Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013

SANTOS, J. L. L. Considerações sobre a Sala de Concerto na Atualidade.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 257-265.

Considerações sobre a Sala de Concerto na Atualidade

Jorge Luiz de Lima Santos (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil)

slavenko@globo.com

Resumo: Este artigo apresenta reflexões sobre o papel social da sala de concerto na atualidade a partir de uma pers- pectiva histórica e antropológica. Procura-se discutir as possíveis razões que levaram a música clássica de uma po- sição mais central como ator social na cultura e politica do final do século XIX para um papel de quase irrelevância no mundo contemporâneo, tendo como objeto de reflexão seu espaço físico consagrado. Utilizaremos os apontamen- tos de Leon Botstein (1999; 2004) sobre as mudanças na função social da música clássica e do seu público, trazendo para a discussão as categorias teóricas de “lugar” e “espaço” de De Certau (1984) para pensar o binômio espaço físico e espaço simbólico que a sala de concerto representa, somados ainda aos conceitos de “performance apresentacional” e “performance participatória” de Thomas Turino (2008), no intuito de discutir o lugar social da música de concerto na atualidade a partir do local mais consagrado para sua prática.

Palavras-chave: Sala de concerto; Função social da música; Botstein; Música na contemporaneidade; Antropologia

da música.

Considerations on the Concert Hall Nowadays

abstract: This article presents considerations on the social role of the concert hall at present days from a histori- cal and anthropological perspective. The intention is to discuss the possible reasons which have led classical music from a more central role as a social actor in culture and politics at the end of 19th Century to an irrelevant role in the contemporary world. I work with writings by Leon Botstein (1999; 2004) about the changes in the social function of classical music and its audience, and also take into account the theoretical categories of “place” and “space” by De Certau (1984) to think the binomial “physical space” and “symbolic space” that the concert hall represents. In ad- dition, I include the concepts of “presentational performance” and “participatory performance” by Thomas Turino (2008), aiming to discuss the social place of classical music in current days from the point of view of its most sacred performance location.

Keywords: Concert hall; Social function of music; Botstein; Music at present days; Anthropology of music.

1. Introdução

Ao refletirmos sobre o papel social da música de concerto1 no fim do século XX e início do século XXI nos defrontamos com uma série de questões que envolvem, em boa parte, noções do senso comum, preconceitos e mal-entendidos. Um dos pontos chave para problematizar a questão da música de concerto na atualidade é o papel da “sala de concer- to”, local eleito por excelência para execução e apreciação desse tipo de música. Cremos na hipótese de que um dos elementos fundamentais para que a música clássica tenha cons- truído uma imagem fundamentalmente desassociada da vida cotidiana, mesmo em centros onde ela foi originada, decorre de sua forma de ser apreciada ao vivo nos dias de hoje.
Para nos permitir uma reflexão mais ampla sobre o tema, traremos para a discus- são os conceitos de “lugar” e “espaço” de MICHEL DE CERTEAU (1984) e, tendo essa con- ceituação como base, procuraremos refletir sobre o percurso que levou a música de concer- to de um lugar social central no pensamento artístico do Ocidente, no final do século XIX, a um papel menor, quase marginal, ao fim do século XX. Utilizaremos os apontamentos de LEON BOTSTEIN (1999; 2004), incluindo sua análise sobre o papel dos ouvintes, nesse binô- mio fundamental sala de concerto-público. Abordaremos ainda a diferenciação realizada por THOMAS TURINO (2008) sobre “performance participativa” e “performance apresentacio- nal”, e procuraremos evidenciar como esses conceitos corroboram a literatura supracitada so- bre esse lugar, do nosso ponto de vista, anacrônico que a música clássica e a performance des- ta ocupam no imaginário coletivo em pelo menos boa parte dos grandes centros do Ocidente.

Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013 Recebido em: 24/01/2013 - Aprovado em: 04/04/2013

257

SANTOS, J. L. L. Considerações sobre a Sala de Concerto na Atualidade.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 257-265.

2. E surge o concerto público...

A ideia de um lugar para se ouvir exclusivamente música mediante o pagamento de uma entrada se desenvolveu, principalmente, a partir do século XVIII e se consolidou no XIX. O concerto público, nesses moldes, é, portanto, uma invenção contemporânea sur- gida no bojo das novas instituições revolucionárias (francesas) que ainda hoje fazem parte do nosso cotidiano. Até meados do século XVIII, a música clássica sempre ocupou lugares bem definidos: na igreja com função mais ou menos litúrgica – mas ligada de uma forma ou de outra ao evento social e cultural que representava o culto religioso – ou no ambiente pri- vado das cortes, sustentada pela aristocracia que cercava o poder monárquico. As profun- das transformações transcorridas no século XVIII, que culminaram na Revolução Francesa, foram antes precedidas pela mudança de eixo no protagonismo econômico conduzida pela nova classe social em ascensão, a burguesia, por meio da Revolução Industrial. Sustentada por seu domínio econômico e pelos ideais iluministas que pregavam a importância do co- nhecimento e a valorização da educação e das artes, essa classe apregoava o direito de aces- sar os bens culturais e se tornava rapidamente consumidora dos mesmos:

Embora cortes, prefeituras e igrejas continuassem a patrocinar o fazer musical como fizeram durante séculos, os músicos cada vez mais dependiam do apoio do público. Havia agora concertos públicos em muitas cidades, oferecendo oportunidades para os artistas e compositores complementarem sua renda e alcançar uma audiência mais ampla (...) com uma economia em expansão, uma classe média em crescimento, e mais tempo de lazer, o número de amadores fazendo música continuou a aumen- tar (...) o crescente entusiasmo pela música também fomentou o desenvolvimento de apreciadores, ouvintes informados que cultivavam um gosto pelo melhor da música2. (Grout, Palisca, Burkholder, 2006, p. 475)

O século XIX não apenas consolidou essa forma de acesso e espaço da música, cria- da ainda no século anterior, como estabeleceu as bases para o modelo adotado como ideal para se frequentar esses espaços.

Um concerto no século dezoito era um evento social tanto quanto uma oportunidade para se ouvir música. Os ouvintes podiam passear à vontade e conversar, prestando atenção apenas à música que os interessava, sem serem considerados rudes; a pla- teia silenciosa, imóvel, foi uma invenção do século XIX.3 (Grout, Palisca, Burkholder,

2006, p. 477, grifo nosso)

Desse modo deu-se então o surgimento da sala de concerto como lugar por excelên- cia da realização da música de concerto, sua consolidação e sua permanência como tal até os dias atuais. Isso não impediu que seu espaço fosse se modificando ao longo desse perío- do, muitas vezes com um papel de caráter dúbio: de um lado ampliando o acesso à música pela venda pública de ingressos e valorizando-a como espetáculo em si, e, de outro, se tor- nando um espaço social de convivência de caráter exclusivista – ainda que de forma diversa da existente na música de corte de outrora.
Para pensarmos esse binômio lugar-espaço, recorreremos aos conceitos de De Certeau de maneira a auxiliar nossa reflexão quanto ao uso destas categorias no tocante a sala de concerto.

3. Lugar e Espaço na sala de concerto

Para DE CERTEAU (1984) lugar é uma ordenação de qualquer tipo com a qual os ele- mentos estão distribuídos em relação de coexistência. Neste sentido, podemos pensar o con-

258

SANTOS, J. L. L. Considerações sobre a Sala de Concerto na Atualidade.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 257-265.

ceito de lugar mais relacionado à noção física – embora não apenas isso –, em que se exclui a possibilidade de duas coisas estarem no mesmo local (lugar) (DE CERTEAU, 1984, p. 117). Lugar implica, portanto, essencialmente, uma configuração de posições, uma indicação de estabilidade. O conceito de espaço, em contrapartida, não possui uma ideia unívoca de esta- bilidade. Espaço existe como confluência, como efeito produzido por vários elementos que geram uma determinada função suscetível de transformações ocorridas em diferentes con- textos. Espaço é um “lugar experimentado” (De Certeau, 1984, p. 117). Assim, o espaço, no entender de De Certeau (1984), é o local carregado de signos, de funcionalidade e sentido:

Portanto a rua geometricamente definida pelo planejamento urbano é transformada em espaço pelos pedestres. Da mesma maneira, o ato da leitura é o espaço produzido pela prática de um lugar particular: o texto escrito, isto é, um lugar constituído pelo sistema de sinais.4 (p. 117)

Podemos, portanto, pensar nosso objeto, dentro dessas categorias, como um lugar – a sala de concerto – cujo espaço dinâmico saiu de um papel socialmente ativo nos séculos XVIII e XIX para um espaço de culto ao passado e de representação de status social (preten- samente elevado) a partir da segunda metade do século XX.
Ao discutirmos como o lugar “sala de concerto” transformou-se de um espaço so- cialmente intenso e em diálogo com seu tempo para algo socialmente irrelevante, visto – mesmo por boa parte das camadas formalmente educadas – como esnobe e elitista, é preci- so pensar, ainda que brevemente, nas transformações que a música que chamamos aqui de “clássica” ou “de concerto” sofreu ao longo do século XX.

4. Da glória à agonia: a música de concerto como fator social

LEON BOTSTEIN (2004) aponta uma longa e sólida lista de razões que levaram a música de concerto a ocupar um espaço socialmente periférico. Entre essas razões estão às próprias bases fincadas ainda no século XIX sobre a prática musical nessa esfera (a canoni- zação do repertório, por exemplo), a forte resistência às mudanças trazidas pela tecnologia, a indiferença às demandas sociais surgidas ao longo do século XX, a pouca viabilidade eco- nômica dos grandes espetáculos e a “cultura de museu” que dominou as práticas da música de concerto desde então:

A despeito do impressionante desenvolvimento na transmissão de música por meios eletrônicos através do século XX (desse modo assegurando uma ampla acessibilida- de à música), a música clássica deslocou-se para a periferia da cultura e da política. Em particular, a música recente escrita para concerto recebeu menos atenção no úl- timo meio século do que em qualquer período dos últimos duzentos anos.5 (Botstein,

2004, p. 40)

Parafraseando Karl Marx6, a ascensão da música de concerto ao espaço público (a sala e/ou teatro, que incluiu no seu início um significativo aumento na popularidade) no sé- culo XIX trouxe também o germe de sua “destruição”. Ao mesmo tempo em que a música clássica pareceu expandir suas fronteiras com o advento da educação musical (entre outras coisas, graças à fundação dos primeiros conservatórios públicos), com o surgimento de uma imprensa musical e das sociedades de concerto, também se encaminhou, lenta e paradoxal- mente, para uma separação da atividade musical de outros elementos da vida social, emer- gindo a ideia de música como algo “puro”, auto-referente:

259

SANTOS, J. L. L. Considerações sobre a Sala de Concerto na Atualidade.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 257-265.

A partir de 1830, a aquisição de gostos culturais tem sido frequentemente acusada de funcionar como um modo de dissimular ou diferenciar origens sociais. A música se prestava bem à tarefa de adquirir marcas de status e privilégio precisamente porque ela não era sobre a linguagem (pronúncia, sotaque) ou representação visual (fisio- nomia, roupas, estilo) e requeria exposição pública. O acesso à cultura musical em larga escala, depois de 1830, coincidiu com a elevação de algumas formas de música em uma arte elevada “separada”, tornando-as mais valorizadas e mais misteriosas.7 (Botstein, 1999, p. 480, grifo nosso)

Esse aspecto se consolidou ao longo do século XX, tornando a música de concerto um “bem” visto como difícil e inacessível:

O fascínio com a ideia, de meados do século XIX, da natureza autônoma da música e sua completude aparentemente orgânica e auto-referencial, sem laços estáveis ou cru- ciais com significados “não musicais”, tem sido apenas sublinhada pela maneira com que nós passamos a ter acesso à música neste século [XX].8 (Botstein, 1999, p. 482)

A sala de concerto, assim, se desenvolveu – juntamente com a própria prática musi- cal – como espaço ritualizado. De um lado a tão decantada “passividade”, a separação entre uma plateia, à primeira vista, “absolutamente passiva” e não engajada, e do outro um espetá- culo cuja possibilidade de fruição é vista como possível apenas quando se “conhece” aquele tipo de música a priori, gerando uma função social bastante restritiva:

Daí o refrão que tantas vezes ouvimos quando perguntamos a alguém que, sob outros aspectos, parece bem educado e tem interesses sofisticados, por que ele ou ela não vai a concertos: “Mas não sabemos nada sobre música clássica” (...) dada à insegurança endêmica entre pessoas educadas sobre a sua capacidade de “entender” a música, não é de admirar que eles sejam relutantes em exibir sua ideia de ignorância em público. Ninguém deseja expor publicamente ignorância, ainda que se possa escapar disso agindo passivamente.9 (Botstein, 1999, p. 483)

Essa barreira criada pelas práticas musicais na música de concerto se associa di- retamente à imagem, já referida anteriormente, de uma atividade intimamente vinculada a um culto ao status e à tradição, ao esnobismo e, principalmente, à falta de conexão com as demandas democráticas das sociedades ocidentais do pós-guerra:

A música clássica nunca teve um lugar confortável na cultura democrática, mesmo em nações mais identificadas com ideais igualitários. Ela tem sido fortemente asso- ciada com os hábitos da monarquia, da aristocracia rural e da pequena nobreza do século XVIII e o patrocínio dos barões/ladrões financistas do século XIX; ela ainda é vista – com a exceção do encontro ocasional do público de massa com seleções do repertório operístico italiano – como um entretenimento característico de ambição social, riqueza e privilégio. Esta ligação sociopolítica persiste apesar de tentativas em contrário, que incluem o formato de concertos sinfónicos pop bem sucedidos como o de Boston.10 (Botstein, 2004, p. 44)

Um dos aspectos fundamentais apontados por Botstein e que se relacionam direta- mente com o papel da sala de concerto como lugar onde se notam essas características apon- tadas é a função de “museu sonoro” assumida pela música clássica na contemporaneidade.

5. “Museu acústico e démodé

Diversos fatores podem ser apontados como causas para que a música clássica te- nha, durante o século XX, se constituído em “guardiã do passado”:

260

SANTOS, J. L. L. Considerações sobre a Sala de Concerto na Atualidade.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 257-265.

A resposta está parcialmente no fato de que, ao longo do século XX, os artistas de concerto e organizações aos poucos assumiram um papel predominante, se não ex- clusivo, de guardiões do passado [...] O século XX, deste ponto de vista, testemunhou a morte da música clássica como uma forma cultural contemporânea ativa, e seu renascimento como um (espécie de) “abastecimento museológico” para um público restrito.11 (Botstein, 2004, p. 45)

A constituição de um repertório canônico a partir de fins do século XIX coincide com a criação das grandes orquestras – especialmente na Europa. Paralelamente, o surgi- mento de um mercado de música, como já foi dito, com o estabelecimento de salas/teatros de concerto públicos, de um mercado editorial e, por consequência, da ampliação do públi- co, gerou uma forte relação com uma música socialmente consagrada:

Enquanto o século XIX avançava, o cânone incipiente tornou-se cada vez mais resis- tente à expansão fácil, apesar da presença de música nova e contemporânea. Como o público aumentou e seu nível de alfabetização musical mudou, a sua receptividade e capacidade de se adaptar à música nova se enfraqueceu: a repetição do familiar levou à exclusão gradual do novo.12 (Botstein, 2004, p. 51)

Essa característica enrijeceu a música de concerto numa atividade ligada apenas e quase que exclusivamente ao passado. Não é incomum ouvir, mesmo de pessoas com educa- ção formal avançada (graduados e pós-graduados), indagações de surpresa quando, circuns- tancialmente, constatam a existência de uma música clássica contemporânea.
A sala de concerto, nesse espectro, é o lugar-espaço aonde se vai para se cultuar o passado, não por sua estreita e inequívoca ligação com o presente, mas por seu valor como objeto fetichizado, ou seja, por seu suposto valor abstrato.
Outro ponto destacado por Botstein, decorrente do desenvolvimento dessas práticas musicais nascida em meados do século XIX, é a valorização do passado como elemento de diferenciação social, expressa no culto à música (apenas) por si mesma, em seu valor supos- tamente superior. A figura do esnobe é ressaltada pelo autor, ao enxergar nele um reificador dessa função de museu consagrada na maior parte da produção de concerto nos nossos dias:

O esnobe de hoje é o mestre da dissimulação no novo ideal de escuta, a personificação por excelência da imagem do público de [Ezra] Pound. O esnobe tornou-se o protetor de uma determinada tradição, que data apenas a partir de meados do século XIX, comoventemente expressa por Pound, e, assim, um inimigo declarado da moda e da novidade. A autodefesa do esnobe é expressa em termos normativos, a fim de ocultar o caráter historicamente contingente da ideia de “arte pela arte” e da noção de valores “atemporais” e padrões de composição e performance. Desde que a chamada música “clássica” foi considerada em perigo de extinção tem havido um ressurgimento mar- cante de esnobismo, liderado pelos profetas do declínio. Nada parece demonstrar mais as não solicitadas afirmações de que “Eu conheço melhor”, demonstrações de conhecimento arcano e evocações melancólicas de uma idade de ouro passada do que um sentimento de tristeza e pessimismo.13 (Botstein, 1999, p. 481, grifo nosso)

A música de concerto realizada no seu espaço-lugar consagrado, a sala, se adequa perfeitamente ao conceito elaborado por TURINO (2008) de “performance apresentacional”.14
Em sua obra, Music as Social Life, o autor dedica o segundo capítulo à reflexão sobre as for- mas com que a música pode ser “apresentada”15. Ao pensarmos em música, grosso modo, vi- sualizamos um “objeto” construído por alguém (alguns) e consumido (não necessariamente no sentido capitalista do termo) por outros. Esse é o sentido emprestado pelo senso comum.
Mesmo quando a música é explicitamente vinculada a um ritual, cerimônia ou manifesta-

261

SANTOS, J. L. L. Considerações sobre a Sala de Concerto na Atualidade.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 257-265.

ção, a ideia do fazer musical como construído, de um lado, por pessoas que fazem e, do outro, distinta e separadamente, por quem ouve/assiste é muitas vezes tomada como dada. Turino questiona essa visão sobre as formas sociais como a performance16 se realiza, incluindo um espectro muito mais amplo do fazer musical, lançando mão de duas categorias que, embo- ra não sejam exaustivas e nem excludentes, permitem-nos pensar na maneira como se reali- za a performance do ponto de vista da sua dinâmica social. O autor formula, assim, os con- ceitos de “performance apresentacional” e “performance participatória”17. Numa definição breve, podemos dizer que performance participatória é um tipo de prática artística em que não existe distinção entre artista e público, apenas participantes potenciais em diferentes papeis, cujo objetivo primordial é envolver o máximo de pessoas na prática. A performance apresentacional, por sua vez, refere-se a uma situação na qual um grupo, os artistas, provê música para outro grupo, o público, o qual não participa, seja na realização da música ou por meio da dança (TURINO, 2008). É importante observar que as categorias desenvolvidas não são estanques, ou seja, o próprio autor reconhece a possibilidade de certo hibridismo ao citar sua experiência pessoal como músico18. Outro dado é que ele inclui a dança como parte de uma performance participatória: “Se o objetivo e efeito principal da música é fazer todos dançarem, há então um performance participatória que envolve simplesmente diferentes pa- péis funcionais – instrumentistas, cantores e bailarinos”19 (Turino, 2008, p. 51).
Para os fins do nosso debate, compreendemos que a música clássica e seu lugar-es-
paço de significação, a sala de concerto, representa, na maior parte das suas manifestações, o mais fiel retrato de uma performance apresentacional na qual a divisão concreta e simbó- lica entre artistas/palco e público/plateia é manifesta20:

Concertos de música clássica europeus são talvez a forma mais acentuada de “per- formance apresentacional”, aí o público fica parado em contemplação silenciosa, en- quanto a música está sendo tocada, só podendo comentar sobre ela por intermédio de aplausos depois que a peça foi concluída.21 (Turino, 2008, p. 51, grifo nosso)

Pode-se argumentar evidentemente que uma significativa parte da música popular também se realiza a partir dessa categorização. Entretanto, ainda que não possam ser clas- sificados como participatórios, os diferentes gêneros de música popular possuem um maior grau de flexibilidade que permitem ao ouvinte-espectador certos tipos de interação que não são “permitidos” pelo ambiente de concerto. O ambiente de um show de rock é frequente- mente mais relaxado (TURINO, 2008) do que o da sala de concerto.
Isso nos remete de volta a BOTSTEIN (1999) e suas reflexões sobre o público, quan- do o autor menciona o desconforto de pessoas (formalmente) educadas que, todavia alegam nada saber de música clássica sendo, portanto, incapazes de assistirem a um concerto des- sa natureza. Diferente do que ocorria no século XVIII e ainda predominante no século XIX (apesar da, já referida, expressão pública de status e esnobismo no frequentar dos ambientes de concerto daquele século), quando a ida à sala de concerto era uma atividade socialmen- te engajada, semelhante a ir a um show de rock num bar ou clube na atualidade, frequentar um concerto clássico nos nossos dias, seja para ouvir música por si só ou pela exibição de poder e sofisticação emprestada pelo ambiente, é sob determinados prismas, uma atividade desconectada da vida social. Não estamos com isso afirmando que o aspecto de interação social não atue no ambiente de concerto em nossos dias. Como já apontamos, a exibição na “aquisição” de um bem cultural, supostamente visto como de alto valor, é um elemento for- te em parte do público de música clássica. Entretanto, o que queremos sugerir é que esse tipo de fator social não é da mesma natureza à qual nos referimos antes. No nosso entender, essa exibição de poder e status feita por parte dos ouvintes da música de concerto de hoje

262

SANTOS, J. L. L. Considerações sobre a Sala de Concerto na Atualidade.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 257-265.

não se constitui no mesmo tipo de engajamento social visto nos frequentadores de espetá- culos de música popular do nosso tempo (mesmo que aqui ocorra também, em algum nível, uma possível exibição de status), para os quais a atividade em si, ou seja, o show e o lugar do show se transformam em espaço, no sentido de De Certeau, de diversas formas e graus de socialização. Ir a um show de uma banda ou músico famoso (ou não) para “encontrar a ga- lera” é tão socialmente aceito quanto ir para apreciar a música, propriamente dita, no palco. Os próprios promotores de eventos musicais, em qualquer nível de aporte financeiro e de diferentes estilos, pensam o espetáculo como um evento socialmente coletivo. Igualmente, poderíamos traçar um paralelo com o cinema. Ainda que se vá ao cinema para ver um fil- me, é mais do que comum, e até mesmo esperado, que se faça isso acompanhado por uma ou mais pessoas. Na música de concerto, ao contrário, o aspecto social ficou praticamente restrito ao exibicionismo ou, como Botstein nomeia, o esnobismo.
Mais uma vez é preciso pontuar que não estamos afirmando que não haja qualquer tipo de interação social do público no espaço da sala de concerto, o que seria uma afirma- ção completamente estapafúrdia. Deixamos claro apenas que essa interação não se dá no bojo da atividade, não ocorre como parte inerente dela e tem pouco ou nenhum significado para os frequentadores. O lugar sala de concerto se transformou de espaço profundamente enraizado de interação social, não obstante que sob a forma de “performance apresentacio- nal”, em um “museu acústico”. Nesse impera, predominantemente, uma etiqueta anacrôni- ca e, ao menos em tese, em total desconexão com a vida contemporânea. O silêncio absolu- to e irrestrito se tornou não só preferível mas, em princípio, irrecusável. Na música clássica passou a predominar a abstrata ideia de que é possível ouvir a música como fenômeno iso- lado, como se os indivíduos, fora de sua contemporaneidade, que inclui um imaginário es- sencialmente audiovisual, pudessem entrar num vácuo e assim ouvir aquelas peças musi- cais despidos de si mesmos:

A maioria dos nossos contemporâneos com ensino superior, quando ouvem música em público que não a música de concerto, está fazendo algo diferente do que sentado completamente imóvel. Eles estão ou dançando, conversando, cantando ou, no caso de concertos de rock, estão tão ativamente engajados em sua própria auto-expressão que, como membros de uma audiência, criam seu próprio evento e som. (...) Na tradi- ção sala de concertos, oferecemos música clássica em espaços fortemente isolados do som do lado de fora. Nós criamos a ilusão e a condição aparente de silêncio absoluto.22 (Botstein, 1999 p. 483)

Considerações finais

Procuramos neste breve artigo iniciar uma reflexão crítica sobre a sala de concerto como espaço de materialização da maneira como operam os códigos de valores no ambiente da música clássica nos nossos dias.
Para tanto, realizamos o cruzamento de duas concepções teóricas que lidam com os elementos presentes no ambiente de concerto: o local físico e simbólico, utilizando as cate- gorias, desenvolvidas por De Certeau, de lugar e espaço, como binômios que se complemen- tam e permitem uma delimitação mais clara de como lidar com o nosso fenômeno.
Operamos também com o outro aspecto que implica pensar a sala de concerto: a per- formance. Se a sala é um ambiente essencialmente para o exercício da performance musi- cal, utilizamos as categorias de Turino, sobretudo a de “performance apresentacional”, para
compreender que lugar e de que maneira esta performance existe como manifestação social.

263

SANTOS, J. L. L. Considerações sobre a Sala de Concerto na Atualidade.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 257-265.

Como elemento de ligação entre esses dois quadros teóricos, trabalhamos com Botstein, com o qual buscamos, junto com os dois autores anteriores, estabelecer um diá- logo de mão dupla que sustentasse nosso argumento principal, o de que a sala de concerto materializa o papel social que a música clássica ocupa atualmente.
Acreditamos que esta reflexão permite, embrionariamente, pensar de forma mais crítica os códigos que levaram a música de concerto a cultivar a imagem que tem nos dias atuais, ou seja, sua função de depositário de um passado pretensamente glorioso – porém, em grande parte, desconectado da dinâmica da vida social contemporânea – cabendo à sala de concerto o lugar-espaço da tentativa de reviver uma civilização perdida.

Notas

1 Utilizaremos as expressões “música de concerto” e “música clássica” com o mesmo sentido, ou seja, a tradição de música ocidental escrita surgida, grosso modo, na Idade Média através do cantochão. Por uma opção pessoal, evitaremos o termo “música erudita”.

2 While courts, city governments, and churches continued to sponsor music-making as they had for centuries,

musicians increasingly depended upon support from the public. There were now public concerts in many cities, offering opportunities for performers and composers to supplement their incomes and to reach a wider audience (...) with an expanding economy, a growing middle class, and more leisure time, the number of amateurs making music continued to increase (...) the growing enthusiasm for music also fostered the development of connois- seurs, informed listeners who cultivated a taste for the best in music.

3 An eighteenth-century concert was a social occasion as well as an opportunity to hear music. Audience mem-

bers could stroll around and converse, paying attention only to the music that interested them, without being considered rude; the silent, motionless audience was an invention of the nineteenth century.

4 Thus the street geometrically defined by urban planning is transformed into a space by walkers. In the same

way, an act of reading is the space produced by the practice of a particular place: a written text, i. e., a place constituted by system of signs.

5 Despite striking developments in the transmission of music by electronic means throughout the twentieth cen-

tury (thereby ensuring music’s wide accessibility), classical music moved to the periphery of culture and poli- tics. In particular, new music for the concert stage commanded less attention during the half of the century than at any time in the previous two hundred years.

6 Refiro-me à observação de que todo sistema produtivo contém o germe de sua própria destruição, contido em

“Prefácio à Contribuição a Crítica da Economia Política” (MARX, 1977).

7 After 1830 the acquisition of cultural tastes has often been accused of functioning to help conceal humble or different social origins. Music lent itself well to the task of acquiring hallmarks of status and privilege precisely because it was not about language (accent, pronunciation) or visual representation(physiognomy, dress, style) and required public display. The access to musical culture on a broad scale, after 1830, coincided with the ele- vation of some forms of music into a “separate” high art, making them more prized and more mysterious.

8 The allure of the mid-nineteenth-century idea of music’s autonomous nature and seemingly organic and self-

-referential completeness without stable or crucial links to “non-musical” meanings has been only underscored by the manner in which we have gained access to music in this century.

9 Hence the refrain that we so often hear when we ask someone who otherwise seems well educated and sophis-

ticated in interests why he or she does not go to concerts: “But don’t k now anything about classical music (...) given the endemic insecurity among educated people about their capacity to “understand” music, it is no wonder that they are reluctant to display their sense of ignorance in public. One does not go voluntarily out in public to show ignorance, even though one might get away with it through passive concealment.

10 Classical music has never had a comfortable place in democratic culture, even in more homogeneous nations

with egalitarian ideals. It has been strongly associated with the habits of the monarchy, the landed aristocracy and gentry of the eighteenth century, and the patronage of nineteenth-century robber-baron financiers; it is still seen – with the exception of the occasional mass public encounter with selections from the standard Italian ope- ratic repertoire – as entertainment characteristic of social ambition, wealth, and privilege. This socio-political linkage persists despite countervailing tendencies, including the Symphonic Pops concert format most success- fully cultivated in Boston.

11 The answer lies partially in the fact that over the course of the twentieth century concert performers and per-

forming organizations have gradually assumed a dominant if not exclusive role as guardians of the past (...) The twentieth century, in this view, witnessed the death of classical music as an active contemporary cultural form, and its rebirth as a museum catering to a limited public.

12 As the nineteenth century wore on, the incipient canon became increasingly resistant to facile expansion, des-

pite the presence of new and contemporary music. As the audience widened and its level of musical literacy changed, its receptivity for and capacity to adapt to new music weakened: the repetition of the familiar led to the gradual exclusion of the new.

264

SANTOS, J. L. L. Considerações sobre a Sala de Concerto na Atualidade.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 257-265.

13 Today’s snob is the master of concealment in the new ideal of listening, the embodiment par excellence of Pound’s image of the audience. The snob has become the protector of a particular tradition, dating only from the middle of the nineteenth century, poignantly expressed by Pound, and therefore an avowed enemy of fashion and novelty. The snob’s self-defense is couched in normative terms, in order to conceal the historically contin- gent character of the “art for art’s sake” language and notions of “timeless” values and standards in composition and performance. Ever since so-called “classical” music has been thought to be in danger of extinction, there has been a marked revival of snobbism, led by the prophets of decline. Nothing seems to bring out the uninvited assertions of “I know better” displays of arcane connoisseurship, and wistful evocations of a golden age gone by than a sense of doom and pessimism.

14 Presentational performance.

15 Performed.

16 Utilizaremos o termo performance por julgamos mais abrangente e preciso ao incluir a ideia conjunta de execu- ção, interpretação e expressão cênica da manifestação musical, no nosso caso.

17 Participatory performance

18 “I lead a zydeco band that exemplifies a kind of compromise between the requirements of a presentational en- semble s a participatory one, and our mode of preparation and performance reflects this.” (Turino, 2008, p. 55).

19 If the main goal and effect of the music are to get everyone dancing, it is a participatory performance that simply

involves different functional roles — instrumentalists, singers, and dancers.

20 Reconhecemos, todavia, os esforços da produção de concerto contemporânea em criar música em situações nas quais essa distinção não é valida, como nos casos de John Cage e Gilberto Mendes, por exemplo. Entretanto, cremos na pertinência geral da aplicação dessa categoria.

21 European classical music concerts are perhaps the most pronounced form of presentational performance, where

the audience sits still in silent contemplation while the music is being played, only to comment on it through applause after a piece has been completed.

22 Most of our college-educated contemporaries, when they listen in public to music other than concert music, are

doing something other than sitting entirely still. They are either dancing, talking, singing, or, in the case of rock concerts, are so actively engaged in their owns self-expression that, as members of an audience, they create their own event and sound. (...) In the classical concert-hall tradition we offer music in spaces heavily insulated from outside sound. We create the illusion and seeming precondition of absolute silence.

Referências bibliográficas

BOTSTEIN, Leon. The Audience. The Music Quartely, v.83, n.4, p. 479-486, 1999.

. Music of a century: museum culture and the politics of subsidy. In: The Cambridge

History of 20th Century Music. Chapter 2. Cambridge Press, 2004, p. 52-68.

DE CERTAU, Michel. The practice of everyday life. University of California Press, Berkeley 1984. GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. e BURKHOLDER, J. Peter. A history of western music.

7th Edition. New York, 2006.

MARX, Karl. Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política. In: Karl Marx e Friedrich

Engels - Textos 3. São Paulo: Edições Sociais, p. 300-303, 1977.

TURINO, Thomas. Music as social life. Chicago: University of Chicago Press, 2008.

Jorge Luiz de Lima Santos - Mestrando em Composição Musical no PPGM da UFRJ com pesquisa sobre a textura musical na obra de Pierre Boulez. Bacharel em Música/Violão Erudito pela UNIRIO e bacharel em Ciências Sociais pela UFPE.


265