Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013
NODA, L. Procedimentos Não Contrapontísticos em Fugas Brasileiras para Piano (1922-2009).
Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 213-225.
Non-Contrapuntal Procedures in Brazilian Fugues for Piano (1922-2009)
O presente trabalho tem como objetivo investigar procedimentos composicionais não contrapontísticos em fugas brasileiras para piano compostas entre 1922 a 2009. Para tanto, foi utilizado o levantamento de fugas brasileiras para piano compostas a partir do século XX apresentado por Noda e Carvalho (2010), que inclui 59 fugas que foram compos- tas porcompositores brasileiros no período de 88 anos. Tais fugas foram selecionadas a par- tir de um critério que considera somente as fugas para piano que receberam tal denomina- ção de seus compositores, excluídas invenções e peças que possuem sessões de fugato, bem como imitações e cânones. No referido levantamento, constam fugas de 21 compositores brasileiros presentes na literatura e reconhecidos por seus trabalhos em Bienais de Música Contemporânea ou artigos publicados e dissertações do meio acadêmico, em programas de recitais, gravações ou prêmios obtidos.
A produção de fugas brasileiras para piano compostas a partir do século XX abar- ca obras de compositores distantes tanto cronologicamente quanto com relação a tendên- cias estéticas. Podemos entender a atração destes diversos compositores pela fuga a partir de motivações que refletem um contexto histórico específico e propício, inicialmente ligado ao neoclassicismo, sem se limitar exclusivamente a este estilo.
Observamos que a literatura contemporânea para piano inclui gêneros e procedi- mentos sedimentados no passado, como a fuga, sendo essa produção intensificada a partir do século XX. Essa pesquisa justifica-se pela grande recorrência das fugas no catálogo de obras de diversos compositores brasileiros até os dias de hoje, sendo interessante notar a diversidade dos procedimentos composicionais, incluindo o afastamento momentâneo do contraponto em fugas, que são, por sua natureza, essencialmente contrapontísticas.
O Quadro 11 apresenta as 59 fugas brasileiras observadas neste trabalho (NODA
eCARVALHO, 2010, p. 966-96), em ordem alfabética por sobrenome do compositor:
Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013 Recebido em: 25/01/2013 - Aprovado em: 15/03/2013
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NODA, L. Procedimentos Não Contrapontísticos em Fugas Brasileiras para Piano (1922-2009).
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Quadro n.1: Fugas brasileiras para piano compostas entre 1922 a 2009.
Compositor | Ano de composição | Título da obra/ título da obra na qual a fuga está inserida2 | Editora/ manuscrito/ digitalizada |
ALMADA, Carlos (1958-) | 2002 | O Chôro Bem Temperado | Partitura Digitalizada |
ALMADA, Carlos (1958-) | 1997 | Sonata para piano | Partitura Digitalizada |
ALMEIDA PRADO, José Antônio Rezende de (1943-2011) | 1965 | Sonata n° 1 | Tonos |
ALMEIDA PRADO, José Antônio Rezende de (1943-2011) | 1968 | Recitativo e Fuga | Irmãos Vitale |
ALMEIDA PRADO, José Antônio Rezende de (1943-2011) | 1985 | Sonata n° 5, “Omulú” | Manuscrito |
ALMEIDA PRADO, José Antônio Rezende de (1943-2011) | 2003/04 | Sonata n° 12 | Manuscrito |
ALMEIDA PRADO, José Antônio Rezende de (1943-2011) | 2005 | Chacona, Recitativo e Fuga | Manuscrito |
AMARAL VIEIRA, José Carlos do (1952-) | 1984 | Prólogo, Fuga e Final | Manuscrito |
CHAVES, Paulino (1883-1948) | 1937 | Prelúdio e Fuga em Ré Menor | Partitura Digitalizada |
CHAVES, Paulino (1883-1948) | 1939 | Prelúdio e Fuga em Dó Menor | Partitura Digitalizada |
CARVALHO, Dinorá (1895-1980) | 1974 | Sonata n° 1 | Manuscrito |
FRANCESCHINI, Furio (1880-1976) | 1922 | Introducção e Fuga sobre a palavra Independência | Casa A. di Franco |
GUARNIERI, Camargo (1907-1993) | 1929 | Prelúdio de Fuga | Partitura Digitalizada |
GUARNIERI, Camargo (1907-1993) | 1937 | Sonatina n° 3 | Ricordi Brasileira, 1948 |
GUARNIERI, Camargo (1907-1993) | 1965 | Sonatina n°6 | Ricordi Brasileira, 1977 |
GUARNIERI, Camargo (1907-1993) | 1972 | Sonata | Irmãos Vitale, 1998 |
KIEFER, Bruno (1923-1987) | 1957 | Duas Peças Sérias | Manuscrito |
KIEFER, Bruno (1923-1987) | 1958 | Sonata I | Ricordi, 1973 |
KORENCHENDLER, H. David (1948-) | 1983 | XI Variações | Manuscrito |
LACERDA, Osvaldo (1927-) | 1996 | Variações sobre um tema de Guarnieri | Manuscrito |
MACEDO, Roberto (1959-) | 1997 | Variações, Fuga e Final | Partitura Digitalizada |
MAHLE, Ernest (1929-) | 1972 | Outras melodias de Cecília | Manuscrito |
MIRANDA, Ronaldo (1948-) | 1965/66 | Prelúdio e Fuga em Fá Menor | Manuscrito |
PENALVA, Pe. José (1924-2003) | 1961 | Prelúdio e Fuga | Manuscrito |
PIEDADE, Acácio Tadeu (1961-) | 2000 | Prelúdio e Três fugas | Partitura Digitalizada |
PITOMBEIRA, LiduínoJosé (1962-) | 2009 | Fuga 1 | Partitura Digitalizada |
RIBEIRO, Antonio (1972-) | 1990 | Desconexa Suíte | Partitura Digitalizada |
TERRAZA, Emílio (1929-2011) | 1955 | Quatro Fugas | Manuscrito |
VILLANI-CÔRTES, Edmundo (1930-) | 1989 | Prelúdio e Fuga | Manuscrito |
A grande maioria das fugas que integram esta pesquisa está vinculada a uma obra maior como: ciclo de fugas (28 fugas), sonatas ou sonatinas (9 fugas), prelúdios e fugas (9 fu- gas), suítes (2 fugas), tema e variações (2 fugas) ou combinada com outros gêneros (7 fugas) (NODA e CARVALHO, 2010, p. 986). Dentre todas as fugas, até o momento da pesquisa de Noda e Carvalho, apenas uma delas foi composta como peça isolada, sendo esta fuga uma fuga atonal e que inclui procedimentos altamente elaborados sob o ponto de vista estrutu- ral e inovador doscontrassujeitos (2011, p. 1825).
Devido ao fato de ter se desvinculado da música exclusivamente tonal, o termo fuga tem sido encarado nos últimos tempos como um procedimento, muito mais que uma for- ma (GERLING, 2004, p. 104; CARVALHO, 2002, p. 125; SHELDON, 1990, p. 553). De acordo com LaRue (1970):
A fuga representa o desenvolvimento final e mais sofisticado do contraponto to- nal, o fim de uma longa evolução que inclui as etapas de heterofonia, polifonia, Stimmtausch, contraponto, imitação, cânone e alteração rítmica (...) pode ser mais esclarecedor como uma cadeia de processos contrapontísticos livremente seleciona- dos, uma disposição flexível de escolhas dentre um repertório estereotipado de me- canismos aplicados a uma ou duas ideiasiniciais ou sujeitos. [grifo meu] (LA RUE,
1970, p. 176-77)
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A metodologia para a realização desta pesquisa partiu da observação dos dados quantitativos expostos em Noda (2010) e da análise de procedimentos não contrapontísti- cosem fugas brasileiras para piano compostas a partir do século XX. A partir da definição de fuga como procedimento, o termo “estrutura resultante” foi empregado para designar a estrutura formal resultante dos procedimentos composicionais, típicos de fuga, nela proje- tados (NODA, 2010, p. 27).
Primeiramente, foi aplicado um roteiro de análise das fugas, do qual foram extra- ídos os dados referentes a cada uma das 59 fugas. O roteiro de análise inclui questões que estão de acordo com os procedimentos analíticos presentes na literatura, incluindo outras questões específicas referentes à produção que integra esta pesquisa. Um desses pontos es- pecíficos consiste na investigação da manutenção ou afastamento do contraponto em cada seção das fugas tonais e atonais, exceto na exposição, que é essencialmente contrapontística.
Para análise da fuga, a literatura é consensual ao considerar parte do reconhe- cimento dos elementos principais da fuga, sujeito econtrassujeito, e suas recorrências ao longo da peça (CARVALHO, 2002; OWEN, 1992; MAGALHÃES, 1988; BENJAMIN, 1986; KENNAN, 1972). A recorrência dos elementos, aliada aos procedimentos composicionais típicos de fuga (stretto, aumentação, diminuição etc.), define seções que são reconhecidas como exposição, episódios, reexposições e coda.
Para Carvalho (2002, p. 125), a exposição “é a seção mais importante da fuga, uma vez que proporciona quase todo material temático a ser utilizado durante o restante da composi- ção. Ela é composta pelas entradas [do sujeito] sucessivas de todas as vozes, podendo ter, ou não,contrassujeito”. No caso das fugas brasileiras para piano compostas a partir do século XX, pesquisa de Noda (2010) revelou que todas apresentam a completa aderência ao seu procedi- mento primordial: a exposição completa do sujeito em todas as vozes. Embora o critério de se- leção das fugas tenha sido a denominação de “fuga” dada pelo compositor, a descrição analítica das fugas que integra o trabalho da autora confirmou e justificou a atribuição do termo no tí- tulo das peças. Por sua vez, os episódios são seções mais livres, de extensão variável, onde não há obrigatoriedade de incluir o sujeito na sua íntegra. Sua função é separar as sucessivas en- tradas do sujeito ao longo da fuga, podendo incluir material novo (CARVALHO, 2002, p. 142).
Sendo assim, a presença integral do sujeito delimita o reconhecimento da exposi- ção e dos episódios. Para este trabalho, denominaremos de reexposições as seções que in- tegram uma ou mais entradas do sujeito, após a exposição. Tanto na exposição quanto nas reexposições, é possível constatar a inclusão de pequenas transições. Estas diferem dos epi- sódios devido à sua breve extensão e função de conectar, e não separar, uma entrada e ou- tra do sujeito. A fuga também pode conter coda ou codetta, sendo a última mais breve que a primeira. Essas seções finais podem incluir entradas do sujeito, que não se caracterizam como reexposições devido ao seu caráter conclusivo.
A partir desses conceitos, é possível que a seção mais propícia para reconhecimento de uma escrita afastada do contraponto nas fugas seja o episódio, por ser mais livre e não ter a obrigatoriedade de uma entrada integral do sujeito. Com exceção da exposição, outras seções como reexposições e codas também podem incluir variados tipos de escritas não contrapontís- ticas nas fugas brasileiras para piano compostas a partir do século XX, como veremos a seguir.
Em fugas com sujeito tonal, os procedimentos não contrapontísticos em episódios e/ou transições foram mais recorrentes que nas reexposições (NODA, 2010, p. 172). Das 32 fugas que integram episódios e/ou transição em fugas com sujeito tonal, três apresentam
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pelo menos um episódio e/ou transição integrando procedimentos não contrapontísticos. A inserção de cadência e melodia acompanhada ao longo das fugas são procedimentos que configuram o afastamento do contraponto. As fugas com sujeito tonal que integram tal pro- cedimento nos episódios são as fugas do Prelúdio e Fuga, de Camargo Guarnieri, E a vida Continua..., de Bruno Kiefer e Prelúdio e Fuga, de Ronaldo Miranda.
Na fuga do Prelúdio e Fuga de Guarnieri, foi possível constatar o abandono do con- traponto na “Cadência” que corresponde ao episódio 5, exatamente a partir do c. 107, quan- do uma só voz apresenta o fragmento inicial do sujeito, em sequências até o c. 112:
Exemplo n.1: Fragmento do sujeito diminuído (voz superior) no episódio 5 da fuga do Prelúdio e Fuga de Camargo
Guarnieri, c. 107-108.
Intitulada de “Cadência” pelo compositor, o episódio 5 da referida fuga prepara a quinta e últimareexposição que integra stretto em aumentação, com proporções diferen- ciadas nas vozes da extremidade (c. 113-128). A seção posterior ao episódio 5 é o ponto de maior densidade do contraponto, devido ao acúmulo dos procedimentos envolvidos e à es- crita pianística (oitavas em todas as vozes e amplitude do registro do instrumento). A al- ternância do tipo de escrita pianística nessas seções (episódio 5 e 5ª reexposição) promove contraste e diversidade na peça, resultando em maior impacto no momento que a fuga atin- ge seu ponto culminante, na 5ª reexposição.
As duas outras ocorrências de procedimentos não contrapontísticos em fugas to- nais consistem em transições. O Exemplo 2 exibe que, na fuga de Bruno Kiefer, E a vida continua..., a melodia acompanhada da transição (c. 50-53) tem a função de interromper o discurso musical contrapontístico, uma vez que o tema utilizado é o da primeira das Duas Peças Sérias, obra na qual esta fuga está vinculada. Posteriormente ocorre retomada da fuga na terceira e última reexposição(c. 54-66). Ao mesmo tempo em que é possível constatar a unidade da obra como um todo, com o recurso de reutilização do material temático, detec- tamos, ainda, o procedimento de autocitação, típico do compositor. De acordo com Cardassi (1998, p. 140), este procedimento é “uma estratégia composicional que envolve a reutiliza- ção de ideias musicais idênticas que transitam de peça para peça”.
Exemplo n.2: Final do episódio 3 e início da transição na fuga de E a vida Continua... de Bruno Kiefer, c. 47-50.
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Na fuga do Prelúdio e Fuga, de Ronaldo Miranda, notas longas (mínimas) em todas as vozes nas duas transições (c. 79-80 e c. 97-98) oferecem contraste com o ritmo sincopado ininterrupto proveniente das diversas entradas do sujeito ao longo da fuga. Porém, a função principal dessas transições consiste em direcionar o caminho harmônico para a 3ª reexpo- sição e para a coda, respectivamente. Essas seções apresentam entradas do sujeito na tonali- dade original, Fá Menor, reiteradas e confirmadas a partir do enfoque da escrita exclusiva- mente harmônica das transições.
Por não integrarem obrigatoriamente entradas do sujeito, os episódios apresentam-
-se em fugas com sujeito tonal de maneira livre. A inclusão de cadências e citação de ou- tro movimento da obra àqual a fuga pertence, bem como o enfoque harmônico, funcionam como transições para as seções posteriores das fugas. A liberdade oferecida nos episódios enfatiza os contrastes que se estabelecem nas seções vizinhas, geralmente com entradas do sujeito, que formam exposição ou reexposições.
Das 55 fugas que integram reexposições em suas estruturas resultantes, 37 pos- suem sujeito tonal. Em 36 das 37 fugas com sujeito tonal, foi possível verificar que o contra- ponto é preservado na reexposição final. Somente uma delas apresenta procedimentos não contrapontísticos na reexposição final. A confirmação da tonalidade na última reexposi- ções é comum em fugas tonais, porém em textura contrapontística. O abandono do contra- ponto na reexposição final ocorre na última entrada do sujeito, em uníssono, na 2ª reexpo- sição da fuga de Prólogo, Fuga e Final, de Amaral Vieira.
A reafirmação integral do sujeito na tônica, em uníssono, após longo episódio, foi considerada como 2ª reexposição da fuga de Prólogo, Fuga e Final, de Amaral Vieira, ape- sar de não ter sido comum encontrar procedimentos não contrapontísticos na reexposições final em fugas exclusivamente tonais. Esse ponto de vista se opõe a outra análise possível, que consideraria esta seção como coda. A justificativa para a escolha encontra-se na cons- tatação da instabilidade harmônica do episódio e na apresentação integral do sujeito, após citações de pequenos fragmentos do elemento, no episódio precedente, aumentando a ex- pectativa da apresentação integral do sujeito na tônica.
Dentre as 25 fugas com sujeito tonal que incluem coda ou codetta, cinco apre- sentam procedimentos não contrapontísticos. São elas, as fugas de Recitativo e Fuga, de Almeida Prado; de Prólogo, Fuga e Final, de Amaral Vieira; as duas fugas dos Prelúdios e Fugas, de Paulino Chaves e a fuga do Prelúdio e Fuga, de EdinoKrieger.
O abandono momentâneo do contraponto ocorre nas fugas de Recitativo e Fuga, de Almeida Prado, e de Prólogo Fuga e Final, de Amaral Vieira, com o sujeito em uníssono com outras vozes, enquanto nas fugas dos dois Prelúdios e Fugas, de Chaves, o sujeito encontra-
-se harmonizado, conferindo o abandono do contraponto nessas seções.
Apesar de integrar o fragmento inicial do sujeito no c. 92, acoda da fuga do Prelúdio e Fuga, de Krieger (Exemplo 3) apresenta grande contraste com as seções precedentes devi- do: (1) ao afastamento do contraponto; (2) emprego de material livre, exceto c. 92 (fragmen- to do Sujeito na voz intermediária); (3) abandono da tonalidade original que fora preservada apenas no primeiro tempo da seção para um final não preparado, em Fá# e(4) exploração de registros e dinâmicas extremas do instrumento.
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Exemplo n.3: Início da coda da fuga do Prelúdio e Fuga de EdinoKrieger, c. 90-92.
Se por um lado é possível verificar a presença de pequenos fragmentos do sujeito na coda dessas fugas, por outro constatamos que o parâmetro harmônico foi o mais eviden- ciado nessas seções, devido à conclusão musical que se relaciona à tonalidade. Os recursos encontrados que configuram abandono momentâneo do contraponto em fugas com sujeito tonal são:
a) diminuição do ritmo harmônico e textura coral (fugas de Paulino Chaves);
b) alternância entre contraponto e homofonia com material novo (fuga de Krieger);
c) diminuição eventual das vozes (fuga de Amaral Vieira), aliados aos parâmetros de dinâmica e escrita pianística.
Dentre as 18 fugas atonais, encontramos três que integram pelo menos um episódio com procedimentos não contrapontísticos. As três fugas pertencem a três obras de Almeida Prado: Sonata n°1, Sonata n°5, “Omulú” e Chacona, Recitativo e Fuga. Nelas, o procedimen- to se encontra sempre no episódio 2, sugerindo um padrão do compositor na escrita de fu- gas com sujeito atonal.
O uníssono presente na fuga da Sonata n°1 possui função estrutural devido à loca- lização central que ocupa na fuga. Antecedido pela 1ª reexposição, que preserva o distan- ciamento intervalar de 4ª Justa proposta nas entradas do sujeito na exposição, o abandono do contraponto no episódio 2 evidencia ainda a liberdade de escrita com relação ao grau de
imitação das entradas posteriores do sujeito na 2ª reexposição.
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Exemplo n.4: Uníssono no episódio 2 da fuga da Sonata n°1 de Almeida Prado, c. 62-64.
Na fuga da Sonata n°5, “Omulú”, de Almeida Prado, movimentos escalares em unís- sono, após stretto da 1ª reexposição (c. 21-25) configuram momentâneo afastamento do con- traponto. Na fuga de Chacona, Recitativo e Fuga, a alternância do trinado de 2ª Menor, pro- veniente do sujeito, junto aos movimentos escalares diatônicos ascendentes e descendentes do material do contrassujeito, configura uma escrita que se afasta do contraponto estabele- cido nas outras seções da fuga.
Exemplo n.5: Episódio 2 da fuga da Chacona, Recitativo e Fuga de Almeida Prado, c. 48-50.
É interessante notar que a incidência de ocorrências de procedimentos não contra- pontísticos nos episódios de fugas com sujeito atonal foi o mesmo que em fugas com sujei- to tonal (três ocorrências cada). Uníssono e alternância de fragmentos configuram a escrita homofônica empregada nessas seções que, apesar da liberdade sugerida nos episódios, não foi tão recorrente em fugas com sujeito atonal, se considerarmos as proporções e possibili-
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dade entre as fugas com sujeito tonal (41 fugas) e com sujeito atonal (18 fugas). É possível afirmar, ainda, que os episódios que integram procedimentos não contrapontísticos eviden- ciam o contraste entre as seções devido ao intenso contraponto nas reexposições vizinhas, especialmente quando estas integram stretto.
Das fugas com sujeito atonal que possuem reexposições, duas apresentam reexpo- sições final de escrita não contrapontística: são a fugas da Sonata, de Camargo Guarnieri e a fuga de Variações, Fuga e Final, de Roberto Macedo. Nessas reexposições finais, am- bas apresentam entradas com o sujeito harmonizado. Tais seções têm a função de realizar a transição para a seção final da obra maior a que pertencem. Portanto, podemos entender essa licença como um recurso de transição a outras seções, não contrapontísticas.
Na terceira e última reexposições da fuga de Guarnieri, a entrada do sujeito, desta vez acompanhada por arpejos quartais na mão esquerda apresenta acentuado contraste com o aspecto imitativo do stretto que a precede (c. 96-102). Posteriormente, no c. 112, a mudan- ça da fórmula de compasso (3/2) colabora para transição em direção à coda do movimento (c.113, “Triunfante”) no qual a fuga está inserida.
Exemplo n.6: Última entrada do sujeito na fuga da Sonata de Camargo Guarnieri: sujeito na altura original acompanhado de arpejos quartais,c. 105-111.
Na fuga de Roberto Macedo, a última entrada do sujeito ocorre na voz inferior, acompanhada de acordes na mão direita em movimento contrário. A textura exclusi- vamente contrapontística contrasta com a última entrada do sujeito, na 2ª reexposição (Exemplo 6). Nessa seção, acordes de cinco sons harmonizam o Sujeito na voz inferior, mo- tivo pelo qual podemos considerar esta seção como homofônica. O enfoque harmônico da seção é responsável pela transição da Fuga para a seção que conclui a obra, Final, de escri- ta exclusivamente homofônica.
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Exemplo n.7: Sujeito na voz inferior na fuga de Variações, Fuga e Final de Roberto Macedo, c. 19-20.
Dentre as 18 fugas que possuem sujeito atonal, sete apresentam procedimentos não contrapontísticos na coda ou codetta:
- três fugas de Almeida Prado (da Sonata n°5, “Omulú”, da Sonata n° 12 e de
Chacona, Recitativo e Fuga);
- fuga da Sonata de Dinorá de Carvalho;
- fuga da Sonata I de Bruno Kiefer,
- fuga de Oito Variações e Fuga sobre um tema de Guarnieri de Osvaldo Lacerda;
- fuga da Desconexa Suíte de Antonio Ribeiro.
As codas das fugas da Sonata n°5 e Sonata n°12, de Almeida Prado, têm início logo após stretto evidenciando a quebra da textura contrapontística na seção. Na Sonata n° 5 o contraste se evidencia a partir da movimentação descendente em quartas sobrepostas se- guido de ostinato sobre a nota Si na voz inferior. A movimentação culmina na retomada do “Tema do Grito” da sonata, conferindo ênfase no aspecto harmônico.
Exemplo n.8: Início da coda da Sonata n°5 “Omulú” de Almeida Prado, c. 84.
O mesmo ocorre na coda de Chacona, Recitativo e Fuga, quando o tema da “Chacona” é reiterado na fuga. Na Sonata n°12, a homofonia empregada na fuga serve de transição para arecapitulaçãodo 1° movimento do qual a fuga pertence.
Exemplo n.9: Início da codada“Fuga-Rapsódica” (Sonata n°12) de Almeida Prado, c. 121-124.
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O abandono do contraponto já havia sido proposto na escrita livre empregada na se- ção que antecede a seção final da fuga da Sonata de Dinorá de Carvalho. Arpejos de caráter improvisatório constituem a coda da fuga, que servem de transição para a seção seguinte da Sonata, intitulada Dolente:
Exemplo n.10: Coda da fuga da Sonata para piano de Dinorá de Carvalho, c. 46.
Com a função de servir de transição para a seção posterior, a coda da fuga de Lacerda alterna uníssono com acordes, configurando o abandono momentâneo do contra- ponto e direcionando-se para a coda final da obra. Esta tem início com o acompanhamento da mão esquerda, como na obra original, da qual o tema foi extraído (c. 330).
E xemplo n.11: Coda da fuga de Oito Variações e Fuga sobre um Tema de Guarnieri, de Osvaldo Lacerda, c. 324-327.
Na codetta da Desconexa Suite de Antonio Ribeiro, é possível constatar a sustenta- ção da nota pedal Mi sob as dissonâncias resultantes da sobreposição de intervalos de quar- tas e quintas justas com trítonos (c. 69-72). A ênfase harmônica apresenta claro contraste com a última entrada do sujeito aumentado na seção anterior e quebra definitiva da textura contrapontística nos quatro últimos compassos da fuga.
Dentre as 11 fugas com sujeito atonal que integram coda em suas estruturas re- sultantes, foi possível verificar, ainda, dois tipos de reiteração de alturas na coda: nota pe- dal e ostinati, com uma e duas ocorrências, respectivamente (fuga da Desconexa Suite, de Ribeiro – nota pedal, e fugas da Sonata n°5, de Almeida Prado, e da Sonata I, de Bruno Kiefer – ostinati).
Foi possível constatar que o afastamento da escrita contrapontística na coda ocor- re tanto em fugas com sujeito tonal quanto em fugas com sujeito atonal. De um modo geral, este procedimento, além de ter sido mais recorrente em codas, apresentou-se como procedi- mento colaborador na definição do caráter conclusivo das fugas.
No estudo de obras para piano compostas entre 1950 a 1988, Gandelman (1997) des-
tacou a diversidade encontrada na música brasileira com relação aos sistemas e às técnicas
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composicionais empregadas nessas obras. Segundo ela, “texturas homofônicas, polifônicas e mistas, com densidades variadas, se sucedem” (1997, p. 29), confirmando o mesmo proce- dimento em diferentes fugas, como foi possível ver aolongo desta pesquisa.
Procedimentos composicionais não contrapontísticos nas fugas brasileiras para piano compostas a partir do século XX foram encontrados em fugas com sujeito tonal e ato- nal e em todas as seções da fuga, com exceção da exposição. Nos episódios, esse recurso co- laborou para a alternância de tipo de escrita das seções, além de promover direcionamento harmônico para novas seções das fugas. Mesmo apresentando pouca recorrência, o aban- dono momentâneo do contraponto ocorreu também nas reexposições finais em fugas com sujeito tonal e atonal. Uníssono, melodia acompanhada e harmonização do sujeito foram os procedimentos utilizados na preparação para seções posteriores, na coda ou codetta, deli- mitando, assim, as sessões das fugas. Nessas fugas, as seções posteriores se caracterizam pelo caráter mais harmônico que contrapontístico, justificando uso de procedimentos se- melhantes nas reexposições finais.
O maior número de procedimentos não contrapontísticos foi constatado nas codas tanto em fugas com sujeito tonal (cinco fugas) quanto em fugas com sujeito atonal (sete fu- gas). Todas as fugas que apresentam reexposições com o mesmo procedimento são seguidas de coda, ou seção posterior da obra maior a que pertencem, apresentando ênfase no aspec- to harmônico, contrastando, ou não, com a seção anterior. Procedimentos não contrapon- tísticos encontrados na coda das fugas brasileiras para piano ocorre, na maioria dos casos, como transição para uma seção posterior da obra maior a que a fuga pertence, podendo esta ser a coda final da obra ou nova seção de uma sonata. Este procedimento é notável e define o caráter conclusivo das fugas.
A reiteração do sujeito partindo da altura original da exposição foi observada ape- nas em fugas com sujeito atonal, uma vez que em fugas tonais esse procedimento é previsí- vel. Dentre as fugas com sujeito atonal, verificamos um número elevado de fugas (oito fugas) que apresentam reiteração do elemento partindo da altura original, como na exposição. Este procedimento se aproxima da função harmônica de retorno à tonalidade original, como em fugas tradicionais tonais.
Para ilustrar a diversidade de procedimentoscomposicionais não contrapontísticos aliado à reiteração do sujeito partindo da altura original, ressalto aqui a ocorrência nas fu- gas de Amaral Vieira (Prólogo, Fuga e Final) e de Camargo Guarnieri (Sonata). Na fuga de Amaral Vieira, a entrada do sujeito pode se confundir com o início de uma coda, devido às características da escrita que se afasta do contraponto. Entretanto, a grande extensão do episódio, que promove maior expectativa para uma nova entrada, aliada à apresentação in- tegral do sujeito em uníssono, na tônica, justificam o entendimento da seção como reexpo- sição. Na fuga da Sonata de Guarnieri, a última entrada do sujeito ocorre acompanhada por arpejos quartais onde a amplitude de registro é notável sob o ponto de vista da escrita pia- nística. Esta entrada culmina na coda do movimento, motivo pelo qual é possível afirmar que o afastamento da escrita contrapontística nessa reexposição serve de transição para a seção que finaliza o último movimento da Sonata.
Apesar da diversidade de procedimentos utilizados que são inerentes à escrita da fuga, é importante destacar que recursos não contrapontísticos foram utilizados ocasional- mente para delinear seções, aliados ao parâmetro de dinâmica e escrita pianística, inten-
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sificando a percepção da estrutura resultante através do abandono momentâneo do contra- ponto. Apartir deste pensamento, é possível entender a fuga como um procedimento que pode excluir momentaneamente o contraponto.Dessa maneira, tanto elementos contrapon- tísticos quanto não contrapontísticos corroboram para a percepção da estrutura resultan- te da fuga. Justamente nessas seções não contrapontísticas, podemos nos aproximar ainda mais da identidade do compositor, através da observação de recursos que são recorrentes em suas obras como um todo.
Para muitos compositores, escrever uma fuga é um duplo desafio: o da conquista técnica de um procedimento composicional específico e o da manutenção da personalidade artística. Cada um deles, dentro de sua identidade estética, mostrou-se rigoroso o suficiente para superar a parte técnica deste desafio. A fuga atraiu diversos compositores brasileiros do período estudado que, independente de suas identidades artísticas, encontraram vários meios de vencer o duplo desafio proposto pela composição da fuga.
Esta pesquisa revelou a liberdade e a variedade na utilização de procedimentos composicionais que se contrapõem com a escrita rigorosa do contraponto. Estes se projetam na estrutura resultante das fugas brasileiras para piano, porém, há limitações. A busca de padrões de procedimentos de fugas combinados com técnicas de composição, como o dode- cafonismo, ou encontrados em tendências estéticas específicas presentes da música brasi- leira, como a nacionalista, aliados a um estudo mais aprofundado da harmonia nessas fugas podem oferecer resultados relevantes para verificar as transformações e/ou as adaptações que a fuga sofreu em um contexto específico. A investigação histórica da utilização da fuga na música brasileira poderá trazer subsídios para a compreensão das fontes de aprendiza- do comuns do contraponto no Brasil. Aproximações quanto à utilização dos procedimen- tos em fugas de compositores de uma mesma escola de composição como, por exemplo, de Guarnieri, poderão ser reveladoras em apresentar o grau de influência em maior ou menor grau na composição de fugas de seus sucessores.
1 As partituras das obras presentes no Quadro 1 encontram-se no volume 2 de Noda (2010), disponível em: http://
www.lume.ufrgs.br/handle/10183/21367
2 Embora algumas obras do Quadro 1 não integrem a palavra “fuga” no título, esta foi indicada no início de cada fuga na partitura de todas as obras aqui mencionadas.
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