Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 238p., n.1, 2014

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora:

uma tipologia do Espaço interno Componível

Alvaro Henrique Borges (Universidade Estadual do Paraná/UNESPAR, Curitiba, PR)

composer.borges@gmail.com

Resumo: Este texto apresenta uma proposta de tipologia acerca dos aspectos da espacialidade sonora referentes ao Espaço Interno Componível. Com bases na conceituação do compositor Michel Chion, a dicotomia interdependente espaço interno-externo, propõe-se neste contexto uma sistematização dos elementos da espacialidade abordados no ato composicional. De forma geral, os aspectos aqui elencados pretendem revelar uma fração dos elementos compo- níveis dos sons no âmbito da composição eletroacústica.

Palavras-chave: Espaço; Tipologia; Composição; Eletroacústica.

Compositional elements of sound spaciality: a typology of the inner composable space

Abstract: This paper proposes a typology about the aspects of sound spatiality related to Internal Composable Space. Grounded in the concept of composer Michel Chion, the dichotomy interdependent internal-external space, is proposed in this context to approach a systematic spatiality elements addressed at the compositional act. in general, the aspects listed here are intended to reveal a fraction of the sound composable elements in the electroacoustic composition. Keywords: Space; Tipology; Composition; Electroacoustic.

No momento da concepção da obra, buscando uma escuta musical do espaço, o compositor é lançado a uma diversidade de procedimentos “cirúrgicos” do som que esti- mulam sua imaginação. Essa imaginação calca-se, em grande parte, ao nível da percepção, e da intenção de exteriorizar um espaço sonoro interior: o espaço da representação (Calon:
1987, p. 48-49). Sobretudo, o compositor lança mão de verdadeiras “metáforas espaciais” (Dhomont: 1988, p. 38), as quais farão parte fundamental da estrutura composicional. Desta feita, os dados sonoros, irão ocupar os planos de dimensão espacial da escuta da obra. Com este aporte, propondo uma tipologia composicional da espacialidade, apresentaremos nes- te texto um espaço aventurado pelo compositor eletroacústico, o qual denominamos espaço interno componível.

1. Eixo vertical-horizontal dos alto-falantes

A fim de obter controle do aspecto espacial horizontal, deve-se dar devida atenção às relações de fase entre o rol de alto-falantes. Este controle já está predisposto durante a captura, a gravação da amostra sonora, na qual os sons chegam aos microfones em tempo diferente e são registrados em canais igualmente diferentes. Quando executados em uma obra, em um sistema estereofônico, estes sons ocorrem desta maneira preservando a ima- gem estereofônica, ou seja, simulam a imagem real da fonte. A relação entre os canais do estereofônico (L-R) é crucial para a recriação de uma imagem sonora convincente. Portanto, se uma fonte sonora move-se da direita para esquerda, a relação entre os canais direito e es- querdo se alteram. Uma simples mudança de amplitude no balanço entre os canais, o que chamamos de panning, já permite a percepção deste movimento.
O registro direto do movimento da fonte sonora, pela gravação estereofônica, sem- pre será mais convincente ao uso de panning ou efeito Doppler. Isto ocorre devido à captura
real das relações de fase (cada qual em seu respectivo canal) e do comportamento espectro-

Revista Música Hodie, Goiânia - V.14, 238p., n.1, 2014

81

Recebido em: 07/10/2014 - Aprovado em: 15/03/2014

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

-morfológico do objeto sonoro, tal como ele nos aparece. Observamos também que este som capturado já é uma simulação do real e depende de boas condições na difusão para repre- sentar convincentemente sua imagem, no entanto, sempre ocorrerão perdas desde os meca- nismos dos microfones até as membranas dos alto-falantes.

Em se tratando do plano vertical, consideramos as distorções da imagem sonora. Tendo em conta que as distâncias entre os pares estereofônicos de alto-falantes podem ser diferentes, sabemos que a intensidade percebida será também diferenciada. Outro aspecto relevante é o comportamento espectral dos sons e seu caráter tipo-morfológico. Sons mais próximos do ruído serão melhor evidenciados, enquanto que os sons com maior presença harmônica podem ter sua imagem menos distorcidas, apresentando uma melhor localização no quadro dos alto-falantes. Da mesma forma que um objeto sozinho é mais afetado por tal distorção do que uma polifonia de objetos que se diluem em nossa percepção. Certos de que o ouvinte sempre se desloca na sala de concerto em relação aos alto-falantes, esta imagem so- nora distorcida é um elemento com o qual o compositor pode jogar em favor de seu interesse.
O eixo horizontal-vertical será, comumente a outros parâmetros, afetado pelas refle- xões que provenientes das paredes e superfícies causam alterações do objeto sonoro quando são percebidas abaixo de 20 ms com atraso do som original. Quando tal atraso é superior a

20 ms, o objeto sonoro em questão será, de certa forma, modificado. Quanto a este último, temos o aparecimento de ecos por volta de 50 ms (Dherty: 1998, p. 9). Estes aspectos podem ser trabalhados em estúdio para uma alteração controlada do objeto sonoro, porém as condi- ções adequadas da sala de concerto devem ser sempre preservadas para garantir este efeito. Em resumo estes elementos estão apresentados no Quadro 1 abaixo.

Quadro 1: Eixo espacial.

EIXO espacial

HORIZONTAL

VERTICAL

Diferenças de fase entre os canais

Distância entre os alto-falantes

Panning

Tipo-morfologia do objeto sonoro

Efeito Doppler

Espessura espectral

2. Trajetória e campo sonoro tridimensional

O compositor pode determinar o trajeto que os objetos sonoros deverão percorrer pelos alto-falantes. Este aspecto implica, de antemão, na disposição dos alto-falantes na sala de concerto. Esta disposição deve ser elaborada de forma a manter o projeto em estúdio vi- ável. Como exemplo, se o compositor predispõe a passagem de um objeto sonoro no eixo frente-trás (passing by), dispondo de um sistema quadrifônico convencional, este necessita de uma platéia envolta pelos alto-falantes. Do contrário, tal simulação será impossibilitada, frustrando o objetivo composicional.
Diversos experimentos técnicos foram feitos na tentativa de simular trajetórias es- paciais na composição eletroacústica. Um importante feito é a mesa rotativa ou alto-falan- te rotativo surgido na rádio NWDR em 1959, na Alemanha, para simular movimentos gira- tórios dos sons para a obra Kontakte (1959-60) de Karlheinz Stockhausen. Este mecanismo consistia em quatro microfones simétricos, ao redor da mesa, que capturavam a fonte sono- ra em movimento – um alto-falante disposto ao centro da mesa rotativa –, gravando assim em canais diferentes em um gravador quadrifônico. Após o registro e levados aos alto-fa- lantes dispostos ao redor do público, os sons descreviam a trajetória circular capturada na gravação (Menezes: 1998, p. 25).

82

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

A simulação dos movimentos circulares na estereofonia não é, de certo modo, nula. Da mesma forma que tecnicamente tentamos preservar os movimentos espaciais numa re- dução estereofônica de obras multipistas, podemos introjetar entre os canais 1-2 os canais

3-4, mantendo assim a progressão linear das diferenças de fase entre os canais, preservando o movimento ou a localização da porção espectral dos sons em jogo.

Atualmente, o desenvolvimento de softwares para auxílio e controle espacial so- noro tem trazido valiosas contribuições neste sentido. Alguns centros como o Ircam ou Gmem (Paris, Marselha) e o Studio PANaroma, dispõem de softwares avançados, como por exemplo o SPAT ou o HoloPhon/HoloEdit de Laurent Pottier, o MPSP (MusicPanSPace) de Flo Menezes e o SPATIUM de Rui Penha, os quais permitem, por meios digitais e controle MIDI, que se intervenha nos dados sonoros quer seja em tempo diferido (registro em supor- te), ou em tempo real (ao vivo em concerto).
A trajetória dos objetos sonoros pode ser trabalhada em três parâmetros básicos, os quais demonstram-se como interdependentes, sendo eles: largura, altura e profundidade.

2.1 Largura

Este parâmetro está intimamente ligado aos aspectos do objeto sonoro relacionados com sua riqueza espectral, sua concentração em uma determinada região frequencial e com sua descrição granular. Quando analisamos um objeto sonoro em sua matéria e em suas ca- racterísticas espectrais, podemos compará-lo com outros objetos em questão, determinando então uma sua relativa proporção de largura. Em segundo lugar, sua característica frequen- cial determina, grosso modo, sua espessura. Portanto, sons mais graves são percebidos como mais espessos enquanto que ao se deslocarem para regiões mais agudas os objetos têm sua percepção de espessura menor. Esta percepção tem relação com o nível de pressão exercida nos ouvidos e com o tamanho das ondas sonoras – quanto mais agudas, os comprimentos de onda são menores; quanto mais graves, os comprimentos são maiores. No caso do ruído, a espessura do objeto sonoro é claramente percebida pelo uso de filtros de oitavas, terças, etc., e ao qual se dá o nome de cor: ruído branco, rosa, narrow noise. Por fim, a percepção granular dos objetos também nos propõe uma avaliação da largura. Pelo acúmulo ou rare- fação granular de um determinado som, recriamos uma certa espessura da imagem sonora. Assim, esses elementos serão tratados em estúdio para uma proposição espacial dos objetos sonoros no nível da largura.
Em estúdio o compositor busca, por meios de tratamento ou síntese sonoras, escul- pir o objeto sonoro. O trabalho com a matéria sonora consiste na manipulação da massa e da fatura. Modificando a massa, por tratamentos ou sínteses, modificamos o entendimento do objeto no âmbito do registro. Similarmente ao fator da fatura modificamos a energia trans- mitida e manifestada pela duração deste objeto (Chion: 1983, p. 122). Portanto, transforman- do o som na sua matéria e forma, complementarmente modificamos, de modo intrínseco, a largura espacial deste som.

2.2 Altura

Neste aspecto o espaço é abordado no âmbito da sobreposição dos objetos em jogo e pelo acúmulo de sons. Para abordar este elemento do espaço, dependemos da percepção estatística de um grupo sonoro e suas variações internas. O que ocorre aqui é que a fusão

83

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

das evoluções internas de cada som delineia um perfil de altura (espacial) destes sons ou grupo de sons. Podemos também classificar tais sobreposições e acúmulos em alguns ní- veis como: complexos, harmônicos e ruídos. Uma sobreposição complexa se dá pela soma de sons complexos diversos e a percepção de altura espacial se mostra pela captação men- tal dos seus contornos (imagem sonora). No caso da sobreposição harmônica, temos a per- cepção da imagem sonora pelos seus relevos internos, somados ao perfil do seus contornos. A sobreposição de ruídos, por fim, limita-se ao preenchimento da gama frequencial, sendo percebida como blocos homogêneos.
Para exemplificar, estes elementos estão frequentemente presentes nas obras acus- máticas e nas chamadas Sprachkompositionen (composições eletroacústicas verbais). Um grupo sonoro que faz um percurso espacial lento, indo gradativamente do grave ao agudo (como na micropolifonia de György Ligeti), necessita do decurso temporal e da percepção deste grupo de sons como um único objeto para delinear seu perfil. Assim, o compositor sobrepõe estes sons, preservando o deslocamento homogêneo, fundindo-os em um grupo único. Deste modo, a altura espacial se mostra então pela comparação deste grupo a outros possíveis. Na Sprachkomposition fica claro este aspecto quando ocorre sobreposição ou acú- mulo de mais de três vozes com idiomas distintos ou não. Nessas condições, o entendimen- to perde a referência semântica das palavras que dá lugar à percepção harmônica do con- glomerado de sons. Este jogo pode ser comparado com um contraponto cerrado das obras renascentistas, que inevitavelmente formam tríades sobrepostas, pelas quais nossos ouvi- dos formados pela ‘tonalidade’ tendem a identificar acordes e/ou funções.

2.3 Profundidade

A percepção da profundidade sonora está relacionada com o volume do som, sua magnitude, com a sua presença, implicada pelo uso de filtro passa-grave, e pela contraposi- ção de camadas contrastantes com diferentes características de reverberação. O objeto per- cebido é, neste aspecto, analisado pelo tamanho da sua imagem sonora percebida e pelo seu relacionamento com os outros objetos. Quanto mais próximo do ouvinte for percebido tal objeto sonoro, maior será a captação mental de sua imagem (Barrett: 2002, p. 314). No caso do volume, temos por exemplo: se fizemos uma gravação de um antigo ‘relógio de parede’ ressonante, colocando os respectivos microfones próximos do mesmo, sem nenhuma suges- tão do espaço físico local, obteremos uma magnitude, de presença, exacerbada da imagem desta fonte. Se esta amostra sonora for levada para os alto-falantes sem nenhum tipo de tra- tamento, o ouvinte perceberá o relógio tocando bem próximo da sua face. Temos aqui so- mente a ressonância do objeto em si, sem a ressonância do local onde soava a fonte. Se a am- plitude original é mantida, a magnitude deste objeto também será preservada. O contrário ocorre na captação do som deste relógio posicionando os microfones afastados ou mesmo fora da sala onde soa esta fonte sonora. Neste segundo caso, a imagem sonora captada pelos microfones é acrescida do campo reverberante da sala e de filtro passa-grave, reduzindo sig- nificativamente a imagem do objeto. Por exemplo, pode-se jogar com este elemento espacial para simular um afastamento sonoro em que os sons apesar de estarem soando no quadro fixo dos alto-falantes ao redor do público parecem soar provenientes de fora do quadro dos alto-falantes ou até mesmo fora da sala de concerto.
Esta dimensão espacial, a profundidade, é um elemento importante para a deter- minação do trajeto esperado de um dado som. O trabalho em estúdio, durante a composi- ção dos sons, será bem sucedido se o compositor tiver consciência dos fatores acústicos que

84

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

interagem com os objetos componentes da obra. A tradição eletroacústica possibilita que o compositor desenhe e implemente os aspectos musicais, inter-relacionando esses aspectos espaciais por dois caminhos específicos: (1) contrapor objetos sonoros separadamente ou (2) gerar fusões entre eles. É nesse sentido que a informática musical tem se mostrado funda- mental como ferramenta composicional e de assessoria à performance. O computador ga- rante boa precisão por abranger as complexidades dos processos composicionais mais in- vasivos do som.

Quadro 2: Campo sonoro tridimensional.

Campo sonoro tridimensional

Largura

Altura

Profundidade

riqueza espectral

sobreposição complexa

magnitude (volume+low-pass)

região frequencial

sobreposição harmônica

reverberação

descrição granular

sobreposição de ruídos

reverberação

Os três parâmetros citados acima, e sintetizados no Quadro 2, compõem a sustenta- ção do campo sonoro tridimensional. Via de regra, o campo sonoro desde o início do século XX já se mostra bastante ampliado. Esta expansão é ainda mais favorecida pelo desenvolvi- mento de novos métodos de geração sonora, em especial por meios eletrônicos e digitais, ou mesmo com o uso dos instrumentos tradicionais.
Compositores deste século revelam uma preocupação com relação à expansão do continuum sonoro. Pela utilização de instrumentos de alturas indefinidas, como instrumen- tos de percussão, resgata-se, de certo modo, a espacialidade limitada pelos instrumentos de escalas diatônicas. Desta feita, o compositor eletroacústico faz um mergulho mais profundo nos elementos estruturais do som, interferindo diretamente no seu espectro. É nesse sen- tido que o trabalho abarca o âmbito das três dimensões do objeto sonoro. A percepção da imagem sonora pode ser modificada e suas distorções simulam trajetórias que confirmam um espaço tridimensional em concerto pelo viés da ilusão ou alusão espaciais. Os recursos aplicados ao dado sonoro em estúdio, tais como as transformações espectrais, concentração em regiões de frequências específicas, variação granular, sobreposições de objetos sonoros, variação de amplitude, filtro passa-grave ou alteração das características de reverberação e ressonância, são mutuamente inter-relacionadas e concretizam o discurso espacial da obra.

3. Localidade

A percepção da localidade dos objetos sonoros no espaço depende eminentemen- te da localização do ouvinte em relação aos alto-falantes. Tal percepção é da mesma forma dependente de nossa capacidade de discernimento do posicionamento da fonte ou da refe- rencialidade desta fonte. Nesta abordagem, na qual o objeto sonoro é disposto a uma escuta acusmática, o ouvinte pode criar paradoxos na audição das fontes sonoras gravadas. Como exemplo, quando se escuta um som de trombone em volume pequeno, porém com caracte- rísticas preservadas da gravação deste instrumento em dinâmica em fortíssimo, ao ser lan- çado em jogo na sala de concerto não manterá correspondência direta entre o que se ouve e o contexto onde se reproduz tal material sonoro.
Por hábito, na atualidade, a escuta de gravações, como por exemplo a de uma sin- fonia tocada por uma famosa orquestra estrangeira, não causa tanto estranhamento. Porém, apesar da carga de referencialidade visual incitada pelos signos sonoros emitidos pela gra- vação da orquestra, não existe uma intencionalidade real de escuta do espaço dos instru-

85

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

mentos. O que pode ocorrer é apenas uma simulação da imagem estereofônica desta orques- tra executando a sinfonia. Com efeito, por meios oferecidos pelos avanços tecnológicos, foi permitido ao compositor repensar suas obras não apenas como estruturas sonoras estáticas, mas de todo modo lançar mão de recursos cênicos, anedóticos e cinéticos-espaciais.
A localização dos sons no espaço eletroacústico é favorecida também pela con- cepção dos sistemas de difusão: as orquestras de alto-falantes. François Bayle, ao fundar o Acusmonium (1974) em Paris, referiu-se à música concreta como uma espécie de cinema para os ouvidos, ou uma tela sonora. Assim asseverou: “A ‘projeção acusmática’ constitui, pela ‘difusão eletroacústica’, um estado mais elaborado, um espaço-instrumento e um jogo” (Dhomont: 1998, editorial). Partindo do pressuposto da projeção cinemática, a localização dos objetos se prende ao decurso temporal dos sons neste ‘jogo’ difundidos na ‘tela sonora’. Portanto, paralelamente à imagem visual, o compositor dispõe, pelos relevos e contraposi- ções, de um tipo de escuta baseada em “imagens” sonoras arquetipais, anteriores ou pos- teriores à linguagem, as quais possibilitam a projeção/representação de um mundo sonoro real, cuja denominação é I-son (Bayle, 1993). Por outro lado, temos uma disposição estática de projeção com disposição homogênea e regular dos alto-falantes ao redor do público, con- figurando assim uma ideia de teatro sonoro. Neste caso específico, tal jogo espacial se atrela à direção do impulso sonoro. Se o som é estático, percebemos sua localidade pela compara- ção com os outros provindos de outras direções ou pelos que se encontram em movimento e vice-versa.
Para predispor a localização dos objetos em cena, o compositor deve ter em mente os meios acústicos utilizados por nosso sistema auditivo para identificar a proveniência es- pacial destes sons e trata-se, aqui, de três itens mais básicos: a) diferença interaural de tem- po (ITD) de recepção sonora; a diferença interaural de intensidade (IID) de recepção sonora; e o efeito pinnae (ouvido externo). É relevante também ter a consciência dos planos de atua- ção espacial que o objeto sonoro já predispõe em si mesmo (espaço intrínseco) e do possível comportamento deste objeto no eixo vertical-horizontal dos alto-falantes. Apontamos tam- bém a questão da profundidade sonora intensamente pertinente à localização sonora: pre- sença (perto) e afastamento (longe). Para isto, em estúdio, o compositor vai utilizar dos re- cursos de gravação e de tratamentos diversos como: captura do espaço real do local onde soa a fonte sonora, criação de um campo reverberante artificial (por meio de câmara de reverbe- ração ou softwares), panning, modificação espectral radical (distorção da imagem acústica real do objeto), divisão dos sons em canais diversos e movimentação entre os canais.

4. Direcionalidade

Este aspecto espacial é uma característica da movimentação dos objetos no espaço acústico. Podemos analisá-lo em diversos aspectos: direção da evolução espectral no âmbito do registro, direcionalidade figural, direcionalidade gestual, direcionalidade rítmica e dire- cionalidade referencial. Tais aspectos compreendem vastamente o âmbito direcional sonoro nos alto-falantes, que pode ser lateral-frontal, lateral-traseiro ou intermediário (no caso de sons estáticos) e os movimentos neste âmbito. Esclarecemos que, para uma difusão cinemá- tica, este âmbito se atém à ‘tela sonora’ com seus possíveis relevos (como presença e afasta- mento) e percursos laterais (direita-esquerda).
No tocante ao âmbito do registro, o comportamento espectral do objeto sonoro indi- ca seu movimento direcional no espaço das frequências. Podemos exemplificar pelo pedal (fixo): repetição mecânica em loop de uma célula (Chion: 1983, p. 136), no qual os objetos

86

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

contrapostos (em movimento) delineiam perfis espectrais diferentes, deixando transparecer seu posto na gama vertical das alturas. Novamente por comparação dos sons em jogo, po- demos perceber a direção em que se movem os objetos pela permutação intrínseca de seus componentes espectrais (alturas).
A análise morfológica de cada objeto sonoro e a descrição de seus perfis nos leva ao nível seguinte: a direcionalidade das figuras. Ao traçar o perfil espectral de um determina- do tipo sonoro, captando mentalmente sua disposição morfológica, por exemplo sua maté- ria ou forma, recriamos na imagem sonora aparente as figuras. Tais figuras definem, então, a direção dos objetos em jogo no âmbito das micro-seções da obra. Demonstram a direção das vozes do contraponto sonoro.
Conscientes de que o conteúdo espectral é comportado por perfis e figuras, vemos que tais delineamentos se movem descrevendo uma direção gestual. Estando acostumados à visualidade dos gestos cotidianos, falar de gesto musical é quase um paradoxo. Porém a simulação, de certa forma, mimética ou representativa dos movimentos gestuais sonoros são significativos e ganham potencial atenção no discurso musical. Os caminhos percorri- dos pelas figuras desenham no espaço acústico traços aos quais nossa imaginação se apega. Como uma pegada na areia não é o gesto instantâneo do seu dono, mas seu sinal registrado fisicamente e mais tarde recriado mentalmente por quem o vê, os objetos sonoros deixam pegadas no decorrer temporal, as quais serão decodificadas por nós como gesto sonoro.
O tempo de movimentação destes elementos e sua ‘frequência’ (o quanto são repeti- dos ou variados no âmbito da duração) definem a direção rítmica ou métrica (cf. Zampronha:
2000, p. 73-94). Os movimentos demorados dos objetos sonoros lentos implicam uma dire- cionalidade menos precisa, pois depende da apreensão global dos eventos sonoros num tre- cho de tempo. Se faltar concentração da parte do ouvinte, como com uma distração com a perda do fluxo sonoro neste trecho de tempo, o reconhecimento da direção pode ser preju- dicado. Se os movimentos forem demasiadamente rápidos, podem se fundir em uma trama complexa exibindo somente seu contorno. Isto também é prejudicial na escuta e na estraté- gia composicional, no que diz respeito à direção espacial rítmica. Com efeito, a movimen- tação equilibrada dos objetos sonoros no espaço pode traçar com clareza as trajetórias e preservar a imagem sonora dos objetos. A menos que se queira, intencionalmente, criar um espaço sonoro difuso, pode-se fazer uso da mobilidade diversificada e dos limites perceptí- veis do âmbito rítmico. Este aspecto pode se dar em dois níveis: a reconhecibilidade semân- tica da fonte e a reconhecibilidade semântica do movimento.
Ao percebermos a forma geométrica, ou seja, o desenho resultante da movimenta- ção sonora, reconhecível na trajetória de um ou mais objetos sonoros, captamos o gesto refe- rencial. Levando em conta todos os aspectos abordados anteriormente, nossa percepção cria imagens mentais destas formas geométricas, legando ao contexto musical um ‘espaço-refe- rência’. Pelos movimentos, neste âmbito, o compositor pode sublinhar e contrapor momen- tos específicos no discurso composicional. Por exemplo, se um dado objeto sonoro vai so- frer variações, na elaboração em estúdio, o compositor opera com os elementos referenciais geométricos de espacialização para que o ouvinte acompanhe tal evolução. Este processo pode ser sempre bem sucedido, atentando-se às condições técnicas de difusão, pois estas formas geométricas são, de modo geral, familiares aos ouvintes. Por fim, também podemos perceber um objeto sonoro pela referência direta à fonte sonora real a que este nos remete. Apesar dos sons sofrerem transformações, as vezes radicais, a referência com nosso mundo cotidiano é inevitável. Quando um objeto sonoro, tratado em estúdio, vai para os alto-falan- tes em concerto, referenciais (visualidade, memória, etc.) serão utilizados para entendê-lo e colocá-lo no contexto musical. O movimento que ocorre nesse espaço mental, o qual é ocu-

87

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

pado pela face (fotográfica) de cada objeto sonoro, ou sua descrição reconhecível de trajetó- ria, denominamos aqui por direcionalidade referencial, conforme relacionado aos elementos anteriores descritos no Quadro 3 a seguir:

Quadro 3: Direcionalidade

DIRECIONALIDADE

REGISTRO

FIGURAL

GESTUAL

MÉTRICA

REFERENCIAL

movimento no âmbito das frequências (alturas)

perfis descritos pelos objetos no âmbito espectral e formal

simulação mimética de gestos reconhecíveis

a apreensão do tempo de duração dos objetos em jogo

movimentos de forma geométrica conhecidas – referência extra-sonora

5. Distância

Este aspecto está muito mais ligado às relações entre os objetos sonoros discretos em cena do que à percepção do local onde soam ou imaginamos que soem. Experimentos como a Cupola Sonora, 1977 - Itália, 1979 - França e 1984 - Linz) de Léo Kupper, que fez uso de até 104 canais de áudio, retratam a especulação profunda dos parâmetros do espaço so- noro. A Copula consistiu em uma disposição surround de alto-falantes, em relação ao pú- blico, com variações dinâmicas em diversos níveis, formando uma ‘redoma’ sonora em uma sala de perfeitas condições para escuta espacial (Kupper: 1986, p. 56). Neste caso, o controle espacial, no aspecto da distância, pôde ser extremo. Porém, na grande maioria dos casos o compositor trabalha com elementos menos controláveis e o trabalho com a profundidade é imprescindível. Como exemplo, quando não muito distante ouvimos o som do tráfego, sem vê-lo, recriamos auralmente as dimensões da paisagem-sonora (Barrett: 2002, p. 313). Desta feita, a reconhecibilidade aural (recriada) destas dimensões, pelas relações citadas nos itens anteriores, nos dá meios de avaliar a distância aparente dos objetos sonoros. Com efeito, o trabalho em estúdio considera esta distância aparente dos objetos sonoros e o âmbito rela- cional do quadro fixo dos alto-falantes combinando estes detalhes com a localização mental dos objetos sonoros. O compositor opera então com estes relevos da distância sonora.

6. Velocidade

A noção de velocidade depende de nossa identificação aural sonora e de algumas mudanças no ambiente, tais como: temperatura, umidade, movimentação do ar (Barrett:
2002, p. 313), porém isto somente ocorre quando se trata da reprodução direta da fonte so- nora real. No caso da música acusmática, este fato é controlado em estúdio durante a com- posição. Ao trabalhar com a movimentação dos objetos sonoros, o compositor alimenta a imaginação do ouvinte pela reconhecibilidade do trajeto percorrido. O tempo deste percur- so, quando reconhecível, nos aponta a velocidade com a qual este objeto sonoro se desloca no espaço.
A noção de velocidade percebida pela movimentação dos objetos sonoros permite, por outro lado, a reconhecibilidade das características da sala e da disposição dos alto-fa- lantes. Portanto, é importante considerar que esta sala deva ser transparente, isto é, acusti- camente “afinada”, e sem ressonância. Nesse sentido, o âmbito espacial percebido e os limi- tes do espaço local estão ligados à velocidade, aos movimentos gestuais e ao efeito Doppler. Assim, o trabalho com a reconhecibilidade justificará a elaboração da espacialização tam-
bém com os aspectos da profundidade e dos relevos.

88

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

Utilizando-se de dois elementos mais básicos, podemos explicar as conexões possí- veis dos aspectos da velocidade na composição acusmática e suas incitações metafóricas no ouvinte, estes elementos são: deslocamento e mobilidade.

6.1 Deslocamento

Entendemos aqui por deslocamento, por mais pleonástico que se pareça, o movi- mento dos objetos que não são fixos ou não são estáticos. Um simples movimento de fre- quência pode gerar deslocamento espacial. Como exemplo, os sons paradoxais de Risset descrevem um deslocamento contínuo no âmbito frequencial pela movimentação dos har- mônicos componentes e sua permutação no decurso temporal com amplitude controlada. Por outro lado, uma única onda senoidal disparada continuamente, sem nenhuma modula- ção, mantém uma estaticidade sem variações acústicas e a consideramos sem deslocamento espacial, apesar do decurso temporal ocorrer.
A apreensão do deslocamento dos objetos numa obra depende da escuta pura ou referencial do objeto sonoro (imaginário), de sua localidade (registro, panning), da distân- cia aparente (profundidade), da velocidade com a qual se desloca e do trajeto percorrido (Doppler). Se estes aspectos forem distorcidos ou ignorados, a percepção do deslocamento pode ser também distorcida ou anulada.

6.2 Mobilidade

Considerando os aspectos do deslocamento, a apreensão e o trabalho com o movi- mento dos objetos sonoros, bem como de seus componentes internos, pode se dar por diver- sas estratégias:
• Mobilidade espacial unidirecional: ascendente, descendente e plana (no objeto sonoro em si);
• Mobilidade espacial complementar: parábola, oscilante e ondulatória (na intera- ção dos objetos em questão);
• Mobilidade espacial cíclica: de rotação, espiralada (pela reiteração dos objetos em jogo);
• Mobilidade espacial multidirecional: acumulada, dilatada, combinada (pelo dis- túrbio dos parâmetros discretos do deslocamento).
Para uma mobilidade espacial unidirecional, temos em primeiro plano os movimen- tos ascendentes e descendentes, os quais ocorrem no objeto sonoro em si. Nesse caso, o es- paço se detém ao âmbito espectral. Por se tratar da difusão, quase sempre, com o plano dos alto-falantes ao mesmo nível em volta do público, a mobilidade ascendente, tal como a des- cendente, se dá no âmbito da altura (vide 2 Trajetória e campo sonoro tridimensional). As mobilidades espaciais ascendente e descendente ocorrem similarmente às escalas na mú- sica tradicional, porém acrescidas de todas as nuances do espectro que, grosso modo, são desconsideradas nesse gênero. Enfim, os movimentos planos podem se dar pela ausência do deslocamento espectral nos objetos sonoros, porém com movimentação no plano do quadro dos alto-falantes. Como exemplo: um determinado objeto sonoro, discreto, que se mantém sem transformações no decurso da obra, porém cuja localidade é diversificada a cada sua reaparição em distintos canais.

89

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

Para uma mobilidade espacial complementar, temos o movimento em parábola, os- cilatório e ondulatório. Para explicar o movimento em parábola, apontamos o movimento li- gado à relação entre os objetos, que vem ocorrer quando temos uma lenta evolução de um objeto sonoro no espaço com uma precisa direcionalidade, a qual gera expectativa. Porém, antes de atingir certo ‘ponto culminante’, esperado, este objeto sofre interferência de outros grupos sonoros, desviando-se em forma de ‘curva’ e ganhando estabilidade como novo com- ponente desse grupo incidente. Essa perda de identidade espacial, singular daquele objeto sonoro, traça uma ‘parábola’ na apreensão mental em forma de movimento que pode ocorrer em diferentes localidades espaciais. Em segundo lugar, relatamos o movimento oscilante: tal característica está presente nos grupos de objetos sonoros mais complexos que deixam, no decurso temporal, desprender de si um ou outro objeto em particular com perceptível repeti- ção frequente. Este objeto sobressalente causa um movimento particular no contorno daque- le grupo, que por sua vez pode descrever outra mobilidade independentemente da oscilação aparente. Em último lugar, os movimentos de ondulatória se referem à variação do contorno global aplicado à movimentação textural interna, bem como ao contorno externo resultante.
A mobilidade espacial cíclica ocorre pelos movimentos de reiteração dos objetos em jogo ao redor de um ponto determinado. Nesse caso, será determinante a localização do ou- vinte na sala de concerto e o projeto de espacialização pelos alto-falantes. A posição ideal de escuta, o mais central possível, é outro fator importante para a resolução dos movimen- tos de rotação. Na medida que se afasta deste ‘centro’, perde-se relação com o eixo ou pivô, apreendendo somente as distorções dos movimentos giratórios ou até mesmo anulando-os. Em estúdio, a simulação dos movimentos rotativos vai do bastante simples ao mais com- plexo. Trata-se do controle das diferenças entre os sinais dos diversos canais, quase sempre controlados pelo panning, e a passagem dos sons pelos canais é reproduzida em uma traje- tória circular, conhecida, que sempre é reiterada. Outro mecanismo de tratamento espacial circular é o uso do efeito Doppler. Através deste último, pode-se simular movimentações circulares no âmbito estereofônico (sobretudo quando se difunde em concerto com um sis- tema estereofônico dobrado: L-R frontal e L-R traseiro) ou utilizar a técnica ambisonics (cf. Barrett: 2002, p. 317). Como exemplo de controle extremo dos parâmetros de rotação, cita- mos a obra Harmonia das Esferas (2000) de Flo Menezes, que é, com exceção do primeiro som, toda constituída por sons rotativos girando em dois eixos quadrifônicos num plano octogonal, e cujas rotações, variadas em direção, angulação e velocidade, foram totalmente controladas previamente por rotinas de programação em linguagem CSound.
A obra acima, de Flo Menezes, contém igualmente um segundo tipo de mobilida- de cíclica, qual seja: o movimento em espiral. Dependendo da ínfima variação dos movi- mentos e da reiteração rotativa, podemos ter uma forte impressão direcional da mobilidade. Recordando que a direcionalidade aqui vista se dá no espaço acústico, e se partimos de um movimento em torno de um centro, todas as variações texturais que se reiterarem criarão um caminho discreto rumo ao centro ou, ao contrário, em sentido expansivo. Este é o mo- vimento espiral percebido no rol dos alto-falantes. Com exemplo, podemos tomar um dado som que evolui texturalmente, enriquecendo-se, expandindo seu espectro, que será asso- ciado ao movimento rotativo. Este som em crescimento aparente nos dá impressão de pre- encher o espaço, e pela sua trajetória específica delineia uma espiral (parte inicial de La Légende d’Eer (1977) do compositor I. Xenakis). Da mesma forma, a espiral pode se inverter pela filtragem do material textural dos sons no decurso do deslocamento rotativo.
Finalizamos esta ideia com a mobilidade espacial multidirecional, a qual é caracte- rizada pelos distúrbios dos parâmetros discretos dos objetos sonoros no contexto. Este as- pecto, dentre os anteriores, é o que mais cria expectativa direcional. Tratamos aqui de um

90

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

senso de movimento no contexto tanto textural, quanto nas tendências gestuais da vasta es- trutura morfológica de cada dado sonoro. Primeiramente, o deslocamento espacial multidi- recional pode se dar pelo acúmulo ou pela rarefação das texturas nos objetos ou nos grupos sonoros ou pelo contraponto dos próprios objetos em cena. Nesse caso, evidencia-se a per- cepção de transformações ocorrentes na massa sonora e do adensamento das camadas. Em segundo lugar, tem-se o deslocamento que ocorre no âmbito da largura pela apreensão da espessura (vide 2.1 Largura) do objeto ou do grupo de objetos em questão. Desta feita, dila- ta-se ou comprime-se espacialmente. Em terceiro lugar, temos a ocorrência combinada dos diversos parâmetros anteriores, a qual se dá sempre em níveis bastante complexos e cuja percepção em concerto se revela menos evidente. Como exemplo, citemos o deslocamento multidirecional que ocorre com evidência na obra Artikulation (1958) de G. Ligeti.

Quadro 4: Velocidade.

VELOCIDADE

DESLOCAMENTO

MOBILIDADE

No espaço interno

No espaço externo

Unidirecional

Complementar

Cíclica

Multidirecional

permutação

espectral

estaticidade

espectral

distorções da imagem sonora

regularidade da imagem sonora (estéreo)

no objeto sonoro em si

pela interação dos objetos sonoros em jogo

pela reiteração dos objetos em jogo

pelo distúrbio dos parâmetros discretos do deslocamento

permutação entre os canais (panning)

estaticidade

entre os canais

distorções da imagem sonora

regularidade da imagem sonora (estéreo)

no objeto sonoro em si

pela interação dos objetos sonoros em jogo

pela reiteração dos objetos em jogo

pelo distúrbio dos parâmetros discretos do deslocamento

7. Relevo

O relevo é outro aspecto que nos ajuda a identificar o espaço dos objetos sonoros, bem como o espaço suscitado pelo jogo desses objetos ao longo do discurso musical no qua- dro dos alto-falantes. A percepção do relevo também está relacionada com a percepção de contornos das texturas e das figuras geométricas descritas pela movimentação dos objetos. Três fatores caracterizam os elementos do relevo e podem ser trabalhados em estúdio na composição: são volume, superfície e coloração.
O volume sonoro implica, primeiramente, na amplitude exercida pelas ondas sono- ras e sua pressão. Porém, o volume aqui abordado também vai abranger o fluxo de movi- mentação dos objetos em jogo ou sua permutação espectral. Na obra Forêt profonde (1994-
96), de Francis Dhomont, temos diversos exemplos decorrentes de um trabalho com relevo pela manipulação do volume. Apontamos a faixa 07: La muraille d’épines (3’20”- 4’30”), na qual o compositor contrasta camadas que interagem com uma variação de amplitude e uma direcionalidade bem clara que implica um relevo bem particular.
Por relevo de superfície, termo associado historicamente a Pierre Schaeffer, toma- mos o contorno de energia e as inflexões do espectro. A energia da movimentação no espa- ço espectral pode ser lenta (fluente, flutuante e contínua) e necessita do decurso temporal para se estabilizar em uma trajetória reconhecida. Por outro lado, esta movimentação pode se compor de uma superfície que implica em uma rápida evolução espectral, e nesse caso percebemos uma maior gestualidade dos objetos em si e em contraponto aos demais. Como exemplo, nessa mesma obra de Francis Dhomont, agora na faixa 09 – Forêt furieuse (a partir de 2’20”) –, podemos observar uma evolução espectral (superfície) no âmbito dos objetos e uma evolução na amplitude global (volume) no âmbito da seção.
A coloração está, por sua vez, ligada ao timbre, portanto com a forma de modifica- ção interna das texturas. O movimento nesse âmbito pode se dar de dois modos: contínuo ou descontínuo. A modificação contínua do espectro gera um movimento evolutivo e reno- vável ao longo do discurso e se contrapõe ao descontínuo. O equilíbrio deste caractere defi-

91

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

ne, de certo modo, a coerência do jogo sonoro, ou ao menos o justifica. Como exemplo ainda na obra de Dhomont citada acima, temos o final da faixa 10 – Musique de chambre (2’06”) na qual são explorados estes elementos.

8. Ocupação Espacial

Tendo em conta o deslocamento, a trajetória, a distância, a velocidade e o relevo, o compositor pode trabalhar a ocupação espacial dos sons. Aqui, a disposição dos alto-falan- tes e do público deve ser igualmente observada com cautela. Os objetos postos em movimen- to no quadro dos alto-falantes já contém em si um espaço-movimento intrínseco e seus re- levos podem propiciar uma trajetória específica, bem como a percepção do distanciamento desses objetos sugere um grau de profundidade. Destarte, o compositor tem à sua disposição ferramentas eficazes para elaborar ricamente a forma de ocupação do espaço.
É salutar apontar que a ocupação do espaço não é domínio exclusivo da música atu- al e está escrito na história sua relevância desde subliminares antífonas espacializadas da música vocal polifônica passando pelas metáforas espaciais da música instrumental, pela descritividade mimética da música de programa e na contemporaneidade o leque se abre significativamente. A obra orquestral Gruppen (1955-57), de Karlheinz Stockhausen, foi ino- vadora no pensamento espacial da orquestra e quase simultânea com Gesang der Jünglinge (1955-56), que inova pelo uso da multifonia eletroacústica. Gruppen vem desenvolver um papel importante ao dispor de três orquestras em locais distintos da sala, projetando uma diversidade espacial por meio dos instrumentos.
Na música acusmática os relevos e texturas, massa e mobilidades dos objetos im- plicaram a ocupação do espaço acústico. As relações entre esses movimentos dos sons com- pletarão a apreensão das imagens sonoras, as quais poderão preencher, em diversos graus, o espaço sonoro no campo tridimensional e no espaço externo do ambiente. A inteligibili- dade e a coerência da obra também compõem um espaço mental e implicam diretamente a memorização do discurso musical, constituindo, via de regra, um tipo de espaço subjetivo.
A ocupação espacial pode ser analisada a partir dos elementos de mutação, trans- formação e variação do espaço intrínseco e extrínseco.

9. Mutação/Transformação/Variação

Entendemos por mutação espacial o tratamento composicional dos elementos espa- ciais numa obra, a qual em seu discurso descreve nuances qualitativas de mutabilidade nos objetos sonoros ou em seus grupos. Isto é, sua densidade aparente é mudada por pares opos- tos: vazio/cheio, concentrado/difuso, fluente/entrelaçado e sobreposto/transverso.
Quando o espaço no objeto (intrínseco) é pleno, ocupando uma gama espectral de dimensão considerável, temos um preenchimento completo que pode ser alterado ao nulo. Por exemplo, objetos sonoros que ocupam um larga banda frequencial, portanto de rique- za espectral, sofrem a intervenção de um corte abrupto, restando uma espessura limitada e pequena. Este procedimento altera a dimensão do objeto em nossa percepção de sua ima- gem sonora, tornando de pleno a vazio o espaço inerente ao objeto em questão. Algo similar ocorre em nível externo ou ao jogo dos grupos sonoros. O vazio, pela ausência de uma trama sonora complexa, pode dar lugar a um grande conglomerado de sons, e tal fato altera nossa apreensão do jogo espacial nos alto-falantes.

92

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

Quando as regiões espectrais de um determinado objeto são bem delineadas e defi- nidas, temos um espaço intrínseco concentrado. Por exemplo, um gongo tailandês pode de- finir uma precisa predominância frequencial em torno de uma altura específica. Esta defi- nição de região concentra-se num espaço, fundido, que pode ser percebido e tomado como referência para seguirmos, por exemplo, o deslocamento de um objeto ou determinarmos sua precisa localidade nos alto-falantes. O oposto ocorre num espectro disperso, mais aberto e sem regiões bem definidas. No caso do gongo chinês, por exemplo, o predomínio de aperio- dicidade não deixa tão claro e evidente a região frequencial sonora, apresentando-nos um es- paço difuso. Quando colocados em jogo durante o concerto, o espaço difuso, externo, pode ser alterado, tornando-se concentrado pelo uso de filtros (no espectro) e pela estabilização dos movimentos em uma localidade específica. Temos, assim, um tipo de mutação espacial.
Quando a trajetória descrita no espaço local é facilmente reconhecível, temos uma direcionalidade fluente. Esta mesma direcionalidade está contida nos objetos de compor- tamentos lineares. Os glissandi (no objeto) e os movimentos iterativos, como a rotação, são tipicamente fluentes. Por oposição, temos a mobilidade complexa de objetos com pouca li- nearidade espectral. Esta última causa a impressão de entrelaçamento dos elementos com- ponentes do espectro e dos trajetos dos objetos no trabalho com a espacialização. A muta- ção deste par se dá pela complexificação das trajetórias lineares ou pela simplificação dos entrelaçamentos, tornando-os reconhecíveis. Por fim, a sobreposição de objetos e a multi- plicidade de trajetos se opõem aos movimentos transversais do espaço. Por exemplo, movi- mentos entrelaçados no rol dos alto-falantes tornam-se rotações sobrepostas à passagem de um objeto transversalmente no sentido contínuo frente-trás. Este nível é mais reconhecível no espaço dos alto-falantes do que no âmbito espectral do objeto sonoro.
A transformação espacial segue os meios da mutação, porém com um importante diferencial: exige um demanda temporal maior e uma intencionalidade no sentido de que um determinado elemento espacial seja transformado. Para determinar tal intenção, o com- positor pode trabalhar com possíveis imagens espaciais que cada elemento sonoro possa lhe suscitar. O timbre, a proximidade e o relevo podem ser elementos transformáveis.
Trabalhando, metaforicamente, no arranjo de ‘cores’ no espaço, o compositor de- fronta-se com densificação, compressão, opacidade, translucência, transparência e anula- ção. Fazendo uso desta gradação, pode-se traçar intencionalmente a transformação espec- tral e de espaço inerente ao objeto sonoro no decurso do tempo. No tocante a presentificação sonora, o compositor pode determinar uma transformação, do espaço apreendido pelo ou- vinte, de próximo para distante e de presente para ausente, e vice-versa.
O relevo, aspecto mais complexo, exige maior cautela. Determinado pelo volume, superfície e coloração, envolve os dois itens anteriores e, de certo modo, é deles uma resul- tante. A transformação do relevo, portanto, é percebida pela modificação dos contornos dos objetos sonoros, dos grupos de objetos ou das figuras reconhecíveis.

Quadro 5: Modificação espacial.

MODIFICAÇÃO ESPACIAL por:

MUTAÇÃO

TRANSFORMAÇÃO

VARIAÇÃO

De:

para:

Cor

Relevo

profundidade

Reexposição dos objetos sonoros em um novo contexto espacial (memorização)

vazio

cheio

densificação

volume

perto

Reexposição dos objetos sonoros em um novo contexto espacial (memorização)

concentrado

difuso

compressão

volume

longe

Reexposição dos objetos sonoros em um novo contexto espacial (memorização)

fluente

entrelaçado

opacidade

superfície

presente

Reexposição dos objetos sonoros em um novo contexto espacial (memorização)

fluente

entrelaçado

tranlucência

superfície

ausente

Reexposição dos objetos sonoros em um novo contexto espacial (memorização)

sobreposto

transverso

transparência

coloração

crescente

Reexposição dos objetos sonoros em um novo contexto espacial (memorização)

sobreposto

transverso

anulação

coloração

decrescente

Reexposição dos objetos sonoros em um novo contexto espacial (memorização)

93

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

Por fim, o último aspecto, conforme síntese apresentada no Quadro 5, temos a va- riação como elemento caracteristicamente musical e consiste na exposição do mesmo ma- terial sonoro em contexto espacial diferente. Por exemplo, no ‘drama sonoro’ Répétitions (2000) de Maurício Ayer, têm-se recitações vocais e uma ‘tosse’ (sessão inicial), expostos aos

2’30”, que são acrescidos de reverberação em um novo contexto espacial. De modo diverso, e também bastante ilustrativo, a 6’20” o compositor muda radicalmente o contexto espacial por expor um diálogo ‘cru’, sem nenhum tipo de intervenção nos sons, tal como foi captado no estúdio pelos microfones. Este momento evoca no ouvinte a escuta cotidiana, sem a im- postação vocal empregada pelos recitantes, suprimindo os vestígios do palco cênico e con- vidando o ouvinte a um mergulho em um espaço conhecido.

Considerações

Pela proposta de duas grandes classes do espaço na música eletroacústica, o espa- ço interno e o espaço externo, sublinhamos neste texto os elementos do espaço interno com- ponível. Entendemos que este espaço, trabalhado durante a elaboração da obra, consiste na composição dos elementos da espacialidade em seus diversos desdobramentos, tais como: eixo vertical-horizontal, trajetória, localidade, direcionalidade, distância, velocidade, deslo- camento, ocupação, volume/superfície e mutação/variação/transformação. Em síntese, traça- mos uma proposta de tipologia para cada um destes elementos e sua ‘componibilidade’ refe- rindo-nos ao mais amplo repertório acusmático em sua reflexão compositiva.

Referências

BARRETT, Natasha. Spatio-musical composition strategies. Organised Sound, v.7 n.3, p. 325-336,

2002.

Bayle, François, Musique Acousmatique, propositions... positions. Paris: Buchet/Chastel, Bibliothèque de Recherche Musicale, 1993.

CALON, Christian. Occuper le temps. LIEN, L’espace du Son, v.1 n. sp., 1987.

CHION, Michel. Guide des Objets Sonores: Pierre Schaeffer e la recherche musicale. Paris: INA-GRM, Buchet/Chastel, 1983.

DHOMONT, Francis. Navigation a L’ouie: La projection acousmatique. LIEN, L’espace du Son, v.1 n. sp., 1988.

. Parlez moi d’espace. LIEN, L’espace du Son, v.1 n. sp., 1998.

DHERTY, Douglas. Sound diffusion on Stereo Music over a Multi Loudspeaker Sound System: from first principles onwards to a successful experiment. Journal of Electroacoustc Music, v.11, p. 9-11, 1998.

KUPPER, Léo. Space perception in the computer age. LIEN, L’espace du Son, v.1 n. sp., 1986. MENEZES, Flo. Atualidade Estética da Música Eletroacústica. São Paulo: Fundação Editora

UNESP, 1998.

ZAMPRONHA, Edson. Notação, representação e composição: um novo paradigma da escritura musical. São Paulo: Anablume/FAPESP, 2000.

94

BORGES, A. H. Elementos Composicionais da Espacialidade Sonora: uma Tipologia do Espaço Interno Componível.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.14 - n.1, 2014, p. 81-95

Referências fonográficas

Ayer, Maurício. Répétitions (2004). Maximal Music. vol. 09. São Paulo: FAPESP, Studio

PANaroma/Unesp, 2001

Dhomont, Francis. Forêt Profonde. Montreal: Empreintes Digitales, 1996.

Menezes, Flo. Harmonia das Esferas. Maximal Music. vol. 07. São Paulo: FAPESP, Studio

PANaroma/Unesp, 2001

Ligeti, Gyorgy. Artikulation In: CDROM: La musique Eletroacoustique. Paris: INA-GRM, Hyptique, 2000.

Stockhausen, Karlheinz. Gesang der Jünglinge. In: CDROM: La musique Eletroacoustique. Paris: INA-GRM,Hyptique, 2000.

. Gruppen. Vienna: Universal Edition, 1991.

Xenakis, Iannis. La Legend d’Eer. Salabert Editeur: Auvidis Mountaigne, 1995.

Alvaro Henrique Borges - Doutor em Música pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP (2014), Mestre em Música (2008) e Graduação em Composição e Regência pela mesma Universidade (2005). Profes- sor Adjunto na UNESPAR, onde coordena o Estúdio de Música da Fauculdade de Artes do Paraná - EMFap e o La- boratório de Linguagens Sonoras e Música Eletroacústica - LiSonME. Atua com ênfase em Educação e Composição Musical Contemporânea, Composição Instrumental e Eletroacústica, Linguagens Sonoras e Música e Tecnologia.


95