeiro, a simul- taneidade de harmônicos em arco acompanhados por pizzicato (técnica doravante chamada apenas de arco + pizz.), que é o foco do presente artigo. Segundo, o que denominou no seu livro de pizzicato lírico (TURETZKY, The Contemporary..., 1989, p. 21), que explora a resso- nância característica no contrabaixo de uma maneira mais solística, especialmente na mú- sica popular, diferenciando timbres e duração das notas.3

A forma de Nancy – um ABA’ em miniatura (com tempo estimado de 2’15’’; TUREZTKY, Poems..., 1987, p. 9) – pode ser vista como um reflexo de sua dedicatória, ain- da que não explicitada na partitura. Como uma homenagem à esposa e sua flauta, ele pede que todas as seções sejam em cantabile (“slowly singing” na Seção A (c.1-7) e na Seção A’ (c.18-26), e “singing expressively” na Seção B (c.8-17), evitando linhas melódicas marcadas ou enérgicas. Além disso, ele acrescenta expressividade à música, ao anotar na partitura que “todos os harmônicos devem ser tocados com vibrato”. Mas Turetzky não se esquiva de fazer um jogo de contrastes, contrapondo linguagens (erudita e popular), timbres (harmô- nicos e pizzicato), rítmica (escrita em notas longas e escrita sugerindo improvisação). Além disso, ele trata o contrabaixo como um instrumento harmônico, um reflexo de sua experi- ência de tocar instrumentos harmônicos como o piano, o banjo e o violão (TURETZKY e TURETZKY, 2009), e não apenas melódico, como o contrabaixo é conhecido pela maioria dos músicos. Ele comenta sobre:


“...Eu brincava de tocar solos em uma corda só ala Charlie Christian [guitarrista norte-americano; 1916-1942]. Fiz algumas coisas harmônicas como jovem tocador de banjo, mas nada substancial. Quase me dediquei ao piano de jazz nos tempos de es- cola, e foi nessa época que experimentei com progressões e condução de vozes. Talvez a peça Nancy tenha este sabor, exceto pelo fato de que é um ABA e não um AABA [a forma mais comum no jazz)]...” (TURETZKY e BORÉM, More questions..., 2014).


Turetzky aborda o contrabaixo oharmonicamente sugerindo encadeamentos, tan- to por meio de melodias auto acompanhadas na Seção A e na Seção A’, quanto por meio de cifras na Seção B. Assim, ele é hábil em desafiar o senso comum entre compositores e, mesmo, contrabaixistas, no qual o contrabaixo deve se limitar a uma escrita apenas melódica.

Para isso, nas Seções A e A’, ele recorre à técnica estendida de melodia em arco acompanhada por pizzicato simultaneamente – que será tratada em detalhe no presente ar- tigo, gerando bicordes com intervalos de notas muito distantes: no grave, as cordas soltas to- cadas pela mão esquerda; e no super-agudo, os harmônicos dedilhados com a mão esquerda e friccionados com o arco na mão direita. Na superposição das duas linhas simultâneas, ele sugere, predominantemente, acordes maiores com sétima maior (Sol+Fá# no c.1; Ré+Dó# nos c.3, 7 e 19; Lá-Sol# no c.6) e acordes maiores com nona maior (Ré-Mi no c.2 e 5; Sol-Lá no c.20). Turetzky recorre também a alguns encadeamentos tradicionais com a sugestão de cadências no movimento da linha do baixo harmônico: Lá-Ré-Sol, ou seja, um V/V - V - I no final da Seção A (c.6-7) e, depois, Ré-Sol-Mi-Lá, ou seja, um V/ii-II-V- I no final da Seção B (c.23-26).

Na Seção B, Turetzky recorre à técnica do pizzicato lírico, entremeando bicordes e tricordes (em cordas duplas e triplas) na linha melódica, como os acordes de Si bemol maior (c.8), Ré maior (c.9), Fá maior com sétima maior (c.10), Lá com nona maior (c.12), e Mi com nona maior (c.16). Ele também dá ao performer improvisador a opção de escolher outra rea- lização, pessoal, mas que, minimamente, lembre o texto original em suas escolhas de notas e ritmos (de fato, anota essa recomendação na partitura). A continuidade da linha melódica na Seção B é garantida pela utilização do pizzicato lírico, mais comum no jazz (e pouco co- mum na escrita orquestral), cuja reverberação é obtida por meio de acentos (c.10), glissan- di (notados na partitura esporadicamente, como nos c.10, 12 e 13, ou sucessivos, como no c.16), portamenti (mais discretos que os glissandi e inseridos ao gosto do performer, dentro da tradição da linguagem do contrabaixo popular), legato de mão esquerda (c.10 e 15) e cor- das soltas em l.v. (laissez vibrer, nos c.12, 16 e 17).


3 Nancy: cinesiologia do arco + pizz. e sua prática deliberada


Na realização da técnica estendida arco + pizz. em Nancy, é importante a com- preensão, sob o ponto de vista da cinesiologia4, de como alguns movimentos dos dois con- juntos braço-antebraço-mão-punho-dedos são gerados e coordenados entre si. A partir daí, essa compreensão permite escolher e organizar melhor práticas estruturadas especifica- mente para aumentar o nível corrente de performance, práticas essas conceituadas como deliberadas (ERICSSON, KRAMPE e TESCH-RÖMER, 1993; SLOBODA,1996) para otimi- zar o processo de aprendizagem e performance da peça, especialmente em trechos consi- derados nevrálgicos do ponto de vista de precisão de movimentos. Na técnica arco + pizz. observamos algumas variações que podem ocorrer no repertório: (1) o som do pizzicato de mão esquerda ser articulado depois que o som em arco já estiver em curso; (2) o som do pizzicato de mão esquerda ser articulado ao mesmo tempo que o som arco já estiver em curso, o que exige maior coordenação; (3) a articulação simultânea do pizzicato de mão es- querda e arco se repetir, o que aumenta ainda mais o grau de dificuldade de sua execução;

(4) o pizzicato de mão esquerda ser realizado pelo polegar (5) o pizzicato de mão esquerda ser realizado por outro dedo que não o polegar, o que aumento o grau de dificuldade na sua realização.

A seguir, escolhemos algumas passagens em arco + pizz. nas quais, com base na nossa experiência em sala de aula, os contrabaixistas demonstram maior dificuldade em realizar os movimentos precisos do membro superior esquerdo necessários (relacionados à localização e busca de notas-alvo) ou coordená-los com precisão a movimentos do membro superior direito (relacionados ao manuseio do arco pela mão direita, como em seus planos de abordagem das cordas nas Seções A e A’). Além da complexidade de alguns movimentos isolados, a simultaneidade de alguns movimentos se coloca como um dos maiores desafios para o intérprete, especialmente considerando a grande precisão de timing requerida na performance musical em tempo real.

Os exercícios educativos no campo dos esportes (NOGUEIRA, 2013) visam, inicial- mente, por meio de análise, a decomposição de movimentos complexos em unidades mais simples, treináveis por meio de repetição e realizados em tempo de execução maior do que em tempo real para facilitar para sua aprendizagem. Posteriormente, as repetições das uni- dades fragmentadas são realizadas em tempos menores, se aproximando do tempo real. Esses procedimentos, na área de Aprendizagem Motora, são conceituados como prática or- ganizada por partes (MAGILL, 2000). Elementos de variação podem também ser inseridos

para interferir positivamente na aquisição das habilidades motoras. Finalmente, por meio de síntese, os movimentos são realizados sequencialmente e sem interrupção, o que é defi- nido como prática do todo (MAGILL, 2000). Na música, BALDWIN (1995, p. 51-53) propôs a prática deliberada de excertos orquestrais complexos a partir da elaboração de “etudes” (pe- quenos fragmentos ou motivos, à maneira dos exercícios educativos), selecionando e anali- sando as dificuldades técnicas envolvidas e priorizando sua repetição com diversos tipos de variação: tipo de articulação, tipo de dinâmica, graus da escala, etc.

Nos exemplos ilustrativos aqui apresentados sobre a técnica estendida arco + pizz., consideramos as etapas sequenciais de preparação (apontamento e posicionamento) e ação muscular (força, amplitude e direção de movimento). Assim, cada exemplo da realização sequencial de movimentos simples ou complexos traz passos numerados (Passo 1, Passo 2, Passo 3 etc.) para explicar a origem e características desses movimentos. Nosso objetivo é que a prática deliberada de cada passo, primeiro isoladamente e, depois, sem interrupção (como acontece em tempo real na música), configure exercícios educativos para a realiza- ção consciente das passagens selecionadas, e sirva de modelo para a aprendizagem de mo- vimentos em outras técnicas e outros repertórios.

Nos novos conteúdos acrescentados na segunda edição de seu livro The Contemporary contrabass, Turetzky inclui algumas técnicas que chama de two-handed technique (técnicas com duas mãos), significando a utilização das duas mãos para produzir notas independen- tes, o que permite a criação de duas linhas independentes (técnica hoje popularizada como tapping, especialmente a partir do trabalho do guitarrista norte-americano Stanley Jordan). Isso abriu a possibilidade de se utilizar o contraponto no contrabaixo, instrumento consi- derado capaz de realizar apenas uma linha ou, no máximo, linhas com mesmo ritmo, como no caso de acordes em cordas duplas ou triplas. Ele cita o trabalho exploratório do contra- baixista-compositor Mark Dresser (TURETZKY, 1989, p. 27), iniciado por volta de 1979 e que resultou na peça Trenchant (DRESSER, 1983), citada como exemplo pioneiro da técni- ca no contrabaixo. TURETZKY (1989, p. 25 e 28) atualiza os relatos sobre a técnica, dando exemplos da música de Jon Deak (Readings from Steppenwolf, 1982) and de Edward Knight (Moods for Double Bass, 1985). Mas ele cita apenas dois exemplos em que há simultaneidade na produção de notas com o legato do arco na mão direita e a percussividade do pizzicato na mão esquerda: For Double Bass Alone (1959) de William Sydeman e Kaleidoscope (1984) de Mel Graves (TURETZKY, 1989, p. 29). Entretanto, em nenhuma dessas obras se observa o grande contraste de registros e timbre, inspirado pelos instrumentos principais do casal Turetzky: a flauta e o contrabaixo. Talvez Bertram tenha optado, mais uma vez, pela modés- tia, por não citar a preciosidade de instrumentação e contrastes de sua Nancy: pizzicati no grave acompanhando melodias em harmônicos no agudo.

Turetzky minimiza a complexidade motora requerida na execução da técnica arco + pizz. Além disso, ele utiliza uma abordagem mais “alemã” ou “norte-americana” (TURETZKY, The Contemporary..., 1989, p. 119-120) visando “nenhuma” ou “pouca movi- mentação” do conjunto braço, antebraço e mão esquerda, respectivamente. Essa abordagem, com movimentos mais finos, envolvendo menor número de grupos musculares, e transver- sais da mão às cordas, evita mudanças de posição, ao contrário da abordagem “italiana”, com movimentos mais grossos, requerendo a ação de um maior número de músculos, e lon- gitudinais às cordas, que resulta em uma sonoridade mais lírica, mas que envolve muitos saltos ao longo do espelho do contrabaixo e um risco maior de erro no apontamento e busca de notas-alvo. O sistema nervoso central lida melhor com a precisão em movimentos mais finos, ao passo que movimentos grossos que solicitam a ativação de mais grupos muscula- res estão sujeitos a maior variabilidade e erros de precisão (MAGILL, 2000).

A utilização de fôrmas de mão esquerda baseadas em informações proprioceptivas, táteis e visuais melhora significativamente a precisão no apontamento, busca e realização de notas-alvo (BORÉM et al., 2006). Do ponto de vista espacial, a localização dos harmôni- cos no contrabaixo ocorre em uma região em que a mão esquerda está mais distal (afastada) da parte superior do tronco do contrabaixista, posicionamento devido, principalmente à ex- tensão do cotovelo, o que torna mais difícil a localização de notas-alvo:


Se por um lado, o contrabaixo produz harmônicos naturais muito intensos (especial- mente se comparados às outras cordas orquestrais), a sua técnica demanda grande precisão no posicionamento da mão esquerda. Qualquer erro na estimativa de suas distâncias absolutas (da mão esquerda em relação ao contrabaixo) ou relativas (entre os dedos na fôrma de mão esquerda), pode resultar em notas falhadas ou ruído, e não a nota desejada. (BORÉM, 2011, p. 94)


Assim, não há como evitar a abordagem “italiana” na longa trajetória da mão es- querda do registro médio para o registro super-agudo, quando passamos da Seção B para a Seção A’ (c.17-18) de Nancy. Por outro lado, Turetzky concentra todas as linhas melódicas das Seções A e Seção A’ em torno de uma única posição de mão esquerda (uma abordagem “ale- mã”). Essa posição contem o 4º, 5º, 6º e 7º harmônicos parciais da série harmônica que re- quer o posicionamento correto dos dedos 0 (polegar), 1 (indicador), 2 (médio) e 3 (anelar), ou seja, a fôrma do acorde de sétima da dominante a partir da fundamental (por exemplo, na Corda I, são as notas Sol5 - Si5 - Ré6 - Fá6)5. Tanto o longo salto de registros pela mão esquerda (Exemplo 1a e b) quanto os posicionamentos precisos dos dedos da mão esquerda (Exemplo 1c) podem ser eficientemente guiados pelas pistas de busca visual (BV7, BV8, BV9 e BV10; BORÉM, 2011, p. 95) marcadas no espelho. Em Nancy, Turetzky utiliza somente notas re- ferentes aos dedos 0 (polegar), 1 (indicador) e 2 (médio), correspondentes a BV7, BV8 e BV9.


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Exemplo 1a, b e c: Utilização de pistas visuais no espelho (BV7, BV8, BV9 e BV10) para mudança de posição da mão esquerda da região media para a região aguda (exemplo 1a e b) e posicionamento dos dedos da mão esquerda (exemplo 1c, polegar, indicador, médio e anelar) em notas-alvo nos harmônicos Sol4-Si4-Ré5-Fá5 (o acorde de sétima da dominante contido na série harmônica) na Corda I.


A execução da técnica estendida de arco + pizz. demanda a atuação simultânea de dois dedos da mão na localização de notas diferentes (um dedo para cada nota articula- da) e da ação simultânea de dois geradores de som (arco e pizzicato). Sua complexidade em Nancy reside na coordenação de ações sequenciais ou simultâneas, um contínuo que pode ser fragmentado em quatro passos: (1) um dedo da mão esquerda localiza um harmônico pressionando levemente a corda,6 o que é seguido pela (2) mão direita que puxa o arco do contrabaixo para a direita ou esquerda, o que é seguido por, (3) outro dedo da mão esquer-

da que localiza e dedilha outra corda em pizzicato de mão esquerda,7 esticando e liberando essa corda lateralmente ao mesmo tempo em que (4) a mão direita muda a direção do arco. O acionamento lateral da corda por um dedo da mão esquerda (geralmente o polegar) em pizzi- cato pode representar uma dificuldade a mais nesse já complexo sistema de ações e movi- mentos em diversos eixos espaciais, especialmente para o contrabaixista não familiarizado com o repertório de técnicas estendidas. As ações desses dois dedos geram um movimento semelhante ao movimento de preensão de um objeto (flexão do polegar em oposição à fle- xão dos outros dedos), característica que difere os primatas dos outros animais. Mas, nesse caso, o que ocorre, mais especificamente, é uma maior flexão do polegar, acompanhada de uma rotação interna, passando do ponto que caracteriza a oposição. Nessa ação, o apoio de um dedo permite o outro pivotar, se deslocando até outra corda, ali se apoiar e, após esticar a corda via flexão, liberar esta corda dedilhando o pizzicato. Um exemplo dessa ação pode ser vista nas fotos dos Passos 3 e 4 do Exemplo 2, mais à frente.

Passando à música de fato, todas as fotos dos exemplos de Nancy a seguir são do ponto de vista do contrabaixista, para facilitar seu visual controle na execução dos exercí- cios educativos. na Seção A de Nancy, temos 7 instâncias de pizzicati soando simultanea- mente com arco, dos quais apenas 3 requerem uma articulação simultânea no início de sua produção sonora (c.1, 6 e 7). É essa coordenação que nos interessa nessa seção do presente artigo. No c.1, para realizar o bicorde de sétima maior composta (Sol2 + Fá#4), os dedos 0 (polegar) e 1 (indicador) devem articular notas distintas ao mesmo tempo em cordas adja- centes (Corda I e Corda II), como mostra o Exemplo 2. Essa passagem é melhor compreen- dida em três passos. Passo 1: o dedo 0 (polegar) pressiona levemente a Corda I e toca o har- mônico Sol3 com a mão esquerda puxando o arco “para cima”. Passo 2: enquanto o dedo 0 (polegar) e a mão direita continuam a tocar na Corda I, o dedo 1 (indicador) localiza e pres- siona levemente o harmônico a Fá#3 na Corda II. Passo 3: a mão direita interrompe o movi- mento do arco e, com o com dedo 1 (indicador) apoiando-se na Corda II e servindo de pivô, o dedo 0 (polegar) passa da posição superior para uma posição mais lateral na Corda I, fle- xionando a falange distal (popularmente conhecida como falangeta), esticando levemente essa corda. Passo 4: simultaneamente, o dedo 0 (polegar) dedilha a nota Sol2 em pizzicato na Corda I com a falange distal, e o dedo 1 (indicador) e a mão direita puxando o arco “para baixo”, tocam o harmônico Fá#3 na Corda II.


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Exemplo 2: Análise de movimentos da técnica arco + pizz. no c.1 de Nancy de Bertram Turetzky, e respectivos exercícios educativos (Passos 1, 2, 3 e 4).


Na realização dos exercícios educativos aqui propostos, é importante a questão do timing tanto na repetição de cada passo quanto na integração entre os passos sequencial- mente. Sugerimos, inicialmente, a duração de 1 segundo para cada passo (ou semínima = 60), tempo que deverá ser diminuído à medida que o instrumentista melhore sua habilidade e precisão em cada movimento.

Uma sequência de movimentos ainda maior ocorre nos c.5-7 (Exemplo 3), com duas instâncias de arco + pizz. Na primeira (c.6), o bicorde de 7ª maior composta 1-Sol#3 é realizado pelos dedos 0 (polegar) e 1 (indicador). Na segunda (c.7), o bicorde de 10ª maior Sol2-Si3 é realizado pelos dedos 0 (polegar) e 2 (médio). A análise dos movimentos pode ser descrita em doze passos. Passo 1: simultaneamente, o dedo 2 (médio) toca o harmônico Mi4 na Corda III e a mão direita empurra o arco “para cima”; Passo 2: com o arco e o dedo 2 (médio) tocando, o dedo 0 (polegar) posiciona-se lateralmente na Corda II para tocar o pi- zzicato de mão esquerda; Passo 3: com o arco e o dedo 2 (médio) tocando, o dedo 0 (polegar) toca o 2 em pizzicato na Corda II; Passo 3: com o arco e o dedo 2 (médio) tocando, o dedo 0 (polegar) posiciona-se lateralmente na Corda II e dedilha o 2 em pizzicato de mão es- querda; Passo 4: com o dedo 2 (médio) e a mão direita tocando, o dedo 1 (indicador) localiza e pressiona o harmônico Sol#3 na Corda IV; Passo 5: com o dedo 1 (indicador) apoiado na Corda III e servindo de pivô, a mão direita interrompe o movimento do arco e o dedo 0 (po- legar) se apoia lateralmente na Corda III, preparando-se para tocar o pizzicato de mão es- querda 2; Passo 6: simultaneamente, a mão direita puxa o arco “para baixo” com o dedo 1 (indicador) tocando o harmônico Sol#3 na Corda IV e o dedo 0 (polegar) dedilha a cor- da solta 2 na Corda III; Passo 7: o dedo 1 (indicador) sai da corda IV e, transversalmen- te, localiza e pressiona o harmônico Dó#3 na corda III; Passo 8: com o dedo 1 (indicador) apoiado na Corda III e servindo de pivô, o dedo 0 (polegar) se apoia lateralmente na Corda II, preparando-se para tocar o pizzicato de mão esquerda 2; Passo 9: simultaneamente, a mão direita empurra o arco “para cima” com o dedo 1 (indicador) tocando o harmônico Dó#4 na Corda III, e o dedo 0 (polegar) dedilha a corda solta 2 em pizzicato na Corda II;

Passo 10: o dedo 2 (médio) localiza e pressiona o harmônico Sol#3 na Corda IV; Passo 11: com o dedo 2 (médio) apoiado na Corda IV e servindo de pivô, o dedo 0 (polegar) tangen- cia a Corda II, sem encostá-la, e se apoia lateralmente na Corda I, preparando-se para tocar o pizzicato de mão esquerda; Passo 12: simultaneamente, a mão direita puxa o arco “para baixo” com o dedo 2 (indicador) tocando o harmônico Si4, e o dedo 0 (polegar) dedilha a corda solta Sol2 em pizzicato na Corda I. A fragmentação dessa sequência em onze passos revela a complexidade de movimentos e coordenação envolvidos na passagem. Nessa sequ- ência, também destacamos a grande dificuldade de realizar o bicorde Sol2-Si3 na Corda I e IV simultaneamente, pois são cordas não adjacentes (separadas pelas Cordas II e III) no final da sequência (c.7), o que exige uma amplitude muito grande entre a falange distal do dedo 0 (polegar), que passa por baixo da palma da mão para chegar à Corda I, e o dedo 2 (médio), que se estica em direção contrária para tocar na Corda IV (veja foto do Passo 11 do exercício educativo no Exemplo 3)


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Exemplo 3: Análise de movimentos da técnica arco + pizz. nos c.5-7 de Nancy de Bertram Turetzky, e respectivos exercícios educativos (Passos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12).


No c.18, os eventos envolvendo o arco + pizz. são muito semelhantes àqueles do c.1, apresentado no Exemplo 2 e Exemplo 3 acima. A partir desses modelos, o leitor não encon- trará dificuldades em analisar e criar exercícios preparatórios para realizar o bicorde Sol2

- Si3 dessa passagem.

Nos c.23-24, duas instâncias da técnica arco + pizz. ocorrem sem interrupção, ge- rando os bicordes Ré2-Lá3 e Sol2-Si3 (Exemplo 4). Além do desafio do timing menor para re- alizar dois arco + pizz. em seguida, há também a dificuldade da troca de função dedos da mão esquerda para realizar essa sequência de bicordes: o dedo 0 (polegar) toca um harmôni- co em arco e em seguida deve tocar uma corda solta em pizz.; e o dedo 2 (médio)8 toca uma corda solta em pizz. e em seguida deve tocar um harmônico em arco. Essa inversão de fun- ções exige uma coordenação ainda maior do contrabaixista. Até aqui, todas as instâncias do pizzicato de mão esquerda (l.h. pizz.) em Nancy foram realizadas pelo dedo 0 (polegar), cujo movimento é facilitado devido à sua capacidade de rotação no eixo transversal às cor- das (ao contrário dos outros dedos). Mas no c.23, dentro da perspectiva de Tureztky de não movimentar a mão esquerda ao longo do espelho (o que chama de “escola alemã” ou “escola norte-americana”), isso não é mais possível. Isso é melhor compreendido ao analisarmos e descrevermos, em sete passos, a realização desse trecho complexo, o que é seguido da ela- boração de exercícios educativos com vista à aprendizagem de seus movimentos e coorde- nação no contrabaixo. Passo 1: o dedo 2 (médio) localiza e toca o harmônico Mi4 na Corda III com a mão direita puxando o arco “para baixo” nessa corda; Passo 2: a mão direita inter- rompe o movimento do arco ao mesmo tempo em que o dedo 2 (médio) levanta-se da corda e o dedo 0 (polegar) localiza e pressiona o harmônico 3 na mesma Corda III; Passo 3: com o dedo 0 (polegar) apoiado na Corda III, o dedo 2 (médio) se apoia lateralmente na Corda II, ambos se preparando para fazer o arco + pizz.; Passo 4: simultaneamente, o dedo 2 (médio) dedilha o 2 em pizzicato na Corda II, a mão direita empurra o arco “para cima” e o dedo 0 (polegar) toca o harmônico 3 na Corda III; Passo 5: a mão direita interrompe o movimento do arco, enquanto o dedo 2 (médio) localiza e pressiona o harmônico Si3 na Corda IV; Passo 6: com o dedo 2 (médio) apoiado na Corda IV e servindo de pivô, o dedo 0 (polegar) sai da Corda III e se apoia lateralmente na Corda I, tangenciando a Corda II sem encostar nela, e a mão direita muda o plano do arco da Corda III para a Corda IV. Passo 7: simultaneamente,

a mão direita puxa o arco “para baixo” na Corda IV, o dedo 2 (médio) toca o harmônico Si3

na Corda IV e o dedo 0 (polegar) dedilha a nota Sol2 em pizzicato na Corda I.


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Exemplo 4: Análise de movimentos da técnica arco + pizz. nos c.23-24 de Nancy de Bertram Turetzky, e respectivos exercícios educativos (Passos 1, 2, 3, 4, 5 e 6).


Por outro lado, dentro da perspectiva da “escola italiana” (TURETZKY, The Contemporary... 1989, p. 119), que favorece mais o trânsito da mão esquerda ao longo do es- pelho (e resulta em muitas mudanças de posição), apresentamos uma alternativa, também em sete passos (Exemplo 5), para manter sempre o polegar realizando o pizzicato de mão es- querda. Passo 1: o dedo 2 (médio) localiza e toca o harmônico Mi4 na Corda III com a mão direita puxando o arco “para baixo” nessa corda; Passo 2: a mão direita interrompe o movi- mento do arco ao mesmo tempo o conjunto antebraço-mão-dedo médio esquerdo (com fle- xão do cotovelo) muda de posição, recuando uma 5ª justa na Corda III, com o dedo 2 (médio) localizando e pressionando o harmônico 3 na mesma Corda III,, o que pode ser feito com precisão a partir de pistas visuais (de BV9 para BV7).; Passo 3: com o dedo 2 (médio) servin- do de pivô na Corda III, o dedo 0 (polegar) se apoia lateralmente na Corda II; ambos se pre- parando para fazer o arco + pizz.; Passo 4: simultaneamente, o dedo 0 (polegar) dedilha o 2 em pizzicato na Corda II, a mão direita empurra o arco “para cima” e o dedo 2 (médio) toca o harmônico 3 na Corda III; Passo 5: a mão direita interrompe o movimento do arco, a mão direita muda de posição, subindo diagonalmente da Corda III para Corda IV (combi- nando circundução do punho e extensão a partir do cotovelo) uma 5ª justa, localizando e pressionando o harmônico Si3 na Corda IV; Passo 6: com o dedo 2 (médio) apoiado na Corda IV e servindo de pivô, o dedo 0 (polegar) se apoia lateralmente na Corda I, e a mão direita

muda o plano do arco da Corda III para a Corda IV. Passo 7: simultaneamente, a mão direita puxa o arco “para baixo” na Corda IV, o dedo 2 (médio) toca o harmônico Si3 na Corda IV e o dedo 0 (polegar) dedilha a nota Sol2 em pizzicato na Corda I.


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Exemplo 5: Dedilhado alternativo (polegar realizando todos os pizz. de mão esquerda) nos c.23-24 de Nancy de Bertram Turetzky, e respectivos exercícios preparatórios (Passos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7).


Observamos que a complexidade de movimentos do membro superior esquerdo em qualquer uma das alternativas para os c.23-24 (com ou sem mudança de posição da mão esquerda), apresentadas acima, é ainda maior quando consideramos que o membro superior direito também está atuando de forma complexa, envolvendo em maior ou menor grau, movimentos de abdução e adução do ombro no plano frontal (o ir e vir do arco para a direita e esquerda, mais conhecidos entre os instrumentistas de cordas como “arcada para baixo” e “arcada para cima”), flexão, extensão do cotovelo, abdução e adução do co- tovelo e punho (nas mudanças de angulação do arco para realizar os planos tangencias a cada corda).


4. Nancy: reverberações no repertório


Trazemos aqui exemplos de duas influências que a escrita idiomática de Nancy de Bertram Turetzky exerceu no repertório latino-americano do contrabaixo com a utilização

do arco + pizz. Ao participar do VI Encontro de Compositores e Intérprete Latino-Americanos (MENEGALE, 2002), realizado na cidade de Belo Horizonte em 2002, o primeiro autor do presente artigo recebeu a incumbência de estrear no Brasil a obra Tulipanes negros (1992), para clarone e contrabaixo da compositora argentina María Cecilia Villanueva. Os primei- ros 32 compassos (as duas primeiras páginas) da parte do contrabaixo nessa obra traziam a escrita de cordas duplas em arco, nota-contra-nota (semínimas ou mínimas), entre registros extremos: bicordes plaqué sobrepondo um harmônico a uma corda solta adjacente. O gran- de desafio era produzir sons de registros tão díspares (com intervalos de notas separadas de duas a três oitavas de distância!) com a mesma região de corda, a mesma região do arco e a mesma quantidade de crina, desafio cuja realização se mostrou muito insatisfatória. Recorrendo à minha experiência com Nancy, propus à compositora realizar essas cordas duplas separando-as em dois tipos de articulação (e timbres): realizando a voz superior dos harmônicos como na escrita original – com arco – e a voz inferior, sempre em cordas soltas, com pizzcati com o polegar da mão esquerda (Exemplo 6), o que se mostrou satisfatório para a compositora (BORÉM e SANTOS, 2003, p. 69-70), embora se se torna extremamente tra- balhoso, pois a escrita nota-contra-nota implicou em constantes mudanças de posição, com as notas da voz superior sendo tocado sempre com o dedo 2 (indicador).


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Exemplo 6: Reflexo da escrita idiomática de Nancy (1987) de Bertram Turetzky em Tulipanes negros (1992) de Maria Cecilia Villanueva: simultaneidade de arco (harmônicos) e pizzicati (cordas soltas) como solução composicional para a parte a duas vozes do contrabaixo.


O segundo exemplo é retirado da obra cênico-musical Não atire o pau no gato (BORÉM, 2010), para contrabaixo solista, narrador e orquestra sinfônica, de autoria do pri- meiro autor do presente artigo, escrita sob encomenda do Maestro Fábio Mechetti para a Série Concertos Didáticos da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. No trecho em que o personagem do Velho Fazendeiro passa um sermão naqueles que maltratam os animais, o contrabaixista deve coordenar não duas, mas três linhas independentes, combinando a re- alização dessa técnica de arco (aqui com harmônicos simples e em cordas duplas) + pizzi- cato (em cordas soltas) simultâneos com um terceiro estrato sonoro: a encenação do texto “ecologicamente correto”, como mostra o Exemplo 7.

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Exemplo 7: Reflexo da escrita idiomática de Nancy (1987) de Bertram Turetzky em Não atire o pau no gato (2010) de Fausto Borém: ampliação da técnica estendida de arco + pizz. para a escrita a três vozes, com o acréscimo de declamação encenada.


Considerações finais


Parte da suíte de peças que compõe Poems, portraits ballades and blues, a peça Nancy é uma miniatura que reflete escolhas importantes na vida do contrabaixista-com- positor-pedagogo BertramTuretzky. Primeiro, como compositor, sintetiza sua longa par- ceria na vida e na profissão com a esposa e flautista Nancy Turetzky, o que transparece na peça com a emulação do timbre, registro e cantabile da flauta acompanhada pelos pi- zzicati do contrabaixo. Turetzky consegue essa atmosfera utilizando a técnica estendida arco + pizz. que permeia a obra. Como contrabaixista, sua dedicação ao instrumento mo- tivou compositores relevantes na criação de um novo repertório para o contrabaixo a par- tir da segunda metade do século XX. Como pedagogo, formou gerações de instrumentis- tas abertos às novas potencialidades sônicas do contrabaixo e documentou as práticas de performance e a escrita idiomática contemporânea no seu livro seminal The Contemporary contrabass.

Podemos enxergar a peça Nancy (e sua construção) como uma metáfora na qual contrastes (o contrabaixo e a imitação da flauta pelo contrabaixo) se tornam unidades ao longo de sua forma ternária ABA’: unidade entre o grave e o agudo, entre o legato do so- pro na flauta e a percussividade do pizzicato no contrabaixo, entre os parceiros de um duo que dura mais de 55 anos, entre o homem e a mulher que construíram um casamen- to também longevo; ideia corroborada pelo compositor-intérprete (TURETZKY e BORÉM, Questions..., 2014).

No presente estudo de caso, pudemos analisar os movimentos dos membros su- periores no contrabaixo, especialmente o esquerdo, e propor exercícios educativos para as cinco variações da técnica arco + pizz. detectadas em Nancy: (1) com o pizzicato de mão esquerda sendo articulado com nota em arco já em curso; (2); com o pizzicato de mão esquerda sendo articulado simultaneamente com a nota em arco; (3) com o pizzica- to de mão esquerda sendo articulado simultaneamente com a nota em arco mais de uma vez em seguida; (4) com o pizzicato de mão esquerda realizado pelo polegar, mais comum devido à sua maior capacidade rotação desse dedo opositor na preensão, o que lhe permi- te maior mobilidade espacial e maior força; (5) com o pizzicato de mão esquerda realiza- do por outro dedo (indicador, médio ou anelar), menos comum mas necessário para evitar mudanças de posição da mão esquerda. Os reflexos da técnica estendida arco + pizz. de Nancy foram também percebidos fora do eixo Estados Unidos-Europa em obras posteriores latino-americanas.

Notas


1 Todas as traduções do inglês para o português foram realizadas pelo primeiro autor do presente artigo.

2 Em The Contemporary contrabass, as técnicas de pizzicato são discutidas às p. 1-14 da 1ª edição e às p. 13-33 da 2ª edição, enquanto que as técnicas de harmônicos são discutidas às p. 60-73 da 1ª edição e às p. 104-139 da 2ª edição.

3 Turetzky menciona a Sonata for Double Bass Alone (1960) de Barney Childs como a primeira instância do pizzi- cato lírico na literatura erudita do contrabaixo.

4 Cinesiologia aqui é entendida como o estudo do movimento biológico, no qual se aplica conhecimento de dife- rentes áreas de estudo, tais como o comportamento motor, a biomecânica, a fisiologia e a anatomia.

5 As cordas do contrabaixo de 4 cordas aqui referidas são denominadas Corda I (a corda solta Sol), Corda II (a corda solta Ré), Corda III (a corda solta Lá) e Corda IV (a corda solta Mi).

6 Para se tocar um harmônico, não há necessidade de se pressionar a corda até encostá-la no espelho, pois no ponto da nota-alvo existe um nodo correspondente da série harmônica que interrompe a vibração da corda.

7 O pizzicato de mão esquerda normalmente é indicado na partitura pelo símbolo de uma cruzinha e/ou l.h. pizz

(left hand pizzicato; TURETZKY, 1989, p. 28-29).

8 Embora, nesse caso, a realização do pizz. de mão esquerda com o dedo 2 (médio) seja mais fácil devido à sua centralidade na mão, é possível a sua realização também com o dedo 1 (indicador) ou o dedo 3 (anelar).


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Fausto Borém - Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado em Música e a revista Per Musi (Qualis A1 na CAPES e indexada no SciELO). Como solista no contrabaixo, tem representado o Brasil nos principais eventos internacionais de contrabaixo (Berlim, Paris, Londres, Edimburgo e diversas universidades nos EUA), nos quais apresenta suas composições, arranjos e transcrições. É autor de dezenas de artigos sobre práticas de performance na música erudita e popular. É pesquisador do CNPq e coordena o grupo de pesquisa interdisciplinar ECAPMUS (Estudos em Comportamento e Aprendizagem Motora na Performance Musical).


Leonardo Lopes - Mestrando em música pela UFMG, onde também se graduou Bacharel em Contrabaixo acústico. Atualmente é músico instrumentista da OSMG (Orquestra Sinfônica da Minas Gerais) e professor nas Escolas Mu- nicipais de Música “José Luiz Pinto Coelho” em Santa Bárbara (MG) e “José Acácio de Assis Costa” em Nova Lima (MG).


Guilherme Menezes Lage - Professor Adjunto da UFMG, Doutor em Neurociências, Mestre e Bacharel em Educação Física. Desenvolve pesquisa e ministra disciplinas na área de Comportamento Motor.

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