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Artigos Científicos

Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 269p., n.2, 2014

O Contrabaixo: um Instrumento Musical do Nosso Tempo


Bertram Turetzky (Univ. of California at San Diego; Univ. of California at La Jolla,

San Diego, California, EUA)

bturetzky@pacbell.net

Tradução de Fausto Borém (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG)

faustoborem@gmail.com


Resumo: Estudo panorâmico sobre práticas composicionais e de performance do contrabaixo observadas no repertó- rio pós-1950, especialmente de compositores norte-americanos que trabalharam na escrita idiomática como contra- baixista norte-americano Bertram Turetzky. São discutidas a realização de técnicas de pizzicato, procedimentos de timbre, harmônicos naturais e artificiais, scordartura, surdina e sons vocais, exemplificadas com trechos relevantes do repertório.

Keywords: Escrita idiomática para o contrabaixo; Repertório do contrabaixo; Música do século XX.


The Contrabass: a Musical Instrument for our Time

Abstract: Panoramic study about compositional and performance practices of the double bass observed in the post- 1950 repertory especially that by North-American composers who worked idiomatic writing with North-Ameri- can double bassist Bertram Turetzky. Several technics, such as pizzicato, timber procedures, natural and artifi- cial harmonics, scordatura, mute and vocal sounds are discussed and exemplified with excerpts from the relevant repertory.

Keywords: Idiomatic writing for the double bass; Double bass repertory; Twentieth-century music.


“Turetzky, como um desbravador e sua infatigável energia e expertise, converteu o contrabaixo de instrumento “orquestral” para um importante instrumento solista.” Mario DAVIDOVSKY (s.d.)


  1. Introdução do tradutor


    Conhecido hoje octogenário Bertram Turetzky (n.1933), Professor Emérito da Univeristy of California - San Diego (UNIVERISTY OF CALIFORNIA AT SAN DIEGO, 2014) há quase duas décadas e meia, por meio de carta manuscrita de 1989, em sua resposta ao primeiro artigo que publiquei no periódico Bass World (da International Society of Bassists). Ali, seu espírito sempre jovial e instigante já me surpreendia ao utilizar canetas de quatro cores, uma para cada parágrafo. Mais de dez anos depois, me enviou outra carta, também colorida (Exemplo 1), na qual falava, sobre o tom “...engajado, que é bom/honesto e neces- sário (eu acho...)...” (TURETZKY e BORÉM, 2000), do artigo que defendia, técnica e musi- calmente, uma nova visão sobre o contrabaixo, artigo que me entregaria para ser traduzido para o português, após ter vindo ao Brasil em 2000.



    Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 269p., n.2, 2014 Recebido em: 17/03/2014 - Aprovado em: 55/04/2014

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    Exemplo 1: Trecho da carta manuscrita colorida de Bertram Turetzky a Fausto Borém, na qual se refere ao “tom engajado” do presente artigo, em defesa de uma nova visão sobre o contrabaixo.


    Em 2000, Bert participou do 5º EINCO (Encontro Internacional de Contrabaixistas), promovido pela Escola de Música da UFG (Universidade Federal de Goiás),sob coordenação da Profa. Sônia Ray em Goiânia (RAY, 2000), quando ministrou máster classes e se apre- sentou em recital com sua esposa e flautista Nancy Turetzky (veja,nesse volume de Música Hodie, artigo sobre a obra Nancy para contrabaixo solo de Bertram Turetzky). Comigo, Bert (TURETZKY, 1982) deixou um “manuscrito” datilografado com anotações a lápis e cane- ta (Exemplo 2), que é aqui finalmente traduzido, ainda de seu período como professor na Univeristy of Californiaat La Jolla,. Esse texto reflete o espírito de seu livro seminal The Conteporary contrabass (1974, 1989), publicado pela The University of California Press.


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    Exemplo 2: Trecho do “manuscrito” do presente artigo, datilografado por Bertram Turetzky e com acréscimos a lápis de próprio punho.

    A ideia de Bert de escrever um livro de referência sobre a escrita idiomática con- trabaixo foi um desenrolar natural de sua iniciativa de investir na relação compositor-in- térprete para a criação, no século XX,de um repertório mais idiomático para o contrabai- xo. Como resultado, mais de 300 obras foram escritas para ele, muitas das quais podem ser escutadas com o próprio Turetzky em gravações pelos selos Advance, Ars Nova, Desto, Finnadar, Folkways, Medea, Nonesuch, Takoma, CRI, Serenus e Nine Winds (TUREZTKY e DUFFIN, 1992). A iniciativa editorial de Bert logo se ampliou para cinco outros instrumen- tos (trombone, flauta, clarineta, violão e harpa) na série The New instrumentation series, que teve como objetivo atualizar os métodos de orquestração em relação às técnicas contempo- râneas, série que foi editada pelo próprio Turetzky em parceria como compositor e profes- sor Barney Childs [1926-2000]. Apesar de terem se passado mais de 25 anos, o conteúdo do presente artigo se mantem atualizado em sua quase totalidade e ainda surpreenderá contra- baixistas e demais instrumentistas, maestros e, principalmente, seu principal público alvo, os compositores. Sempre elegante e modesto, mas aguerrido, Bert evitou incluir, no presen- te artigo, exemplos da escrita da idiomática a partir de suas próprias composições, embora tenha criado um importante conjunto de obras, algumas premiadas pela ASCAP (American Society of Composers, Authors and Publishers).


  2. Introdução


    O contrabaixo, instrumento nobre, mas mal compreendido, é o mais versátil ins- trumento de cordas friccionadas da cultura ocidental. Sua tessitura vai do Dó1 até os har- mônicos artificiais no registro da flauta piccolo, e, mesmo, além disso. Não há instrumen- tos de corda em nossa cultura com um espectro sonoro tão rico. O espectro de intensidades desse enorme instrumento é comparável ao de toda a família do violino e seu potencial de timbres é superior ao do violino, viola e violoncelo. Essa última afirmativa pode soar como uma bravata, mas, caro leitor, por favor, suspenda sua descrença à medida que essa breve introdução dá lugar ao universo único do contrabaixo e, espero, dissipe qualquer sombra de dúvidas. Há ainda outro elemento que deve ser acrescentado: o fato de a maioria dos con- trabaixistas solistas renomados geralmente terem uma atitude experimental e aberta em re- lação à criação de um novo repertório, às técnicas estendidas e [às estéticas da] música do nosso tempo. Atitude essa que não acontece com [a maioria dos] violinistas, violistas e ce- listas. As informações técnicas que se seguem são derivadas de minha experiência com o contrabaixo de tamanho ¾ encordoado com cordas de aço e não se aplicam a instrumentos de dimensões maiores, ou instrumentos com cordas de tripa.

    A “herança” do contrabaixo que tem se consistido de transcrições, peças rasas [de conteúdo] ou de obras de virtuosidade barata de “contrabaixistas-compositores” e algumas “pedras preciosas” ocasionais não podem ser comparadas, a rigor, com a riqueza, diversi- dade e variedade do repertório do violino ou do violoncelo. Assim, o conhecimento de pri- meira categoria sobre o contrabaixo que leva a uma cidadania artística, social e psicológica só se consolida com um repertório que pode ser levado em consideração pelos melômanos, musicistas em geral e contrabaixistas, e que tem motivado mesmo os mais conservadores em relação à musica de nosso tempo.

    Meu longo e persistente trabalho, desde a década de 1950, em direção à uma expan- são e desenvolvimento de técnicas de performance do contrabaixo, do seu espectro sonoro e desenvolvimento de sua literatura foi resultado da minha não aceitação do meu instru- mento ser considerado um instrumento desajeitado, um primo pobre do violoncelo. Eu que- ria tocar o instrumento com sua individualidade e personalidade sonora e não ser obrigado

    a imitar outro instrumento cujo “ideal de som” estava firmemente enraizado na estética do século XIX. Para romper com o cordão umbilical do violoncelo, me voltei para o universo sonoro do oriente, do jazz e de outros instrumentos dedilhados.


  3. Pizzicato


    O ponto inicial de minha busca foi uma reavaliação das técnicas de pizzicato, trata- do como uma terra árida na música erudita. O pizzicato tem mais de um século de tradição no jazz, cujo ápice considero bem perceptível na interpretação de Scott La Faro [1936-1961] que [com os dedos da mão direita, sem arco] parecia colocar o instrumento em “órbita”. Com ele, a tradicional técnica de pizzicato utilizando apenas um ou dois dedos evoluiu para uma técnica que empregava 4 ou 5 dedos com a velocidade de um guitarrista. Conceitualmente, isso acarretou mudanças enormes. Mas me preocupavam outras questões que não envol- viam agilidade, precisão e velocidade.

    Minha direção não foi escolhida em função de velocidade, mas sim, de novas ma- neiras de abordar a cor, o timbre no contrabaixo. Minhas próprias experiências com a técni- ca de pizzicato do jazz me levaram ao pizzicato tremolo, que é reminiscente dos instrumen- tos tocados com plectro, como o oud, o bazzoki e a guitarra flamenca. A primeira ocorrência desta técnica se deu no Concerto for doublé bass alone (1961) escrito para mim por Charles Wuorinen [n.1938]. A partir daí, a técnica do pizzicato tremolo se emancipou na literatu- ra. No seu Ricercar à 3 (1967, publicada em 1973), para contrabaixo solista e fita magnética com duas outras vozes, Robert Erickson [1917-1997] utiliza colorística e massivamente essa técnica, seja em passagens líricas e expressivas (Exemplo 3), seja conbravura (Exemplo 4).


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    Exemplo 3: Pizzicato tremolo enérgico e virtuosístico em Ricercar à 3, para contrabaixo e fita magnética, de Robert Erickson, [citado em TURETZKY, 1987, p. 22; copyright © University of California Press].


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    Exemplo 4: Pizzicato tremolo enérgico em Ricercar à 3, para contrabaixo e fita magnética, de Robert Erickson, [citado em TURETZKY, 1987, p. 23; copyright © University of California Press].

    Outra técnica de pizzicato aparece no final da década de 1950 com a utilização do polegar (ao invés dos outros dedos), à maneira de um plectro aumentado, numa tentativa de emular dois dos meus principais heróis da performance musical: o violonista Andrés Segovia [1893-1987] e o alaudista Joseph Iadone [1915-2004; Iadone também tocou o contra- baixo acústico]. O som escuro e cheio que chamei de pizzicato a la guitarra (ou pizz. guitar- ra) permitia uma escrita lírica e sustentada. A primeira utilização significativa dessa téc- nica ocorreu na Monody N.2 for solo doublé bass de George Perle [1915-2009], mostrado no Exemplo 5.


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    Exemplo 5: Pizzicato lírico com utilização do polegar da mão direita “a lachitarra” em Monody N.2 for solo double bass de George Perle [citado em TURETZKY, 1987, p. 16; copyright © Theodore Presser].


    A utilização de registros [como ocorre no órgão de tubos] no pizzicato, assim como no arco, se tornou parte corriqueira nas minhas demonstrações no final da década de 1950 e rapidamente apareceu no [novo] repertório. Richard Felciano [n.1930], por exemplo, uti- liza criativamente os timbres do contrabaixo no duo para flauta (contralto e piccolo) e con- trabaixo intitulado Spectra (1966) [no qual passa de sul tasto para ponticello duas vezes em seguida], como mostra o Exemplo 6.


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    Exemplo 6: Pizzicato com mudança de timbre (sul tasto para ponticello) em Spectra de Richard Felciano [citado em TURETZKY, 1987, p. 30; copyright © E. C. Schirmer].


    O primeiro compositor a solicitar uma diferenciação entre o pizzicato nonespressi- vo e pizzicato espressivo foi Barney Childs [1926-2000] na Sonata for bass alone (1960). No início do segundo movimento, o compositor indica “pizzicato sempre, swing easy” signifi- cando um som escuro, cheio, sem vibrato e direcionalmente para frente [“with drive”]. Na seção central, Childs solicita que o pizzicato seja “legit legato” (“realmente ligado”). Essa preocupação com uma escrita lírica do pizzicato, visionária em 1960, ainda continua até os dias de hoje. Childs abriu uma vertente que merece investigação continuada.

    Thomas Fredrickson [n.1928], em Music for the doublé bass alone (1963, publicada em 1969), explora extensivamente as possibilidades das técnicas do pizzicato. Além de tre- chos rápidos à maneira do jazz [como no bebop], há cordas duplas e triplas em pizzicato, pi- zzicati ligado, pizzicati glissando e pizzicati tremolo. Mas o tour de force nessa obra é o em- parelhamento de duas linhas simultâneas: uma linha melódica, tocada pela mão esquerda sozinha, acompanhada por um pedal em tremolo de pizzicato (Exemplo 7), resultando em uma textura a duas vozes que soa semelhante ao som da cítara e da tambura (ou tampura) combinados. A realização da linha da mão esquerda exige uma articulação enérgica dos de- dos sobre o espelho do contrabaixo chamada de fingerslap [também conhecida como ham- meron], que resulta em uma sonoridade que combina os sons do pizzicato e da percussão.

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    Exemplo 7: Tremolo de pizzicato e hammeron de mão esquerda simultâneos em Music for the doublé bass alone

    de Thomas Fredrickson [citado em TURETZKY, 1987, p. 23; copyright © University of California Press].


    Mas devemos a Robert Erickson a introdução dessa técnica na literatura do contra- baixo em completa fruição. A reunião do pizzicato do violão, do pizzicato tremolo, do pi- zzicato glissando e do pizzicato de mão esquerda forma um conjunto de técnicas que ocu- pa, e ocupará mais ainda no futuro, um dos aspectos essenciais do potencial idiomático do contrabaixo.


  4. Timbre


Quando se pensa em técnicas estendidas, o século XX nos vem à cabeça e, mais ainda, as tendências da assim chamada avant garde. Prezado leitor, não existe essa coisa chamada avant garde. As pessoas de hoje estão simplesmente 75 anos atrasadas no tempo. O padrão é se ouvir e se falar sobre a música do século anterior, numa distorção que é um factual, e não apenas minha opinião. A ideia de que timbre se tornou um importante parâ- metro musical devido aos experimentos do século XX é um mito que resiste aos resultados da pesquisa histórica. O estudo da música ocidental revela que compositores e perfórmeres se preocupavam como a questão do timbre desde os tempos mais antigos. Por exemplo, na Regolarubertina (1542-1543) de Sylvestro de Ganassi [1492-meados do séc. XVI], o primeiro método impresso para viola, podemos ver uma explicação sobre registração [como na mu- dança de timbres do órgão de tubos]. Ele nos diz que tocar sul tasto produzirá efeitos tristes e que a região perto do cavalete, ou seja, sul ponticello, deve ser utilizada para sonoridades mais fortes e duras. Diz também que a região media entre o cavalete e o final do espelho é recomendada para a performance normal, o que ainda continua válido nos dias de hoje, a menos que instrumentistas de cordas insensíveis ou sem formação adequada toquem sem- pre em sul tasto ou sul ponticello!

Há evidências históricas para afirmarmos que a técnica das violas da gamba, com sua rica paleta de timbres e seus “truques de cartas na manga” foram herdadas pela famí- lia do violino no que seria a “nova” técnica. Por exemplo, no Capriccio stravagante N.27 de Carlo Farina [1600-1639], glissandi, collegno e sul ponticello são empregados para represen- tar o latir de cachorros, o miado de gatos e o cantar de galos! A expressão Collegnobattuto apareceu pela primeira vez na música impressa em 1605 com a publicação do [Harke, harke; que faz parte do] Musicall humors [obra também chamada de First pair of ayres] de Tobias Hume [1569?-1645]. Assim, essa prática de performance, desprezada pela maioria dos ins- trumentistas de cordas vivos, não é uma invenção do “diabólico século XX”, mas uma téc- nica que precedeu a aceitação universal da família do violino.

A monumental transformação do piano por Henry Cowell [1897-1965] e John Cage [1902-1992], em um instrumento de produção sonora que vaia desde um gamelão até uma

etérea arpa céltica tem um paralelo com a utilização dos instrumentos de cordas como se fossem instrumentos de percussão. As mãos, enquanto mais prático gerador de som, apre- senta pelo menos cinco pontos anatômicos para tocar: nós dos dedos, pontas dos dedos, unhas, palmas e mão em copo, produzindo, assim, cinco timbres diferentes. Esse cinco pontos podem ser empregados para rap, tamborilar ou bater no braço, tampo, fundo, fai- xas, cavalete, voluta, estandarte ou espelho. As combinações entre essas possibilidades, assim como as numerosas permutações disponíveis quando se usa as duas mãos, dá aos compositores tremendas possibilidades.Entretanto, eu e diversos colegas com instrumen- tos históricos com pedgree somos cuidadosos em relação a tamborilar, bater ou raspar o corpo do contrabaixo. Consideramos uma blasfêmia utilizar baquetas ou o próprio arco para bater em qualquer parte de instrumentos raros e frágeis, exceto em partes [mais re- sistentes] como a voluta ou o estandarte. Mas as técnicas percussivas certamente funcio- nam bem nos contrabaixos modernos, mais saudáveis. Lou Harrison [1917-2003] sintetizou minha posição sobre tocar percussivamente os instrumentos que não são de percussão na nota introdutória de sua Suite for symphonic strings (1961): “Acho que qualquer som que possa ser gerado por um instrumento musical é legítimo, desde eu o método não danifique o instrumento”.


5. Harmônicos naturais e artificiais


Os harmônicos do contrabaixo são esplêndidos [quando comparados aos harmôni- cos das outras cordas orquestrais] devido ao comprimento de corda e a reverberação típicos do instrumento. Eles são um tópico favorito nas minhas palestras e ainda se revelam como um aspecto problemático da moderna performance no contrabaixo.Devo observar que qual- quer harmônico natural pode ser “aquecido” com vibrato, ser tocado com crescendo ou di- minuendo, e praticamente incluir todos os outros processos e técnicas que adicionam ex- pressividade à realização musical. Não há razão para se tocar harmônicos naturais sempre dentro da tradição, ainda pouco desafiada, de “som branco”, com sua uma sonoridade mor- ta! Mas Vincent Persichetti [1915-1987] o faz, ao concluir sua Parable XVIII (Exemplo 8), para contrabaixo sem acompanhamento (1975) de uma maneira enfática ao demandar con- traste nos harmônicos naturais: um trecho expressivo, com vibrato, seguido de uma frase curta que deve ser tocada com “som branco” (white sound). O resultado é bastante efetivo para uma conclusão emocionante dessa que é uma das obras mais importantes para o con- trabaixo sem acompanhamento.


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Exemplo 8: Harmônicos naturais no contrabaixo com vibrato e sem vibrato (“whitetone” ou “som branco”) [citado em TURETZKY, 1987, p. 129; copyright © Elkan-Vogel].

Em 1960, descobri como produzir um conjunto de 8 harmônicos transversalmente às cordas do contrabaixo, ao invés dos tradicionais 4. Ao puxar a corda lateralmente e dire- tamente no nodo do harmônico, pode-se subir a frequência da nota em microtons, um semi- tom ou mesmo, mais do que isso. Com a inovadora Monody II (1962), George Perle tornou-se o primeiro compositor a empregar “harmônicos puxados”. Uma utilização bastante evidente desta técnica pode ser apreciada na seção microtonal de Spectra (1966) para flauta piccolo e contrabaixo de Felciano.

A exequibilidade de harmônicos artificiais geralmente está relacionada com o com- primento de corda, a envergadura e comprimento de mão do instrumentista e o tempo de preparação antes da nota ser tocada. A adoção de cordas de aço facilitou muito a produção sonora dos harmônicos artificiais. Ao nos debruçarmos sobre a época das cordas de tripa, torna-se claro porque ambos Isaia Billè [1874-1961] (1922; 1953) e Franz Simandl [1840-1912] (1984,1987) sugerem que os harmônicos artificiais poderiam – ou deveriam – ser tocados apenas na Corda Sol, a corda mais fina. Hoje, com as cordas de aço e cavaletes mais baixos, os harmônicos artificiais tornam-se disponíveis em todas as cordas do contrabaixo.


  1. Scordatura


    O procedimento da scordatura tem sido idiomático no contrabaixo desde seu apare- cimento. Os contrabaixistas utilizando contrabaixos de apenas 3 cordas no século XVIII e início do século XIX mudavam a afinação de suas cordas de acordo com a obra a ser tocada, [obras de compositores que, muito mais que hoje, consideravam os efeitos de reverberação das cordas soltas] alternando entre Sol2-Ré2-Lá1, Lá2-Ré2-Sol1, Sol2-Ré2-Sol1 ou Lá2-Ré2-Lá1. O primeiro virtuoso do contrabaixo de renome internacional, Domenico Dragonetti (1763- 1846), era conhecido por ser um mestre da scordatura. Ajustes na afinação das cordas do contrabaixo eram demandados pelos compositores e instrumentistas não apenas para faci- litar o tocar em determinadas tonalidades, mas também porque buscavam projeção sonora e interpretações mais solísticas. Assim, os instrumentistas subiam a afinação do contrabai- xo um semitom ou um tom, ou mesmo, uma quarta justa acima, no caso de se utilizar cor- das de solo agudas) para se obter mais “definição” e, mesmo, um brilho semelhante ao do violoncelo.

    Essa tradição se mantem viva entre os editores europeus, compositores, pedagogos e toda a gama internacional de contrabaixistas comprometidos com a literatura solo dos sé- culos XVIII e XIX, tão fartamente disponível. Embora eu considere a importância dessa tra- dição de se tocar um instrumento grave como se fosse instrumento agudo [ou em regiões mais típicas dos instrumentos agudos], não mais a considero como a principal abordagem solística do contrabaixo.

    A scordatura foi utilizada pelos compositores do século XX principalmente de duas maneiras. O primeiro é o afrouxamento da corda Mi (também chamada de corda IV ou quarta corda) para que a corda solta soe como Mi bemol, Ré, Ré bemol ou Dó, esten- dendo, assim, seu registro mais grave. Entretanto, isso deve ser feito com cautela pois [de- pendendo do tipo de corda]o afrouxamento da corda Mi abaixo do Ré pode deixar a corda sem tensão suficiente e não soar bem. Uma solução para esse problema que tenho utiliza- do com eficácia, desde o início da década de 1960, é empregar, como quarta corda, uma corda Dó ao invés da corda Mi. Esse procedimento foi utilizado por Ralph Shapey [1921- 2002] na sua De Profundis (1960) e por Charles Wuorinen no seu Concerto for doublé bass alone (1961).

    O segundo procedimento ocorre quando o compositor deseja uma variedade maior de notas em harmônicos naturais no conjunto de harmônicos parciais das cordas do con- trabaixo [com o contrabaixo tradicionalmente afinado em 4ª justas, há a repetição de notas entre cordas adjacentes; por exemplo, a nota Ré aparece como o 2º e 5º parciais na corda Sol e como o 1º, 3º e 7º parciais na corda adjacente Ré]. Com esse propósito, George Crumb [n.1929] abaixa em um semitom a corda IV, para Mi bemol, no seu Book of madrigals (1965) para soprano, vibrafone e contrabaixo. Cage, por sua vez, emprega uma scordatura cam- biante ao longo da passagem indicada “solo for bass” no seu Concerto for piano and orches- tra (1957-1958). O faz também em outras peças, o que afeta a sonoridade do instrumento, uma vez que a pressão no cavalete muda constantemente, trazendo consigo um colorido mi- crotonal. Uma scordatura bastante interessante é solicitada por Alcides Lanza [n.1929] em Strobo I (1968). As duas cordas de cima são afinadas o mais agudo possível, enquanto que as duas cordas de baixo são afinadas o mais grave possível.

    Contrabaixistas de jazz na década de 1950 tinha amoda de afinar o contrabaixo de forma mais aguda – Dó3, Sol2, ré2, Lá1 – uma quarta justa acima da afinação tradicional. Esta prática teve sua origem, muito provavelmente, com o então popular “Chubby” Jackson [1918- 2003], para quem a Kay Company construiu alguns contrabaixos de cinco cordas, acrescen- tando o Dó3 agudo ao contrabaixo de quatro cordas. O nível de excelência e virtuosidade no registro agudo e a nova tendência dos compositores de expandirem os registros do ins- trumento diminuíram o entusiasmo desses experimentos e, hoje, pouco se tem ouvido falar sobre essas iniciativas.


  2. Surdina


    A maioria dos compositores tem noção de como querem que soe um instrumento com surdina. Mas será que estão atentos aos materiais com que as surdinas de contrabai- xo são feitas e como elas soam? Acho que, na verdade, poucos compositores se pergun- tam sobre isso. Como Arnold Franchetti [1911-1993], que demonstrou uma preferência pela surdina de bronze, a qual escutou em um grupo de câmara no final da década de 1950 e, posteriormente, a empregou no contrabaixo em diversas obras de câmara e para orquestra.

    De todos compositores que conheço, apenas um se mostrou conhecedor do po- tencial timbrístico das surdinas para contrabaixo. John Cage, no seu Concerto para pia- no e orquestra (1957-1958) solicita três tipos de surdina que possuam timbres diferentes. Entretanto, não especifica os tipos de material [ou nível de contraste entre eles]. Dada a importância do parâmetro timbre na música de hoje, seria muito desejável que os compo- sitores explorassem o potencial dos materiais com que as surdinas são fabricadas [metais como aço e bronze, madeiras como ébano ou jacarandá, borrachas de tamanhos e densida- des diversas].


  3. Sons vocais


O conceito de utilização do som vocal como um paradigma acoplado à técnica ins- trumental se tornou cada vez mais significativo e difundido a partir da década de 1960. A utilização desse procedimento se tornou inevitável devido: (1) à busca de novos sons pe- los compositores; (2) às novas relações de colaboração entre compositores e performers e

(3) à curiosidade e envolvimento dos instrumentistas como o potencial timbrístico do seu instrumento.

Uma afirmação reveladora e bem precisa sobre a raison d’être para se usar essas téc- nicas foi a de Donald Erb [1927-2008], que assim me escreveu:


A música é realizada pelo performer. Ela emana dele ao invés de vir do instrumento, sendo o instrumento apenas um veículo. Assim, parece lógico que qualquer som que o performer possa fazer, pode ser utilizado em uma composição.


Os sons vocais podem ser usados de diversas maneiras, incluindo (1) o solfejar ou o cantarolar ou o scatting em oitavas com o contrabaixo [que é um instrumento transpositor de uma oitava], (2) alturas vocalizadas para acrescentar peso, cor ou densidade aos sons do contrabaixo (3) sons da fala para acentuar, articular ou colorir sons instrumentais (4), sons vocais para acrescentar outra linha à linha do contrabaixo. O procedimento de cantar uma linha e tocar outra, diferente, vai além do especulativo [na linguagem tonal] em Automobile (1965) de Russell Peck [1945-2009] (Exemplo 9) ou [na linguagem modal] em Hyacinth de Christopher Rouse [n.1949] (Exemplo 10).


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Exemplo 9: Tocar o contrabaixo e cantarolar simultaneamente em linguagem tonal em Automobile de Russell Peck [citado em TURETZKY, 1987, p. 75; copyright © Russell Peck].


Exemplo 10: Tocar o contrabaixo e cantarolar simultaneamente em linguagem modal em Hyacinth de Christopher [citado em TURETZKY, 1987, p. 78; copyright © Christopher Rouse].


Há diversos outros exemplos de efetiva utilização dessa prática: Sonant (1960) de Mauricio Kagel [1931-2008], Pajazzo (1963) de Folke Rabe [n.1935], Double bass at twenty pa- ces (1968) de Pauline Oliveros [n.1932].

Alguns dos mais brilhantes e integrados efeitos dessa natureza podem ser encon- trados em Surrealist studies (1970) de Jon Deak [n.1943], como pode ser apreciado no es- tudo The twosisters, dedicado a Giorgio de Chirico, no qual o compositor especifica no- tas específicas com vogais e consoantes emitidas com som nasal, com voz de cabeça, sem melodia e com murmúrio. Deak chega mesmo a criar uma terceira linha em que o contra- baixo é tocado como instrumento de percussão, batendo ou esfregando a palma da mão no seu tampo], Exemplo 11. A mistura de sons com alturas determinadas ou indetermina- das tanto no contrabaixo quanto na voz abre um grande potencial para a imaginação dos compositores.

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Exemplo 11: The two sisters (Giorgio de Chirico), um dos movimentos do Surrealist studies (1970) de Jon Deak, com sons vocais diversos, simultâneos ao contrabaixo tocado com arco ou utilizado como instrumento de percussão [citado em TURETZKY, 1982, p. 11; copyright © Media Press].


A ideia de utilizar sons da fala, ou seja, incluindo palavras, tem se tornado cada vez mais popular. Dentro dessa tendência, um novo gênero que poderíamos chamar de peças de “talking/playing” (tocar-falar) inclui compositores como Elliot Schwartz [1936], Barney Childs, Boguslaw Schäffer e, citado acima, Jon Deak. Mas talvez o exemplo mais famoso nesse gênero seja Failing, a difficult piece for solo string bass (1975) de Tom Johnson [no qual recorre aos elementos do humor e do desafio, provocando uma intera- ção com a plateia que, invariavelmente ri. Sobre uma linha atonal gradualmente mais complicada do ponto de vista rítmico e melódico, ele solicita que o contrabaixista decla- me um texto falando das dificuldades que vai encontrando ao longo da peça e cuja in- tenção é desafiar que o contrabaixista chegue ao final da peça; veja Exemplo 12, no qual o contrabaixista deve recitar: “...cometendo erros na música. Pelo menos o compositor se sente confiante de que eu, eventualmente, terei problemas, e é por isso que a peça é cha- mada ‘Falhando’...”].


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Exemplo 12: Técnica de tocar e declamar simultaneamente na humorística peça Failing, a difficult piece for solo string bass de Tom Johnson [citado em TURETZKY, 1987, p. 91; copyright © Two-Eighteen Press].

Comentários finais


Após essa breve introdução ao nobre, mas pouco compreendido contrabaixo, es- pero que tenha ficado claro como a versatilidade do mesmo está sendo redescoberta hoje. Prezado leitor, compreenda que este é apenas uma minúscula parte do espectro sonoro des- se instrumento. Para encerrar, gostaria de apontar que todos os “prazeres sônicos” mencio- nados acima não passariam de mera curiosidade a não ser que funcionem como parte in- trínseca da música. Isso me lembra o comentário de Edgar VARÈSE (2014) quando alguns críticos o associaram a Marinetti, Russolo e os futuristas:


“Os futuristas acreditavam na reprodução literal dos sons; eu acredito na metamor- fose dos sons em música.”

“Soli deo Gloris”


Referências


BILLÈ, Isaia. Nuovo metodo per contrabasso. 7 volumes. Milão: Ricordi, 1922.

. Nuovo metodo per contrabasso. Parte 2. Milão: Ricordi, 1953. DAVIDOVSKY, Mario. Bertram Turetzky. Folder sem data. Del Mar, California, (s.d.).

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Bertram Turetzky - Professor Emérito da University of California - San Diego at La Jolla, foi um dos principais res- ponsáveis pelo renascimento do contrabaixo após a Segunda Guerra Mundial, enquanto um instrumento autôno- mo. Lançou discos como solista no contrabaixo pelos selos Advance, Ars Nova, Desto, Finnadar, Folways, Medea, Nonesuch e Takoma. Publicou o livro The Contemporary Contrabass (University of California Press, 1974/1987), referência internacional da moderna escrita idiomática do instrumento. Recebeu mais de 300 novas obras para contrabaixo devido ao seu trabalho junto a compositores dos EUA, França, Alemanha, Polônia, Austrália, México e Espanha. Como compositor, escreveu diversas obras para o contrabaixo solista sem acompanhamento.


Fausto Borém - Professor Titular da UFMG, onde criou o Mestrado em Música e a revista Per Musi (Qualis A1 na CAPES e indexada no SciELO). Como solista no contrabaixo, tem representado o Brasil nos principais eventos internacionais de contrabaixo (Berlim, Paris, Londres, Edimburgo e diversas universidades nos EUA), nos quais apresenta suas composições, arranjos e transcrições. É autor de dezenas de artigos sobre práticas de performan- ce na música erudita e popular. Traduziu e publicou artigos de teóricos como Nicholas Cook, Philip Tagg, Keith Swanwick, Murray Schafer com Victor Flusser, Daniel Leech-Wilkinson, Deborah Mawer, Katherine Williams, Sarah A. Etlinger, e de contrabaixistas como Stuart Sankey, Tobias Glöckler e Anthony Scelba.

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