UM DIÁLOGO ENTRE SOM E IMAGEM: QUESTÕES HISTÓRICAS, TEMPORAIS E DE INTERPRETAÇÃO MUSICAL

A DIALOGUE BETWEEN SOUND AND IMAGE: QUESTIONS CONCERNING HISTORY, TEMPORALITY AND MUSIC INTERPRETATION

Alexandre Siqueira de Freitas - USP

alexandre_sfreitas@yahoo.com.br

Resumo: O desejo de estabelecer correspondências entre som e imagem vem intrigando e suscitando inúmeros questionamentos e analogias há séculos. O artigo visa levantar questões relativas ao sonoro e o visual e sugerir uma reflexão de ordem plástica na construção de interpretações musicais. Para tanto, partimos de três etapas. Na primeira, informações de ordem histórica, baseadas principalmente na obra de Bosseur. O conceito de tempo é discutido na segunda etapa a partir de textos de artistas (Da Vinci, Klee, Delaunay, Gould e Messiaen) e de Nattiez. Por fim associamos a dimensão visual da música aos aspectos relacionados à interpretação musical. Palavras-chave: Visual; Interpretação; Imagem musical e tempo.

Abstract: For centuries, the desire to establish correspondences between sound and image has intrigued researchers and evoked many questions and analogies. This paper aims to introduce the reader to concerns about sound and image to show the importance of developing a plastic-art mode of thought in order to arrive at a musical interpretation. Historical information based on Bosseur’s work supports the first part. The second part consists of a discussion about the concept of time based on Nattiez and artists’ writings (Da Vinci, Klee, Delaunay, Gould and Messiaen). The last part regards the visual dimension of music associated with musical interpretation. Keywords: Visual; Interpretation; Musical image and time.

Introdução

Como aproximar música e artes visuais? Como buscar interseções entre artes que se dirigem a sentidos diferentes? Tanto o som quanto a luz resultam de ondas vibratórias com freqüências variáveis, sujeitas a ação de intensidades variadas e caracterizadas por certa duração (MARIE, 1976, p. 161). Ao abordarmos a interação entre som e imagem nos deparamos com a dificuldade em delimitar nosso campo de pesquisa, já que são inúmeras as ciplinaridade que o tema nos suscita. Optamos por uma aproximação do tema bre o tempo e interpretação musical) para suscitar o interesse pelo assunto e fazer emergir questões relativas à aplicabilidade das reflexões propostas.

1. Interações entre música e artes visuais: aspectos históricos e representações

remos algumas linhas gerais históricas de interações entre música e artes visuais com breves observações sobre a Antiguidade e seus mitos, Idade Média, Renascença, os estudos teóricos de ótica e acústica nos séculos presentações de imagem e som na obra de Nietzsche.

Nossa primeira abordagem histórica diz respeito às representações co-romanos. Observamos, em diversos objetos do período, ilustrações que nos informam sobre o papel da música e a forma física dos instrumentos1. Não podemos demonstrar que houve uma tentativa explícita de paralelismo mentos com a mesma intenção da representação de um comportamento, ato de guerra ou ritual, religioso ou não. Podemos notar, entretanto, que os mitos greco-romanos exprimem relações de tensão e complementaridade entre os instrumentos, que são indissociáveis da vida, da educação, do culto ou da pro e percussão associados à figura de Dionísio e por outro lado temos Apolo e os instrumentos de corda, sugerindo assim representações da dualidade pathos e ethos, respectivamente. O mito do duelo entre Marcias e Apolo, por exemplo, ilustra a tensão entre os instrumentos de corda e sopro. Marcias, considerado como extremamente hábil na arte do aulos pro feito com ossos), é escalpado por Apolo por ameaçar sua soberania como instrumentista. E é graças aos mitos gregos que a música, na Antiguidade, impõe-se como fonte importante de todo ato ritual (BOSSEUR, 1998, p. 11).

sical é fortemente influenciada pelo mito da Antiguidade greco-romana gundo hierarquias e funções perfeitamente delimitadas. Os instrumentos de percussão são utilizados com desconfiança devido a associação com as bacantes. O caráter orgânico dos instrumentos de sopro e percussão contrabalança com o aspecto introspectivo que os instrumentos de corda podem ter (BOSSEUR, ibid., p. 43). O aulosmentistas (GRAVES, ibid., p. 67). A arte musical era situada entre as Artes Liberais2 e a audição era considerada superior e de caráter mais nobre que a visão (COSTA, 2006, p. 132). As proporções que regem a ordem musical se encontram em múltiplos níveis da manifestação universal e mesmo no movimento dos planetas. Em vitrais, pias batismais e na arquitetura de mosteiros encontram-se analogias com escalas e organizações musicais.

samente as telas inspiradas na arte musical (BOSSEUR, ibid., p. 85). Os vés do olhar e do gesto dos personagens, sentimentos e intenções musicais sificam com essa ampliação das funções musicais e das artes na sociedade.3 As capas de partituras e os instrumentos prestam-se frequentemente como suportes para expressão plástica, como é o caso dos órgãos e do cravo.

A história nos mostra também algumas tentativas de aproximação entre as duas artes, baseadas no estudo científico de ótica e acústica.4 No século XVI, Arcimboldo tinha concebido um sistema de equivalências do branco ao preto e as alturas sonoras. Ele relacionava os intervalos musicais SEUR, ibid., p. 88-90). Michael Maier, alquimista, médico e filósofo, no seu livro Atalante Fugitivevem ser escutadas, vistas, lidas, meditadas, julgadas e cantadas.5 Em toda obra são feitas analogias entre formas físicas e procedimentos musicais como cânon, retrogradações e inversões. Em 1725, o matemático jesuíta Louis Bertrand Castel concebe, depois de trinta anos de estudo, um “Cravo para os olhos com a arte de pintar os sons e todo tipo de peças musicais” (BOSSEUR, ibid., p. 90).6 A partir de um mecanismo de espelho e luzes, eram projetadas cores e sons quando acionadas as teclas do órgão. Trata-se de uma tentativa de “tornar visível” o som através de associações entre as cores e as alturas musicais, que não são claramente explicadas.

É somente a partir do Romantismo musical que esse diálogo entre as duas artes se torna mais efetivo, já que os artistas foram levados por um impulso que incitou uma espécie de retorno à unidade original da criação artística e a se interrogar claramente sobre a analogia das sensações visuais e sonoras (BOSSEUR, ibid., p. 146). Schumann, em uma carta de 1833, cias musicais e pictóricas que ele encontra em diversos artistas e que ele busca em sua obra (BOSSEUR, ibid., p. 161).

Uma outra perspectiva das relações entre artes visuais e música é apresentada por Nietzsche quando ele aborda o mito de Apolo e Dionísio. ção. A partir desses impulsos, uma realidade à parte, plena de beleza, se do e individualizado graças aos contornos como cada um delimita seus objetos representados. O impulso dionisíaco atua como contrapartida do apolíneo no sentido de exercer sobre os seres humanos, que um dia se individualizaram e se separaram da totalidade originária, uma força que procura recapturá-los para o seu estado anterior de indistinção em relação ao todo. Para Nietzsche, Apolo representaria a imagem e Dionísio, o som (DUARTE, 1994, p. 74). Em seu livro Sobre Verdades e Mentiras no Sentido Extra-Moral das, transpostas e enfeitadas poética e retoricamente e expõe da seguinte posto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem é transformada em um som! Segunda metáfora”. (NIETZSCHE, 1996, p. 55).

Influenciado pelas idéias de Nietzsche, que exaltava a arte como ário panteísta que pretende unir ciência, religião e filosofia, o compositor russo Alexander Skryabin se convenceu de que a arte, sobretudo a música, tinha um objetivo espiritual para cujo desvendamento todos os sentidos do bin integra em sua sinfonia Prometeo, o chamado “teclado de cores”, que ao invés de sons, produz luminosidades coloridas que inundam o palco e se baseiam em um sistema de equivalência associados ao ciclo de quintas a começar pelo Dó.7 tegraria sons, luzes, odores e contatos físicos e que se chamaria Mysterium. A obra de Skryabin pode ser considerada como o ponto de exacerbação culminante do pós-romantismo musical (RIBEIRO, ibidem, p. 392).

neira geral, parecem ter se projetado mais efetivamente no universo da música que os compositores naquele das artes plásticas (BOSSEUR, 1999,

p. 161). A música e as artes visuais, apesar de serem de naturezas distintas e de se dirigirem para diferentes sentidos, sempre deram margem para uma aproximação que pode ser espontânea, consciente ou mesmo científica. tem os múltiplos ângulos de abordagem, análise e interpretações. Isso nos leva crer que uma reflexão do aspecto plástico por parte do músico ou piração para o gesto composicional ou interpretativo.

2. O tempo e a conjunção das artes

O conceito de tempo na música, assim como nas artes visuais, ram em algum momento sobre questões temporais. Vejamos como alguns deles se posicionam em relação ao tempo e como ele poderia representar um elemento que, ao mesmo tempo separa e une as duas artes.

DA VINCI, em seu Tratado de Pintura (2004, p. 65), recorre ao tempo para demonstrar a superioridade da visão sobre a audição. Segundo ele, a obra de um pintor preserva a imagem de uma beleza divina mais do que a própria natureza. Isso nos permite contemplar por tempo indeterminado uma pintura. A música, por sua vez, tem natureza efêmera, submissa à ra sobre a música pode ser explicado historicamente pelo fato da pintura, na Idade Média, ser considerada menos nobre que a música, como vimos anteriormente. Defendendo a visão como o mais importante dos sentidos Da Vinci se esforçou para mostrar que a pintura também obedece a um rigor da ciência das proporções e dos números, além de não estar tão presa ao tempo como é o caso da música.

mam igualmente a supremacia da visão sobre a audição quanto se trata de relação temporal. O pintor francês acreditava que a audição pressupusesse uma idéia de sucessão, que, por se limitar a duração, perde em profundidade em relação à visão (BOSSEUR, ibid., p. 50). Assim, a percepção do universo só se completa com a visão. Klee, por sua vez, destaca a vantagem que tem uma pintura de não ter começo nem fim e assim nos deixar livres para nos abandonar em infinitas releituras e na multiplicidade de significados (BOSSEUR, ibid., p. 50). Klee acreditava e era coerente com a idéia de que o artista deveria possuir uma ampla cultura sobre todas as artes e que ele deveria estar em busca do “conteúdo da verdade” em sua obra. “Um artista precisa ser tudo: poeta, pesquisador da natureza, filósofo.”8 (KLEE, 1987, p. 14).

Sob o aspecto observado até então, a música é essencialmente temporal. Entretanto ela pode se espelhar ou se opor a outras concepções gerais do tempo (NATTIEZ, 2005, p. 9). Jean Jacques Nattiez em O Combate entre Cronos e Orfeu, reúne seus artigos que refletem sobre a arte musical e o tempo, representados pelos personagens mitológicos Orfeu e Cronos respectivamente. O autor apresenta diversas aproximações entre música e tempo e entre elas, uma sobre a obra de Glenn Gould9 (seus escritos e atitudes estéticas). Para Gould, a execução musical começa com uma imagem musical. O pensamento vem em primeiro lugar e é um fenômeno atemporal, espacial e não ordenado (NATTIEZ, ibid., p. 98). Só depois que ele se encarnará em formas simbólicas lineares. O posicionamento estético defendido pelo pianista baseia-se em uma profunda análise do texto musical e em uma “compreensão total da estrutura” (NATIEZ, ibid., p. 100) para conferir assim um sentido à música. A busca da totalidade de Gould revela sua preocupação estruturalista e com o aspecto atemporal da música.

Klee, Nattiez e Gould, em algum momento de suas obras escritas, fizeram alusão à polifonia, sobretudo à fuga. Suas observações sobre tratamento polifônico de uma fuga podem nos auxiliar na relativização da noção de tempo. Gould, através de seus textos e performances, demonstra uma forte afinidade pela escritura contrapontística e ele se exprime nos seguintes termos:

A fuga suscita uma curiosidade primordial, que busca descobrir relações de pergunta e resposta, desafio e réplica, chamado e eco, os segredos daqueles lugares serenos e ermos que detém as chaves do destino do homem, mas que são anteriores a toda lembrança de sua imaginação criativa”. (apud NATTIEZ, ibid., p. 101)

Paul KLEE buscou correspondências e a plasticidade de conceitos musicais em diversas obras.10 No que diz a respeito do aspecto polifônico musical e sua transposição plástica, ele se exprimiu da seguinte maneira:

Existe realmente uma polifonia na música. A tentativa de transposição dessa essência para o campo plástico não seria em si nada demais. Mas, criar, na música, através do reconhecimento da particularidade da obra de arte polifônica, penetrando profundamente nesta esfera cósmica, a fim de emergir dela como um observador de arte transformando e então experimentar essas coisas na pintura, isso já é melhor. Pois não apenas na música pode existir a simultaneidade de vários temas independentes, assim como todas as coisas típicas que não são válidas apenas em um lugar, mas estão enraizadas, ancoradas organicamente em qualquer lugar e em toda parte. (KLEE, 1987, p. 25)

NATTIEZ (2005) tem igualmente uma maneira própria de perceber a escrita polifônica:

É um modelo reduzido de nossa relação com o mundo. [...] a fuga estabelece analogias com certos momentos chave da vida: busca, perseguição, encontro. Todo esse movimento [...] é derivado de um material musical inicial, curto e denso, do qual tudo é tirado, esse “lugar imóvel” fora do tempo, exato e original, primitivo, denso, do qual podemos inferir todo o desenvolvimento que conduz à sua assimilação no stretto final. (p. 101)

Nattiez aborda explicitamente o aspecto extra-temporal da uma fuga. Klee, partindo da polifonia musical, aproxima artes visuais e sonoras de uma maneira ampla que vai além de um simples sistema de equivalências formais. Gould transcende a realidade na tentativa de descrever sua relação com a fuga. Observamos que os três convergem em um senso vasto de polifonia: a existência de um locus extra-temporal. Nattiez o denominou “lugar imóvel”, Klee o chama de “esfera cósmica” e Gould o caracteriza como sendo “lugares serenos e ermos”. Ali residiria a atemporalidade das artes.

Lévi-Strauss vai ainda mais longe crendo na irreversibilidade do tempo e na capacidade da música em suprimi-lo e imobilizá-lo. Para ele, a obra musical, apesar de requerer uma dimensão temporal para se manifestar, transcende o plano da linguagem articulada. Sob este aspecto, a música atua da mesma forma que o mito, ou seja, refere-se a eventos passados que se constituem como estruturas permanentes, caracterizando assim uma ambigüidade fundamental que estabelece elos entre passado, presente e futuro. (LEVI-STRAUSS, 1997, p. 71).

DUARTE (1994, p. 78), baseando-se em Adorno, crê na antecipação de uma imagem no processo de criação musical. Para o estabelecimento do continuum musical é necessária a apropriação/criação de uma imagem.11

Uma outra relação temporal entre música e pintura pode se construir quando refletimos sobre o cravo ocular de Castel, que comentamos anteriormente. O ritmo das projeções de cores era conduzido diretamente pela música, construindo assim uma unidade temporal entre as duas artes, no que diz respeito à sucessão de eventos (horizontalidade do tempo). Quando projetava cores e emitia sons aproximava efetivamente as duas artes na medida em que fazia uma íntima analogia entre as matérias primas: som e cor, ondas luminosas e acústicas. O dinamismo das imagens associa-se às estruturas temporais musicais e poderia criar assim uma espécie de música áudio-visual.

O compositor francês Olivier Messiaen parece não ter dúvidas quanto à proximidade das percepções sensoriais a partir dos conceitos de tempo e espaço:

Com efeito, a música é um diálogo perpétuo entre o espaço e o tempo, entre o som e a cor, diálogo que chega a uma unificação: o tempo é um espaço, o som é uma cor, o espaço é um complexo de tempos sobrepostos, os complexos de sons existem assim como os complexos de cores.12 (apud BOSSEUR, 1998, p. 122)

Comprovamos então a diversidade de abordagens que temos ao aproximarmos o sonoro, o visual e o tempo. Em uma visão estruturalista, onde os diversos elementos do tempo constroem relações de equivalência ou oposição, o aspecto atemporal da música pode revelar-se sob forma de pensamento do compositor, do intérprete e do ouvinte. A preocupação com a forma em uma obra artística nos sugere a existência de um lugar onde

o tempo é suprimido e as artes se unificam e fundem. Sob esse aspecto, música e artes plásticas se aproximam em seu aspecto atemporal e a consciência das diferentes dimensões do tempo pode nos auxiliar em nossas reflexões para construção de uma interpretação e performance musical.

3. Imagens e interpretação musical

Após refletirmos historicamente sobre analogias entre o sonoro e

    1. o visual e algumas relações que podemos estabelecer com questões tempo
    2. rais, cabe agora verificarmos de que forma podemos estabelecer elos entre
  1. o visual e interpretação musical. Para isso definiremos alguns termos e sugeriremos alguns questionamentos que poderão auxiliar na construção de nossas interpretações musicais.

O conceito de interpretação musical é dúbio e sugere a ação de executar e de compreender. No sentido fundamental do termo, interpretar é dar vida às redes de significações múltiplas (NATTIEZ, ibid., p. 143). A interpretação é um gesto concreto que transforma um esquema gráfico em ondas acústicas. Quando analisamos o processo de leitura de uma obra de arte identificamos aspectos de decodificação, mediação e realização. No caso da leitura de uma partitura musical, observaremos processos integradores envolvendo a decodificação dos símbolos musicais, a construção do entendimento da obra e a sua realização sonora. (PAREYSON apud SILVEIRA; WINTER, 2006, p. 65). Chamaremos de “imagens musicais” aquelas que se situam na etapa de mediação e se transformam em sistema de significantes. Esses sistemas dependerão, evidentemente, do grau de compreensão que temos de uma obra. A “imagem musical” tem caráter dinâmico. É a obra enquanto conceito e pensamento e seria a síntese dos sistemas de significantes resultantes de nossa capacidade analítica, de nossa vivência e das sugestões extra-musicais, como o título da obra e a biografia do compositor, por exemplo.

A partir da consideração ampla apresentada acima podemos colocar a seguinte questão: como tomar consciência e construir “imagens musicais” que nos levem a realização de uma interpretação fiel e autêntica da obra estudada? Parece-nos pertinente definir os termos fidelidade e autenticidade na busca de uma resposta possível a essa indagação. Fidelidade nos remete a uma relação de proximidade no que diz respeito às intenções do compositor. (NATTIEZ, 2005, p. 142). Em uma interpretação fiel, os intérpretes não devem trair a essência do desejo do compositor. Autenticidade, por sua vez, tem conotação histórica, que visa reconstituir a época e local da obra executada, seu estilo, com quais instrumentos, etc. A autenticidade, na maioria dos casos, tem mais chances de ser alcançada, já que tem características que tendem a ser mais objetivas, como por exemplo, como eram realizadas as frases musicais. A fidelidade exige um estudo hermenêutico mais profundo, pois cada intérprete se esforça para fazer emergir a verdade do texto musical.13 Logo, mais do que buscar fidelidade e autenti-cidade, devemos buscar o entendimento da estrutura da obra e a partir daí sermos coerentes na construção de nossas “imagens musicais”.14

As “imagens musicais” são tão variadas quanto às interpretações musicais possíveis e serão determinadas por uma compreensão analítica e sua conscientização.15 A criação contínua e a consciência dessas imagens nos abrem perspectivas que vão além das questões analíticas mais diretas e equivalências estereotipadas de som e imagem.

Nossas imagens serão extremamente variadas, porém, há casos em que o próprio compositor as sugere claramente. Olivier Messiaen, em algumas de suas obras, nos deu as chaves para construção de nossas imagens. Como foi citado anteriormente, Messiaen acreditava fortemente nessa fusão e a partir daí enunciou claramente as cores e mesmo formas plásticas que constituíam algumas de suas obras.16

Na tentativa de racionalizar nossas interpretações do fenômeno musical tendemos a construir nossas imagens nos baseando na idéia que fazemos do período musical, do compositor, da forma e do próprio título da obra. É necessário, entretanto, que o aspecto histórico venha sempre vinculado à análise e a estética. O valor e o significado intrínseco de uma obra musical que constroem nossas imagens transcenderiam as informações históricas.17 Um diálogo consciente entre o visual e o sonoro pode dar ainda mais riqueza às leituras possíveis de uma interpretação musical.18 A música, como ato social, não está absolutamente imune às inúmeras interferências das outras artes e da palavra, apesar da sua relativa autonomia como expressão artística.

A consciência ou a criação de nossas “imagens musicais” estão intimamente ligadas ao processo interpretativo, seja prático ou analítico. Elas serão tão variadas quanto são as percepções sensoriais de toda prática artística e especulativa. A forma musical, os sentimentos que a obra suscita, toda vivência artística ou não, vão, consequentemente, interferir na “imagem musical”. É dada ao intérprete a liberdade total na concepção de suas imagens.19

Conclusões

Música e artes visuais têm naturezas distintas e visam diferentes percepções sensoriais. Em um primeiro momento poderiam parecer incompatíveis, porém há muitos séculos vem emergindo a consciência de um diálogo entre as artes, estimulando inúmeras indagações que podem nutrir e enriquecer ambas as partes.

As artes sonoras e visuais parecem nos remeter ao âmago das coisas, ao conteúdo inteligível e ideal dos fenômenos em que o tempo se extingue e nos revela uma proximidade da essência da natureza artística. O tempo, que a princípio poderia distinguir as artes visuais e a música, pode também servir de elo na medida em que a música, em sua natureza estrutural e de pensamento, ganha uma dimensão atemporal.

A partir do reconhecimento da importância da uma observação plástico-musical e da reflexão sobre o tempo, situamos a “imagem musical” na mediação do processo de leitura musical, etapa intermediária entre a decodificação e a realização. A “imagem musical” tem uma relação íntima com a interpretação e compreensão musical e sua construção consciente pode dar clareza e auxiliar o entendimento de uma obra musical. Não se trata somente do estabelecimento de associações extra-musicais, mas também de perceber a presença intrínseca do visual nas manifestações sonoras. O artigo coloca em evidência a importância de se construir conscientemente imagens musicais para legitimar escolhas estéticas que possam vir a ser feitas.

Mas como seria uma “imagem musical”? Inúmeras indagações e infinitas leituras surgem. Certamente tão variadas quanto às interpretações musicais possíveis. Isso nos revela o quanto é longo o caminho a percorrer para explorarmos o fenômeno musical e relacioná-lo às artes visuais.

Notas

1 Entre os gregos essas representações encontravam-se mais frequentemente nos vasos, moedas e

esculturas. Entre os romanos, nos afrescos, mosaicos e sarcófagos (BOSSEUR, ibidem, p. 34). 2 As artes liberais na Idade Média são: gramática, retórica, lógica (trivium), aritmética,

geometria, música e astronomia (quatrivium). 3 Concerto Campestre de Ticiano, Alegoria da Música de Fillipo Lippi, Santa Cecília de Rafael,

Concerto dos Anjos de Gaudenzio Ferrari, O repouso durante a fuga do Egito de Cavaragio,

Vanitas de Peschier, A lição de música de Jan Vermeer, Dois meninos cantando de Franz

Hals, A lição de amor de Antoine Watteau, para citar apenas alguns dos mais expressivos

exemplos de telas inspiradas pela música. 4 Como prolongamento dos estudos sobre as vibrações sonoras de Pitágoras.

5

Ele diz no prefácio que seu objetivo era de unir a Ótica, a Música e a inteligência. 6 Telemann compôs algumas peças para este instrumento.

7 Dó = vermelho; Sol = alaranjado; Ré = amarelo; Lá = verde; Mi = azul bem claro; Si = igual ao mi; Fá sustenido = azul-céu; Dó bemol = azul forte; Lá bemol = violeta; Mi bemol = cinza aço; Si bemol = Mi bemol; Fá = marrom (RIBEIRO, 2005, p. 392).

8 Klee hesitou até os vintes anos entre a carreira de violinista ou artista plástico, tendo participado de concertos sinfônicos, inclusive como solista (KLEE, 1985, p. 16).

9 Gould, além de pianista, era compositor, musicólogo, analista, escritor, sociólogo, teórico da comunicação, moralista e filósofo.

10 Como as obras “Nova Harmonia”, “Quadrados em compasso ternário”, “Fuga em vermelho” e “Quadro colorido em cinza maior”, por exemplo.

11 Essa idéia poderia convergir com o conceito de Gould de que uma execução musical começa com uma imagem.

12 Traduzido pelo autor : “En effect, la musique est un perpêtuel dialoge entre l’espace et le temps, entre le son et la couleur, dialoge qui abouti à une unification : le Temps est un espace, le son est une couleur, l’espace est un complexe de Temps superposés, les complexes de sons existent simultanément comme complexes de couleurs.”

13 “Não podemos conhecer as intenções (...). Se alguém duvida, faça-o ouvir as cinco primeiras gravações que Stravinsky realizou de A Sagração da Primavera para que tente decidir quais seriam as intenções do compositor. (...) De resto, Stravinsky não se tornou, rapidamente, ouvinte de sua própria obra? (...) Por que não reconhecer nosso Bach moderno pelo que ele é?” (Taruskin, apud NATTIEZ, p. 148).

14

É importante observar igualmente que “a notação musical, não importando o quão cuidadosa ou exata, poderá no máximo ser apenas uma guia para o executante” (Stier apud WINTER, SILVEIRA, 2006, p. 64).

15 A palavra “compreensão” deve ser tomada como apropriação, sua conotação do latim (comprendre = tomar consigo) e não necessariamente como racionalização.

16 Em “Oito Prelúdios”, Messiaen descreve a cor ou as cores de cada prelúdio.

17 “A avaliação de uma obra de arte de acordo com as informações históricas que possuímos a seu respeito é o mais aberrante dos métodos de julgamento estético” (Gould apud NATTIEZ, ibid., p. 108).

18 Os leitmotive de Wagner podem constituir um exemplo desse elo entre música e aspectos extra-musicais. Kandinsky considerava o leitmotiv como uma espécie de atmosfera espiritual evocada por meios musicais.

19 “André Breton define a criação artística como atividade absolutamente espontânea do espírito; tal atividade pode ser concebida como resultado de um treinamento sistemático e da aplicação metódica de um determinado número de receitas; contudo a obra de arte se define – e se define unicamente – por seu caráter de liberdade total” (LÉVI-STRAUSS, 1997,

p. 110).

Referências:

BOSSEUR, Jean-Yves. Musique et beaux-arts: de l’Antiquité au XIXe siècle. Paris: Minerve, 1999.

_______. Musique et arts plastiques: interactions au XXeme siècle. Paris: Minerve, 1998.

COSTA, Ricardo da. Las definiciones de las siete artes liberales y mecánicas en la obra de Ramon Llull. Madrid: Revista Anales del Seminario de Historia de la Filosofía, Publicaciones Universidad Complutense de Madrid (UCM), vol. 23, 2006,

p. 131-164.

DA VINCI, Leonardo. Tratado de la pintura. Buenos Aires: Editorial Lousada, 2004.

DUARTE, Rodrigo. Som musical e reconciliação a partir de ‘O nascimento da Tragédia’ de Nietzsche. Belo Horizonte: Kriterium XXXV-89, 1994, p. 74-90.

GRAVES, Robert. Les mythes grecs. Tradução em francês de Mounir Hafez, Paris: Fayard, 1967, p. 32-34.

KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. Traduzido por Álvaro Cabral e Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. Traduzido por Pedro Süssekind, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Olhar escutar ler. Traduzido por Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MARIE, Jean Etienne. L’home musical. Paris: Librarie Arthaud, 1976.

NATTIEZ, Jean-Jacques. O Combate entre Cronos e Orfeu: ensaios de semiologia musical aplicada. Tradução de Luiz Paulo Sampaio. São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria, 2005.

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: Os pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1996.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Traduzido por Maria Helena Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

RIBEIRO, José Alexandre dos Santos. Sobre os instrumentos sinfônicos e em torno deles. Rio de Janeiro: Record, 2005.

SILVEIRA, Fernando José; WINTER, Leonardo Loureiro. Interpretação e execução: reflexões sobre a prática musical. Belo Horizonte: Per Musi, Revista Acadêmica de Música n. 13, p. 63-71, jan-jun, 2006.

Alexandre Siqueira de Freitas – Mestre em Musicologia pela Universidade de Toulouse II, Le Mirail, França, pós-graduado em Prática Interpretativa pelo Conservatório Nacional de Toulouse e Bacharel em Música com habilitação em Piano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Como pianista, foi vencedor do V Concurso Nacional de Piano Souza Lima e do Concurso para solistas da Orquestra Sinfônica da UFRJ e se apresentou como solista e camerista na França, Portugal, Canadá e inúmeras salas de concerto e teatros do Brasil. Atualmente está cursando o doutorado na Universidade de São Paulo.