A MOBILIZAÇÃO DE CONHECIMENTOS PRÁTICOS NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO: UM ESTUDO COM ESTAGIÁRIOS DE MÚSICA DA UFSM/RS E DA UDESC/SC

THE MOBILIZATION OF PRACTICAL KNOWLEDGE IN SUPERVISED TEACHING PRACTICE: A STUDY WITH STUDENT MUSIC TEACHERS FROM UFSM/RS AND UDESC/SC

Cláudia Ribeiro Bellochio - UFSM

claubell@terra.com.br

Viviane Beineke - UDESC

vivibk@gmail.com

Resumo: O trabalho apresenta alguns resultados da pesquisa desenvolvida interinstitucionalmente em Santa Maria/UFSM e Florianópolis/UDESC. O objetivo da pesquisa foi investigar os processos de construção do conhecimento prático de estagiários do curso de Licenciatura em Música. Para a coleta de dados foram realizadas observações, gravações em vídeo, entrevistas semiestruturadas e entrevistas de estimulação de recordação. Neste artigo apresentamos o perfil dos estagiários e os desafios vividos no processo de construção do conhecimento prático. A pesquisa conclui que, a partir das situações mais difíceis da docência, os estagiários ampliam seu repertório de recursos de ação pedagógica e o estágio cumpre a sua função formativa. Palavras-chave: Educação musical; Estágio supervisionado; Escola pública; Escola fundamental.

Abstract: This paper presents results of a research developed simultaneously at two Brazilian Universities: Federal University of Santa Maria (UFSM) and University of the State of Santa Catarina (UDESC). The aim was to investigate how Music Education student-teachers construct their practical knowledge. Data were collected through observations, video recordings, semistructured interviews and recall stimulation interviews. The paper focuses the profile of each student-teacher and the challenges they face in constructing their practical knowledge. Research findings indicate that it is through the most difficult teaching situations experienced by student-teachers that they can broaden their repertoire of pedagogical actions. In this sense, teaching practice accomplishes its formative function. Keywords: Music education; Teacher practice; Public school; Elementary school.

Introdução

cal: oito estudos de casos”, desenvolvida interinstitucionalmente em dois pólos: Santa Maria/UFSM1 e Florianópolis/UDESC.2 O objetivo central da tico de estagiários do curso de Licenciatura em Música, visando conhecer os pensamentos que conduzem suas ações pedagógicas na sala de aula. pante da pesquisa, visando conhecer sua trajetória de construção musical e profissional e um panorama sobre a realização de seu estágio na escola, destacando a situação da aula de música no contexto escolar e os desafios vividos no campo do estágio supervisionado.

1. O estágio supervisionado, o conhecimento prático e o estagiário: uma tríade da ação pedagógica

A discussão em torno do estágio supervisionado nas licenciaturas do Brasil e das implicações deste na vida acadêmica dos estagiários da educação tem sido ampliada nos últimos anos, destacando-se estudos e pesquisas na área de educação, como os de Kulcsar (1994); Pimenta e Lima (2004); Freitas et al (2005). A implementação de novas orientações para a mação de professores em cursos de licenciatura, mais especificamente, das Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores da Educação Básica (BRASIL, CNE/CP 2/2002) na qual o estágio passou a ser um componente fundamental na matriz curricular dos cursos de Licenciatura e teve sua carga horária ampliada para 400 horas.

Entendemos que as ações pedagógicas dos estagiários revelam-se no contexto da sala de aula, em um momento importante de sua formação des cotidianas de sala de aula. Dessa forma, no momento da ação docente/ prática educativa, o estagiário produz um tipo particular de conhecimento na prática e para a prática, denominado “conhecimento prático”, de modo CHECO (1995a; 1995b), este conhecimento difere da teoria pelo fato de possuir contornos próprios revestidos de especificidades demarcadas por fessores e alunos mediados por conhecimentos de diferentes naturezas. Certamente este conhecimento prático associa-se ao espaço de realização ção musical do estagiário.

Assim, o estágio supervisionado não pode ser tomado como uma te a formação inicial formal para a prática. Deve constituir-se como um dos momentos integrantes fundamentais do curso de formação de professores, integrado ao âmbito de todos os componentes curriculares e experiências já internalizadas. Ao mesmo tempo, deve ser tomado como um momento de produção reflexiva de conhecimentos, em que a ação é problematizada e refletida no contexto presente e, após sua realização, momento este que envolve a discussão com a orientação do estágio e pares da área.

cimento-na-ação que é mobilizado pelo profissional no momento da ação tes. Todavia, o conhecimento-na-ação pode parecer insuficiente, tendendo sões de reflexão-na-ação, realizadas no próprio momento de realização da aula e reflexão-sobre-a-ação como outros dois processos fundamentais na construção do conhecimento prático profissional.

2. Orientações metodológicas

Dadas as características desta pesquisa, optamos pela abordagem xidade da realidade natural na qual se produzem” (PÉREZ GOMEZ, 1998,

p. tico do professor são singulares e que investigamos oito estagiários, quatro na UDESC/SC e quatro na UFSM/RS, decidimos pela realização de estudos multicasos (TRIVIÑOS, 1987). Através dos estudos de caso, preservamos o mos generalizações ou comparação dos resultados entre os casos ou entre as instituições.

ção em vídeo de uma seqüência de três aulas, entrevista semi-estruturada e tos em Beineke (2001). As entrevistas semi-estruturadas e de estimulação de recordação seguiram um roteiro prévio, com base em temáticas gerais, com ênfase na reflexão sobre os pensamentos e ações desencadeados nas práticas educativas e a partir delas. As entrevistas foram integralmente transcritas e organizadas em um Caderno de Entrevistas (BELLOCHIO e BEINEKE, 2004).3 Os estagiários participantes cederam as entrevistas para publicação, através de carta de cessão de direitos4, sendo utilizados nomes fictícios a fim de preservar o seu anonimato.5 ram categorizadas segundo os temas emergentes em cada estudo, visando a gradativa compreensão dos processos de construção dos conhecimentos práticos pelos estagiários.

tando o perfil de cada estagiário e os desafios vividos no campo de estágio em relação à mobilização dos processos de construção do conhecimento prático.

3. Os estagiários e seus respectivos campos de estágio

3.1 Estagiário André (Florianópolis): “Toco de Frank Sinatra a CPM22”6

A formação musical de André iniciou quando ele era criança, com aulas particulares de instrumento. Quando criança estudou flauta doce, piano e, por um período da adolescência, bateria. Voltou a estudar bateria quando começou a tocar em uma banda, tocando reggae, rock e pop. Nesse período, ingressou no curso de licenciatura em música. Suas atividades como professor iniciaram logo no início do curso, dando aulas de bateria e leira ou um trio de jazz.

André estagiou em uma turma de 2ª série do ensino fundamental de uma escola da rede pública estadual de Santa Catarina. Para as aulas de música, a turma foi dividida em dois grupos de aproximadamente dez alunos. A escola não dispunha de um espaço adequado para as aulas de música e, normalmente, elas eram ministradas na própria sala de aula. Estavam disponíveis alguns instrumentos de percussão para uso na aula de música, como pandeiros, agogôs, triângulos e galões de água servindo como tambores, todos cedidos pelo Laboratório de Ensino em Educação Musical da UDESC.

3.2 Estagiário Rodrigo (Florianópolis): “Tive que aprender violão pra me enturmar”

Rodrigo conta que seu contato com a música iniciou muito cedo, larmente concertos da OSPA (Orquestra Sinfonia de Porto Alegre) e teve aulas de violão na escola, mas conta que aprendeu mesmo a tocar violão na sidera um aluno típico do curso de licenciatura, pelo fato de já ter quinze anos de uma experiência profissional muito intensa, como músico e como professor. Suas experiências como músico são muito variadas, tocando guitarra em grupos de diferentes formações, de grupo de jazz a baião. Na docência, suas atividades iniciaram como professor particular de violão e, mais tarde, atuou na Universidade como professor de improvisação em um curso de extensão.

Rodrigo estagiou em uma turma de 5ª série de uma escola da rede pública estadual. A turma era dividida e a metade dos alunos tinha aula de soriamente, funcionando em uma casa antiga, visto que o prédio original estava sendo restaurado. Por isso, todos os espaços eram adaptados para as aulas. Para a aula de música foi destinada uma sala específica, em formato de “L”, no fundo do pátio. A vantagem desta sala era o fato de estar isolada das outras, não havendo problemas quanto ao som produzido na aula de mentos musicais, cedidos pela Universidade, para a realização dos estágios dos alunos.

3.3 Estagiária Juliana (Florianópolis): “Desde criança me descobri cantando”

Juliana começou a estudar piano erudito aos onze anos de idade e desde criança gostava muito de cantar. Ela cursou um ano e meio do curso superior de musicoterapia, depois cursou jornalismo e depois começou a “cantar na noite”. Foi quando ingressou no curso de licenciatura. Sobre suas experiências pedagógicas, Juliana conta que “tenho aprendido tudo aqui dentro [da Universidade]”, através da participação como bolsista em cursos de extensão e em estágios curriculares. Ela destaca como fundamental para a sua formação, a experiência como professora em uma oficina extracurricular, quando participou desta pesquisa.

Juliana realizava o estágio extracurricular, no caso, em uma oficina de iniciação musical oferecida pelo Núcleo de Educação Musical da UDESC. A oficina acontecia semanalmente, no Laboratório de Ensino em Educação Musical, na Universidade, com duração de uma hora e meia. Participavam em torno de 10 crianças, na faixa etária de 7 a 10 anos. O Laboratório era equipado com uma diversidade de instrumentos de percussão, piano, metalofones e xilofones. Os alunos provinham de escolas públicas e particulares, localizadas principalmente nas redondezas da Universidade.

3.4 Estagiária Isabela (Florianópolis): “A gente tocava em rodinha, a família cantava”

Isabela começou a estudar teclado quando tinha doze anos. Além disso, cantava na missa. Segundo ela, o fazer musical acontecia muito na família, cantando juntos em roda. Sua primeira apresentação, considerada um sucesso, foi na sua primeira comunhão e, depois disso, começou a estudar teclado.

Das aulas de teclado começaram as suas primeiras experiências docentes, por convite da professora. A partir daí, fez cursos de regência, de coral, canto erudito e piano, resultando na opção pela faculdade de música. Além das aulas de teclado, começou, também, a ministrar aulas de técnica vocal e de teoria em escolas de música.

Isabela realizou o estágio em uma turma de 7ª série de uma escola da rede pública municipal. Dos estudos de caso aqui apresentados, esta escola se diferencia, pelo fato de ser a única que conta com uma professora de música, atuando no currículo de 5ª a 8ª série. A escola dispunha de uma sala de música e de uma variedade de instrumentos musicais de percussão e xilofones. O foco do trabalho desenvolvido pela professora de música foi

o canto e a execução da flauta doce.

3.5 Estagiária Carla (Santa Maria): “Comecei estudando teoria desde os nove anos”

A formação musical de Carla teve início quando criança, freqüentando igrejas, observando as bandas musicais, seus cantores e instrumentos. Aos nove anos passou a ter aulas de teoria musical em uma escola de música. No Ensino Médio já tinha certeza da opção de graduação e, ao ingressar no curso de Música, já possuía prática como professora particular de música.

Seu estágio foi realizado em uma turma de 3ª série do ensino fundamental de uma escola da rede pública estadual de Santa Maria. A turma era composta de trinta alunos, e a professora regente acompanhava as aulas, que duravam cerca de uma hora e quinze minutos semanais. Relatou que a professora regente de sua turma já trabalhava com música durante as aulas, cantando e tocando violão, o que facilitou o trabalho com as crianças. Não havia sala específica para as aulas de música, sendo realizadas na mesma sala. A escola disponibilizava um aparelho de som. Os instrumentos utilizados foram de percussão alternativos, criados pela estagiária em conjunto com os alunos, um teclado, flauta doce e violão e, ainda, alguns instrumentos de percussão, emprestados pelo Laboratório de Educação Musical (LEM) do Centro de Educação da UFSM.

3.6 Estagiário Danilo (Santa Maria): “Aprendi música sozinho”

Por morar em uma cidade pequena, sem professores de música, Danilo precisou aprender a tocar violão sozinho, lendo livros de teoria musical da biblioteca da cidade e revistas de música. Tocou em bares, casamentos e outras ocasiões, mas foi pensar em fazer Música quando estava em Santa Maria e cursava a Graduação em Física. No curso de música participou de projetos, envolvendo-se mais com a parte de canto coral. Como professor, suas experiências foram com aulas particulares de violão e na graduação através dos projetos.

O estágio de Danilo foi realizado na 4ª série de uma escola da rede pública estadual de Santa Maria, em uma turma de vinte e oito alunos, na qual a professora regente estava sempre presente. Danilo achou insuficiente a carga horária destinada às aulas de música. O espaço destinado às aulas era a própria sala de aula, que se tornava pequena para a quantidade de alunos. Com relação ao material para trabalhar durante as aulas, a escola cedia a televisão, o vídeo e o aparelho de som, os instrumentos tinham de ser levados de casa ou construídos com os alunos.

3.7 Estagiária Elenita (Santa Maria): “Desde pequenininha eu tive essa vivência”

Começou a tocar violão com treze anos e sempre gostou de cantar, pois teve uma vivência muito forte com a família. Fez um ano de aulas particulares de violão e depois tocava em um grupo de jovens. Mais tarde, entrou para uma comunidade religiosa, onde aprendeu a tocar piano. Durante a universidade, dedicou-se mais à parte teórica, mas nunca deixou de estudar, cantar em coros e ajudar na regência, antes e durante

o curso na universidade. Também possui o Magistério e cursos oferecidos pela OMEP, o que lhe proporcionou entrosamento no estágio supervisionado.

O estágio foi realizado em uma turma de 1ª série de uma escola da rede pública estadual da cidade de Santa Maria, que continha em média vinte e cinco alunos. A professora da classe se dispusera, desde o início, a estar ajudando no que fosse necessário. A escola não dispunha de um espaço específico para a aula de música, sendo utilizada a sala de aula. Em relação aos recursos e materiais didáticos, a escola disponibilizava apenas um aparelho de som e a estagiária levava o que conseguia, como instrumentos de percussão, violão, teclado e xilofone.

3.8 Estagiária Helen (Santa Maria): “Eu comecei na igreja, cantando junto com as minhas irmãs”

Seu primeiro contato com a música foi na igreja que freqüentava, cantando junto com suas irmãs, depois aprendeu a tocar violão e fez seis anos e meio de piano em escola de música e com professor particular. Na docência, sua primeira experiência com música foi trabalhando com catequese e em uma ONG. A partir desta experiência, percebeu que, como professora, poderia incluir todos em aprendizados musicais.

O estágio de Helen foi realizado em uma turma de 2ª série da rede pública estadual. A professora regente da turma esteve presente em todas as aulas. Em relação à carga horária, esta foi flexível, variando de 45 minutos a 1 hora e 15 minutos. A escola não estava preparada para receber as aulas de música e o espaço para as aulas se limitava à sala de aula. Quanto aos recursos materiais destinados às aulas de música, a escola oferecia apenas um aparelho de som com CD e a estagiária levava os instrumentos de percussão, instrumentos alternativos, violão ou teclado.

4. A mobilização dos conhecimentos práticos no estágio

Um tema recorrente nas reflexões dos estagiários, que tem implicação direta nas suas práticas em sala de aula, refere-se ao espaço que o ensino de música tem na escola pública. Essa discussão é bastante ampla, indo desde a questão do espaço físico, da (des)valorização da aula de música, como ao espaço simbólico, reconhecido, ou não, pela comunidade escolar. Em alguns casos, o fato da professora regente acompanhar o trabalho do estagiário na sala de aula pode representar um maior conhecimento das proposições da área para a escola.

Nesta pesquisa, sete estagiários realizaram os estágios em escola pública e destacaram a falta de uma sala de aula apropriada para o ensino de música e de material, como instrumentos musicais. Além das questões materiais, a experiência na escola também reflete nos estagiários a percepção da falta de tradição da área de educação musical nas escolas estagiadas e a necessidade de assumir muitas decisões sobre educação musical na escola, sem ter um par direto neste contexto.

André observa que a equipe da escola não sabe a função da aula de música, faltando um comprometimento da escola com o trabalho. Inclusive, quanto ao planejamento, ele avalia que “eles te deixam solto até demais, tu fica até meio desprezado...”. Como a educação musical não tem nenhuma tradição, também não há um interesse da equipe pelo que é desenvolvido, ou um esforço pela realização de trabalhos em conjunto.

Para que a música conquiste mais espaço na escola, André sugere que o professor de música desempenhe um papel de maior visibilidade, como um “representante da disciplina” na escola, incentivando a formação de grupos musicais pelos alunos, criando um espaço de reconhecimento pela área. Ele pensa que “o estagiário, além de trabalhar com a aula dele, uma idéia seria mostrar pra escola como essa matéria é tão importante como as outras e como poderia estar presente no dia-a-dia da escola e dos alunos”.

Talvez essa função vá bastante além dos limites que a atuação de um estagiário pode ter, em sua rápida passagem pela escola, mas se pensarmos na sua prática dentro de um conjunto maior de ações que a Universidade pode desenvolver nos campos de estágio supervisionado, o que implica em relacionamentos e compromissos mais estreitos entre a instituição formadora e a escola, as possibilidades de transformação aumentam significativamente, como comenta Bellochio (2003).

Elenita entende que a relação do estagiário com o reconhecimento da educação musical na escola reside na própria importância de sua formação musical e postura frente à área. Para a estagiária, isto repercute em “mais credibilidade e segurança no seu trabalho na escola, fazendo com que te enxerguem com melhores olhos”. Para ela, sendo “educadora musical, eu sou professora de música”. Ainda, destaca que um fato que contribui para o não reconhecimento da necessidade de professores em educação musical na escola, professores oriundos de licenciatura em Música, deve-se ao fato de que

[...] tem muita gente que ta dando aula de música por aí sem ter habilitação [...] aprendeu um instrumento, gosta de cantar, sabe cantar afinadinho, então vai ser um professor de música [...], para ser o professor de música você tem que saber muito mais, ter muito mais da parte musical, todo um conhecimento da própria história da música, da própria teoria da música [...], ter conhecimentos sobre o desenvolvimento da educação musical no nosso país, para que a gente possa agora estar trabalhando e abrindo esse espaço de credibilidade. (Elenita)

A prática de estágio de Isabela revela um contexto completamente diferente. Na escola em que ela estagiou, a música já conquistou um comprometimento da comunidade. Ela percebe um apoio da escola na implementação das propostas dos professores, como a realização de apresentações e mostras de trabalhos dos alunos. Observando os alunos, Isabela vê como eles gostam da aula de música e de como têm clareza sobre o papel que a música desempenha na escola. Ela conta que todos os alunos vinham tocando flauta e saíam cantarolando das aulas. Olhando além da sala de aula, ela constata que a música está presente na escola toda.

Refletindo sobre o papel do professor de música na escola, André afirma que este tem que fazer uma ponte para os alunos, do que eles conhecem para o que não conhecem, mostrar para eles “esses mil lados da música, essas mil maneiras de fazer música, além das que eles conhecem pelo rádio”. Ele conta que, em alguns momentos, no meio das atividades, alguém cantarolava uma música e às vezes tocava junto com a criança. O fato de ele conhecer o repertório dos alunos, segundo André, facilitava sua aproximação com eles.

Juliana reflete sobre essa questão sob uma outra ótica. Na escolha do repertório, que focalizava a música popular brasileira, ela selecionou músicas que “fossem mais acessíveis às crianças, pra que elas pudessem gostar e estar tocando junto”. Ela não demonstra preocupação pelo fato das crianças não conhecerem previamente o repertório, e sim, investe na possibilidade dos alunos participarem da música que ela estava propondo, ampliando seus repertórios. Ela avalia que as crianças se aproximaram desse repertório e gostaram:

Assim, pela carinha delas, pelo comportamento mesmo nas aulas... a vontade de voltar na próxima aula, de estar fazendo [...] Eu vi que deu certo, que o trabalho foi importante para eles, que foi uma coisa prazerosa pra eles, que eles aprenderam, que eles cresceram musicalmente nas aulas. (Juliana)

Para aproximar os alunos do repertório que ela queria trabalhar, Juliana criou o ambiente de um espetáculo musical, em que ela cantava a música escolhida, acompanhada pela bolsista que atuava com ela na oficina e por convidados externos ao espaço da escola. E essas apresentações eram muito verdadeiras, porque refletiam toda a vivência musical de Ju-liana – ela estava mostrando o que ela faz de melhor em música. E essa também foi uma maneira de aproximar os alunos de um repertório que eles não conheciam previamente, e de tornar esse repertório significativo para eles, mesmo não partindo especificamente de músicas conhecidas.

A fala de Rodrigo revela que a distância dos mundos dos alunos e do professor vão muito além da questão do repertório. Ele julga que a distância do mundo dos alunos com os quais ele estagiou e o seu próprio é tão grande que fica difícil compreendê-los. Segundo ele:

Enquanto você não tem contato com essa faixa etária e social, você não tem noção [...] você julga uma coisa, pensa que eles estão achando uma coisa, e na verdade é outra. Às vezes é muito fácil você julgar as coisas de maneira errada! Eles ouvem um tipo de música que eu não ouço, eles têm uma noção de afetividade diferente da minha, entende? [...] Até você entender o que se processa o mundo deles e o que se passa dentro da cabeça deles, os valores deles quais são. Essa eu acho que é a grande dificuldade. (Rodrigo)

Partindo das reflexões sobre a sua prática na escola, Rodrigo conclui que o maior desafio na formação de professores é a preparação psicológica e cultural do professor.

Sobre a relação entre o que havia sido planejado para a aula de estágio e o que era desenvolvido realmente na escola, Elenita destaca que se importava com a reação da turma frente ao planejado, buscando a reflexão na ação o que resultava na modificação do ponto que achasse necessário à realização de sua proposta. Para ela é preciso considerar a realidade que envolve o contexto social da turma. Também é necessário, “[...] seguir muito o coração [...], porque você precisa sentir como as crianças estão, você precisa ver o que eles estão precisando no momento, conseguir desenvolver o que você pensou dentro da realidade deles [...]”.

Na mesma direção, Helen reflete, assistindo-se no vídeo, que o que ocorreu durante a sua ação em sala de aula “teve que mudar o esquema”. Para a estagiária a aula “[...] não é só o aspecto do planejamento, dos instrumentos e do conteúdo em si, mas até o estado de espírito [...] das crianças” (Helen). Assim, tenta trazê-los de volta à atividade através de algo diferente do que se passa no momento em que deixam de se interessar. Neste sentido, refere-se a um momento específico de uma aula: “[...] aquilo ali eu não tinha colocado no planejamento, aquilo ali eu senti a necessidade, [...] foi uma alternativa que na hora me veio para que eles compreendessem o que estava acontecendo” (Helen).

Conforme SCHöN (2000) cada situação apresentada pela prática é única e multidimensional, pois no contexto prático sempre teremos muitas surpresas e situações inesperadas. Algumas delas podem, inclusive, gerar

o questionamento de crenças ou valores que os professores têm internalizado como verdades. Este processo é natural, já que ao lidarmos com a prática docente temos alunos de verdade, com suas conquistas, derrotas, condições pessoais, facilidades e dificuldades. Temos uma escola real com sua sala de aula concreta, e orientações educacionais de um projeto político pedagógico específico para aquele espaço. Assim, a prática real é vivida no momento de tomadas de decisão em contexto específico do estágio supervisionado.

Segundo o referencial de SCHöN (2000), são justamente essas situações novas e inesperadas que potencializam o desenvolvimento do conhecimento prático do profissional. Isso porque nessas situações o professor se vê obrigado a refletir, problematizando e repensando suas ações, sem fazer uso apenas do conhecimento-na-ação. Desta forma, o professor amplia o seu conhecimento profissional.

Conclusão

A pesquisa buscou relatar como a prática educativa influencia a construção do conhecimento prático dos estagiários, percebendo como estes conhecimentos são mobilizados no momento da ação pedagógica de professores em formação acadêmica inicial. Na construção do desenho metodológico, principalmente nas entrevistas de estimulação de recordação, nos preocupamos em desencadear situações nas quais estes estagiários pudessem refletir sobre a sua própria prática. Através delas, buscamos, em conjunto, perceber o porquê de determinadas atitudes, quais saberes desencadearam para determinada situação, sua reação frente ao desconhecido, entre outros momentos, que nos ajudaram a compreender as relações que esses profissionais da área de educação musical em formação inicial estabelecem entre os conhecimentos teóricos e práticos e entre os saberes teóricos e os experienciais.

A investigação também revelou a dificuldade de prepararmos os estudantes para atuar na escola pública. São evidentes as diferenças de mundos culturais dos nossos acadêmicos e os mundos culturais dos alunos na escola. As falas dos estagiários indicam que a formação musical do curso de licenciatura vem acentuando essas diferenças, dificultando ainda mais um diálogo da universidade com a escola pública. Nesse sentido, acreditamos que se faz necessário aprofundar essa interação universidade-escola, inclusive com inserções mais prolongadas.

Os resultados mostraram o estágio supervisionado como oportunidade para a reflexão sobre a prática educativa e a construção dos conhecimentos práticos dos estagiários. Um dos maiores desafios revelados pela pesquisa é a dificuldade dos estagiários em superarem as situações conflituosas e inesperadas que se apresentam em sala de aula, visto que eles têm um repertório muito restrito de exemplos, imagens, ações e compreensões. Por outro lado, são justamente essas situações “difíceis” que mobilizam a construção do conhecimento prático pelos estagiários, pois é esse processo que possibilitará o desenvolvimento da reflexão-na-ação, para o qual o profissional recorre nos momentos em que se apresentam as situações inesperadas e complexas que caracterizam a prática docente. Nesse sentido, é fundamental que estas situações sejam problematizadas ao máximo, a fim de que, a partir delas, os estagiários ampliem seu repertório de recursos de ação pedagógica e o estágio cumpra sua função formativa.

Notas

1 Pesquisa apoiada pelo Programa de Apoio à Pesquisa FIPE/UFSM e pelo Programa de Bolsas de Iniciação Científica PIBIC-UFSM. Bolsista Aruna Correa Noal. 2 Pesquisa apoiada pelo Programa de Apoio à Pesquisa – PAP/UDESC e pelo Programa de Bolsas de Iniciação Científica da UDESC – PROBIC. Bolsista: Flávia Cristina Sebold.

3 O Caderno de Entrevistas (BELLOCHIO e BEINEKE, 2004) é um documento de acesso restrito às pesquisadoras que contém a transcrição de todas as entrevistas realizadas com os estagiários participantes, bem como os documentos que autorizam o material para publicação dos resultados da pesquisa.

4 Na condução ética da pesquisa foram observadas as determinações da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que fixa as Diretrizes e Normas Regulamentadoras sobre Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (BRASIL, 1996). O projeto de pesquisa também foi submetido e aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) da UDESC e da UFSM. Para maiores informações sobre a ética na pesquisa qualitativa, ver também AZEVEDO et al. (2005).

5 Os pseudônimos mantêm as relações de gênero, sendo utilizados nomes masculinos para os estagiários e nomes femininos para as estagiárias.

Com a finalidade de tornar o texto mais fluente e evitar redundâncias, o Caderno de Entrevistas (BELLOCHIO e BEINEKE, 2004) não será citado no decorrer do artigo. Será feita referência apenas ao pseudônimo do estagiário, devendo o leitor entender que todas as citações dos estagiários foram coletadas através de entrevistas reunidas neste mesmo documento.

Referências:

AZEVEDO, Maria Cristina de Carvalho Cascelli de; SANTOS, Regina Antunes Teixeira dos; BEINEKE, Viviane; Hentschke, LIANE. Ética na pesquisa: considerações para a pesquisa em educação musical. In: ENCONTRO ANUAL DA ABEM, 14, 2005, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, Associação Brasileira de Educação Musical, 2005,

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BELLOCHIO, Cláudia Ribeiro; BEINEKE, Viviane. Caderno de Entrevistas. Documento de pesquisa das autoras, 2004. Entrevistas concedidas às pesquisadoras pelos estagiários identificados pelos pseudônimos de André, Rodrigo, Juliana, Isabela, Carla, Danilo, Elenita, Helen.

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Cláudia Ribeiro Bellochio – Professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutora em Educação pela UFRGS. Presidente do Conselho Editorial da Revista da ABEM e Editora de Revista Educação - UFSM. Professora, orientadora e coordenadora da Linha de Pesquisa Educação e Artes do Programa de Pós-graduação em Educação - UFSM. Coordena o Laboratório de Educação Musical – LEM/CE/UFSM. Tem artigos publicados em importantes revistas nacionais, internacionais e livros da área de música.

Viviane Beineke – Professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutoranda pelo PPG-Música da UFRGS. Autora da coleção Canções do Mundo para Tocar, com arranjos para grupo instrumental infantil e do livro/CD/CD-ROM Lenga la Lenga: jogos de mãos e copos, finalista do Prêmio TIM de música infantil, publicado no Brasil, Portugal e Uruguai. Tem artigos publicados em importantes revistas nacionais da área de música, além de trabalhos e workshops apresentados em congressos nacionais e internacionais.