Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 199p., n.2, 2013

SABAG, M. M. S.; IGAYARA, S. C. A Notação Original da Música Polifônica Renascentista e suas Relações com as Práticas Interpretativas Atuais.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.2, 2013, p. 34-51

A notação original da música polifônica renascentista e suas relações com as práticas interpretativas Atuais

Munir Machado de Sousa Sabag (ECA-USP, São Paulo, SP)

munir.sabag@terra.com.br

Susana Cecilia Igayara (ECA-USP, São Paulo, SP)

susanaiga@gmail.com

Resumo: A música vocal do Renascimento foi escrita em notação mensural branca, um sistema que difere da nota- ção moderna em diversos aspectos, particularmente no que diz respeito às relações entre os valores das figuras mu- sicais. Neste trabalho, apresentamos alguns exemplos escritos em notação mensural com o objetivo de observar a es- trutura deste sistema e examinar as limitações dos processos de transcrição para a notação atual. Devido à escassez de bibliografia em português sobre o assunto, apresentamos uma exposição teórica onde relacionamos informações de tratados do século XVI com a literatura musicológica mais recente, abordando tópicos como andamento, fraseado, acentuação e mudanças métricas. Finalmente, diante da recente possibilidade de se obterem documentos originais através da internet, advogamos que o contato dos intérpretes com as fontes primárias da Renascença pode revelar uma frutífera conexão entre musicologia e performance.

Palavras-chave: Notação musical; Transcrição musical; Notação mensural branca; Polifonia renascentista; Teoria

musical.

The Original Notation of Renaissance Polyphonic Music and its Relationships with Current Performance Practice

Abstract: Renaissance vocal music was written in white mensural notation, a system that differs from modern nota- tion in several aspects, particularly regarding the metrical relationships among note values. In this article, we pre- sent some examples written in mensural notation in order to observe the structure of this system and to examine the limitations of the processes of transcription to modern notation. Due to the lack of bibliography in Portuguese on this subject, we present a theoretical exposition where we relate information from 16th century treatises to more recent musicological literature, approaching topics like tempo, phrasing, accentuation and metric changes. Finally, in view of the recent possibility of obtaining original documents on-line, we advocate that the contact of perfomers with the primary sources of the Renaissance may reveal a fruitful connection between musicology and performance. Keywords: Musical notation; Musical transcription; White mensural notation; Renaissance polyphony; Music theory.

1. Introdução

Os historiadores da música usualmente identificam o período que vai de 1450 a
1600 como a “era de ouro” da música vocal polifônica. Embora diversos compositores re- nascentistas ainda tenham produzido parte significativa de suas obras no início do século XVII, é quase certo que o interesse geral pela polifonia nos moldes da Renascença já hou- vesse decaído drasticamente por volta de 1630, possivelmente em razão das inovações do Barroco e da progressiva ascensão da música instrumental. Nos dois séculos que se segui- ram, a música do Renascimento muito provavelmente não esteve em voga e apenas regis- tros isolados de sua execução nesse período chegaram até nossos dias. Hoje sabemos que o verdadeiro resgate do repertório polifônico da Renascença só ocorreu a partir da segunda metade do século XIX, momento em que a valorização de raízes locais e a busca de um pas- sado glorioso motivaram pesquisas sobre a música antiga em diversas regiões da Europa.
Após este lapso de quase trezentos anos, é natural que a investigação musicológi- ca da polifonia renascentista tenha envolvido duas grandes dificuldades desde seu princí- pio: as mudanças ocorridas no sistema de notação musical e a perda das antigas tradições interpretativas. A música vocal do Renascimento foi escrita na chamada notação mensural

branca, um sistema que havia se cristalizado no final da Idade Média após uma longa série

Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 199p., n.2, 2013 Recebido em: 16/10/2012 - Aprovado em: 08/12/2012

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de tentativas de se representar graficamente a musica mensurata – isto é, aquela em que as relações de duração entre os diferentes sons são precisamente medidas. Embora nosso mé- todo moderno de notação musical, derivado da notação branca, seja também mensural, os dois sistemas diferem em diversos aspectos, particularmente no que diz respeito às propor- ções entre os valores das figuras – as chamadas mensurações – que não eram fixas como hoje. A notação branca, por sua vez, passou por transformações importantes durante o pró- prio período de sua vigência, e um número considerável de fontes documentais indica que a prática adotada pelos compositores nem sempre correspondeu às prescrições dos teóricos, o que representa uma complicação adicional para aqueles que desejam compreender a mú- sica escrita durante o Renascimento.
Apesar destas dificuldades, um grande volume de pesquisas foi realizado a respei- to deste repertório a partir do final do século XIX. O estudo dos tratados musicais da Idade Média e da Renascença permitiu a produção de transcrições de peças para a notação mo- derna e, ao que parece, madrigais já eram comumente executados nas primeiras décadas do século XX. Em 1929, no prefácio à quinta edição do volume introdutório de The Oxford History of Music, o editor Percy Buck destaca o monumental trabalho de Edmund Horace Fellowes (1870-1951), clérigo e acadêmico inglês responsável pela transcrição de nada me- nos que 36 volumes de madrigais, 32 volumes de canções para alaúde e 20 volumes de mú- sica de William Byrd. Após referir-se a seus próprios tempos de estudante como uma época em que as oportunidades de audição da música renascentista eram muito escassas e em que o custo da música impressa era proibitivo, Buck (1929) já parece considerar a situação bas- tante distinta no final da década de 1920:

Quase todo músico de meia idade admitirá agora que, enquanto estudante, via a história da música como uma necessidade desagradável da Examination School, e que seu conhecimento sobre o assunto era, assim como o da maioria de seus exa- minadores, derivado somente de livros-texto, apoiado em artigos do Dicionário de Grove e possivelmente suplementado por um contato superficial com alguns dos exemplos menos confiáveis a serem encontrados naquele monumento de imprecisão conhecido como Cathedral Music, de Boyce. [...] Hoje, por alguns centavos, todo es- tudante pode, graças a Dr. Fellowes, comprar qualquer madrigal como o compositor o escreveu, e também, graças aos English Singers, pode ouvi-lo executado como o compositor pretendia; depois disso ele conhecerá, por dentro, mais sobre a obra de Weelkes e Wilbye do que era conhecido pelo maior especialista de cinquenta anos atrás. (p. v-vi, tradução nossa1).

A profusão de edições da música da Renascença publicadas ao longo do século XX atesta, de fato, um grande entusiasmo pelo repertório redescoberto. Diferentes métodos de transcrição foram desenvolvidos com o objetivo de tornar a polifonia acessível a seus novos intérpretes e de representar em notação moderna uma música originalmente notada em par- tes separadas, sem barras de compasso e sem indicações claras de dinâmica ou andamento. A correspondência entre as duas notações não é, entretanto, biunívoca. Algumas sutilezas interpretativas expressas na notação mensural podem ser perdidas durante os processos de transcrição, e os atuais intérpretes da música renascentista certamente estão familiarizados com a existência de conflitos entre diferentes edições de uma mesma peça. Embora se en- contrem no mercado excelentes publicações musicológicas que citam suas fontes e explici- tam de maneira clara seu processo editorial, observa-se que muitas edições práticas ou di- dáticas tendem a não considerar este aspecto ou a incorporar elementos alheios à notação original – e possivelmente também à prática interpretativa do Renascimento – sem que o leitor seja advertido.

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Se Percy Buck se referia, em sua época, à facilidade de acesso às transcrições im- pressas do repertório renascentista, hoje podemos ir ainda mais longe e travar contato com documentos originais dos séculos XV e XVI. Nos dias atuais, encontra-se um enorme nú- mero de fac-símiles de escritos teóricos e de fontes musicais do Renascimento disponíveis para consulta, e grande parte desse material pode ser obtido através da internet, não reque- rendo visitas pessoais aos museus e bibliotecas que os abrigam. Neste trabalho, diante des- ta recente possibilidade tecnológica, procuramos reunir alguns exemplos que demonstrem que o contato com as fontes primárias e algum conhecimento da notação mensural branca podem ser instrumentos úteis no momento da escolha de edições, além de potencialmente servir como guia para a interpretação propriamente dita.

2. A notação mensural branca

Diferentemente da musica plana medieval, em que o texto e a melodia seguramente predominaram sobre qualquer outro aspecto musical, a polifonia vocal da Renascença exi- be uma notável complexidade rítmica. A representação gráfica da musica mensurata exigiu, ainda na Idade Média, uma definição mais precisa das relações entre a duração dos sons do que aquela expressa pelos neumas no canto gregoriano, e os valores das figuras musicais passaram a obedecer a um rigoroso sistema de proporções, parte do qual subsiste até nossos dias. Na Figura 1, estão representadas as figuras e pausas da maneira como eram utilizadas por volta de 1450:

Figura 1: Figuras musicais e suas respectivas pausas no sistema de notação mensural branca.














Apesar de o aspecto destas figuras não diferir significativamente das formas mo- dernas correspondentes, o sentido de proporção existente entre os valores era considera- velmente mais complexo do que na escrita atual. Em notação moderna, as relações mé- tricas entre as figuras baseiam-se em proporções fixas e sempre assumidas como sendo duplas ( = , =, etc.); na notação mensural branca, por outro lado, as mensurações dos valores podiam ser duplas ( = , = , etc.) ou triplas ( = , = , etc.), sen- do usual a coexistência de medidas distintas para diferentes valores em uma mesma peça ( = , = , =, por exemplo).
De acordo com a antiga associação do número três à ideia de perfeição, as mensu- rações triplas eram denominadas perfeitas e as duplas imperfeitas; a medida de cada figura
também recebia nomes particulares: modus (mensuração da longa em breves), tempus (men-

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suração da breve em semibreves) e prolatio (mensuração da semibrevis em minimae), cada uma delas podendo ser perfeita ou imperfeita (Figura 2). Mensurações de valores menores do que a S eram sempre imperfeitas ( =, =, =) e a Mx, cuja mensuração era cha- mada de modus maximarum ou modus major, era, salvo em raras exceções, também imper- feita ( = ).

Figura 2: Mensurações perfeitas e imperfeitas da longa, brevis e semibrevis.

Valores largos como a L e a Mx têm importância relativamente pequena na música secular. Devido ao fato de representarem durações muito longas, costumam ocorrer apenas no tenor de missas e motetos, quando este entoa um cantus firmus sobre o qual as outras vozes realizam o descante. Neste texto, trataremos apenas das mensurações tempus e pro- latio, cujas combinações se designavam por símbolos especiais: (tempus perfectum cum prolatione perfecta), (tempus imperfectum cum prolatione perfecta), (tempus perfectum cum prolatione imperfecta) e (tempus imperfectum cum prolatione imperfecta). Os diagra- mas da Figura 3 foram extraídos da reedição de 1608 do célebre tratado A Plaine and Easie Introduction to Practicall Musicke, de Thomas Morley, e ilustram as relações métricas em cada um destes casos:

Figura 3: Relações entre os valores das figuras nas mensurações principais (MORLEY, 1608, p. 14).

A observação das subdivisões da brevis nos diagramas acima sugere uma associa- ção dos antigos sinais de mensuração com algumas de nossas estruturas rítmicas modernas

– correspondendo a um compasso binário simples, ao binário composto, ao ternário simples e ao ternário composto. Na música escrita em tempus perfectum ou prolatio per- fecta, portanto, as semibreves ou minimae tendem a estar organizadas em grupos de três, de maneira não diferente da notação atual, em que esperamos encontrar grupos ternários de semínimas em ou de colcheias em , por exemplo. Na notação mensural branca, es- tes agrupamentos eram chamados de perfeições e podiam ocorrer em diferentes níveis de
mensuração.

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3. Andamento e tactus





Para que a música escrita em notação branca seja adequadamente transcrita e re- presentada através das fórmulas de compasso modernas, é necessário estabelecer alguma correspondência entre as figuras antigas e as atuais, optando-se por reduzir ou não os seus valores. No volume The Notation of Polyphonic Music, 900-1600, o musicólogo Willi APEL (1953, p. 97) lamenta o fato de não haver uma unanimidade entre os editores a esse respeito e propõe a redução 1:4 ( =), que possui a vantagem de fazer com que o valor de uma bre- vis, nas mensurações , , e , corresponda a um compasso , , e , respectivamen- te, o que se pode facilmente verificar a partir das subdivisões esquematizadas na Figura 3. De fato, não se observa um padrão único para a escolha de figuras entre as edições moder- nas, que podem exibir não apenas opções relativamente arbitrárias para as reduções, mas também divergências importantes nas indicações de andamento. Como um exemplo, toma- mos a edição original e duas transcrições bastante conhecidas do início da voz superior do madrigal Sì, ch’io vorrei morire, de Claudio Monteverdi (Exs. 1, 2 e 3):

Exemplo 1: Início do canto do madrigal Sì, ch’io vorrei morire, de Claudio Monteverdi (MONTEVERDI, 1615,

fol. 17).

Exemplo 2: Transcrição de G. F. Malipiero do início do canto do madrigal Sì, ch’io vorrei morire, de Claudio

Monteverdi (MALIPIERO, 1927, p. 80).

Exemplo 3: Transcrição de Alec Harman do início do canto do madrigal Sì, ch’io vorrei morire, de Claudio

Monteverdi (HARMAN, 1983, p. 291).

A transcrição de Alec Harman, realizada com redução de valores 1:2 ( = ) e indi- cação metronômica = m.m. 60, contrapõe-se à de Malipiero, que não exibe nenhuma re- dução em relação ao original e propõe a indicação andante. Embora não pretendamos forne- cer qualquer solução definitiva para esta aparente discrepância, ela pode ser compreendida levando-se em conta o fato de as indicações de andamento terem sido praticamente inexis-

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tentes durante a Renascença e expressarem, até certo ponto, as concepções dos próprios edi- tores a respeito das peças transcritas.
Apesar da ausência de referências explícitas nos manuscritos e edições dos séculos XV e XVI, o problema do pulso foi discutido extensamente na maioria dos tratados musi- cais do período. A unidade de tempo, então denominada tactus2, foi diversas vezes relacio- nada aos batimentos cardíacos humanos e deveria corresponder – especialmente no início da Renascença – ao tempo de uma brevis ou de uma semibrevis, conforme sugerem as se- guintes citações extraídas, respectivamente, dos tratados A Plaine and Easie Introduction to Practicall Musicke, de Thomas Morley (1597), Musice Active Micrologus, de Andreas Ornithoparcus (1609) e Istitutioni Harmoniche, de Gioseffo Zarlino (1573):

[...] tactus é um movimento sucessivo da mão indicando a quantidade de cada nota e pausa na canção, com igual medida, de acordo com uma variedade de sinais e pro- porções, e divide-se em três: major, minor e proportionatus. Chama-se tactus major, quando o tactus compreende o tempo de uma brevis; minor quando o tempo de uma semibrevis, e proportionatus quando compreende três semibreves, como em uma tri- pla, ou três minimae, como em prolatio perfecta. (p. 9).

[...] tactus é um movimento sucessivo no canto, dirigindo a igualdade do compasso, ou é um certo movimento, feito pela mão do cantor principal, de acordo com a natu- reza dos sinais [...] O tactus divide-se em três: major, minor e proportionatus. Major é uma medida feita por um movimento lento, e como se fosse recíproco. Os escritores chamam este tactus de inteiro, ou tactus total. E porque ele é o verdadeiro tactus de todas as canções, ele compreende em seu movimento uma semibrevis não diminuída [...] O tactus minor é metade do major, e é chamado de semitactus. Porque ele mede por seu movimento uma semibrevis diminuída em uma dupla, isto só é permitido para os incultos. O proportionatus é aquele onde três semibreves são pronunciadas contra uma (como em uma tripla) ou contra duas, como em uma sesquialtera. (p. 46). Vendo os músicos que, pela diversidade dos movimentos que fazem cantando juntos as partes da canção – por um ser mais veloz ou mais lento que o outro – se poderia gerar alguma confusão, criaram um certo sinal, no qual cada cantor deveria se apoiar ao proferir a palavra com medida de tempo veloz ou lenta [...] E imaginaram que fosse bom se tal sinal fosse feito com a mão, para que cada um dos cantores pudesse vê-lo, e fosse regulado em seu movimento à guisa do pulso humano. Depois de dada esta ordem, alguns dos músicos chamaram esse sinal de tactus [...] E realmente me parece que pensaram bem, pois não vejo qual movimento poderiam encontrar, que fosse fei- to naturalmente e pudesse lhes dar a medida e proporção, que não fosse este. Porque se considerarmos as qualidades que se encontram em um e outro – isto é, no tactus e no pulso, que pelos gregos é chamado sfigmos –, encontraremos entre eles muitas cor- respondências, porque sendo o pulso [...] um certo alargamento e estreitamento, ou melhor, levantamento e abaixamento do coração e das artérias, vem a ser composto de dois movimentos e duas pausas, coisas das quais similarmente o tactus vem a ser composto; [...] Mas deve-se notar que consideraram o tactus em duas partes, e tanto à primeira quanto à segunda atribuíram o tempo breve, ou longo, como lhes fosse mais cômodo. É bem verdade que os modernos aplicaram primeiramente ao tactus ora a brevis, ora a semibrevis imperfeitas, fazendo-as iguais ao tempo do pulso dividido em dois movimentos iguais, onde tal tactus se pode verdadeiramente chamar igual; [...] Depois lhe aplicaram ora a brevis com a semibrevis, e ora a semibrevis com a minima, e o dividiram em dois movimentos desiguais, aplicando ao battere o tempo longo e ao levare o breve, colocando-os em proporção dupla. E porque entre o battere e o levare recai a proporção de desigualdade, tal tactus se pode verdadeiramente chamar de desigual. Tendo, depois, estes músicos tal referência, quando queriam dizer o tactus igual, assinalavam suas canções no início com o círculo ou semicírculo inteiros, ou cortados em duas partes por uma linha; e quando queriam dizer o desigual, acrescen- tavam a tais sinais, ou cifras, o ponto, como nestes exemplos se pode ver claramente. (p. 143-144).

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Na Figura 4, reproduzimos os exemplos dados por Zarlino para os sinais de tactus igual e desigual. O acréscimo do ponto aos sinais de mensuração é apenas um indicador de prolatio perfecta – isto é, da subdivisão ternária da semibrevis – que se conduzia através de uma marcação de tempo desigual, onde as duas primeiras minimae correspondem ao mo- vimento descendente da mão (battere) e a última ao ascendente (levare). Devido ao fato de conter dois tempos de diferentes durações, o tactus desigual (battuta inequale) é também chamado de tactus proportionatus. Os sinais cortados por um traço indicam uma diminui- ção simples (proportio dupla), fazendo com que a unidade de tempo corresponda, em rigor, à brevis. Por esta razão, o símbolo – um remanescente da notação mensural – recebe, até os dias de hoje, a denominação alla breve.

Figura 4: Sinais indicando tactus igual e tactus desigual (ZARLINO, 1573, p. 274).

Em sua edição da Introduction de Morley, o musicólogo Alec Harman (1952, p. 19), destaca em nota de rodapé o fato de o tactus minor ser, no final do século XVI, “de longe, o mais comum”, o que reforçaria uma ligação entre tactus e semibrevis de maneira geral. Esta conexão também é defendida por Willi Apel, que argumenta ainda em favor da existência de um pulso fixo e moderadamente lento (m.m. 50-60) durante todo o período da notação mensural (APEL, 1953, p. 146-147). Posteriormente, Apel (1953) afirma que, nos tratados,

em lugar algum se encontrará um comentário que forneça a menor justificativa para a suposição de que a duração de uma nota poderia se variar de acordo com o texto, o caráter ou sentimento da peça, ou qualquer outra ideia romântica que o regente moderno possa ter em mente se ele escolhe o tempo “correto” para um moteto de Palestrina ou Byrd. (p. 190).

Segundo alguns estudos musicológicos mais recentes, entretanto, a correspondên- cia do pulso com a semibrevis pode ter sido bastante flexibilizada ao longo do século XVI, de forma que peças escritas em por volta de 1500 também poderiam ter seu tactus asso- ciado a esta figura, e no final do século até mesmo a minima poderia representar o pulso sob a mensuração (DEFORD, 1995, p. 3). A advertência de Ornithoparcus a respeito de o uso do tactus associado à semibrevis diminuída – isto é, à minima – ser permitido apenas para os músicos de menos habilidade é, de qualquer forma, mais um indício da existência desta associação.
À medida em que nos aproximamos do final do Renascimento, práticas em desacor- do com as prescrições dos teóricos revelam-se cada vez mais comuns. Apesar de os compo- sitores haverem passado a escrever suas peças utilizando valores menores e gradualmente abandonado a estrutura baseada na brevis, símbolos diminuídos como e tornaram-se muito mais frequentes do que os originais não cortados pelo traço. O primeiro destes sinais, tradicionalmente entendido como tempus imperfectum diminutum, estaria teoricamente re- lacionado a através de uma proporção dupla (tactus alla breve), mas a relação entre ambos parece ter sido bastante variável na prática. Segundo Ruth DEFORD (1995, p. 4), quando
e eram aplicados a peças independentes, supõe-se que a proporção entre os andamentos

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fosse normalmente menor do que 2:1, de modo que, em alguns casos, o uso de pode suge- rir simplesmente um andamento um pouco mais movido que o original .

No volume The English Madrigal Composers, Edmund Fellowes chama ainda a aten- ção para a falta de rigor no uso dos sinais de mensuração no final do século XVI, apontan- do exemplos de seu uso indiscriminado até mesmo nas publicações de Thomas Morley: em sua primeira edição de Madrigalls to Foure Voyces (1594), o símbolo foi utilizado ao longo de todo o livro, enquanto na reimpressão de 1600 as mesmas peças foram escritas sob ; da mesma forma, na edição de 1593 de Canzonets or Little Short Songs to Three Voyces o cantus está escrito em e as outras vozes em (FELLOWES, 1921, p. 91). Nas Figuras 5 e 6, apre- sentamos estes dois exemplos em colagens realizadas a partir dos fac-símiles das edições em questão:

Figura 5: Uso de e para uma mesma peça, em duas edições diferentes do livro Madrigalls to Foure Voyces, de Thomas

Morley (MORLEY, 1594, fol. Bjr.; MORLEY, 1600, fol. Aiir.).


Figura 6: Uso de no cantus e nas outras vozes de uma mesma peça, no livro Canzonets or Little Short Songs to Three

Voyces, de Thomas Morley (MORLEY, 1593a, fol. Bjr.; MORLEY, 1593b, fol. Br., MORLEY, 1593c, fol. Br.).

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4. Acentuação e fraseado

Quando comparada com a notação moderna, é a mais simples dentre as men- surações principais do sistema de notação branca. Em tempus imperfectum cum prolatio- ne imperfecta, as relações entre as figuras são duplas e seus valores normalmente podem ser determinados sem grande dificuldade. Como mais um exemplo – escolhido entre inú- meros outros, uma vez que a maior parte da música do século XVI foi escrita em men- surações imperfeitas – reproduzimos o fac-símile da primeira frase do cantus do famoso madrigal The Silver Swan, de Orlando Gibbons (Exemplo 4), seguido de nossa transcrição (Exemplo 5):

Exemplo 4: Primeira frase do cantus do madrigal The Silver Swan (GIBBONS, 1612, fol. A3r.).

Exemplo 5: Transcrição da primeira frase do cantus de The Silver Swan, sem redução de valores.




A comparação deste original com sua transcrição, apesar de aparentemente mui- to simples, traz à tona uma importante questão referente às relações dos antigos sinais de mensuração com as fórmulas de compasso modernas. Embora o símbolo atual seja um remanescente da notação mensural, a indicação de tempus imperfectum cum prolatione im- perfecta ( ) não carregava a conotação quaternária presente em , pois os sinais , , e diziam respeito apenas às relações entre os valores, não implicando necessariamente em efeitos de acentuação. Esta questão pode se tornar delicada devido a uma parte da música da Renascença se adequar, de fato, a um esquema métrico posterior, eventualmente sugerindo falsas associações entre os símbolos e, consequentemente, interpretações equivocadas. Em The Interpretation of Early Music, Robert Donington (1963, p. 341) adverte que qualquer in- formação sobre acentuação métrica que os sinais de mensuração possam incidentalmente fornecer é indireta, não sendo “nem exata e nem confiável”. Na transcrição do exemplo de Gibbons, portanto, a correspondência entre e é incidental e não constitui uma regra a ser generalizada. Somente uma observação detalhada do texto, do contraponto e dos contor- nos melódicos da música vocal renascentista permite chegar a conclusões acertadas sobre suas inflexões e acentuação.

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5. Imperfeição

As relações métricas duplas definidas nas mensurações imperfeitas que tratamos até o momento não significam que não fosse possível escrever uma brevis ternária em tem- pus imperfectum ou uma semibrevis ternária em prolatio imperfecta, por exemplo. Conforme pudemos observar no trecho de The Silver Swan, existe na notação branca o punctus addi- tionis, que acrescenta a uma figura imperfeita metade de sua duração original, tornando-







-a ternária ( = , = ), de maneira idêntica ao que ocorre na escrita atual. O problema inverso – isto é, a notação de valores binários em mensurações perfeitas
– por outro lado, requer algumas considerações adicionais e está associado a um processo denominado imperfeição. Com o objetivo de expor e exemplificar este mecanismo, repro- duzimos aqui o início da voz superior da canção Je ne vis oncques la pareille, atribuída a Guillaume Dufay ou a Gilles Binchois (Exemplo 6). Nesta peça, escrita em tempus perfectum cum prolatione imperfecta (), as semibreves estão organizadas em grupos de três, consti- tuindo as perfeições que indicamos na figura através de colchetes. O trecho foi extraído do Chansonnier Laborde (ca. 1450) e sua transcrição (Exemplo 7) é do musicólogo alemão Heinrich Besseler.

Exemplo 6: Início da voz superior da canção Je ne vis oncques la pareille, de Dufay ou Binchois. Perfeições indicadas por colchetes (CHANSONNIER LABORDE, ca. 1450, fol. 43v).

Exemplo 7: Transcrição de H. Besseler do início da voz superior da canção Je ne vis oncques la pareille, com redução de valores 1:4 (BESSELER; BLUME; GUDEWILL, 1932, p. 24).


A observação deste exemplo permite notar que as quatro perfeições destacadas entre colchetes possuem diferentes subdivisões internas, todas elas facilmente expressas através das figuras , e (pontuadas ou não). Para efeito de argumentação, suponhamos agora que o compositor houvesse desejado expressar, na terceira perfeição, o ritmo ou ao invés de . Neste caso, surgiria naturalmente a importante ques- tão de como expressar um valor duplo (a mínima moderna) na mensuração . Na notação branca, a solução para este problema era sacrificar a perfeição de uma B, mantendo-se per- feito o agrupamento B + S. Este processo era denominado imperfeição e poderia ser causa-

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do pela figura subsequente (Figura 7a) ou pela anterior (Figura 7b), assim como por pausas
(Figs. 7c, 7d):

Figura 7: Processos de imperfeição exemplificados com redução de valores 1:4.

Segundo Thomas Morley (1597, p. 24), a imperfeição é “a retirada da terça parte do valor de uma nota perfeita, e é feita de três maneiras – por nota, pausa ou cor”. Este terceiro processo é chamado de coloração e consiste em se preencher de preto a cabeça de uma nota ternária, fazendo com que ela perca um terço de seu valor original e se torne imperfeita. Na mensuração , portanto, a coloração aplicada à brevis faz com que as durações dos grupos e se identifiquem, o que se pode observar em duas possíveis transcrições de uma sequência de breves coloridas em tempus perfectum (Figura 8):

Figura 8: Duas transcrições possíveis de um trecho em coloração.

Embora este trecho esteja, do ponto de vista dos valores, corretamente transcrito nos dois casos, a forma (b) pode ser preferível por não sugerir o efeito de síncopa observa- do em (a) e destacar a existência da nova estrutura rítmica formada pelas notas coloridas. Este tipo de mudança nas fórmulas de compasso ao longo de uma peça é bastante comum nas transcrições da música renascentista e representa uma tentativa de evitar a sugestão de

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acentuações incorretas. Nas edições modernas, trechos originalmente escritos em colora- ção também costumam ser indicados através de colchetes interrompidos () sobre as notas correspondentes na transcrição, com o objetivo de advertir o intérprete para eventu- ais diferenças de acentuação.

6. Relações entre ritmos binários e ternários: análise de um exemplo

Na notação branca, as possibilidades de expressão gráfica das relações existentes entre as figuras musicais podem ainda ser consideravelmente ampliadas através do uso do conceito matemático de proporção. Quando aplicada à música mensural, uma proporção diz respeito a duas diferentes quantidades de figuras que devem ser executadas em iguais in- tervalos de tempo. Os casos matematicamente mais complexos não eram frequentes no re- pertório do século XVI, sendo os mais usuais a dupla (2:1), a tripla (3:1), a quadrupla (4:1), a sesquialtera (3:2) e a sesquitertia (4:3). As indicações numéricas que denotavam estas cinco razões estão apresentadas na Figura 9, onde os grupos de semibreves à direita devem ter a mesma duração daqueles à esquerda:

Figura 9: Proporções mais simples aplicadas à semibrevis.

As proporções constituem o mais árduo capítulo da notação mensural e uma dis- cussão detalhada de suas definições e desdobramentos está certamente além do escopo deste trabalho. Durante o século XVI, entretanto, sua principal aplicação resumia-se à ex- pressão da alternância entre ritmos binários e ternários, procedimento bastante comum nas formas polifônicas do período. Infelizmente, o uso dos sinais de proporção não chegou a uma real consistência durante o Renascimento e a determinação dos valores escritos em notação proporcional pode ser bastante complexa, eventualmente exigindo experimenta- ções ou processos de tentativa e erro. As indicações numéricas canônicas apresentadas na Figura 9 não eram as únicas formas de expressar estas novas relações entre valores, que também podiam estar implícitas nas mudanças nos sinais de mensuração e no uso de notas coloridas. No artigo intitulado Tempo Relationships between Duple and Triple Time in the

16th. Century, Ruth DeFord discute a ambiguidade dos sinais de proporção, relacionando-a

aos dois diferentes propósitos com que estes símbolos eram usados: (i) para notar mudanças nos valores das figuras (proporções 3:1, 3:2, etc.), independentemente de estarem associa- dos a uma métrica ternária, e (ii) para notar a métrica ternária, independentemente da rela- ção de valores que o trecho em proporção mantenha com o anterior (DEFORD, 1995, p. 1). A primeira destas funções é aquela originalmente prescrita pelos teóricos em seus tratados, enquanto a segunda parece aproximar-se do significado de nossas fórmulas de compasso

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atuais, que em geral salientam o caráter métrico de uma seção musical. Como um exemplo da experimentação que pode ser necessária para transcrever trechos que exibem este tipo de mudança rítmica, tomamos o famoso madrigal Fair Phyllis, de John Farmer, publicado em The First Set of English Madrigals to Foure Voices (1599). Nesta peça, ocorrem repetidas mudanças de um ritmo binário sob o símbolo para um ternário expresso através do sinal seguido de figuras preenchidas de preto, o que se pode observar neste trecho do bassus (Exemplo 8):

Exemplo 8: Trecho do bassus do madrigal Fair Phyllis, de John Farmer (FARMER, 1599d, fol. Dv).

No final do Renascimento, os compositores já não pareciam atribuir muita impor- tância ao significado exato dos antigos sinais de mensuração. Ao discutir aspectos técni- cos de notação em The English Madrigal Composers, Edmund Fellowes (1921, p. 91) afirma que os compositores ingleses “às vezes utilizavam notação branca e às vezes preta, e às ve- zes misturavam os dois tipos de notação um tanto indiscriminadamente”, de modo que a interpretação de trechos como o Exemplo 8 não está necessariamente prevista na teoria e pode requerer a comparação entre diversas vozes para ser compreendida. Na Figura 10, re- produzimos, através de uma colagem, um pequeno fragmento do bassus de Farmer seguido de cinco diferentes transcrições modernas, ilustrando possíveis conflitos de interpretação:

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Figura 10: Original e transcrições de um fragmento do bassus do madrigal Fair Phyllis, de John Farmer (FARMER, 1599d,

fol. Dv-D2r; BARTLETT; SAGE; DIMIZIANI, 1984, p. 55; BARTLETT; RUTTER, 2001, p. 108-109; LEDGER, 1978, p.

111; SQUIRE, [191-?, p. 18; FREY; METTKE; SUTTNER, 1983, p. 79).

Embora exibam diferentes opções editoriais para representar a seção ternária em notação moderna, as transcrições (a), (b) e (c) são claramente equivalentes do ponto de vista das relações entre os valores das figuras; a transcrição (d), por outro lado, não está em acor- do com as anteriores e deixa subentendida a equivalência = , frequentemente observa- da em edições e interpretações deste madrigal; a transcrição (e) faz uso do Mensurstrich – a barra de compasso que não transpassa o pentagrama – e limita-se a indicar a seção terná- ria através do símbolo , não explicitando a relação de valores que deve ser mantida com os compassos precedentes. Nas opções (d) e (e), portanto, a mudança é interpretada de acordo com a segunda função citada por DeFord – isto é, considera-se, nestes casos, que a indica- ção esteja mais intimamente relacionada à métrica ternária do que à relação do novo pul- so com o anterior.




Se as divergências entre estas transcrições deixam dúvidas a respeito da relação originalmente pretendida pelo compositor, uma comparação entre o bassus e o cantus ori- ginais de Farmer parece fornecer, neste caso, uma solução para o problema: na primei- ra frase da seção Oh then they fell a-kissing, a voz superior tem pausas e não apresenta uma das mudanças de para , permitindo observar a equivalência entre as durações de e (Figura 11), o que sugere fortemente que as indicações das relações de tempo observadas nas três primeiras transcrições da Figura 10 sejam, de fato, corretas e necessárias.

Figura 11: Comparação entre o cantus e o bassus em um trecho de Fair Phyllis (colagem) (FARMER, 1599a, fol. D2r; FARMER, 1599d, fol. Dv-D2r).

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Em suas respectivas transcrições deste trecho, os musicólogos Clifford Bartlett e Andrew Parker justificam suas opções editoriais baseados nesta comparação entre vozes, embora o primeiro reconheça que a interpretação subentendida na transcrição 10d não é in- comum. Autor das transcrições 10a e 10b, Bartlett (1984) afirma que

a relação entre tempo duplo e triplo na fonte original é inequívoca, já que a voz su- perior tem uma pausa de semibrevis sem uma mudança na fórmula de compasso. Entretanto, as mudanças são frequentemente interpretadas como = Em qualquer dos casos, a seção ternária não deve perder seu ritmo marcado. (p. ix).

Andrew Parker, por sua vez, confirma esta relação de valores na transcrição 10c e admite a necessidade de experimentação em casos como este. No comentário crítico em The Oxford Book of English Madrigals, editado por P. Ledger (1978), Parker afirma:

Não existe um relato definitivo e contemporâneo das convenções usadas na notação das proporções tripla e sesquialtera na Inglaterra durante o período do madrigal [...] A solução para a notação preta é dada em Fair Phyllis I saw, de John Farmer (nº 16 neste volume) assim como em muitos manuscritos para teclado. No madrigal de Farmer há uma mudança para notação preta na frase O then they fell a-kissing nas três vozes inferiores enquanto a voz superior continua com pausas sob . Isto carrega a impli- cação de que a minima branca é exatamente equivalente à semibrevis preta mais a minima preta, [...] e esta interpretação funciona para todos os casos de notação preta que eu examinei. (p. 400).

Embora constitua um exemplo pontual – e fortuito – do tipo de informação que o intérprete moderno pode obter recorrendo às fontes musicais da Renascença, a solução for- necida pela comparação entre diferentes vozes em Fair Phyllis demonstra, mais uma vez, a utilidade do acesso aos originais e do conhecimento da notação mensural para a escolha de edições, assim como para diversas outras decisões interpretativas.

Considerações finais

Iniciamos este texto afirmando que a notação mensural branca foi utilizada du- rante um período de aproximadamente 150 anos, correspondente ao que hoje se denomina Renascimento. Embora isto seja verdade, a estrutura lógica deste sistema de escrita – assim como muitos de seus aspectos formais – foi herdada da Idade Média, de modo que a maio- ria das regras que o deveriam governar datam, paradoxalmente, de um período anterior à sua própria existência. Apesar disso, diversos teóricos reafirmaram e defenderam com vee- mência as antigas regras das quais possuíam domínio durante o século XVI, possivelmen- te para se manterem detentores de um conhecimento que possuía valor de mercado. Dessa forma, o desacordo entre teoria e prática acentuou-se gradativamente ao longo do período, resultando em ambiguidades que até hoje se refletem nas transcrições da polifonia renas- centista. As edições modernas deste repertório variam enormemente em escopo e caráter: em um extremo figuram as publicações didáticas que incluem um excesso de indicações de agógica, dinâmica, métrica e articulação que não poderiam estar presentes nos originais em notação branca; a vertente oposta exibe edições puramente musicológicas que se limitam a empregar os antigos sinais sem explicar seus significados, deixando para o intérprete a tare- fa de desvendá-los; e, finalmente, em uma posição intermediária, encontram-se as publica- ções que propõem soluções práticas sem deixar de fornecer informações sobre seu processo

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editorial, situando o leitor para que este possa tomar suas próprias decisões. Conscientes da inexistência de transcrições ideais para todo o repertório, esperamos haver demonstrado, através dos exemplos abordados, que não há mais razão para que o contato com os docu- mentos da Renascença continue restrito aos círculos acadêmicos: seu estudo por parte dos intérpretes pode revelar, em nossa opinião, um interessante e promissor campo de união entre musicologia e performance.

Notas

1 Todas as citações realizadas neste artigo referem-se a obras escritas em línguas estrangeiras e as traduções são de nossa autoria.

2 Em inglês, “tact” ou “stroke”; em italiano, “battuta”.

Referências

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Munir Sabag - Graduado em Música (Licenciatura) pela Escola de Comunicações e Artes da USP e bacharel, mes- tre e doutor em Física pela mesma universidade. Desde 2007, regente do Coral Physicantus (Instituto de Física da USP), do Grupo Vozes (D’Altomare Química) e do Coral do Ilha (Condomínio Ilha do Sul). Pesquisador do GEPE- MAC - Grupo de Estudos e Pesquisas Multidisciplinares nas Artes do Canto, sediado no Departamento de Música da ECA-USP.

Susana Cecilia Igayara - Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP e mestre em Artes (Musicolo- gia) pela Escola de Comunicações e Artes da USP. É bacharel em Música (Composição e Piano) e em Comunicação Social (Jornalismo). É professora de Repertório Coral e Práticas Multidisciplinares em Canto Coral na Universi- dade de São Paulo desde 2004. É líder do GEPEMAC - Grupo de Estudos e Pesquisas Multidisciplinares nas Artes do Canto.


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