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Artigos Científicos

Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 269p., n.2, 2014

A Escrita Idiomática de Salvador Amato para o Contrabaixo


Rodrigo Olivárez (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG)

olivarezrodrigo@yahoo.com

Fausto Borém (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG)

faustoborem@gmail.com


Resumo: Estudo sobre a escrita idiomática do compositor-contrabaixista argentino Salvador Amato (1928-1994), observada nos manuscritos e edições de seu conjunto de seis obras de concerto para contrabaixo (Fantasia Concer- tante, Habanera, Sonatina, Malambo, Variaciones Rapsódicase Carnavalito). A partir de entrevistas com ex-alunos de Amato e textos publicados, são levantados dados que explicam sua abordagem pedagógica, que inclui elementos programáticos, técnicas tradicionais e estendidas. A análise de sua escrita idiomática em trechos de sua obra revela um compositor preocupado com a expansão do repertório e ensino de seu instrumento e, ao mesmo tempo, atento à cultura musical de seu país.

Palavras-chave: Salvador Amato; Escrita idiomática para contrabaixo; Música argentina para contrabaixo.


Salvador Amato’s Idiomatic Writing for the Double Bass

Abstract: Study about the idiomatic writing of Argentinean double bassist-composer Salvador Amato (1928-1994), observed in his six recital pieces for double bass (Fantasia Concertante, Habanera, Sonatina, Malambo, Variaciones Rapsódicas e Carnavalito). Data from interviews with Amato’s ex-students and published texts explain his pedagogi- cal approach, which includes programmatic elements, and both traditional and extended techniques. The analysis of his idiomatic writing in excerpts of these works reveal a composer concerned with the development of the double bass repertory and teaching in Argentina and attention to the musical culture of his country.

Keywords: Salvador Amato; Idiomatic writing for the double bass; Argentinian music the double bass.


  1. Introdução


    O argentino Salvador Amato foi contrabaixista da Orquestra Sinfônica da Universidad Nacional de Cuyo (UnCuyo) e da Banda Sinfônica da província de Mendoza, onde nasceu, tornando-se professor de contrabaixo da UnCuyo em 1959. Um dos primeiros obstáculos que encontrou foi a ausência de materiais didáticos para ensinar seu instrumen- to. A distância dos modelos de ensino europeus e o repertório restrito do instrumento difi- cultavam a criação de uma cultura do contrabaixo na Argentina, um cenário adverso que também podia ser observado mesmo em cidades universitárias, mesmo na sua Mendoza (REY, 2003, p. 25). Para minimizar esse problema, Amato buscou se inteirar da realidade local, a partir de músicos referenciais de Mendoza ou que visitavam a região. A partir daí, começou a organizar estratégias para criar uma “escola de contrabaixo” argentina para seus alunos, especialmente visando suprir a falta de literatura. Para isso, compôs exercícios, es- tudos e obras que lhe permitiam trabalhar elementos técnicos musicalmente em sala de aula e, mesmo, serem apresentadas ao público em geral nos palcos pelos alunos e por ele mesmo (MELCHIORI 2010, p. 28). As estratégias de Amato podem ser vistas como parte de um processo didático no ambiente universitário da música, que se tornou mais comum nas últimas décadas do século XX, nos quais professores e alunos se mobilizam em frentes de estudo e pesquisa para solucionar carências, eles mesmos, por meio da interação de diver- sas áreas: performance, criação, análise, história, educação, integração entre música erudita e música popular (BORÉM, 2006, p. 46).

    No presente artigo, buscou-se primeiramente levantar a literatura correlata, espe-

    cialmente as fontes primárias, ou seja, as obras musicais escritas por Amato. Também fo- ram relevantes as fontes secundárias constituídas de monografias e artigos, como o texto de


    Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 269p., n.2, 2014 Recebido em: 20/05/2014 - Aprovado em: 22/04/2014

    Carolina MELCHIORI (2010) no periódico Bass World da International Societyof Bassists e monografias de Jimena REY (2003) e Ariel OJEDA (2003), ambas relacionadas à vida e obra do compositor. Por outro lado, foram conduzidas entrevistas com os seguintes ex-alunos de Amato: seu sucessor e atual professor de contrabaixo na UnCuyo Omar ARANCIBIA (2012), os contrabaixistas José Luis FERREYRA (2012) e Fernando POBLETE (2013), ambos na Espanha atuando como contrabaixistas da Orquestra Sinfônica de Madrid (OSM); e o contrabaixista Norberto JUEZ (2012), hoje contrabaixista da Orquestra Sinfônica de Santa Fé, Argentina. Finalmente, foram extraídos e analisados trechos selecionados das obras de Amato, a partirdos manuscritos e edições existentes, em função de seu significado dentro da técnica idiomática do contrabaixo, da natureza programática e da variedade de recursos que inspirou o compositor.


  2. As obras para contrabaixo de Salvador Amato


    O trabalho de Salvador Amato representou um grande avanço no ensino do con- trabaixo em Mendoza. Quando assumiu a cadeira de professor de contrabaixo na UnCuyo em 1959, logo passou a recorrer diferentes elementos idiomáticos que seriam úteis nas aulas de contrabaixo, nas apresentações de seus alunos de música de câmara e nos seus recitais concertos como solista (REY, 2003). Salvador Amato escreveu seis obras para contrabaixo e piano durante um período de 18 anos, de 1967 a 1985 (REY, 2003, p. 19, 25): a Fantasia Concertante, a Habanera, a Sonatina, o Malambo, as Variaciones Rapsódicase o Carnavalito. Todas essas peças foram escritas para afinação de solista (Fá#1, Si1, Mi2, Lá2; um tom aci- ma da afinação orquestral). Em1983, escreveu dois estudos de contrabaixo solo: o Estudio Capricho e o Estudio Concierto. Embora MELCHIORI (2010, p. 28) mencione uma peça cha- mada Concerto em Do Major, o paradeiro dessa obra é desconhecido. Além dessas obras que visam sua apresentação pública, Amato também deixou o Método para contrabaixo (FERREYRA, 2012), escrito em 1981, de finalidade apenas didática. De todas as suas obras para contrabaixo, a Fantasia concertante foi a única publicada comercialmente, o que ocor- reu em 1971, pela Editorial Korn de Buenos Aires.

    Os manuscritos das seis obras de concerto de Amato estão em bom estado de con- servação, e se encontram em acervos da família do compositor; da pianista acompanhadora do Amato Beatriz Lhin Piottante; e de seus alunos (Exemplo 1).


    Obras

    ano

    instrumentação/arranjo

    Exemplares

    Localização

    Outros dados

    Fantasia Concertante

    1967

    Manuscritos:

    Mendoza Santa Fé Buenos Aires (Argentina)

    Dedicatória ao ex-aluno Angel Ridolfi

    Habanera

    1973

    Manuscritos:

    - piano, partes e contrabaixo solo

    Mendoza Santa Fé (Argentina)

    Arranjo para contrabaixo e orquestra de cordas (arr. Osvaldo Larrea)

    Sonatina

    1978

    Contrabaixo e piano

    Manuscritos:

    - contrabaixo e piano

    Mendoza (Argentina)

    Não tem arranjo para orquestra

    Malambo

    1978

    Manuscritos:

    Mendoza (Argentina) Madrid (Espanha)

    A criação da versão para dois contrabaixos

    homenageia Amato após sua morte (1996)

    Variaciones Rapsódicas

    1981

    Manuscrito:

    - contrabaixo, piano/Edição digital Omar Arancibia

    Mendoza (Argentina)

    O arranjo para orquestra foi criado pelo compositor Carlos Barraquero

    Carnavalito

    1985

    - Contrabaixo e Piano

    Manuscrito:

    Mendoza (Argentina) Madrid (Espanha)

    Não tem arranjo para Orquestra

    Exemplo 1: Lista das seis obras de concerto de Salvador Amato, com data de composição, tipo de instrumentação ou arranjo, tipo de manuscrito e outros dados.

  3. A escrita idiomática de Salvador Amato para o contrabaixo


Nas seis peças de concerto, Salvador Amato recorre a elementos diversos da escri- ta idiomática do contrabaixo, dos quais apresentamos alguns mais relevantes por categoria de técnica utilizada.


3.1 Virtuosidade do arco


Já na primeira das peças de Amato, a Fantasia Concertante, se percebe uma forte influência da música cigana, via repertório erudito, com claras referências às Árias ciga- nas para violino e orquestra de Pablo Sarasate (1844-1908). Amato inclui passagens vir- tuosísticas que se assemelham aos elementos virtuosísticos do violino, como os trechos que percorrem grandes extensões, atravessando registros contrastantes do contrabaixo,

1

por exemplo, indo do Sib5 na região super-aguda do contrabaixo até um Dó2 # na região

grave, retornando novamente à região super-aguda, finalizando em um Sol4 com fermata (Exemplo 2).


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Exemplo 2: Trecho virtuosístico do contrabaixo (c.8-9) na Fantasia Concertante de Salvador Amato, em que ele vai do registro super-agudo até o registro grave e retorna ao registro super-agudo.


Nas Variaciones Rapsódicas, Amato também utiliza o contrabaixo virtuosistica- mente, como no insistente e enérgico ritmo do primeiro motivo temático da obra (Exemplo 3), com cromatismo na região aguda do contrabaixo, entre o Sol3 e o Sol4.


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Exemplo 3: Motivo temático inicial (c.50-56) das Variaciones rapsódicas de Salvador Amato, com utilização virtuosística do contrabaixo em cromatismo na região aguda.


Em uma passagem cadencial da Fantasia Concertante, Amato utiliza um golpe de arco,sobre o nome do qual seus alunos divergem:FERREYRA (2013) o chama de spiquetato volante, enquanto que REY (2000) e ARANCIBIA (2006) o chamam de staccato volante. Na terminologia das arcadas do violino, mais consolidada historicamente do que a do contra- baixo, poderíamos pensar em uma combinação de duas arcadas: o ricochet2 e o bariolage3. Em que pese aqui essa disparidade em relação à terminologia de arcadas, há uma concor- dância em relação à sua realização, corroborada na tradição oral que se estendeu de Amato até seus alunos citados acima. A mão esquerda, montada sobre fôrmas de cordas duplas, muda balisticamente de posição em posição, do agudo para o grave. Já ao arco, sempre com um movimento flexível do punho, recebe um impulso vertical enérgico na corda mais agu- da (Corda Sol), como no ricochet, e imediatamente, usando a inércia do arco em movimen- to, faz o cruzamento de corda para a corda mais grave adjacente (Corda Ré), como no bario- lage e, depois retorna à corda mais aguda (Exemplo 4). A transição entre esses movimentos de mão direita é mais comum no violino, mas pode ser adaptado idiomaticamente à técnica

de arco do contrabaixo. FERREYRA (2014) afirma que, no caso do contrabaixo, é mais fácil fazer essa combinação de ricochet e bariolage na região meio-ponta do arco.


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Exemplo 4: Trecho da Fantasia Concertante (c.22-25), em que Salvador Amato utilizava a arcada ricochet- bariolage (também chamada de spiquetatovolante ou staccato volante pelos alunos de Amato), como elemento de virtuosidade no contrabaixo.


Nas Variaciones Rapsódicas, o compositor pede que o final da obra seja tocado com a arcada saltellato4, primeiro em uma corda e, depois, em cordas duplas, Se bem resul- te em uma escrita idiomática, aqui o deve estar atento à dificuldade de percorrer registros diferentes e manter uma sonoridade uniforme com o arco saltando transversalmente à cor- da (Exemplo 5).


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Exemplo 5: Arcada virtuosística de Salvador Amato nas Variaciones rapsódicas (c.248-255): saltellato simples e em cordas duplas na região aguda do contrabaixo.


Outra arcada virtuosística utilizada por Amato é o piquetato5, que segundo ARANCIBIA (2012), o compositor-contrabaixista admirava como elemento expressivo, uti- lizando-a na Sonatina, em gestos escalares descendentes conectados por ligaduras de ex- pressão, indo do registro agudo ao registro médio (Exemplo 6). Para executar o piquetato, o instrumentista deve fazer o arco saltar na corda, ajudando cada salto com um movimento de pronação do antebraço, ajudado pelos dedos (SALLES, 1998, p. 132).


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Exemplo 6: Arcada piquetato nos registros agudo e médio do contrabaixo (c.27-29) na Sonatina de Salvador Amato.

3.2. Recursos expressivos românticos


Amato fez parte de uma geração muito influenciada esteticamente pelo Romantismo e, por isso, dois recursos expressivos de mão esquerda aparecem em várias de suas obras: o glissando e o portamento. Na criação da Habanera, peça que nasceu de uma “brincadeira”, em uma improvisação, Amato partiu de um motivo temático ao qual foi acrescentando elementos até sua forma final (REY, 2003, p. 28). Nas aulas de contra- baixo, Amato utilizava esta peça para que o aluno reconhecesse a diferença entre glissan- do e portamento (JUEZ, 2012). Como os significados desses termos são muito próximos e intercambiáveis, dependendo do período histórico ou da linguagem (erudita e popular, por exemplo), recorremos a CLIFFORD (1911), por ser uma fonte do início do século XIX (período esteticamente próximo ao Romantismo tardio de Amato) e refletir uma diferença entre essas duas práticas de performance.6 Notacionalmente, Amato explicita o glissan- do com uma linha reta conectando duas notas (Exemplo 7), enquanto que o portamento é apenas sugerido por uma ligadura de expressão (ou de articulação; Exemplo 8). Tanto o glissando quanto o portamento geralmente ocorrem em intervalos de quarta justa ou quin- ta justa dentro da primeira oitava da Corda I (Sol2 a Sol3), o que sugere implica em saltos significativos da mão esquerda.


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Exemplo 7: Portamento no intervalo Lá2-3 na Corda I do contrabaixo (c.7-8) na Habanera de Salvador Amato.


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Exemplo 8: Glissando no intervalo Lá2- 3 na Corda I do contrabaixo (c.99-100) na Habanera de Salvador Amato.


Outro recurso expressivo típico do Romantismo é a alteração do tempo na realiza- ção rítmica de um trecho. Na Habanera, Amato recorre ao rubato7 antes do final da casa 1 (c.15-18), para enfatizar as bordaduras em quiálteras sobre nota Lá2, reiterando a dominante de Ré menorque finaliza o trecho (Exemplo 9).


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Exemplo 9: Utilização de rubato com ênfase sobre a dominante de Ré menor (c.15-18) na Habanera de Salvador Amato.

    1. Harmônicos naturais


      Harmônicos do segundo e terceiro parciais da série harmônica são usados na Sonatina na Corda I do contrabaixo (Sol3 e Re3) (Exemplo 10), confirmando a intenção do professor de que seus alunos conhecessem as possibilidades de harmônicos nos diversos re- gistros do instrumento: no registro médio sem a utilização de capo tasto,8 e no registro agu- do, com a utilização de capo tasto.


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      Exemplo 10: Harmônicos naturais na Corda I do contrabaixo na Sonatina de Salvador Amato: Sol3 (c.40) no registro médio sem necessidade de capo tasto, e o Ré3 (c.60-61) com utilização de capo tasto.


      Em Malambo, Amato utiliza os harmônicos naturais Sol4, Si4, Ré4 e Sol5 do contra- baixo em arpejo na região super-aguda, já fora do espelho, próximo do cavalete (Exemplo 11), para emular um chamado típico dos pampas argentinos. JUEZ (2012) diz que sua intenção é imitar “... o som de um Clarín9 (corneta) no deserto, pois é o efeito Amato queria alcançar”.


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      Exemplo 11: Harmônicos naturais Sol4, Si4,4 e Sol5 (c.1-3) na região super-aguda do contrabaixo, emulando o som de um Clarín (corneta) no deserto dos pampas argentinos em Malambo de Salvador Amato.


    2. Pizzicati


      Encontramos três tipos de pizzicatto nas obras do nosso compositor-contrabaixis- ta: o pizzicato tradicional, o pizzicato de mão esquerda e o pizzicato em cordas duplas. Na Habanera, Amato alterna notas em cordas soltas e presas nos registros médio e grave do contrabaixo buscando a escrita característica de acompanhamento do instrumento em que há grande reverberação (Exemplo 12).


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      Exemplo 12: Pizzicato típico de acompanhamento nos registros grave e médio do contrabaixo (c.52-53) na

      Habanera de Salvador Amato.


      Na Sonatina¸ Amato recorre ao pizzicatto de mão esquerda, mas o faz de maneira sofisticada, solicitando uma alternância entre arco e pizzicato. Apesar de parecer uma téc-

      nica de difícil coordenação, a escrita se torna bastante idiomática pelo fato de permitir um

      pull off da nota presa Dó3 para a nota Sol2 em corda solta (Exemplo 13).


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      Exemplo 13: Alternância de arco e pizzicato de mão esquerda em pull off no contrabaixo (c.118-120) na

      Sonatina de Salvador Amato.


      A escrita de Carnavalito, para contrabaixo e piano, foi influenciada por outra obra, o Carnavalito Humahuaqueño do compositor argentino Edmundo Zaldivar (1917-1978) que, por sua vez, teve como referência o carnaval de Humahuaca, realizado 40 dias antes da Páscoa, na província de Jujuy, Argentina. Para realizar o trecho em cantabile que se inicia no c.158, Amato recorre à grande reverberação do pizzicato no registro médio e grave do contrabaixo, o que é ampliado pelo emprego de cordas duplas e triplas sem o acompanha- mento do piano, com os tempos fortes marcados por acordes arpejados, realizados com a técnica do rasgueado do violão (Exemplo 14). Embora essa técnica virtuosística seja mais comum na família do violino, Bertram TURETZKY (1974, p. 5), que a denomina pizzicato lírico, reconhece seu desenvolvimento no contrabaixo no ambiente da música popular.


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      Exemplo 14: Trecho em “pizzicatolírico” no contrabaixo sem acompanhamento no Carnavalito (c.158-164) de Salvador Amato.


    3. Cordas duplas em arco


      Amato utiliza cordas duplas em arco no Carnavalito em bicordes de terças e quar- tas justas para adensar a textura e reforçar a harmonia do piano no registro médio do con- trabaixo. As cordas duplas nesta peça tem função programática, pois lembram o charango10, instrumento de cordas dedilhadas típico da instrumentação do gênero carnavalito. Tocado com a técnica do rasgueado, o charango também utiliza cordas duplas ou triplas (Exemplo 15; deve-se observar que a parte do contrabaixo nesse manuscrito está escrita em som real)


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      Exemplo 15: Cordas duplas no registro médio contrabaixo (notadas em som real) no Carnavalito (c.9-14) de Salvador Amato.

      No Mov.1, Andante, da Fantasia Concertante, encontramos cordas duplas nos re- gistros médio e agudo do contrabaixo. Em relação às fôrmas de mão esquerda, Amato usa a fôrma fixa com os dedos 1 (dedo indicador) e 2 (dedo médio) para realizar e terças maio- res seguidas, o que permite uma realização mais rápida, como no trecho do c.37, no registro médio (Exemplo 16).


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      Exemplo 16: Cordas duplas no registro médio do contrabaixo com fôrma fixa de terça maior (c.37-38) no Mov.1

      Andante da Fantasia Concertante de Salvador Amato.


      Depois, no Mov.2 Adagio da Fantasia Concertante, ele inclui no registro agudo os intervalos de sexta maior e sexta menor (Re3-Si3 e Re3-Sib3), recorrendo às fôrmas de capo tasto, sempre com o dedo polegar na nota mais grave, Ré3. Inclui também os intervalos de 4ª justa Re3-Sol3 (c.70) e de 5º justa Re3-Lá3 (c.72), como mostra o Exemplo 17. O andamen- to lento (Adagio) escolhido por Amato permite uma realização mais expressiva dessas cor- das duplas. Já no Mov.3 da Fantasia Concertante, Allegro, Amato utiliza a mesma nota pedal estática, Ré3, como base para as cordas duplas. Aqui, o andamento sugere uma realização mais rítmica e virtuosística, o que facilita a acentuação binária dentro da métrica ternária (Exemplo 18).


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      Exemplo 17: Cordas duplas no registro agudo do contrabaixo com fôrmas de capo tasto, (c.70-72) no Mov.2, Adagio, da Fantasia Concertante de Salvador Amato.


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      Exemplo 18: Cordas duplas no registro agudo do contrabaixo sem mudança de posição da mão esquerda e com nota pedal no polegar (c.161-163) no Mov.3, Allegro, da Fantasia Concertante de Salvador Amato.


    4. Técnicas estendidas


Além de se preocupar com o ensino da técnica e estética tradicionais do contra- baixo, Amato fez incursões em técnicas estendidas do instrumento, procurando conhe- cer outras possibilidades do seu instrumento, como na peça Malambo. JUEZ (2012) afirma que, nos c.175-186 dessa peça, o contrabaixista “...tem que imitar um bombo criollo,11 to- cando sozinho, batendo no instrumento com os dedos e as mãos...” Amato deixa um trecho de 12 compassos ad libitum para livre improvisação (Exemplo 19), embora sugira preen-

cher a métrica ternária do gênero malambo com a alternância de compassos com colcheias ou semínimas. A utilização do contrabaixo percutido com as mãos remete ao cenário des- sa dança folclórica da Argentina, simulando o típico acompanhamento da dança por pal- mas, cujas origens remontam a uma tradição do bombo afro-peruano (BUGALLO, 2009). Alternativamente, o contrabaixista pode também deixar o arco de lado e realizar o trecho com palmas.


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Exemplo 19: Trecho de livre improvisação ad libitum sugerindo percussão das mãos no contrabaixo em Malambo

(c.175-186) de Salvador Amato.


Salvador Amato como instrumentista e pedagogo levava em consideração não ape- nas o contexto musical no qual se inspirou, mas também a interação com o público. Em Malambo, eleutiliza outra técnica estendida que se consolidou na literatura do contrabaixo: a utilização da voz cantada ou falada do contrabaixista (TURETZKY, 1974, p. 44). No c.232 (Exemplo 6), há uma pausa geral com a indicação vuota (“silêncio” em italiano). Apesar de não haver uma indicação no manuscrito original, Norberto JUEZ (2012), aluno de Amato que conviveu de perto com suas performances, nos fala de uma tradição no gênero de uma interrupção instrumental súbita (como nos breaks de música popular), sugerindo que “...o contrabaixista tem que gritar a palavra “aura!” (“agora!”)...”, palavra frequentemente gritada pelos gaúchos dos pampas ao dançar o malambo.


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Exemplo 20: Notação de silêncio (“vuota”) em Malambo (c.232) de Salvador Amato, durante o qual o contrabaixista deve gritar a palavra “Aura!” (“Agora”), prática típica dos dançarinos do gênero argentino malambo.

Conclusão


Este trabalho apresentou exemplos da escrita idiomática de Salvador Amato nas suas seis peças para contrabaixo, revelando práticas de performance integradas ao seu pro- jeto pedagógico e à cultura de seu país. Amato explora os diversos registros do contrabaixo (grave, médio, agudo e super-agudo) de maneira expressiva, virtuosística ou, mesmo, como instrumento de acompanhamento. Utiliza os harmônicos naturais de maneira programáti- ca, imitando o clarim (Malambo) ou apenas didaticamente (Sonatina). Ele emprega diversos tipos de arcada de natureza virtuosística na região aguda do instrumento, pouco comuns no contrabaixo (ricochet-bariolage, saltellato, piquetato), em metade de suas obras com pia- no (Fantasia Concertante, Variaciones Rapsódicas, Sonatina) o que confirma uma estética ligada ao Romantismo. Com o pizzicatto, Amato valoriza o timbre e reverberação associadas ao contrabaixo popular na função de acompanhamento (Habanera), deixa o cantabile com contrabaixo sem piano ao arpejar cordas duplas e triplas no pizzicato lírico (Carnavalito) e alterna os timbres do arco e pizzicato com a técnica de pizzicatto de mão esquerda associa- da ao pull off sobre a corda solta (Sonatina). Na escrita para cordas duplas em arco, Amato se preocupa com as dificuldades de mudanças de posição da mão esquerda e, assim, facili- ta a passagem com fôrmas fixas em sequências. Por outro lado, nas cordas duplas em capo tasto, escreve a nota mais grave como nota pedal, para evitar mudanças de posição para a mão esquerda, ao mesmo tempo em que permite mais expressividade no andamento mais lento. Apesar de sua escrita marcadamente tradicional e estética romântica, em Malambo, Amato se envereda por técnicas mais comuns à estética do contrabaixo pós-1950, como a utilização do contrabaixo como instrumento de percussão – imitando o bombo afro-perua- no – e a utilização da voz do contrabaixista para emular os gritos dos dançarinos do gênero argentino malambo.

O processo de ensino estabelecido pelo compositor, contrabaixista e pedagogo Salvador Amato na Universidad Nacional de Cuyo, reflete uma ação contínua, sistemática e integrada, buscando dar a seus alunos uma resposta imediata à carência de literatura musi- cal (repertório de concerto, estudos e métodos) na Argentina. A análise da escrita idiomáti- ca de suas obras revela uma abordagem que visa mostrar, didaticamente, uma variedade de técnicas e recursos expressivos do contrabaixo.


Notas


1 Neste estudo, os registros do contrabaixo são classificados da seguinte maneira (considere o Dó central do piano como Dó3): registro grave (Mi1 Sol2); registro médio (Sol2 3); registro agudo (Lá3 Sol4); registro super-agudo (Sol4 – até o cavalete).

2 O termo ricochet é uma arcada em que o arco salta utilizando o impulso de ricochetear da corda para iniciar a produção sonora de outras notas (SALLES, 1998, p. 94; BOYDEN e WALLS, 2014); nesse caso de Amato, duas notas para cada ricochet.

3 O termo francês bariolage, que tem vários significados na literatura (DOURADO, 2004, p. 43; OXFORD MUSIC ONLINE, 2014), literalmente significa “estanha mistura de cores”, mas implica sempre na execução de notas em cordas adjacentes, geralmente em arcadas ligadas. O termo é utilizado aqui porque a intenção de Amato era criar um efeito em que as quatro notas da cada grupo de colcheias se misturassem em um único gesto (FERREYRA, 2013).

4 O saltellato é uma arcada com o movimento de rebote do arco na corda em uma velocidade rápida. Pode ser des- crito também como “um spiccato sem controle” (HUGILL, 2004).

5 O piquetato é uma sucessão de pequenos golpes de arco na corda, executados na mesma direção. Atualmente, essa arcada é mais conhecida como staccato (SALLES, 1998, p. 35).

6 Para CLIFFORD (1911, p. 133), o portamento, termo derivado de portamento della voce (ou seja, “transporte da voz”), apareceu como uma prática vocal do século VII, mas que foi emulada pela família do violino e por outros

instrumentos de sopro. No presente artigo, ele se refere a um deslizamento discreto entre duas notas, às vezes com o sentido de antecipar a nota-alvo. Já o glissando, que também é um deslizamento entre duas notas, implica em uma evidência maior dos sons intermediários entre essas notas (CLIFFORD, 1911, p. 74).

7 Para CLIFFORD (1911, p. 148) o termo rubato (“roubado” em italiano) significa acelerar ou desacelerar ligeira- mente o andamento em uma peça pelo solista ou maestro.

8 Capo tasto é a técnica geralmente utilizada no violoncelo e contrabaixo em que o polegar da mão esquerda sai de sua posição atrás do braço do instrumento para apertar e tocar a corda sobre o espelho do instrumento.

9 O clarim é um instrumento de sopro com bocal em forma de taça, tendo o tubo um pouco mais estreito que o da corneta de pistões, e que produz um timbre mais claro e brilhante (SADIE, 1994, p. 200).

10 O charango é um instrumento de cordas dedilhadas de origem peruana, dos índios quíchuas, cuja caixa de res- sonância é feita com a carapaça do tatu (SADIE, 1994, p. 187).

11 O bombo criollo, ou tambor crioulo, é um membranofone popular no folclore argentino, originário da província de Santiago del Estero. De práticas de performance geralmente intensas, seria ouvido, supostamente, até mesmo a uma légua de distância (BUGALLO, 2009).


Referências


ARANCIBIA, Omar. La Música de um pedagogo y Compositor: Salvador Amato. “Variaciones Rapsódicas”. Mendoza, Argentina: Edição do Autor, 2006.

. Entrevista de Omar Arancibia a Rodrigo Olivárez. Mendoza, Argentina. Fevereiro, 2012.

Aura. Glosario, Proyecto Biblioteca Digital Argentina. Grupo Clarín. Disponível em: http:// www.biblioteca.clarin.com/pbda/glosario.htm. (Acesso em 10 de abril de 2013)

BORÉM, Fausto. Por uma unidade e diversidade da pedagogia da performance. Revista da Abem. Porto Alegre, Brasil. 2006. p. 45-54.

. Um sistema sensório-motor de controle da afinação no contrabaixo: contribuições in- terdisciplinares do tato e da visão na performance musical. Tese de Pós-doutorado ed. Belo Horizonte: UFMG, 2011. v.1. 187p.

BOYDEN, David D.; WALLS, Peter. Bariolage. In: Grove Music Online. Oxford Music Online. Oxford University Press. Disponívelem: http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/gro- ve/music/02060?q=bariolage&search=quick&pos=1&_start=1#firsthit (Acessoem14 de maio, 2014)

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Referências de partituras


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Rodrigo Olivárez - Mestrandoem Música na UFMG, é Bacharel em Contrabaixo pela Universidad Nacional de Cuyo, Argentina. Apresentou comunicações de pesquisa sobre as edições de performance das Lições para contrabaixo de Lino Jozé Nunes em congresso sinternacionais (IV Simpósio Internacional de Musicologia da UFRJ, 2013; Inter- national Society of Bassists Convention, Eastman School of Music, EUA, 2013) e sobre a música de câmara do com- positor polonês Walerian Gniot (22º Congresso da ANPPOM, João Pessoa, 2012). Atualmente, desenvolve pesquisa sobre a obra do compositor argentino Salvador Amato (incluindo as edições de performance de sua obra completa).


Fausto Borém - Professor Titular da UFMG, ondecriou o Mestrado em Música e a revista Per Musi (Qualis A1 na CAPES e indexada no SciELO). Como solista no contrabaixo, tem representado o Brasil nos principais eventos internacionais de contrabaixo (Berlim, Paris, Londres, Edimburgo e diversas universidades nos EUA), nos quai- sapresentasuascomposições, arranjos e transcrições. É autor de dezenas de artigos sobre práticas de performance na música erudita e popular. É pesquisador do CNPq e coordena o grupo de pesquisa interdisciplinar ECAPMUS (EstudosemComportamento e Aprendizagem Motora na Performance Musical).

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