TEORIA CRÍTICA E ESCLARECIMENTO MUSICAL EM ADORNO

Aldo de Oliveira Cardoso

aldodoc@yahoo.com.br

Resumo: Este texto pretende confrontar as idéias do Livro “Dialética do esclarecimento” de Adorno e Horkheimer com o pensamento musical adornoniano presente em vários outros textos escritos em épocas diferentes. Em tais textos sobre a música é possível vislumbrar relações bastante pertinentes não somente à Dialética do esclarecimento, mas também ao conceito de “dialética negativa”. Adorno aponta que a existência de duas estéticas musicais tão distintas no começo do século são co-existentes e antagônicas entre si. Similarmente a esta co-existência e antagonismos das estéticas musicais, o mito e a razão também o são e isto é observado na transição do mito para a razão. Com um olhar mais afunilado é possível observar antagonismos em cada uma das poéticas musicais analisadas por Adorno e outras oposições entre a música popular (ou música ligeira) e a música nova (a dodecafônica). Tais antagonismos representam de antemão o conceito de “dialética negativa” que Adorno desenvolveu no final de sua vida.

Palavras-chave: Estética musical; Dialética negativa; Esclarecimento; Contradição.

Critical Theory and musical discussion in Adorno

Abstract: This text intends to compare the ideas from Adorno and Horkheimer's book “Dialectic of Enlightenment” with the musical thinking of Adorno presented in several other texts written in differents periods. It is possible to observe pertinent relationships between the texts “Negative Dialectc” and “Dialectic of Enlightenment”, in which Adorno points to the existence of two distinct, co-existing and antagonistic musical aesthetics at the beginning of the last century. At the same time, myth and reason also are co-existing and antagonistic, and can be seen in the transition from myth to reason. It is also possible to observe antagonisms in each of the musical genres analyzed by Adorno, as well as opositions between popular music and modern music (dodecaphonic music). These antagonisms represent the concept of the “Negative dialectic” which Adorno developed towards the end of his life.

Key words: Musical Aesthetic; Negative dialectic; Enlightenment; Contradiction.

Introdução

As contradições oriundas de uma “Dialética do esclarecimento”, livro escrito por Adorno e Horkheimer e terminado em 1947, fazem parte de um conceito filosófico de dialética que não permite uma resolução como na síntese da dialética hegeliana, mais especificamente na “Dialética do senhor e do escravo”. O esclarecimento, que aqui generalizaremos pela transição do pensamento mítico para o racional se dá, em pelo menos três etapas importantes da história, a saber, do período teogônico ao cosmológico, do renascimento a Kant, e o último na transição do final do século XIX para o século XX. Esta última bastante explorada pela escola de Frankfurt que visita, principalmente, os pensamentos de Hegel, Marx, Nietzsche, Freud e Weber.

Por um lado, a co-existência de estéticas musicais muito distintas no início do século passado pode ser vista, sob ótica de Adorno, como estéticas antagônicas. Esta visão, entretanto, pode ser vista sob outro prisma:

o da dialética do esclarecimento. Por outro lado, a co-existência de uma música popular reificada junto a obras autônomas, como as de Schoenberg, por exemplo, tornou-se uma contradição insolúvel.

1. Os “Esclarecimentos”

Em 1947, Adorno e Horkheimer, pelo que tudo indica, cunham o termo “indústria cultural” no livro “Dialética do esclarecimento”. O termo esclarecimento se refere ao “esclarecer pela razão” e tal fato pôde ser observado claramente em duas etapas na história como veremos a seguir. O terceiro esclarecimento, o qual os autores defendem, é um tipo de esclarecimento que envolve uma dialética contraditória e sem resolução.

A primeira, ou o primeiro esclarecimento no livro “Dialética do esclarecimento” (Excurso I: “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”) ocorre na Grécia antiga onde o homem passou a substituir o pensamento mitológico por outro voltado para o “logos”. Esta foi uma etapa fundamental que estruturou o pensamento do homem. A explicação para isto é de grande complexidade e envolve muitos fatores, tal como a evolução da escrita na Grécia antiga, onde foi possível, segundo Havelock (1998), a concretização de uma escrita padronizada na Grécia por volta de 700 a.C. a 500 a.C.. Outro fator é transição do inconsciente para o consciente, como sustenta Erick Neumann1 (1968), Freud2 (1976: 119) para citar alguns autores.

Nesse período transitório, as explicações para o fenômeno da vida ou mesmo para a origem do mundo começaram a ser fundamentadas em fenômenos físicos, opondo-se às explicações oriundas da mitologia. Tal processo é deveras acentuado no período o qual chamamos de período cosmológico. Neste, as explicações sobre o fenômeno da vida eram dadas pela existência de quatro fundamentos, a saber: terra, ar, fogo e água. Posteriormente, com a figura de Sócrates, firma-se o período antropológico onde questões humanas, tais como, política, moral, justiça, entre outras, são levadas à tona.

Esta transição do mito para razão é explicitada, como já dito, no excurso I da “Dialética do esclarecimento” no qual o início dessa transição é evidenciado nas aventuras de Ulisses na epopéia Homérica, a Odisséia.

O segundo esclarecimento tem início no renascimento e se concretiza com o iluminismo, tendo como essência a transição do teocentrismo para o antropocentrismo. Neste período das luzes houve inúmeras mudanças substanciais, tais como a estabilização do sistema tonal, as revoluções sociais. Na filosofia, no que tange a epistemologia, temos o pensamento kantiano refazendo as teorias do conhecimento anteriores, entre muitas outras. Na “Dialética do esclarecimento”, Adorno e Horkheimer ilustram este esclarecimento iluminista pela sadeana Juliette no excurso II “Juliette e o esclarecimento moral.” Mais adiante veremos o terceiro esclarecimento e sua relação com o pensamento adorniano referente à música.

1.1 A noção de esclarecimento

Esclarecer, para Adorno e Horkheimer, significa que através da razão e dos aparatos a ela ligados, o homem pode ter maior domínio em vários âmbitos, tais como o domínio de classes sociais, o conhecimento lógico dando em novas explicações e novas descobertas, domínio do homem sobre a natureza, domínio ideológico da mídia sobre as massas etc. O esclarecimento do que é desconhecido, utilizando-se a razão, pode ser visto também como esclarecimento acerca do medo que emerge do desconhecido. Desse modo, o homem tenta, por um lado, explicar logicamente questões de vários campos que o aflige, por exemplo, a origem do universo, a origem da vida, entre outros. Caso contrário o homem teria que aceitar o criacionismo como explicação para tais questões e aí ele recuar-se-ia novamente para uma explicação mitológica cristã como bem exemplificou J. Campbell (1990) em sua mitologia comparada. Por outro lado, sob o âmbito social, constata-se outra faceta do esclarecimento que consiste na relação de domínio pela classe dominante em cima da classe dominada, conceito de razão instrumental de Max Weber no qual o homem, com as ferramentas racionais, passa a dominar a natureza.

Adorno e Horkheimer, em um momento da primeira parte do texto citado, parecem revisitar a “Dialética do senhor e do escravo” escrita por Hegel, onde a relação de dominação do senhor sobre o escravo se inverte em um processo dialético que se resolve. No entanto, nos autores da “Dialética do esclarecimento” não há a síntese tal qual como conhecemos em Hegel, como resolução da contradição entre oposições, mas sim uma permanência e manutenção destas oposições. Desse modo, constata-se a afirmação de uma co-existência de dois pólos que não se resolvem historicamente, pois o progresso na visão de Adorno e ainda no sentido positivista do termo, não é linear; não há a eliminação de anacronismos e regressões que são simultâneos aos avanços e progressos da sociedade, em outras palavras; enquanto a classe dominante progride, a classe dominada regride. Por este mesmo prisma pôde ser visto a essência de outro livro de Adorno, a “Filosofia da nova música”, onde há a associação de Schoenberg com o progresso e de Stravinsky com o regresso, ou se preferir, com a restauração. Veremos agora o conceito último de esclarecimento, sua relação com o pensamento sobre a música e sobre a dialética de Adorno.

2. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas

O terceiro esclarecimento que é proposto por Adorno e Horkheimer trata-se de um esclarecimento bastante diferente dos dois descritos anteriormente. Tal esclarecimento é baseado, em sua essência, no princípio de contradição, já esboçado anteriormente, sem sua resolução em uma síntese no sentido hegeliano. Tal fato pode ser lido em Robert Kurz:

A modernidade esclarecida, como herdeira da história ocidental, é caracterizada segundo Horkheimer e Adorno, por uma contradição insanável. De um lado, ela prometeu liberdade por intermédio da desmitologização, ou seja, a superação da própria dominação, que seria substituída, em nome dos direitos humanos universais, pela razão discursiva do mercado. De outro, todavia, ela não só conservou o programa da dominação objetivante da natureza como também o agravou3.

Este princípio dialético de contradição que nunca parece se resolver é considerado como um tipo de “dialética negativa” a qual Adorno abordará posteriormente. Esta dialética, chamada de negativa, mostra como é preservada a contradição ou contradições existentes dentro do devir de sistema social com um todo. Se para Marx a revolução do proletariado poderia ser uma solução de uma contradição no âmbito da economia através da luta entre classes sociais, sob a ótica da dialética negativa podemos ver que isto não acontece ou que está cada vez mais longe de acontecer, pois a estruturação do sistema capitalista não a permite. De um lado, o próprio sistema capitalista gerou uma complexa camada social intermediária que ofusca, grosso modo, o pensamento revolucionário. De outro lado, percebe-se a co-existência da liberdade e da repressão, nas quais o indivíduo torna-se confuso quando imerso na dualidade da civilização e da barbárie como bem salientou Sergio Paulo Rouanet (2002) no início do seu texto “Os sertões, 100 anos”.

O conceito de razão instrumental, o qual os autores inferiram de Weber, é criado para explicar a dominação da natureza pelo homem. Tal domínio da natureza é propiciado pelos meios de exploração capitalistas que procuram dominá-la tanto pelo lado teórico quanto pelo prático. Os avanços teóricos, entretanto, geram tecnologias que possibilitam um domínio cada vez mais cirúrgico sobre a natureza. Esta mesma razão pode também ser observada em outras esferas sociais como, por exemplo, ao observarmos o aparato instrumental da Indústria Cultural (mídia e outros inúmeros instrumentos ideológicos) sobre a massa de ouvintes. Para Adorno, a Indústria Cultural permite que o ouvinte tenha “liberdade” de escolha musical, entretanto, tal ouvinte tem seu gosto “reificado” e de nada vale, então, sua liberdade. Essas contradições e noção de esclarecimento encontradas no nível social são observadas também nos textos nos quais Adorno discorre sobre música, especificamente os que tratam das poéticas de Schoenberg e Stravinsky, e sobre a música popular e erudita as quais trataremos agora.

3. A co-existência de diferentes estéticas musicais como contradição do esclarecimento

3.1 Schoenberg X Stravisnky

Na “Filosofia da nova música” Adorno discorre em pormenor as duas mais importantes estéticas musicais do início do século XX, a saber, a estética de Stravinsky e a de Schoenberg. Uma delas é a poética peculiar de Stravinsky, que ocorre principalmente na sua fase de rupturas com alguns parâmetros musicais do romantismo tardio. Tais rupturas são, sobretudo, nos parâmetros rítmicos da composição como agudamente observou P. Boulez em “Apontamentos de aprendiz”. A outra estética, que foi fundada por Schoenberg, rompe, em essência, já no atonalismo livre, com os parâmetros convencionais de altura (tanto na melodia quanto na harmonia). Posteriormente tal ruptura é definitivamente concretizada com o dodecafonismo ou, se preferir, o primeiro serialismo de 1923.

Schoenberg inaugura uma música que, sob a escuta, chama atenção para ela mesma e que se porta como um objeto autônomo bastante destituído da carga semântica cultural existente na música tonal. Por que tal música foi tão diferente das propostas musicais da mesma época?

Mais uma vez devemos remeter-nos a Schoenberg. No atonalismo livre, existia na estruturação melódica um recurso composicional ao qual chamamos de falsa relação, na qual a justaposição e a superposição das notas musicais eram organizadas de tal forma que quebravam a relação diatônica entre elas. Desta feita, surgia uma sonoridade nova onde as hierarquias de muitos parâmetros presentes no sistema tonal, tais como as notas, os acordes, as tensões e outros parâmetros, eram desfeitas, surgindo daí uma nova maneira de se organizar o material sonoro4 . De certa forma o atonalismo livre já continha alguns princípios que seriam sistematizados no dodecafonismo. Sabemos que o serialismo de Schoenberg é consolidado em 1923, porém, já em 1911, na primeira edição de seu livro “Harmonia”, Schoenberg, no último capítulo, deixa indícios do dodecafonismo5 .

A estruturação rítmica nas peças de Schoenberg continuava a seguir modelos tradicionais da história. As danças, os motivos rítmicos e a figuração eram mantidos pelo compositor em praticamente toda sua obra. Schoenberg progrediu no campo das alturas, mas se manteve próximo da tradição tonal no campo rítmico6 .

Stravinsky continuou a tradição diatônica, mas mexeu drasticamente com as estruturas métricas, rítmicas e formais, sendo o ponto culminante dessas transformações a “Sagração da primavera” de 1913.

Adorno aponta uma diferença crucial entre ambos compositores: a ruptura de Schoenberg é mais forte porque sua organização composicional é objetivante na música, ou seja, a música torna-se um objeto que chama a atenção para si mesmo. Desse modo, segundo Adorno, Schoenberg progride com a linguagem musical no parâmetro das alturas afastando-a do ouvinte tonal e Stravinsky restaura tal linguagem de modo a facilitar a audição, e Adorno critica, sobremaneira, a fase neo-tonal deste último. Sob este prisma, para o autor em questão, Schoenberg representa o esclarecimento musical da música erudita.

3.2 Contradição ou tentativa de síntese de poéticas musicais contraditórias?

De certa forma, Adorno aponta para esta co-existência antagônica de duas estéticas tão diferentes. Mas, não aponta para a co-existência do antigo e do novo nas estéticas particulares de ambos os compositores, ou seja, de um lado a novidade rítmica com os anacronismos diatônicos presentes na primeira fase radical Stravinsky que vai do “Pássaro de fogo” até aproximadamente a “História do soldado”, tendo como obra fundamental a “Sagração da Primavera” e, do outro lado, em Schoenberg, a novidade no campo das alturas, entretanto com os anacronismos rítmicos.

Sob este viés, as duas estéticas acima citadas são antagônicas entre si, mas cada uma delas também possui antagonismos inerentes em si mesmas. Não houve uma resolução destes antagomismos no momento inicial fundante destas estéticas mas, como sabemos, de certa forma, houve uma resolução destes antagonismos no final da vida destes compositores, já que Schoenberg compõe música tonal e Stravinsky compõe música serial. Webern, discípulo de Schoenberg, por um outro viés e dando continuidade ao dodecafonismo schoenberguiano, resolve, de forma amena, a contradição interna inicial entre ritmo e altura, digo de forma amena, porque ele continua com um pensamento motívico que é característico da música tonal, sobretudo a de tradição alemã.

Nesse sentido, o mito e a razão parecem ainda persistir em sua simultaneidade e o “esclarecimento” continua sempre parcial. O serialismo integral Bouleziano de 1952, sob nossa ótica, aparenta total esclarecimento (desmitologização), pois rompe com toda carga semântica cultural e a sintaxe musical é dilacerada com o apogeu da escritura musical. Isso se deveu ao controle de todos os parâmetros musicais (altura, intensidade, duração e até mesmo o timbre), porém tal música tornou-se um objeto tolhido nele mesmo, ou melhor, o universo em expansão de Boulez7 parece tornar-se um “buraco negro” para a escuta. Tal estética de cunho estruturalista é atacada três anos depois e aos poucos a figuração volta a se tornar presente em alguns tipos de composições.

O afastamento do ouvinte em relação à música nova dá-se na ótica de Adorno, sobretudo, pela alienação do ouvinte em relação a esta música. Porém, tal alienação deste ouvinte vem de uma contradição entre liberdade e repressão. A indústria cultural utilizando-se de uma razão instrumental aguçada consegue intervir no gosto e no poder de escolha particular a cada indivíduo, reificando sua consciência ao mesmo tempo em que o aliena. Os indivíduos, diante de um mundo de múltiplas escolhas oferecidas na imensa variedade dos produtos oferecidos pela indústria cultural, têm plena liberdade de escolha; mas o meio a sua volta, o próprio meio midiático, o molda de tal forma, tanto sua consciência como o seu próprio gosto, que sua liberdade não passa de uma ilusão. Poéticas musicais antagônicas permaneceram por um grande período de tempo enquanto correntes musicais distintas. São esses os tipos de inferências que são encontrados na “Dialética negativa”, onde a contradição, não importa em que nível se encontra, persiste em sua existência sem uma resolução ou síntese.

3.3 Reificação da estrutura harmônica na música “ligeira”

No ensaio de 1968, “Porque é difícil a nova música”, Adorno diz da importância de se contextualizar o objeto social dentro do aspecto social.

O sexto parágrafo deste ensaio abriga um argumento importante para nossa discussão. Adorno diz que a ruptura da nova música está calcada em razões sociais; o tonalismo se confronta com a nova música dentro de um processo de diferenciação social (da burguesia mercantil), mas os “signos tonais” começam a ser usados como clichês e através de repetições: a música, no sentido marxista8 , torna-se mercadoria. Todavia, não somente a música ela mesma torna-se mercadoria, mas também a própria linguagem tonal harmônica da qual ela se vale. Adorno observa que este tipo de música a seu ver “barateada”, existe pacificamente em meio a obras de arte do dodecafonismo e mais uma vez vemos a parcialidade do esclarecimento.

Para Adorno uma primeira reificação da música ocorre no nível da estruturação harmônica. Alguns encadeamentos arquetípicos do tonalismo são cristalizados de tal forma que eles se tornam um objeto coisificado e destituído de seu contexto original. Na filosofia da nova música Adorno cita o exemplo de um destes arquétipos que consiste na progressão harmônica I, IV, V e I, este seria o arquétipo mais básico da música tonal. Sabemos que esta progressão, e mais outras, tais como; I, VI, IV, V, I e I, II, V e I (arquétipo fundamental do Jazz) respondem pela maioria de canções da música popular de massa. Estas progressões, que são comuns em alguns trechos de Mozart e Haydn, tornaram-se clichês da música “ligeira”. Em outras palavras, tais estruturas harmônicas que se cristalizaram no século XVIII, passaram a ser usadas como mercadorias harmônicas tonais.

Vemos que sob vários ângulos existem contradições que não se resolvem e pelo contrário, elas são auto mantidas pelo próprio sistema social. Tal manutenção desta contradição Adorno chamou de “Dialética negativa” em oposição à dialética hegeliana onde as oposições eram resolvidas em um processo de síntese. Veremos agora, finalmente, no que consiste tal conceito.

4. O conceito de “Dialética negativa”

Como já dito em outra ocasião (Cardoso et Coradini, 2004), vimos que a dialética adorniana é bastante diferente da hegeliana, pois:

“A linearidade e teleologia da dialética encontrada em Hegel são, em Adorno, suprimidas. Sabemos que desde Hegel, como bem salientou S.

P. Rouanet, o pensamento filosófico se imbuiu do sistema hegeliano no qual a contradição era vista de forma otimista. Um exemplo claro está na dialética do senhor e do escravo onde é evidente que a oposição entre tese e antítese era sempre resolvida numa síntese superior dando impulso e movimento às idéias sempre transcendendo e preservando os opostos.

O conceito de dialética (negativa) se difere do hegeliano. A contradição entre opostos não é mais resolvida tal como neste. Como a contradição entre opostos é mantida e sempre não resolvida, se aplicada à teoria crítica da cultura, tal dialética nos mostra que repressão e liberdade co-existem contraditoriamente na modernidade. Tal conceito de dialética está espalhado em diversas obras de Adorno, mas somente no final de sua vida é que ele a escreve (Dialética negativa). Na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer, há a concepção de contradição entre mito e razão, na qual uma sociedade esclarecida se utiliza de uma razão instrumental para a dominação do homem pelo homem. Já em Filosofia da nova música as poéticas musicais antagônicas também co-existem: a de Stravinsky que remete ao arcaico e ao mito, e a de Schoenberg que tolhe ao objeto denunciando o afastamento do ouvinte em relação à nova música9.

Tal conceito de dialética negativa é presenciado, então, como um traço pertinente em muitos escritos de Adorno. Mas aqui nossa intenção foi fazer um recorte mostrando algumas facetas que sintetizam o pensamento de Adorno em sua concepção de dialética de uma forma geral.

Conclusão

Como visto, na “Dialética do esclarecimento” foram mostradas três fases históricas nas quais houve processos de desmitologização do pensamento de uma maneira geral. A primeiro ocorreu na Grécia antiga (mito para a razão) e foi representado pela Odisséia de Homero. O segundo vai do renascimento (teocentrismo para o antropocentrismo) e tem seu apogeu no iluminismo. O terceiro envolve a transição século XIX para o XX, com o nascimento da Indústria Cultural, da “Razão instrumental”, com o domínio do homem sobre a natureza entre muitos outros acontecimentos.

Em inúmeros textos de Adorno encontramos a essência de sua dialética negativa. Na “Dialética do esclarecimento”, na terceira parte, vemos com bastante clareza um processo de desmitologização na sociedade como um todo. Entretanto, esta desmitologização mantém uma contradição que é a co-existência de mito e razão. Adorno também aponta para esse fato em outros textos. Na “Filosofia da nova música”, ele mostra a co-existência de estéticas musicais antagônicas. Mostra também o crescimento da música popular (música ligeira) em oposição à música nova (dodecafonismo) e a manutenção desse processo pela indústria cultural. Desse modo, o conceito de esclarecimento em Adorno e Horkheimer é um conceito parcial, diferente do conceito absoluto do iluminismo. Tal conceito é reforçado pela dialética negativa onde a oposição mito/razão é mantida. Oposições entre música nova e música tradicional, música ligeira e música erudita, classe dominante e classe dominada, liberdade e repressão entre outras é, então, uma constante no pensamento de Adorno.

Notas

1 No livro História da origem da consciência de Neumann que foi Discípulo de Jung existe uma aproximação com o primeiro excurso do livro “Dialética do esclarecimento” de Adorno e Horkheimer, já que Neumann diz que na Grécia antiga existiu uma transição do pensamento mítico para o pensamento racional que para Adorno é chamada de “esclarecimento” no qual o homem torna-se “esclarecido” pelo pensamento racional. Como sabemos, essas grandes transformações de paradigmas, estão ligadas às transformações nos meios de comunicações. Na Grécia antiga, foi a evolução do alfabeto, da estruturação e formação do grego antigo falado e escrito, onde o homem usa a linguagem enquanto extensão de sua mente. No renascimento, com as traduções, com a invenção da imprensa por Gutemberg, com o aumento das extensões geográficas, entre outros fatores. Ocorre aí, a emancipação do sujeito com a passagem do teocentrismo para o antropocentrismo. Adorno e Horkheimer chamam essa passagem para o iluminismo de esclarecimento moral. Na transição do século XIX para o XX, ocorrem também inúmeras mudanças com os meios de comunicação elétricos, entre outros, que possibilitaram grandes transformações em vários campos do conhecimento humano. Desta última passagem Adorno vai dizer que o homem torna-se esclarecido novamente, mas que este esclarecimento torna-se nefasto para o homem, já que a sociedade e seus setores começam a caminhar em dois pólos opostos que auto mantém as contradições, tais como, classe dominante/classe dominada, civilização/barbárie, música erudita/música ligeira, Stravinsky/Schoenberg etc.

2 Ver página 119 e ss.

3 Fragmento do texto “Até a última gota” de Robert Kurz publicado na revista “Mais” do jornal Folha de São Paulo 24/08/97.

4 Para conhecer o assunto em pormenor, o leitor pode consultar o livro “Apoteose de Schoenberg” de Flo Menezes, capítulos 3 e 6.

5 Ele diz da possível existência de uma lei que regeria as progressões fortes de acordes de seis notas. Como é sabido, nestas progressões, deve haver um outro acorde no qual todas as notas devem ser diferentes das do primeiro acorde, ou seja, no encadeamento destes dois acordes já temos as doze notas do total cromático. Essa lei da qual Schoenberg desconfiava tornar-se-ia o fundamento do dodecafonismo.

6 Tal posição foi defendida por Pierre Boulez em seu texto “Schoenberg está morto” de 1952.

7 Utilizo aqui, uma passagem de Umberto Eco que cita Boulez (Apontamentos de aprendiz) no texto “Pensée structurale et pensée sérielle”, “O pensamento tonal clássico é fundado sobre um universo definido pela gravitação e atração; já o pensamento serial, sobre um universo em constante expansão”.

8 Referente ao cap. do primeiro livro de “O Capital” onde Marx trata, em pormenor, do assunto. 9 Artigo sobre a epistemologia de Adorno por Aldo Cardoso e Leandro Coradini, 2004.

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Aldo Cardoso – Compositor e musicólogo, filiado ao grupo de pesquisa FIME (Fórum Internacional de Música Eletroacústica). Em 1995 e 1996 cursou licenciatura em música na Faculdade de Filosofia de Bauru (Hoje, USC). De 1998 a 2003 cursou Bacharelado em Composição e Regência no IA-UNESP. Atualmente é aluno de Pós-graduação em música deste mesmo instituto. Recentemente teve obras musicais eletroacústicas tocadas na BIMESP (Bienal Internacional de Música Eletroacústica) e no festival Música Nova.