Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 238p., n.1, 2014
GUIGUE, D.; NODA, L.; BRAGAGNOLO, B. M. Timbre e Escrita ao Piano: por uma Incorporação do Comportamento Acústico do Piano na Composição...
Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 137-158
Didier Guigue (Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil)
Luciana Noda (Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil)
Bibiana Maria Bragagnolo (Musikeon, Valência, Espanha)
Resumo: Ainda que incompletos, os dados fornecidos pelas pesquisas científicas sobre a acústica do piano nessas últimas décadas permitem destacar com precisão um comportamento típico do instrumento, que pode ser reduzido a um princípio de decréscimo ponderado da complexidade de espectros proporcional à altura da frequência funda- mental. Explicitadas as causas deste princípio, este texto recorda em que medida esta “permanência causal” (Schae- ffer) pode ser moldada pelas diversas modalidades de ação sobre a interface do instrumento e mostra como o controle do compositor e do intérprete se exercem sobre as duas dimensões que determinam a qualidade (timbrística) inicial de uma dada altura – os registros e as intensidades. Destaca-se destas observações uma dissociação funcional funda- mental entre estas duas dimensões: a escrita do registro impõe uma escolha passiva dentre as invariantes possíveis e a escrita das intensidades indica uma direção e uma taxa de modulações a serem efetuadas sobre as invariantes es- colhidas. Após uma sessão sobre a incidência da ação dos pedais sobre o timbre, é proposta uma avaliação geral das condições de controle das variáveis, do que se conclui que a notação, mesmo a convencional, é capaz de representar simbolicamente o timbre resultante das prescrições notadas, desde que formalizadas as correlações entre o som e o símbolo e definida uma estratégia funcional de decodificação.
Timbre and Piano Writing: for an Incorporation of Piano’s Acoustic Behavior for Musical Composition and Analysis
Abstract: Last decades’ researches on the acoustics of piano allow to pinpoint a typical behavior of the instrument. This can be defined by a principle of weighted decrease of the complexity of the spectra, which are proportional to the pitch of the fundamental frequency. After explaining the causes of this behavior, this paper considers to what extent this “causal permanence” (Schaeffer) can be shaped by the different modes of action on the interface of the in- strument. Additionally, it shows how the composer and the performer can control the two dimensions which deter- mine the initial quality (timbristic) of a given pitch - register and intensity. These two dimensions are characterized by fundamental functional dissociation between them: the notation imposes a passive choice among the possible in- variants (the pitches) and the written “dynamics” indicate a direction and a rate of the modulations to be applied on the chosen invariants. After a session dealing with the role of pedaling on timbre, a general assessment of the condi- tions of control variables is proposed, which leads to the conclusion that the notation, even conventional, is able to represent symbolically the resulting timbre of the prescriptions, as long as the correlations between sound and sym- bol set and a functional decoding strategy are formalized.
Frequentemente o piano é descrito por meio de um epíteto de tal ordem. Contudo, a observação empírica do modo de produção do som neste instrumento, mais especificamen- te da distância e da complexidade que representa a interface mecânica entre o gesto instru- mental e a produção do som, induz certa inércia timbrística, que se junta à inércia de um temperamento forçado à igualdade. Estas duas características não favorecem a principio uma versatilidade expressiva, sobretudo se comparada à flexibilidade e à quantidade de pa- râmetros disponíveis – com um máximo de imediatismo – nos instrumentos monofônicos, de cordas ou de sopro.
Na verdade, muitos estudiosos da acústica, desde Bouasse em 1926, creem que o
pianista tem uma pequena margem de ação sobre o timbre; S. Lienard, no Colloque sur
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le piano, organizado pelo Grupo de Acústica Musical em 1967, afirma que “uma nota ao piano é praticamente indeformável” (LIENARD, 1967). Mas quando todos os pianistas são unânimes em reconhecer que a essência do instrumento reside no controle da sonorida- de, que eles têm a sua disposição “uma paleta sonora da qual é impossível enumerar to- das as cores, de tão diversas” (GIL-MARCHEX, 1925), pode-se pensar que existe no míni- mo uma ambiguidade no sentido da expressão “timbre do piano” e os dados e fatos que ela encobre.
De fato, as propriedades heterogêneas dos materiais utilizados na fabricação do ins- trumento (feltro, madeira, couro, metal), o comportamento não linear dos contatos e a fric- ção de diferentes componentes do mecanismo do piano, permaneceram por muito tempo, e ainda permanecem em grande parte, difíceis de mensurar. Entretanto, avanços importan- tes, realizados nos últimos trinta anos nas técnicas de avaliação, tornaram mais fácil a me- dição dos fenômenos complexos que interferem na produção de um som no piano e da in- teração pianista/mecânica. Um importante artigo de Hideo Suzuki e Isao Nakamura (1990) traz os resultados mais significativos e realiza um panorama das orientações atuais das pes- quisas neste campo.
Nós nos contentaremos aqui em relembrar o essencial do comportamento do ins- trumento, sob a luz dos dados que a acústica nos forneceu, na medida em que as informa- ções trazidas por esta disciplina nos permitam avançar na definição do que pode ser com- preendido com “timbre” no piano, quando um compositor, um intérprete ou um ouvinte se referem a ele.
O que produz a sonoridade ao piano é, na realidade, a soma de diversos componen- tes, que podemos dividir em dois grupos, através de um critério temporal: o som inicial do ataque e o som subsequente de extinção.
a) Ataque: O choque inicial do dedo sobre o conjunto da estrutura do instrumento
provoca um som de percussão (SCHAEFFER, 1966), que Weinreich compara ao de um xi- lofone. Este som provoca um “ruído com um impacto bastante surdo e precede muito ligei- ramente no tempo o som principal” (BOUTILLON, 1990)2. Este ruído depende da qualidade do toque, mas de uma maneira geral, é mais perceptível no registro superagudo do que no grave, não por que ele seja mais forte no primeiro caso, mas porque o som principal que o segue é mais frágil, por razões que serão explicadas posteriormente (BLACKHAM, 1985). Este ruído tem sempre a mesma duração, por volta de 15ms (BOUTILLON, 1990)3.
Esta particularidade percussiva, ainda que caracterizada explicitamente por Cristofori desde 1709, quando nomeou sua invenção “clavicembalo a marteletti”, parece ter sido explorada pelos compositores somente a partir do século XX, com Bartók e Stravinsky (RISSET, 1978). A partir de então, foi geralmente esta qualidade que permitiu que o piano fosse integrado ao grande organismo timbrístico que é a orquestra do século XX, além da função de solista, único papel que se sabia/podia confiar ao instrumento frente à orquestra no passado4.
Vindo logo após o transitório ataque, o som dito “principal” é produzido pelas cor- das postas em vibração através do choque do martelo, pondo em movimento a tábua harmô- nica e eventualmente outras cordas (BOUTILLON, 1990). Ele se singulariza pela ausência de uma parte estável, pois o amortecimento começa logo em seguida. A duração desta fase do ataque independe do registro: 3ms (FLETCHER et al., 1962, p. 753).
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b) Extinção: A extinção do som começa quase que imediatamente e se dá em duas fases, a primeira – o som imediato – bastante rápida e a segunda – o som residual – mais lenta, que ocorre no final de 0,5 à 2s. (WEINREICH, 1985).
O som imediato resulta de um modo cujo decréscimo é bastante evidente e que cor- responde a uma solicitação da tábua (harmônica) seja perpendicularmente ao seu pla- no (no caso de uma só corda) ou seja pelas duas (ou três) cordas vibrando praticamen- te em fase, logo após o ataque: as vibrações são significativas e esgotam rapidamente a energia das cordas. Então, o som imediato é intenso porém se extingue rapidamente. O som residual vem da solicitação da tábua por uma só corda em outro plano de po- larização, ou por duas cordas vibrando em grande defasagem de fase [conesertar em todas as aparições] (pouco após o ataque [...]); ao inverso do som imediato, a tábua vibra pouco, mas por mais tempo. (BOUTILLLON, 1990, p. 813 [grifo nosso])
A defasagem de fase acontece devido a um conjunto de fatores que contribuem para a falta de uníssono entre as duas ou três cordas de uma nota, assim como o fato de que o martelo não imprime nelas amplitudes rigorosamente exatas (WEINREICH): esta defasa- gem se instala progressivamente, após um breve período de fase no ataque (HUNDLEY et al. 1978)5. O grau de desacordo entre as cordas influi na duração da extinção do som residu- al (SUZUKI; NAKAMURA, 1990, p. 181). Além disso, o fabricante e o afinador, manejando este desacordo, podem modular a dupla extinção dos batimentos, de maneira a homogenei- zar a sonoridade de uma nota à outra. Kirk (1959) estabeleceu que os melhores resultados para uma “boa sonoridade” são obtidos quando é aplicada uma diferença de 1,5 a 2 centési- mos na afinação de cada corda (ver também QUITTER, 1958, p 100).
O som residual é “muito doce” comparado ao som imediato (WEINREICH op cit.). Esse último, por sua vez, passa por alguns fenômenos ligados à elasticidade das cordas, que se traduz, segundo Boutillon (op. cit.) por uma “acentuação perceptível, mas fugaz, de par- ciais agudos”6. Esta lei de dupla extinção, relativamente estável, não é, no entanto, inerte. Do grave ao agudo, a duração do amortecimento encurta – de um máximo de 53ms a um míni- mo de 0,2s, enquanto o nível de pressão acústica passa de 4.5 a 80 dB/s. Seguem abaixo da- dos de um estudo realizado por Martin (1947, p. 538) em um piano de meia cauda.
Tabela 1: Tempo de amortecimento.
NOTAS | Lá0 | Sol1 | Sol 2 | Sol3 | Sol4 | Sol5 | Sol6 |
TEMPO DE AMORTECIMENTO (s) | 30 | 27 | 20 | 15 | 10 | 5 | 2 |
Esta queda está ligada a fenômenos físicos como o da fricção e da radiação (RISSET,
1978), que as técnicas de compensação utilizadas por fabricantes e afinadores atenuam, mas não suprimem. Ela depende também da velocidade do ataque (HAURY, 1987). Ela é geral- mente interrompida antes de terminar, através da intervenção dos abafadores, no momento do relaxamento do toque. A ação do pedal da direita tem como efeito deixar decrescer na- turalmente esta fase.
Nós sabemos, desde Stumpf (1926), que uma grande parte do timbre se define pe- las transitoriedades do ataque. Mas no piano a transitoriedade da extinção se torna um fator preponderante para o reconhecimento do som. Schaeffer (1966) reportou experiências se- gundo as quais em certas condições e, sobretudo, nos registros inferiores, um corte na fase de ataque não impede a identificação da fonte sonora. Inversamente, se gravarmos um som de piano cortando a fase de extinção, a fonte sonora se torna irreconhecível (experiência de Houtsma apud ROSSING, 1989). Leipp (1971) afirma que a transitoriedade da extinção “é
suficiente, por si só, para indicar que não se trata nem de um violino, nem de uma flauta”.
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Se as fases de ataque e extinção são, no ponto de vista da análise acústica, como acabamos de mostrar brevemente, claramente ordenadas no tempo, de maneira sucessiva, é possível que elas se interliguem para análise auditiva e, portanto, para a identificação do timbre do piano: Schaeffer mostrou como a sensação subjetiva de ataque está, na realidade, correlacionada com a forma do começo da extinção da amplitude – que é um atributo da se- gunda fase. Isso se compreende muito bem quando se observa que a fase de ataque é infini- tamente mais curta que aquela de extinção. É neste ponto preciso que se situa a amplitude máxima do som, e este ponto é muito importante na percepção do som com ênfases dinâ- micas (PALMER; BROWN, 1991).
Material. “A corda tem um papel central no funcionamento do instrumento. Ela não emite nenhum som audível, mas estoca a energia cedida pelo martelo e, através de sua ressonância, dita o comportamento vibratório à tábua harmônica” (BOUTILLON, op cit.). Nos pianos modernos, salvo exceções, as cordas das 26 notas mais graves são revestidas por cobre e as demais são de aço não encapado. O número de cordas revestidas varia de acordo com o fabricante e tamanho do instrumento. Nos grandes pianos de cauda, uma certa quan- tidade de notas comporta três cordas (DYSON; MENHENNICK, 1988).
Comprimento e diâmetro das cordas. Uma Tabela como a de Klepac7 determina
para cada nota o comprimento necessário, a tensão e o diâmetro da corda. As curvas de Fletcher et al. (1962) explicam porque “as cordas graves do piano são muito mais longas e pesadas que as cordas próximas a 1000Hz. É preciso muito mais energia para a percepção do grave se desejamos um instrumento homogêneo (LEIPP, 1971, p. 115). A impossibilidade de instalar tais cordas em um piano vertical é uma das razões de sua inferioridade qualita- tiva (BOUTILLON, 1990).
As cordas agudas são tão tensas e rígidas que produzem poucos parciais, ao contrá- rio das cordas graves, que os produzem em maior quantidade, todavia sem os parciais disso- nantes mais agudos (McFERRIN, 1972, p. 45), pelo menos nos pianos de cauda. Experiências têm mostrado que a fundamental pode ser encoberta por um dos parciais, o que não impe- de o ouvido de perceber o som na mesma altura que a fundamental (fenômeno de resíduo) (RISSET, 1978b). Esta percepção perde sua nitidez na medida em que o parcial dominante se distancia da fundamental e aumenta o coeficiente de inarmonicidade, como acontece nas notas mais graves.
Número de cordas. Quanto mais curta, fina e tensa é a corda, menor é o número
de parciais que ela emite e mais breve é a sua fase de extinção. Uma das soluções encontra- das com o fim de remediar este problema foi de aumentar o número de cordas em função do registro8. De fato, quando duas cordas de um grupo em uníssono vibram juntas, a vibração dura mais tempo do que se uma só corda fosse posta a vibrar (WEINREICH, 1985, p. 44). Assim, de modo geral, as notas mais graves (geralmente até o Si1) tem uma corda, as seguin- tes duas cordas e as notas a partir do Fá3 possuem três cordas cada9. Mas mesmo assim, as notas mais agudas, aquelas em que as cordas não passam de 5cm de comprimento útil – a partir do Ré#5 – tem tão pouca ressonância que os fabricantes removem seus abafadores.
A correção deste problema pelo fabricante Bluthner (e que detém sua exclusividade desde 1873) consiste em adicionar uma quarta corda para cada nota da região aguda, com
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o propósito de melhorar a qualidade timbrística e aumentar a ressonância. Esta corda vibra em simpatia com o uníssono abaixo dela. Esta corda a mais pode ser afinada, na região infe- rior, uma oitava acima do uníssono, e no alto deste registro, em uníssono (McFERRIN, 1972; HELFER; MICHAUD-PRADEILLES, 1985; DYSON; MENHENNICK, 1988)10.
Enarmonia. A extrema rigidez das cordas do piano modifica aquilo que é chamado de “força de reforço”, força que tende a trazer a corda de volta à sua posição inicial depois que ela foi posta em movimento. Isso resulta que os parciais produzidos não são exatamente harmônicos. Mais precisamente, o desvio é tal que o 16º parcial é um semitom mais agudo que o harmônico correspondente, o 23º um pouco mais de um tom, o 33º mais de dois tons e o 49º (presente no Lá0) é deslocado em 3.65 tons mais agudos (BLACKHAM, 1985, p.. 37; BACKUS, 1977, p. 287).
Chama-se “taxa de enarmonia” a diferença de frequência entre o parcial enarmô- nico e o parcial harmônico teórico. Young (1952) desenvolveu fórmulas calculando o coefi- ciente de enarmonia. Outros modelos matemáticos foram propostos, entre eles o de Flecher (1964 apud ROSSING, 1989, p. 291) – que propõe que a enarmonia das cordas varia segundo o quadrado do parcial – e o de Boutillon (1990). Destas experiências foi determinado que a taxa de enarmonia decresce em proporção inversa ao comprimento útil da corda, seu diâ- metro e sua tensão: em outras palavras, ela será menor para uma corda longa, fina e tensa. Assim, se aumentamos experimentalmente o diapasão da fundamental, tornando a corda mais tensa, a enarmonia decresce (MCFERRIN op cit.). Além disso, a enarmonia de uma corda revestida será superior àquela de uma corda não revestida (SUZUKI; NAKAMURA,
op cit.).
O fabricante deve resolver a seguinte questão: a eficácia da produção do som de- manda a maior tensão possível das cordas – cordas de alta densidade – ao mesmo tempo em que minimizar a enarmonia necessita de cordas com o menor diâmetro possível. Todavia, esta enarmonia, mantida dentro de certo limite, é um critério de “boa qualidade” do tim- bre, mais do que o contrário. Em seus primeiros testes, Fletcher et al. (1962) utilizaram sons sintéticos compostos de parciais harmônicos. Estes sons foram identificados pelos ouvin- tes como o que eles eram – sons sintéticos – e não como sons que lembrassem o do piano. Nos testes ulteriores, a aplicação de um modelo de enarmonia aos sons sintéticos provocou uma clara melhora qualitativa na simulação e, por consequência, na identificação do som. Os autores concluíram que o “calor” do som é causado pela enarmonia dos parciais e que é este calor que dá ao timbre do piano uma qualidade que o distingue dos demais instrumen- tos (ibid, p. 758).
De uma maneira geral, é suficiente afirmar, à luz das experiências realizadas, que a quantidade e a taxa de enarmonia são proporcionais ao número de parciais emitidos por uma corda.
Afinação das cordas. Foram evocadas anteriormente (2.2) as razões e modalidades
da desafinação dos conjuntos de duas e três cordas que compõe uma mesma nota. É tam- bém necessário relembrar que a principal particularidade da afinação do piano consiste em um princípio de “alongamento” das oitavas (stretching) (KIRK, 1956; MARTIN; WARD,
1961; QUITTER, 1958, McFERRIN, 1972; KENT, 1977). Esta técnica tem por finalidade ate- nuar o efeito “dissonante” criado pela enarmonia natural das cordas, evocada no parágrafo anterior, quando tocamos simultaneamente em diversos registros. Visto que os parciais se afastam progressivamente, em função de sua ordem, de uma posição perfeita em relação à fundamental, baixar as fundamentais graves e subir as fundamentais agudas tem por efei- to, se as proporções de desafinação forem judiciosamente escolhidas, fazer coincidir estas últimas com os parciais das primeiras (WELLS, 1981, p. 30): a afinação soará “mais justa”,
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pois os parciais se encontrarão em fase, mesmo se paradoxalmente as oitavas se tornam mais “falsas” à medida em que se afastam do registro central. Nos pianos de cauda este stre- tching é simétrico entre o grave e o agudo e alcança quase 40 centésimos de tom (aproxi- madamente) nas duas notas extremas do instrumento (McFERRIN op cit.). Nos pianos ver- ticais o stretching é mais importante nos graves. Railsback (apud McFERRIN) conclui que a qualidade do timbre do piano, em termos de ressonância, é inversamente proporcional à taxa de stretching no grave.
Número de parciais. Fletcher et al. (1962) estabeleceram de que maneira varia o
número e a intensidade individual dos parciais ativados assim que a corda é posta em vi- bração. Estas variações são consideráveis. O número de parciais depende da altura e da fun- damental. Foi constatado através de suas pesquisas no sonógrafo um decréscimo gradual do número de parciais na medida em que a frequência da fundamental aumenta:
Tabela 2: Número de parciais em decréscimo na medida em que a frequência da fundamental aumenta.
Lá0: 49 parciais | Dó1: 35 parciais | Sol1: 34 parciais | Dó2: 32 parciais | Sol2: 27 parciais | Dó3: 20 parciais | Sol3: 15 parciais |
Dó4: 12 parciais | Sol4: 8 parciais | Dó5: 8 parciais | Sol5: 5 parciais | Dó6: 3 parciais | Sol6: 3 parciais | Dó7: 2 parciais11 |
Nesta Tabela, nenhuma das frequências observada dos parciais de um Sol se en- contra naquelas frequências dos parciais de um dos Sol que é superior12. Como o número de parciais é mais importante na medida em que a frequência fundamental diminui, e que sua enarmonia cresce em proporção (como vimos acima), a dissonância provocada por es- tes múltiplos batimentos de frequências vizinhas aumenta igualmente, inversamente àque- la frequência fundamental.
Intensidade relativa e comportamento temporal dos parciais. O registro não é o único fator de variação do número de parciais: o tempo é outro fator. A intensidade varia de uma maneira que parece difícil criar um modelo, em função dos fatores anteriormente des- critos e, além disso, do tempo. Certamente, o fenômeno de extinção do som está correlacio- nado com a extinção progressiva e geral de seus parciais.
Além disso, em princípio, os parciais superiores se desativam mais rapidamente que os parciais inferiores (SCHUCK; YOUNG, 1943). Contudo, o exame das curvas gráficas do decréscimo de cada parcial de cada nota estudada por Fletcher et al. mostram que a es- trutura (número e intensidade individual) mudam a cada instante: certos parciais podem até crescer em intensidade relativa antes de começar a decrescer. A alteração experimental da intensidade dos parciais influi significativamente no som geral.
Uma constante relativa na estrutura das intensidades relativas parece residir no fato que abaixo do Dó4, o parcial mais forte não é a fundamental. O nível do parcial mais próximo da fundamental, e de intensidade relativa dominante, se eleva na medida em que se desce para o grave. Considerando a a intensidade máxima – 0dB – obtêm-se os seguintes parciais13: para Dó4 (e abaixo): f1; para Sol3 e Do3: f2; para Sol2: f2 e f3 (os dois parciais al- cançam 0dB); para Do2: f1 e f4; para Sol1: f3; para Dó1: f4; para Lá0: f5, f19 e f21.
Além disso, se observa (QUITTER, 1958) que para os sons graves o oitavo parcial e seus múltiplos são notavelmente ausentes, “por conta do nó causado pelo ataque do marte- lo às frações do comprimento da corda” (ibid, 98). Então, estamos aqui na presença de dois fatores suplementares de aumento da enarmonia em função do registro. Não é possível tirar conclusões acerca do comportamento atípico da intensidade relativa dos primeiros parciais
do Dó2, que distorce uma curva de crescimento relativamente linear.
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O martelo. A cabeça do martelo consiste em um núcleo de madeira recoberto, des- de 1826, por diversas camadas de feltro (HELFFER; MICHAUD-PRADEILLES, 1985). Este material é outro elemento importante para a sonoridade. Quanto mais elevada a densida- de do feltro, mais brilhante será o som14. Além disso, ele influi na relação força/tempo (SUZUKI; NAKAMURA, 1990, p. 162).
O martelo é ligado à ação da alavanca – a tecla – por um mecanismo que se tornou cada vez mais complexo ao longo da história. Todas as peças que são progressivamente in- terpostas entre a tecla e o martelo têm por função aumentar o refinamento do controle da ação mecânica de percussão das cordas pelo toque do pianista. Em outras palavras, a evolu- ção da fabricação do piano é governada pelo desejo de reduzir ao máximo possível a distân- cia psicológica, ou psicoacústica, entre o gesto e o som, elaborando um mecanismo cada vez mais apto a responder, com a menor defasagem possível, às mais sutis inflexões do toque, mesmo se esta aproximação se traduz, paradoxalmente, no acúmulo complexo de retrans- missões e intermediários entre as duas extremidades da corda15. A distância que o marte- lo percorre para encontrar as cordas é da ordem de 47mm em um Steinway (ASKNFELT; JANSSON, 1990, p. 54).
Velocidade do martelo. Bouasse observa em seu tratado de acústica (1926, p. 409)
que “o pianista dispõe de uma só variável, a velocidade com a qual o martelo atinge a cor- da”. Askenfelt e Jansson (op cit.) mostraram a relação entre a expressão da dinâmica musi- cal através da velocidade do ataque e a velocidade de reação do mecanismo, em particular do martelo. Palmer e Brown (op cit.) encontraram uma relação quase perfeita de linearidade entre a amplitude máxima de um som individual (aquela que aparece no cume do ataque, nos primeiros instantes da fase de extinção) e a velocidade do martelo. As pesquisas efetu- adas por Jean-Claude Risset em um Disklavier Yamaha16 confirmam esta relação: eles esta- beleceram uma velocidade média de 200ms para a nuance pp, 100ms para mp e 20 a 30ms para ff. Velocidade e intensidade estão estreitamente relacionadas, mas velocidade e espec- tro também. Detalharemos posteriormente a interação velocidade/timbre, mas é importante ressaltar que o motor desta interação é a ação sobre a velocidade do martelo.
Boutillon (1988) estabeleceu que a taxa de aceleração do martelo é fortemente afe- tada pela velocidade do impacto. Nakamura (NAKAMURA; SUZUKI, 1990, p. 171) calcula que a taxa de transferência de energia do martelo para a corda é de quase 100% até o Dó2, e que ela se aproxima de 2% somente nas últimas notas agudas. A eficácia da transmissão depende, no entanto, da velocidade inicial do martelo (ibid, p. 174). No grave a eficácia desta transmissão é bastante elevada para a maioria das velocidades iniciais do martelo.
Duração do contato do martelo. A afirmação, aparentemente lógica, de que a dura-
ção de contato é inversamente proporcional à força exercida (velocidade, então intensidade) não é geral. Como veremos abaixo, esta lei não se aplica para sons graves. Os estudos que Askenfelt e Jansson descreveram em seu artigo de 1990 (p. 60 – 61) mostram as seguintes durações [exprimidas nas colunas “nuances” em ms (aproximadamente)]:
Tabela 4: Durações máximas e mínimas das frequências (Dó).
NOTAS | Dó1 | Dó2 | Dó3 | Dó4 | Dó5 | Dó6 | Dó7 | Dó8 |
pp | 2.2 | 2.8 | 4.0 | 2.8 | 2.4 | 2.5 | 0.9 | 1.2 |
mf | 3.6 | 3.0 | 2.8 | 2.2 | 1.4 | 1.1 | 0.6 | 0.5 |
ff | 4.6 | 4.0 | 2.5 | 2.0 | 1.2 | 0.8 | 0.5 | 0.4 |
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O resultado mais notável deste estudo diz respeito ao duplo regime de duração de contato, dependendo se nos encontramos no registro grave (abaixo do Dó3) ou não. No pri- meiro caso, o contato é mais longo quando a velocidade do impacto do martelo é mais rápi- da. Os autores deste estudo explicam este comportamento singular na região grave através do fato que o contato do martelo com as cordas grossas é multiplicado por uma espécie de ricochete. O lugar de mudança de regime coincide com a mudança de material e número de cordas por nota. Por outro lado, as durações de contato não mudam proporcionalmente ao período fundamental de vibração da corda17: nos graves o contato não dura mais que uma fração do período. No médio, por volta de meio período e no agudo dura vários períodos. (ibid. p. 60 -61).
As pesquisas efetuadas no Japão, em particular por Nakamura e Yanagisawa (in SUZUKI; NAKAMURA, 1990), corroboram com estas informações, tanto no que diz respei- to à mudança brusca de regime – explicada diferentemente por Nakamura – quanto na po- breza harmônica das notas agudas e do múltiplo contato do martelo com as maiores cordas.
Lugar de contato. A zona percutida pelo martelo afeta a estrutura espectral da cor-
da vibrante. McFerrin (op cit. p. 45) localiza esta zona entre 1/7 e 1/9 do comprimento da corda (contado de qualquer extremidade). Tal distância fornece mais parciais e previne os enarmônicos que começam a ser percebidos a partir do 7º parcial.
“O paradoxo é grande entre o papel fundamental dos abafadores e a ausência de co- nhecimento científico sobre este tema” (BOUTILLON, 1990). “A transitoriedade da extinção é inteiramente regida pelo abafador, no momento em que se abandona a tecla. Pode-se ajus- tar à vontade a duração da extinção do som. A maneira de abandonar a tecla traz modifica- ções de timbre no momento da extinção do som”, pelo fato que ela permite moldar a distri- buição temporal da extinção de certos parciais (LEIPP, 1971).
A velocidade de abaixamento do abafador é, então, modulável pelo levantamento da tecla, assim como pelo levantamento do pedal da direita. Em suas simulações de sons de piano sintético, Fletcher et al. (1962) aplicaram uma velocidade de extinção de 0,8 a 7s. Foi visto (2.2) que a taxa e a rigidez do amortecimento de uma corda são correlacionados ao seu comprimento, o que explica que para atenuar os efeitos exponenciais os fabricantes não co- locam abafadores nas últimas notas.
Ocupando uma função análoga àquela do alto-falante em um meio de produção so- nora életro-acústico, ou àquela do diafragma (SUZUKI; NAKAMURA, 1990, p. 188), a tábua harmônica, que ressoa de forma não homogênea, anisotrópica e assimétrica, reage simulta- neamente a uma restrição estática – o efeito da tensão das cordas – e a uma restrição dinâ- mica – sua vibração. Martin (1947, p. 535) lembra que a retirada desta tábua harmônica tem por consequência encurtar pela metade a taxa de decréscimo dos sons, o que afeta mais os sons graves do que os agudos.
Um estudo de Hideo Suzuki sobre o assunto (1986), relatada por Boutillon, permitiu constatar que a eficácia da ressonância é muito baixa abaixo de 80Hz, que ela depende for- temente da frequência até aproximadamente 1.2kHz e, por fim, que ela se estabiliza em um
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valor bastante abaixo. Entretanto, a ligação entre estes cálculos e os parâmetros perceptivos significantes não foram estabelecidos (BOUTILLON, 1990). Além disso, quanto maior a tá- bua harmônica, menos ressonância ela tem e mais rapidamente as vibrações se extinguem, sem que uma razão para tal tenha sido encontrada até o momento (SUZUKI; NAKAMURA op cit. p. 194).
As informações expostas acima permitem extrair certas características do timbre do piano em função do comportamento das cordas. Uma grande partes delas converge para um decréscimo quase linear de certas qualidades do timbre, principalmente seu conteúdo espectral, do grave ao agudo: (a) as cordas graves produzem um grande número de parciais, dos quais uma grande parte é perceptível pelo ouvido humano, e a enarmonia se eleva pro- porcionalmente ao nível destes; (b) a nota fundamental é cada vez menos audível na medida em que sua frequência diminui; é, então, um dos parciais superiores (até o 5º para as notas mais graves) que passa a dominar18; paralelamente, os parciais múltiplos da fundamental tendem a desaparecer da área audível a partir do 8º; (c) por outro lado, as cordas graves pos- suem uma grande amplitude de vibração, e, consequentemente, o som que elas propagam possui um volume e uma duração superiores; (d) ainda para as cordas graves, a duração da dupla fase de extinção é longa, e a diferença de curva entre as duas fases é bastante percep- tível; o declive desta segunda curva é relativamente suave; (e) enfim, a duração relativa do contato do martelo com a corda é globalmente proporcional ao registro. Esta duração “tem implicações sobre o número de parciais proeminentes no espectro da corda” (ASKENFELD; JANSSON, 1990). Por outro lado, ela não altera substancialmente a amplitude no ataque (PALMER; BROWN, 1991).
Quanto mais elevada a frequência da fundamental, mais imprecisos se tornam es- tes fenômenos. As cordas, que deixam de ser revestidas a partir do registro médio, resso- am menos, produzem mais fundamental e menos parciais, o que faz com que a enarmo- nia seja menos significativa. O período da corda se torna progressivamente mais curto que a duração de contato do martelo, o que tem por consequência uma excitação progressiva- mente mais baixa do espectro. As duas fases de extinção tendem, na análise, a se fundir em somente uma (MARTIN op cit.). A taxa de depreciação do som aumenta, o que tem por efeito enrijecer o declive da curva de extinção. É isto que Pierre Schaeffer identifica como a “lei do piano” ou a correlação “enrijecimento dinâmico x riqueza harmônica” que cons- titui a “constante” que permite explicar a identificação de um som de piano, independente de quais sejam as características do registro utilizado. (op cit. p. 233; ver também CHION,
1983, p. 50 -51 e CADOZ, 1990, p. 69 e 1991, p. 21).
Este comportamento é capital para a sonoridade de uma nota produzida por uma só corda. Cruzando os dados observados sobre o número, a enarmonia relativa dos parciais, o nível do(s) parcial(ais) dominante(s), seus níveis relativos de pressão acústica, seu compor- tamento no tempo e sua duração de vida, todos estes elementos em função das proprieda- des da corda e do comportamento do martelo, podemos deduzir um princípio de decréscimo da complexidade espectral proporcional a altura da frequência fundamental. A expressão “complexidade espectral” cobre o conjunto de dados que acabamos de enumerar e consti- tuem a essência do que chamaremos de qualidade timbrística inicial de uma nota. Nesta acepção, esta qualidade k de uma altura h é inversamente proporcional à frequência f de sua fundamental: K (h) = 1/f(h).
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A este decréscimo qualitativo, em função do registro e resultante das propriedades e do comportamento do material, se interpõem fatores de função de reequilíbrio: (a) o núme- ro de cordas é progressivamente aumentado e as últimas cordas são desprovidas de abafado- res. A função essencial destas modificações estruturais parece justamente atenuar o declive da curva de decréscimo anteriormente referida. Além disso, Weinreich demonstrou como a taxa de desafinação entre as duas ou três cordas de uma mesma nota, afinadas por um afi- nador competente, pode contribuir no aumento da amplitude do som, do conteúdo espec- tral, da duração da extinção e da ressonância: se trata de uma compensação. Os valores óti- mos desta desafinação são compreendidos entre 0,5 e 2 centésimos de tom (QUITTER, 1958, p. 100); (b) o alongamento das oitavas (strechting) tem por fim atenuar o efeito de enarmonia nas notas graves, mas somente quando elas fazem parte de uma agregação ou figuram igual- mente entre as notas dos registros superiores; o alongamento, então, não possui efeito ne- nhum sobre a enarmonia de uma corda isolada; (c) A relação direta observada entre a causa
– velocidade imprimida no martelo – e o efeito – intensidade e o espectro ativado – permite influenciar na curva de decréscimo natural, se, por exemplo, o pianista ou um computador, imprime uma velocidade do martelo regularmente crescente do grave ao agudo. A intensi- dade é, no entanto, um parâmetro independente do registro. Assim, ela deve ser incorpora- da a uma análise dos timbres de maneira autônoma.
“O enriquecimento progressivo em parciais agudos na medida em que há um au- mento na nuance” (BOUTILLON, 1990, p. 815) já foi verificado há muito tempo, de modo que podemos afirmar que “exceto o ruído de percussão e a transitoriedade da extinção, o resto da sonoridade de uma nota é completamente relacionado à sua amplitude global e va- ria fortemente com ela” (ibid). Um fortíssimo se reconhece então pelo brilho que traz ao timbre.
Sabe-se que o controle desta intensidade necessita de um aprendizado muito com- plexo, pondo em relação um gesto excitador e um grau de intensidade. Através disso, se tor- na “possível realizar aproximadamente cem gradações dinâmicas ao piano” (NEUHAUS,
1971)19. As investigações de Lieber (1985) atestam a relação estreita entre a energia imprimi-
da na tecla, a duração de seu percurso e a intensidade musical. Um toque pp imprime uma energia de aproximadamente 7mJ no toque e o percurso dura 83ms. Para um toque fff, os valores obtidos foram de 290mJ e 17ms20.
Contudo, o nível de relação entre timbre e intensidade parece ainda difícil de ser quantificado. Lienard (1967) estimou que “qualquer que seja a força imprimida na tecla, a estrutura acústica de uma nota permanece sensivelmente idêntica [...] Que a nota seja f ou p, se encontra nela a mesma intensidade relativas dos componentes, a mesma ordem de apari- ção ou extinção, os mesmos batimentos”. Para ele, o parâmetro sobre o qual influi a intensi- dade é exclusivamente quantitativo: se trata de um número maior ou menor de componen- tes que certa intensidade pode fazer emergir sobre o ruído de fundo; “por mais indeformável que seja, o objeto se enriquece para o ouvinte, quanto mais o aumento do número de com- ponentes se dê, sobretudo verso 3000Hz, zona sensível do ouvido” (ibid).
Foi mostrado depois que se o aumento da intensidade é diretamente responsável pelo aumento da complexidade espectral de um objeto21, não é somente pelo aumento do número de parciais dentro do espectro audível, mas também pela alteração de seus níveis individuais de pressão acústica (BOUTILLON, 1988, p. 784 e 1990), pelo aumento exponen-
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cial da região das frequências agudas (ASKENFELD; JANSSON, 199022) e pelas perturba- ções no seu comportamento no decorrer do tempo (ibid). Podemos dizer, como Jean Haury (op. cit.), que neste sentido, “timbrar” ou “destimbrar” significa mudar imperceptivelmen- te a intensidade, e deduzir assim um principio corolário àquele da relação do timbre com o registro, segundo o qual a complexidade do espectro é linearmente função da intensidade.
A interface manual23 do piano é um controlador bastante forte e refinado do com- portamento e da saliência relativa dos constituintes do timbre, através de uma ação sobre a velocidade do martelo e, consequentemente, sobre a intensidade. Mas ao mesmo tempo, o processo de por em vibração uma corda através da percussão, tem por efeito criar uma fase inicial de amplitude máxima, onde a ênfase dinâmica específica e irredutível é um fator de estabilidade timbrística, de permanência e, portanto, de identificação. Nesta fase o pa- pel da fundamental e dos primeiros parciais será preponderante para a definição do timbre (PALMER; BROWN, 1991)24.
Em outras palavras, a dosagem da intensidade atua em certos componentes variá- veis do som – amplitude relativa e comportamento temporal de certos parciais – sem alterar as características fundamentais, cujos parâmetros – número de parciais presentes, taxa de enarmonia, etc... – se encontram de maneira estável – invariável – qualquer que seja a velo- cidade do martelo imprimida pelo executante. Esta distinção entre as categorias variáveis e invariáveis do timbre é primordial, pois ela marca os limites da possibilidade de controla-lo através do toque e à fortiori através da escrita. Ela permite, além disso, melhor compreender que a rica palheta sonora à qual os músicos fazem alusão provém, em grande parte, desta infinita variação sobre os parciais, controlada pela velocidade do martelo, e portanto, pelo toque, enquanto a relativa inércia do timbre pianístico descrita pelos físicos se encontra nesta fase inicial estável, essencialmente dependente do mecanismo e do material de pro- dução do som, sobre as quais o pianista não tem influência no momento de tocar: “O piano pode ser o menos expressivo dos instrumentos se nos restringirmos ao martelo que bate, ou ele pode se tornar uma verdadeira orquestra sabendo utilizar suas imensas possibilidades sonoras” (DESCHAUSSÉES, 1982).
Portanto, dada a presença de uma interface que permite um controle limitado das variáveis e realizado com base em uma causa física inicial invariável, reluta-se em definir o piano como uma “máquina de timbres”, espécie de “sintetizador do século XIX25”, capaz de evocar “uma centena de instrumentos” (RUBINSTEIN apud NEUHAUS, 1971), mas an- tes como “um conjunto de timbres vizinhos” (WESSEL, 1978), do qual pode ser interessan- te realizar uma topografia segundo o método de representação tridimensional exposta por Grey (1977)26. Esta definição se junta àquela, mais genérica, formulada por Borin et al., se- gundo a qual um instrumento “pode ser visto como a abstração de uma classe de sons ca- racterizados por um timbre, um comportamento dinâmico e certas possibilidades expressi- vas” (1990, p. 158).
Assim, sobre um dado eixo qualitativo onde, por exemplo, harmonia e enarmonia constituem os limites, dois parâmetros contribuem para situar uma nota n de piano: um
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parâmetro invariante, não controlável, e um parâmetro variante, controlável. O parâme- tro invariante, a “permanência causal” (SCHAEFFER op. cit.), é o registro desta nota – isto é, a altura da fundamental – que confere a ela certas qualidades ligadas à fabricação e ao comportamento do instrumento e sobre os quais nem o compositor nem o intérprete po- dem interferir27. O parâmetro variante é a intensidade, acessível ao compositor através das prescrições simbólicas, e diretamente ao pianista através de seu toque em tempo real; este parâmetro variante permite moldar as características invariáveis do som de maneira a en- fatizá-las ou minimizá-las.
Naturalmente, o compositor possui um poder absoluto sobre o parâmetro invarian- te, visto que cabe a ele a escolha das notas; mas este controle é de alguma forma passivo: tal timbre invariante será escolhido – através da inclusão na partitura da nota que o simboli- za – ou não. Não há nada que o compositor possa escrever, ou que o intérprete possa fazer, para obter um Dó1 com somente os dois primeiros parciais, ou um Dó6 com 25 parciais. Ao contrário, e analogamente, o controle sobre a intensidade pode ser descrito como ativo, pois a escrita e o toque podem ser retrabalhados até que o resultado seja satisfatório.
A escrita, ou a escolha das alturas absolutas, impõe, através de uma organização geral determinista, uma sequência de diversos timbres permanentes, escolhidos, “ins- critos no instrumento” (CADOZ, 1990), enquanto o registro da intensidade indica a di- reção e a taxa das modulações que operarão sobre os comportamentos acústicos destes timbres permanentes. Ao mesmo tempo em que da escrita das alturas, em regra geral, é o resultado de uma escolha absoluta, enquanto a das intensidades se situa em uma escala relativa, a primeira consiste em uma escolha obrigatória dentre as invariantes possíveis, o leque de notas disponíveis no piano – escolha em geral imposta de maneira não nego- ciável pelo compositor –, a segunda consiste em um controle das modalidades de varia- ção da permanência causal – controle que pode, ao contrário, ser delegado em diferentes proporções ao intérprete.
Essas colocações apontam para a natureza complementar da invariante – o registro
– e da variante – a intensidade, tanto para a descrição física do timbre do piano, quanto para a definição funcional dos parâmetros da escrita que interagem para a sua descrição simbó- lica. É esta complementariedade que a definição de “timbre” de um instrumento que Pierre Schaeffer faz (op. cit.) põe em evidência: “uma variação musical flexível que compensa uma permanência causal”. Podemos então retomar, tornando-a precisa e restringindo sua área de validade, a fórmula que Claude Cadoz propõe para definir o timbre (1991, p. 22), e dizer que o timbre de uma altura n de piano é a resultante de uma soma de três fatores: a “causa físi- ca” (características invariáveis do instrumento), o “registro” (escolha dentre 88 invariantes possíveis28) e a “escrita” (modulações do aspecto do espectro pelas variações de velocidade do martelo29). Esta fórmula situa claramente o parâmetro registro como um de ligação entre a invariante (causa física) e a variante (escrita).
O registro aparece, portanto, como um ponto de entrada privilegiado para a análi- se desta escrita de sonoridades que nos propomos a abordar: um nível qualitativo “zero” ou “inicial”, determinado à priori, de uma altura escrita. Em outras palavras, para cada altura notada, sendo portadora de certa qualidade timbristíca em função da altura da frequência fundamental à qual ela retorna, podemos imaginar que se pode atribuir um valor inicial simbólico desta qualidade timbrística. A intensidade escrita (uma indicação de dinâmica, um acento, uma menção textual...) intervem então como fator de modulação, de ponderação daquela qualidade “inicial”. Esta ponderação deve agir de tal maneira que o intervalo qua- litativo entre uma nota aguda, de qualidade “inicial” baixa, e uma nota grave, de qualidade “inicial” elevada, será menor se a primeira receber uma intensidade forte ( ff por exemplo)
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e a segunda uma intensidade suave (pp por exemplo). Esta qualificação ponderada consis- te em uma codificação unificada de duas dimensões da escrita, tendo em conta o espaço de controle disponível no interior das restrições físicas impostas pelo meio instrumental, e sua correlação estreita para a definição de cada elemento unitário.
Os pedais são a “alma a piano” (QUIDANT, 1888, p. 16). Esta metáfora empresta- da da fabricação de instrumentos de arco tem o mérito de atribuir, sem ambiguidade, aos pedais uma função fundamental de expressão artística. De fato, os pedais agem de manei- ra radical sobre os aspectos gerais do timbre. Contudo, os estudos sistemáticos consagra- dos a eles são pouco numerosos: a maior parte foi identificada e apresentada por Unkari (1993). Eles concernem sempre a aspectos históricos ou modos de aplicação segundo os estilos e compositores30: nenhum dos estudos aos quais tivemos acesso aborda o fenôme- no puramente acústico da intervenção dos pedais na sonoridade. Particularmente, não foi possível conhecer, em termos de medidas acústicas, a contribuição das vibrações simpá- ticas do conjunto de cordas, no momento da elevação dos abafadores causada pelo uso do pedal da direita – que chamaremos agora e por convenção “P” – ao espectro global de sons simultaneamente emitidos pela ação das teclas. A maioria dos pianos possui três pedais (BANOWETZ, 1992; HELFFER; MICHAUD-PRADEILLES, 1985).
Efeito. Levantando os abafadores, este pedal libera as cordas; ele tem dois efeitos simultâneos: a) as cordas que foram atacadas pelo martelo não são mais reprimidas em sua vibração, pois os abafadores são mantidos elevados. Desta forma, a energia residual do si- nal aumenta (LEHTONEN, 2007, p. 1796). Lehtonen mostrou também que a duração da fase de extinção aumenta em grande proporção no registro mediano (até mais 50% para o Dó4), mas diminui levemente no registro grave (menos 10% aproximadamente para o Dó2) (LEHTONEN, op. cit., p. 1789-1790, onde procura explicar este fenômeno de um ponto de vista físico); b) as outras cordas ressoam em simpatia, “os harmônicos de uma corda são en- riquecidos pela ressonância das outras cordas que fazem parte da mesma série harmôni- ca” (DYSON, MENHENNICK, 1988). A intensidade sonora das cordas postas em vibração por simpatia é proporcional ao número de cordas atacadas e à intensidade com a qual são atacadas.
P é mais efetivo nas notas graves, em virtude do comprimento e da amplitude supe- rior das cordas. Além disso, as ressonâncias por simpatia são mais numerosas e tem a van- tagem de se situar na melhor zona de percepção do ouvido (por volta de 2000Hz). Este pedal não tem nenhum efeito nas últimas cordas, que não possuem abafadores.
Excluida a extinção de fase que não demostra um comportamente linear, como vi- mos, pode-se deduzir destas informações um decréscimo do efeito de P na medida em que o registro sobe. Este decréscimo acontece no sentido de uma curva natural do piano ao em- pobrecimento timbrístico para o agudo, sobre a qual já comentamos.
O fenômeno de vibração por simpatia é muito delicado de avaliar, pois como vimos que são os parciais harmônicos que são a priori postos em vibração de maneira privilegiada, as outras cordas e o conjunto de cordas do instrumento, não deixam de o ser em um nível
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menor. Se pudermos concluir sem grandes riscos que o efeito de P sobre o timbre consis- te em um acréscimo de seus componentes espectrais, e pôr em presença parciais bastante inarmônicos, é difícil avaliar a taxa relativa destas contribuições.
Modo de ação. Unkari (op. cit.) enumera quatro fases na ação de P: 1) os abafadores
começam a se distanciar apenas quando P se encontra na metade de seu percurso; 2) eles se afastam, mas guardam ainda contato com as cordas; 3) eles se encontram suficientemen- te longe para que não haja contato; as cordas então vibram livremente; 4) o pedal continua ainda a ser pressionado e os abafadores se afastam ainda mais um pouco. “As fases 2 e 3 tem um feito sobre o som, as fases 1 e 4 são somente de ação do pianista” (ibid.).
Quatro modos de intervenção. P pode ser acionado (NEUHAUS, 1971; ROSEN,
1981; DESCHAUSSEES, 1982): 1) antes do ataque do som (pedal dito “acústico” ou “anteci- pado”); 2) simultaneamente ao ataque (pedal “rítmico”); 3) posteriormente ao ataque (pedal “sincopado”); 4) de maneira repetida (“vibrato” de pedal).
O número de cordas postas em vibração por simpatia e a intensidade das vibrações decresce nos três primeiros modos. Neste plano qualitativo, o quarto modo se assemelha à primeira oscilação do primeiro modo, pois o movimento repetido dos abafadores tem por efeito acelerar a perda de intensidade da vibração.
Três modos de relaxamento. Schnabel (1954) reconhece três maneiras de soltar P,
sendo elas: 1) antes da nota seguinte, 2) simultaneamente ao ataque da nota seguinte, 3) pos- teriormente à nota seguinte. Aqui, o efeito do pedal varia com o modo de relaxamento utili- zado. O efeito máximo é obtido com o terceiro modo, onde as vibrações provocadas por duas notas (ou agregações) sucessivas se misturam no fim do toque.
Coordenação aplicação/relaxamento. O modo 4 de aplicação do pedal será con-
siderado como uma variação de ordem qualitativa de intervenção do pedal. É preciso res- saltar que os três modos básicos de aplicação (1, 2, 3) podem ser combinados com todos os modos de relaxamento: o intérprete lida assim com uma apreciável paleta de dosagem – 9, precisamente – da intensidade do efeito do pedal, escolhendo os momentos de sua ação e, portanto, a duração desta ação.
O pedal una corda (UC) intervêm na forma do envoltório do som. Aproximando ou deslocando lateralmente os martelos, ele modifica seu impacto nas cordas, diminuindo “a importância relativa da polarização vertical de uma corda [...] através da forte dissimetria introduzida no início das vibrações” (BOUTILLON op cit., p; 814). Weinreich (op. cit., p. 47) explicou muito bem como o uso deste pedal tem por efeito reequilibrar o nível sonoro das duas fases do som do piano, em benefício da segunda, o som residual, que é, como já foi dito, bastante suave em relação ao som imediato comparativamente “duro”.
O resultado é, certamente, uma diminuição da intensidade global31, mas, sobretu-
do, uma alteração do contorno do envoltório tal que os efeitos mais agressivos da fase inicial de ataque são atenuados: “Em um som “pianíssimo”, ele [o artista] nos dá [...] a ilusão de ou- vir o doce som da harmônica de vidro” (STREICHER, 1830, p. 14): a descrição deste célebre fabricante de pianoforte, contemporâneo e amigo de Beethoven, do efeito do pedal UC, mos- tra claramente que os fabricantes tiveram em mente, desde o início, um efeito simultâneo sobre o timbre e sobre o volume. Através de sua metáfora da harmônica de vidro, Streicher nos mostra que ele havia trabalhado em vista de apagar o pico inicial da curva do revesti- mento do som normal do piano32. Trata-se, então, de um efeito quantitativo e qualitativo so-
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bre o timbre (HAURY, 1987, p. 21, nota 3). A amplitude da velocidade das cordas unitárias no momento do impacto, quando utilizado o UC, foi mesurada cientificamente (SUZUKI; NAKAMURA, op. cit., p. 179). Mas de uma maneira geral, como por P, as medidas físicas são complexas e muito pouco correlacionadas com o contexto. Em si, elas não fornecem ne- nhum meio de quantificar seu impacto abstrato no nível do pensamento e da escrita.
Nota-se enfim que desde Beethoven foi percebida a possibilidade da colocação pro- gressiva do pedal UC, praticamente simétrica àquela de P [cf. supra 8.1.2]. O “meio pedal” UC “desloca ligeiramente a mecânica dos martelos, de modo que o martelo ataca o conjunto de cordas com uma parte mais mole de sua superfície, aquela que não é habitualmente uti- lizada” (UNKARI, op. cit., p. 12). É, então, de um falso “due corde” que se trata, mas o ou- vido, no qual a análise é grosseira neste plano, percebe bem qualquer coisa como um efeito intermediário entre o som normal e o som do UC ativado completamente.
O pedal tonal ou “sostenuto” (TP) é o pedal do meio, aquele que se encontra entre o pedal de ressonância, da direita e de UC, da esquerda. Ele remove os abafadores correspon- dentes às teclas que já estão pressionadas. Assim, estas cordas continuam a vibrar mesmo depois que o pianista tenha relaxado a pressão sobre a tecla, mas os abafadores das cordas restantes funcionam normalmente (BLATTER, 1980, p. 223). Apresentado em Paris pela primeira vez em 1844 por um fabricante de Marselha, Boisselot and Sons (BANOWETZ,
1992, p. 4) este tipo de acionamento do pedal foi patenteado 30 anos depois, em 1874, pela Steinway (ROSENBLUM, 1993, p. 173; BANOWETZ, 1992, p. 4). O pedal tonal já era bem conhecido na época de Debussy, mas só foi mencionado explicitamente em uma partitura muito mais tarde33. Isto não significa, evidentemente, que ele não fosse utilizado anterior- mente, do contrário não faria sentido os fabricantes continuarem a instalá-lo.
Este pedal foi concebido inicialmente como uma alternativa a P, que permitia esco- lher quais cordas seriam liberadas dos abafadores, isto, em parte, com o fim de evitar vibra- ções “anti-harmônicas” (MARMONTEL), que podem ser percebidas como indesejáveis em um contexto tonal e, também, com o fim de permitir manter os pedais de baixo, liberando a mão esquerda para outras tarefas.
Certos compositores o utilizaram como meio de por em evidência planos sonoros di- ferenciados. A Terceira Sonata de Boulez e a Sequência IV de Berio são paradigmáticas des- ta incorporação do TP à escrita (GUIGUE, 2011, p. 263; ROSEN, 2002, p. 218; ROSENBLUM,
1993, p. 175).
Existe uma alternativa manual à ação do TP: o pianista pressiona silenciosamente e anteriormente as teclas que devem ressoar por simpatia quando as próximas notas forem tocadas. No ponto de vista da análise, estas duas ações (TP ou toque manual) são equiva- lentes no resultado sonoro34.
Pode-se, genericamente, convencionar duas categorias de uso dos pedais. A primei- ra delas caracteriza o pedal como auxiliar da expressão de outras dimensões da escrita: os pedais enfatizam as variações de intensidade, de articulações ou de durações, perceber a infraestrutura harmônica (TP) ou permitem reproduzi-la independentemente do toque ma-
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nual sobre as teclas. Esta categoria, onde o uso do pedal é dependente de prescrições ex- trínsecas, e sem dúvida a primeira a ser historicamente explorada; por não necessitar de notação especial, tais fazem parte das escolhas do intérprete35 e são uma ferramenta suple- mentar para a execução de prescrições explícitas ou implícitas.
A segunda categoria leva em conta de maneira autônoma os efeitos que os pedais produzem sobre o timbre, sem esperar que as dimensões extrínsecas mencionadas acima sugiram o seu emprego. Esta categoria foi desenvolvida, sobretudo, no nosso século, ain- da que Beethoven já pressentisse a sua importância. Ela precisa, em geral, de algum tipo de notaçao autônoma e de uma formalização no planejamento composicional. O intérprete pode também tomar decisões relevantes nesta categoria de uso dos pedais, particularmente quando a notação é apenas implícita, como é o caso em Debussy36, ou deficiente.
Rosenblum (1993, p. 175) comenta sobre o detalhamento do pedal na escrita de al- guns compositores37, onde os resultados dessa pedalização são tão importantes para o som quanto são a dinâmica e articulação, e um alto grau de virtuosidade é necessário para sa- tisfazer uma performance.
A Tabela abaixo é uma interpretação das conclusões deduzidas dos trabalhos elen- cados na primeira parte deste artigo. Elas são complementadas pelas observações de E. Leipp (1967, p. 13) sobre as medidas físicas do piano e seus significados. Esta Tabela indica, para cada constituinte do timbre, seu grau aproximado de “controlabilidade” e os meios de controle. Esta tabela diz respeito ao controle através da escrita e/ou do toque em tempo real de uma nota n tomada isoladamente.
Os parâmetros invariantes – aqueles nos quais a possibilidade de controle é nula
– representam cerca de um terço da lista, eles estão ligados às restrições mecânicas do ma- terial e da estrutura das cordas e da tábua harmônica, assim como do mecanismo de trans- missão. Eles poderão somente ser controlados “passivamente” através da escolha de alturas nominais. Os parâmetros acessíveis ao controle são suficientemente numerosos para in- fluenciar de maneira sensível a estrutura timbrística de um som: o número, a intensidade, o envoltório temporal dos parciais audíveis e a ressonância são particularmente moduláveis pela ação humana (grau de controle “elevado”).
Não há nenhum deles que não possa ser objeto de prescrições notadas ou que não possa ser incorporado ao planejamento composicional. As notações dos pedais e das resso- nâncias se tornaram cada vez mais precisas e o efeito acústico produzido é totalmente in- corporado ao projeto composicional38. O controle da ligação entre um gesto instrumental expresso simbolicamente (uma nuance, um acento) e seu efeito sobre o espectro pode ser analisado precisamente pelos meios eletrônicos e computacionais, mesmo em tempo real, de modo que muitos dos imponderáveis – variações espontâneas do intérprete no momento da execução – se tornaram, finalmente, “pensáveis” a priori pelo compositor e integráveis ao projeto, se assim desejado. A utilização da informática para auxiliar a composição ou a sín- tese de timbres obriga uma quantificação muito precisa de todas as prescrições simbólicas que afetam a estrutura do timbre, e em particular daquelas que concernem as intensidades
e durações relativas de seus constituintes39.
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Tabela 4: Grau de controle dos elementos constituintes do timbre.
Elementos constituintes do timbre | Grau de controle |
Número de cordas postas em vibração | Médio: pedal UC (sem efeito no grave) |
Enarmonia (da corda, da afinação) | Nulo |
Número de parciais | Nulo |
Número de parciais produzidos na área audível | Elevado: velocidade de ataque, pedais |
Relações de frequência entre os parciais | Muito reduzido: pedal UC em certos casos |
Localização dos parciais em relação à zona sensível do ouvido | Nulo |
Nível relativo (dB) de parciais (em intensidade igual) | Nulo |
Nível de pressão acústica dos parciais | Elevado: velocidade de ataque |
Ordem e velocidade de emergência dos parciais | Médio: velocidade de ataque, articulação |
Ordem e velocidade de extinção dos parciais | Relativamente elevado, menos no agudo: relaxamento do toque e/ou pedal P |
Relação ruído (do mecanismo)/som | Muito reduzido: modo de ataque |
Reverberação, ressonância | Nulo no limiar (invariável) Elevado nos demais: pedais e toques específicos |
Velocidade do martelo | Elevado: velocidade de ataque |
Movimento do martelo | Reduzido: tipo de toque, velocidade de ataque |
Duração e lugar de contato do martelo sobre a corda | Nulo |
Ação dos abafadores | Elevado: relaxamento do toque e do pedal P |
Tábua harmônica | Nulo |
Este conhecimento mais refinado do elo entre o símbolo e seu efeito não implica, necessariamente, uma complexidade da notação, mas antes uma maior identificação entre as prescrições e os resultados. Não é o sistema de notação que é deficiente, impreciso ou parcial, mas o nosso conhecimento preciso do resultado sonoro que está ligado a ele. Visto sob este ângulo, o suporte simbólico – a partitura – pode assumir um status de representa- ção completa da obra, inclusive na sua dimensão especificamente sonora. Por sua vez, a sua análise, apoiada numa formalização das correlações entre o som e o símbolo, pode preten- der acessar todas as dimensões do projeto musical.
De outra maneira, a partir do momento no qual o trabalho analítico é visto como um estudo das relações entre diferentes objetos, a relatividade da notação simbólica sobre certas dimensões é necessária e suficiente para as informações comparativas das quais se tem necessidade. A análise de como os timbres pianísticos contribuem na expressão do discurso musical é a análise da interação destas “variáveis interdependentes” (DUFOURT,
1986) onde a escrita é a sua representação simbólica. É através de sua de/recodificação que teremos acesso a esta dimensão do projeto composicional.
1 Este artigo tem sua origem numa pesquisa de Didier Guigue consignada no cap. 1 da Segunda Parte da Tese de Doutorado, Une Étude “pour les sonorités opposées” (GUIGUE, 1997, p. 97-137). A presente publicação consiste numa tradução, remanejamento, revisão e atualização, a seis mãos, desta fonte. No texto que segue, o Dó central do piano (261.63 Hz) é nomeado “Dó4”.
2 Os fabricantes selecionam criteriosamente a madeira do teclado (sobre a qual vão repousar as teclas) em função do ruído de impacto que eles desejam obter (ASKENFELT; JANSSON, 1991).
3 Shead (1978, p. 152) atenta ao fato que o ruído é um elemento importante do timbre pianístico (o ruído das teclas sobre o teclado, dos martelos sobre as cordas, do mecanismo) e que a proporção ruído/som varia conforme o registro.
4 O fato de que o piano só integrou a orquestra sinfônica tardiamente parece essencialmente ligado aos seus atri- butos de instrumento percussivo: de fato, esta qualidade não havia sido detectada anteriormente e, além disso, foi somente no século XX que a percussão, de uma maneira geral, pôde ser plenamente integrada na linguagem musical ocidental.
5 No artigo de Suzuki e Nakamura já citado (1990, p. 180 – 186) são expostos os resultados de experiências que mostram as curvas de extinção de várias notas, do grave ao agudo, realizadas por Meyer e Melka, e das experi-
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ências de Nakamura sobre os diferentes graus de desafinação de duas cordas de uma nota, comparadas à impe- dância da tábua harmônica/cordas.
6 Para outros pesquisadores, estes parciais não tem praticamente nenhuma incidência na composição do som imediato (por exemplo, PALMER; BROWN, 1991).
7 Encontrada reproduzida, por exemplo, em McFerrin (1972, p. 29).
8 A prática de pôr mais de uma corda por nota tem origem no cravo. O pianoforte de Cristofori possuía duas cordas por nota, como os cravos contemporâneos (DYSON; MENHENNICK, 1988). Porém, a função das mais de uma corda por nota era outra – uma função dinâmica rudimentar (mas perfeitamente adequada à linguagem barroca), que o pedal una corda imitou posteriormente. É provável que a necessidade intrínseca do piano de ter determi- nado número de cordas por nota proporcional ao registro e estabelecê-lo em função de um equilíbrio de timbre só apareceu mais tarde, com a evolução dos imperativos da linguagem musical, a ponto de tornar ultrapassado o “piano e forte” do barroco.
9 No tempo de Beethoven, os instrumentos podiam ter quatro ou mesmo cinco cordas por nota, como era o caso do último piano emprestado a ele pela fábrica vienense Graf.
10 É com a mesma finalidade – melhorar a qualidade dos sons agudos – que a fábrica de pianos Bosendorfer adicio- nou ao seu piano de cauda inteira cordas graves (descendo até o Dó0), uma solução menos econômica.
11 Fontes: FLETCHER et al. 1962, Tabelas I à VII para as notas Lá e Sol e fig. 6 para as notas Dó. Ressaltamos que os autores não indicam qual a intensidade com que foram tocadas estas notas.
12 Estes dados tendem a mostrar que não se encontra, stricto senso, nenhuma consonância de oitava no piano. Esta constatação generalista não avança muito, uma vez que as oitavas, neste caso, continuam a ser pensadas e perce- bidas cognitivamente como um intervalo consonante. Ela permite, por outro lado, considerar o timbre do piano com base em um princípio de dissonância geral controlada.
13 A adaptação da fig. 6 de Fletcher et al. (1962) por Rossing (1989) difere sensivelmente do modelo quanto à repre- sentação dos níveis de intensidade relativos dos primeiros parciais do Dó 1. Ver também Quitter op. cit..
14 A tendência atual será também, de acordo com Dyson e Menhennick (op. cit.), a um crescimento da densidade do feltro, de maneira a obter uma sonoridade capaz de preencher vastas salas e de responder às necessidades da música comercial.
15 O artigo já citado de E. Blackham contêm dois croquis superpostos (p. 37), um do mecanismo original de Cris- tofori “marcado de engenhosidade” (BOUTILLON) e outro do mecanismo de um piano atual, marcado por sua complexidade. Estes dois croquis constituem uma ilustração bastante marcante das características da evolução da fabricação de pianos da qual falamos.
16 Disklavier Yamaha é um piano que possui todas as características de um piano tradicional, sobre o qual foi im- plementada uma interface MIDI que o torna capaz de ler e escrever informações digitalizadas em um suporte de armazenamento. A firma Bosendorfer dotou seu prestigioso modelo Imperial com um sistema MIDI semelhante.
17 O período do Dó1, nota mais grave deste estudo, é de aproximadamente 30ms.
18 O 5º parcial do Lá0, que é, como vimos, o primeiro parcial dominante desta nota, é uma frequência muito próxi- ma do Dó#3 (138Hz nos cálculos e observações de Flecther, no lugar de 139.59Hz de um Dó#3 “real”). Os casos de assonância deste Lá com outras alturas simultâneas são muito restritos. A escrita de um Lá grave, mesmo em um acorde de Lá maior, resulta por si em uma dissonância inevitável, inerente ao instrumento.
19 Este autor constata que a escrita, que reconhece no máximo uma dúzia de símbolos, fica bastante aquém das variações de intensidade possíveis.
20 Os resultados completos são reproduzidos em SUZUKI; NAKAMURA, op cit., p. 151, Tabela 1.
21 Leipp (1971): “A relação inicial de amplitude entre os parciais depende da excitação fornecida pelo martelo, o que faz variar a sonoridade em função da nuance de toque adotada”.
22 Askenfelt e Jansson observaram que as taxas de variação de duração do contato do martelo variam na nuance pp (contato longo) e ff (contato curto), para uma dada nota, em uma proporção de 1.5 a 3. Este encurtamento pronunciado implica, segundo eles, em um aumento considerável da região das frequências agudas do espectro, na medida em que se aumenta a intensidade (op. cit., p. 61).
23 Os outros controladores – os pedais – serão estudados em seguida.
24 Nós apoiaremos prudentemente estes dois autores nesta última hipótese, baseada sob o postulado de uma extin- ção “muito rápida” da energia dos parciais superiores. Não se pode deixar de observar que em certas circunstân- cias (registro grave e velocidade elevada) estes parciais superiores não se desativam tão rapidamente de modo que não sejam percebidos no decorrer desta fase e, então, que não sejam suscetíveis de serem relacionados aos constituintes “estáveis” do timbre. Sabe-se, porém, que de um lado o número de parciais é muito reduzido no agudo e, de outro lado, a amplitude relativa da fundamental diminui proporcionalmente à sua frequência, até se tornar quase inaudível no grave, onde ela é dominada por um ou dois parciais mais elevados (até o 5º). A hipó- tese de Palmer e Brown só é válida, stricto sensu, para a oitava média do piano (Dó4 – Dó5).
25 Estas expressões, e outras semelhantes, apareceram frequentemente durante nossas pesquisas bibliográficas. A definição do sintetizador como “instrumento musical de teclado” tem, inexplicavelmente, se mantido no decor- rer do tempo. As interfaces, teclados ou outras, que permitem realizar a síntese sonora, não têm nenhum ponto em comum com aquilo que chamamos instrumento musical.
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26 Herold (2011) desenvolveu uma proposta de análise de obras pianísticas do séc. XIX com um mapeamento tridi- mensional das dimensões do timbre inspirado em Grey (cf. p. 215 et sq.).
27 Usualmente, somente o fabricante tem acesso a este parâmetro, através de diversas escolhas de material ou de mecânica que entram inclusive em questões de estética (SHAEFFER, 1966).
28 As 88 notas que têm normalmente os pianos atuais.
29 O controle destas variações de velocidade é efetuado, evidentemente, pelas indicações de intensidade, mas tam- bém, entre outras, pelas indicações de articulação.
30 Cf., por exemplo, ROWLAND, 1993, que retrata a história da pedalização.
31 Bouasse (op. cit., p. 416) calcula que se admitirmos que o martelo transmite a uma corda uma fração da energia que ele transmite a três cordas “a força periódica que se exerce no cavalete se torna 1.73 vezes menor [...] Em cer- tas a amplitude é multiplicada por √3; mas como a tensão útil é dividida por 3, o produto AT é dividido por √3”, A sendo a amplitude e T a força. “A diminuição da intensidade é ainda maior quando se passa de três cordas a uma, se admitirmos que no primeiro caso (sendo o choque do martelo mais regular) é transmitida mais energia”.
32 Van der Meer (1977, p. 80) afirma que o efeito una corda é bem mais presente nos pianos antigos do que nos instrumentos modernos. De toda forma, o efeito varia muito de acordo com o tipo de instrumento (cf. HEROLD, op. cit., p. 53).
33 De acordo com Unkari (op. cit.), na obra Piano Variations de A. Copland (1930).
34 Em Ein Kinderspiel, Lachenmann escreveu as duas versões (com e sem TP) para Akiko, terceiro movimento da peça.
35 Repp (1997, 1996) tem duas pesquisas dedicadas ao estudo das variações temporais de acionamento dos pedais.
36 Debussy não gostava de incluir indicações de pedal na partitura pois acreditava na diversidade do resultado sonoro que pode variar de uma sala para outra e de um piano para outro (GERIG, 2007, p. 323).
37 John Cage foi muio cuidadoso ao criar uma notação para cada um dos quatro tipos de uso dos pedais grafados com notação específica em Music of Changes (ROSENBLUM, 1993, 175).
38 Cf. Guigue, a respeito da obra Serynade de Helmut Lachenmann (2011, p. 342 et sq.).
39 Com um protocolo de comunicação padrão como a norma MIDI, os desejos de Neuhaus (cf supra) se tornaram realidade: o compositor dispõe de diversas listas digitais (de 0 a 127) para a escrita de diversos parâmetros, em particular das velocidades de ataque e intensidades. Nada o impede de introduzir tal refinamento de escrita em uma partitura destinada à execução por um intérprete. A aprendizagem, deste último, da ligação entre a escrita simbólica e suas próprias micronuances dinâmicas – que Neuhaus enumerou em uma centena – não é mais complexa do que o processo de aprendizagem desta paleta dinâmica.
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Didier Guigue - Professor Associado da Universidade Federal da Paraíba. Sua atuação nas áreas de Musicologia do Séc. XX, Musicologia sistemática e Computação aplicada à Análise Musical, eixo central da sua atividade no Programa de Pós-Graduação em Música desta Universidade, se sinaliza por um consistente número de projetos de pesquisa, publicações e comunicações no Brasil e no Exterior, onde se destaca recentemente seu livro Estética da Sonoridade publicado pela Editora Perspectiva, São Paulo. Doutor pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris, 1996) sob a orientação de Hugues Dufourt, realizou em 2007/2008 pós-doutorado no CICM, Paris. Um dos membros fundadores do COMPOMUS (o Laboratório de Composicão da UFPB), é Coordenador do Grupo de Pes- quisas Mus3 (Musicologia, Sonologia e Computação). Pesquisador no CNPQ, também é pesquisador Associado do Observatoire Musical Français (Université de Paris-Sorbonne), e do NUSOM (USP, São Paulo)..
Bibiana Bragagnolo - Graduada em Licenciatura em Música e Bacharelado em Piano pela Escola de Música e Be- las Artes do Paraná (EMPAB) e mestre em Práticas Interpretativas - Piano pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Bibiana Bragagnolo cursou também especialização para pianistas concertistas no Musikeon (Valência, Espanha) sob a orientação do professor Luca Chiantore. Teve artigos publicados nos anais do PERFORMA, XXII e XXIV Congressos da ANPPOM, além de artigo publicado na revista DAPesquisa. Como pianista, tem se apresenta- do frequentemente, tendo atuado como solista frente à OSUFPB Cordas em 2013, sob regência do Maestro Marcos Arakaki. Atualmente faz parte do grupo de pesquisa Mus3.
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