Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013

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A Sonata n. 10 para Piano de Almeida Prado: relações intertextuais e composicionais entre a obra e o poema As Rosas de Rainer Rilke

Ernesto Hartmann (UFES, Vitória, ES, Brasil)

ernesto.hartmann@ufes.br

Resumo: O presente trabalho busca através da análise da Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado estabelecer uma relação entre os procedimentos composicionais empregados na obra e a epígrafe proposta pelo compositor, o poe- ma As Rosas de Rainer Rilke. Paralelamente, busca apontar para outras obras do repertório pianístico estabelecendo uma rede intertextual. A partir dos dados obtidos na análise almeja-se estabelecer, através de relações analógicas, as situações que apontem para intertextualidade inerente da obra. Conclui-se que o compositor efetivamente traduziu, através de sua compreensão e pessoal associação simbólica, o roteiro previsto no poema de Rilke.

Palavras-chave: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado; Almeida Prado; Intertextualidade; Rainer Rilke; As Rosas.

The Sonata n. 10 for Piano by Almeida Prado: intertextual relationships between the work and Rainer Rilke’s poem

The Roses

Abstract: This paper attempts to establish through the analysis of Almeida Prado’s tenth Piano Sonata a relation- ship between the compositional techniques employed in the work and the epigraph offered by the composer, Rainer Rilke’s poem The Roses. Also it aims to point out intertextual relations with other main works of the pianis- tic repertoire. With the objective data that emerged from the analysis of the Sonata we tried to establish through analogical relationships situations that point to the inherent intertextuality of the work. We concluded that the composer was successful in translating the script of the poem through his understanding and personal symbolic association.

Keywords: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado; Almeida Prado; Intertextuality; Rainer Rilke; The Roses.

1. Introdução

A décima Sonata para piano (1996) de José Antônio Rezende de Almeida Prado
(1943-2010), denominada Sonata das Rosas sobre o poema de Rainer Maria Rilke (1875-
1926) As Rosas (1914), encerra um dos mais profícuos e relevantes ciclos de obras para o instrumento da música brasileira erudita do século XX, as dez Sonatas para Piano (1965-
1996) de Almeida Prado. Segundo Adriana Lopes Moreira (pesquisadora que gravou a inte- gral dos 16 Poesilúdios para piano do compositor e conduziu uma entrevista de grande re- levância com Almeida Prado em 2002 registrada em sua dissertação de mestrado), a Sonata n. 10 para piano é “uma de suas obras mais conhecidas [...] foi dedicada à memória dos pais” (MOREIRA, 2002, p. 54) e “evoca lembranças afetivas da infância de Almeida Prado” (MOREIRA, 2002, p. 54).
Apesar de ter sido bem recebida tanto pelo público como pelos intérpretes, como afirma a autora, muito pouco se escreveu sobre esta obra. Entre os trabalhos mais expressi- vos disponíveis podemos citar a comunicação A Sonata n. 10 (Sonata das Rosas) para piano solo de Almeida Prado de Robervaldo Linhares Rosa nos Cadernos do Colóquio da UNIRIO de 1999 (ano em que o mesmo registrou-a para o CD O Som de Almeida Prado) e a Tese de Doutorado de Fernando Corvisier The Ten Piano Sonatas of Almeida Prado: The Development of his Compositional Style de 2000.
Afora a qualidade destes trabalhos mencionados, evidentemente, ainda resta muito que discutir sobre diversas questões que a obra nos coloca. Entre estas questões destacamos para este trabalho algumas possíveis relações entre forma-material composicional-texto e a
possibilidade de diálogo com outras obras do repertório pianístico que compartilham com

Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013 Recebido em: 26/12/2012 - Aprovado em: 21/02/2013

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esta Sonata uma característica essencial – o fechamento de um ciclo de grande porte – no caso as Sonatas n. 30 op. 109 e n. 32 op. 111 para piano de Ludwig van Beethoven. Desta úl- tima, particularmente, o segundo movimento.
Quanto à primeira proposição, analisaremos a obra lançando mão de ferramen- tas analíticas tradicionais, com destaque para alguns conceitos oriundos da Teoria dos Conjuntos segundo Allen Forte (1972)1, buscando identificar processos composicionais que permitam associações metafóricas com o texto. A respeito da segunda proposição, pare- ce apropriado, neste momento, tomarmos ciência da própria opinião do compositor sobre o sentido de ciclo em suas sonatas e a posição da Sonata n. 10 dentro deste mesmo ciclo. “Foi minha última sonata. Esse ciclo de dez sonatas se fechou e eu não continuei [...] não vai haver mais Sonata. Tem coisas que acabam. Em princípio, chega de Sonata, espero poder inventar outra coisa” (MOREIRA, 2002, p. 55).
Fica clara a intenção (que efetivamente se realizou) de, já em 1996 Almeida Prado encerrar sua produção de sonatas para piano, sem, entretanto, encerrar a sua produção pia- nística. Isso nos leva a propor uma hipótese de que há uma relação que supera a mera coin- cidência, uma vez que o número de obras neste gênero (sonata para piano) iguala ao de publicadas pelo compositor russo Alexander Scriabin. Parece-nos viável esta proposição devido ao tipo de estrutura de acorde utilizada por Almeida Prado na organização do pri- meiro movimento, clara alusão ao acorde de Prometeu de Scriabin. Estaria então Almeida Prado realizando uma referência ao compositor russo, tão relevante em sua arrojada con- cepção harmônica como alternativa ao tonalismo, já na primeira década do século XX? E a Beethoven, no que diz respeito à estruturação de uma derradeira obra em um determinado gênero cujo movimento final se organiza na forma de Variações ou improvisações como é o caso da Sonata n. 10 de Almeida Prado e da Sonata n. 32 op. 111 de Beethoven? Talvez, aqui poderíamos até mesmo acrescentar a Sonata n. 30 op. 109 também de Beethoven, que, apesar de não ser a obra final do ciclo das 32 sonatas para piano, apresenta similaridades de estruturação formal bastante significativas quando comparada à Sonata n. 10 de Almeida Prado como demonstraremos mais adiante.
Evidentemente, poderíamos estabelecer um sem número de associações, como as Sonatas para piano de Haydn, as Baladas, Prelúdios, Estudos, Noturnos e os Scherzi de Chopin, as Canções sem Palavras de Mendelssohn, as Sonatas para piano de Prokofiev e até mesmo os Prelúdios de Scriabin, somente para citar alguns, todos estes, exemplos de ciclos que correspondem às mesmas caraterísticas dos escolhidos. Não obstante, duas similarida- des principais emergem e concorrem para a escolha que propusemos: a identidade da pro- posta formal, ou seja, ciclo de peças em forma sonata para piano solo (considerando todas as variantes) e algumas particularidades encontradas na Sonata n. 10 de Almeida Prado que serão elucidadas através da análise. Ainda, a própria definição de “fase pós-moderna”, acei- ta e recomendada pelo compositor, nos convoca a compreender as suas obras deste período (1982 em diante) como, por natureza, autorreferenciais, ecléticas e intertextuais, caracterís- ticas estas seminais da estética pós-modernista.

Depois vem a 4ª fase, a Pós-Moderna, que começou com os Poesilúdios e vai até agora. É uma fase de saturação de todos os mecanismos: astronômico, ecológico, afro, etc. Após da 6ª Carta celeste, composta em 1982, eu disse: “Chega! Agora eu quero reler”. Influenciado pelos pintores da Unicamp – Suely Pinotti, Bernardo Caro, Berenice Toledo, Fúlvia Gonçalves, que estavam fazendo releituras de Monalisa, Braque, etc., eu resolvi fazer colagens, claramente visíveis nos Poesilúdios. Um assumir o incoe- rente. É uma fase nova em relação às anteriores, embora tenha algumas coisas das outras. (ALMEIDA PRADO apud MOREIRA, 2004, p. 74)

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Como podemos inferir através do depoimento do próprio compositor, a intertextuali- dade e o ecletismo estão fortemente evidenciados, particularmente quando este afirma a in- fluência de seus colegas artistas plásticos e visuais da UNICAMP e da concorrência pacífica de diversas vertentes temáticas já dantes exploradas por ele ao longo de seu itinerário artístico.
Dessarte, a tese de que existem relações verdadeiras entre a Sonata n. 10 e outras obras análogas se sustenta, superando a mera especulação, visto que está implicitamente presente no discurso do compositor e sendo, ainda, reforçada pela noção que temos de sua experiência como pianista, portanto, bom conhecedor do repertório do instrumento. Cabe à análise, demonstrar e apontar quais são especificamente e onde se encontram estas relações.
Antes de iniciarmos a análise da obra, convém apresentar alguns conceitos centrais para a compreensão tanto das relações intertextuais que buscaremos elucidar como da pró- pria técnica composicional de Almeida Prado.

2. Arquétipos de Webern e Berg

Segundo Antenor Corrêa,

alguns autores já sugeriram designações para essas novas formações não possuidoras de classificação no antigo sistema de superposições de intervalos de terça, mas que, com freqüência, se fazem presentes na produção musical pantonal. Contam-se, entre algumas das designações observadas, os termos entidade harmônica, agregado com- plexo, entidade acórdica e verticalidade. [Flo] MENEZES nomeia essas formações de entidades harmônicas arquetípicas ou arquétipos harmônicos (cf. MENEZES, 2002, p. 314). Entende-se por formação arquetípica, ou arquétipo, um aglomerado sonoro possuidor de uma configuração intervalar não repertoriada nos modelos harmônicos tradicionais, cuja identidade seja passível de reconhecimento perceptual, dado o seu uso reiterado por parte do(s) compositor(es). (CORRÊA, 2005, p. 45)

De acordo com MENEZES (2002, p. 123), o arquétipo de Alban Berg corresponde ao tetracorde 4-9, uma superposição de quartas justas distantes por meio tom, ocasionando dois trítonos distintos. O Exemplo 1 ilustra uma forma possível deste tetracorde.

Exemplo n.1: Arquétipo de Berg.

3. Acorde Prometeu

A partir de 1907 Alexsander Scriabin, em busca de uma nova estética, utilizou di- versas estruturas hexacordais para reestruturar seu vocabulário harmônico, visando rom- per com a organização tonal tradicional. Dentre elas, destaca-se no final da década de 1900 o “Acorde de Prometeu” (ou acorde místico), utilizado tanto com as exatas alturas represen- tadas no Exemplo 2, como em transposições e inversões. O termo “Acorde de Prometeu” foi concebido por Leonid Sabaneyev (MORRISON, 1998, p. 314), recebendo este nome graças a sua extensiva utilização no Poema Prometeu opus 60, de 1910. Trata-se do hexacorde 6-34, formado pelos intervalos de trítono (classe intervalar 62), sétima menor (classe 2), terça maior (classe 4), sexta maior (classe 3) e segunda maior (classe 2) a partir de uma dada fundamental.

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Exemplo n.2: O “Acorde de Prometeu”.

O próprio Scriabin utilizava o termo аккорд плеромы, ou traduzido, Acorde de Pleroma que, de acordo com Taruskin, “foi concebido para permitir uma apreciação instan- tânea, ou seja, revelar o que está, em essência, para além da mente (intelecto) humana. Sua estática sobrenatural seria uma intimação gnóstica de uma alteridade obscura” (TARUSKIN,
1985, p. 84). A utilização deste acorde na obra de Scriabin raramente ocorre pela simples su- perposição das quartas, como em seu aparente “estado fundamental”, ao contrário, Scriabin lança mão das mais variadas posições e espaçamentos entre as vozes além de suspensão por apojaturas. A utilização deste “estado fundamental” é a exceção e não a regra.

4. Acorde Araponga

O Acorde Araponga de Almeida Prado pode ser considerado uma versão “nacio- nal” do Acorde Prometeu de Scriabin. Sem as pretensões místicas do seu paralelo russo, o Acorde Araponga é definido por Corvisier como

um acorde composto no qual os intervalos são organizados em qualquer combinação de tensões. Percebe-se que neste acorde a distribuição dos intervalos criam áreas es- pecíficas de consonância e dissonância. As notas Sol#, Dó# e Fá# constituem uma área de consonância na parte grave do acorde, ao passo que as notas Sol e Fá# cons- tituem uma área dissonante no centro do acorde. Na região aguda outro intervalo consonante aparece formando uma terça menor [intervalo de classe 3]. (CORVISIER,

2000, p. 74, tradução nossa)

A rigor, trata-se do pentacorde 5-5 (1,6,7,8,9) que é utilizado nas alturas específicas indicadas por Corvisier na Sonata n. 4 para piano (1984), exemplificado no Exemplo 3:

Exemplo n.3: Acorde “Araponga” na Sonata para piano n. 4, 2º mov., c.1.

Contudo, por analogia ao tratamento dado por Scriabin ao hexacorde 6-34 (Acorde Prometeu), podemos compreender o Acorde Araponga como uma sonoridade, que se com- plementa com o heptacorde 7-5 e pode ser transposta ou invertida, sem prejuízo do seu conteúdo intervalar. Não obstante, é preciso contextualizar cada posição deste conjunto de forma a não dissocia-lo da proposta inicial ao ponto da total descaracterização de registro,

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timbre e textura. Deve sempre se ater à proposta de uma onomatopeia do timbre estridente da Araponga.

5. Transtonalidade

Ao elaborar sua tese de doutorado sobre sua então recente composição Cartas Celestes n. 1 (1974), Almeida Prado refletiu profundamente sobre questões inerentes ao to- nalismo e ao pós-tonalismo. Do tonalismo, concluiu suas premissas básicas, a saber, a fun- damentação derivada da série harmônica (RAMEAU, 1972) resultando na organização hie- rárquica do material sonoro – acordes de formação exclusivamente por terças e construídos a partir da junção dos primeiros harmônicos da série. Essa hierarquização imbricou na fun- cionalização (RIEMANN, 1893) e consequentemente na conceptualização das funções es- senciais ao discurso tonal, a Tônica, a Dominante e a Subdominante.
Ao refletir sobre o pós-tonalismo, Almeida Prado constatou que a despolarização e a emancipação da dissonância, permitindo formações livres intervalares alçadas à estrutu- ras de acordes independentes e autônomos admitiam um formidável acréscimo do vocabu- lário harmônico, porém, na mesma inversa proporção que a possibilidade de redundância. Dessa forma, o discurso não-tonal, atonal, ou segundo a melhor definição na contempora- neidade, pós-tonal, subtraia da experiência da escuta a condição de estabelecer relações de hierarquia através da repetição de estruturas-chave dificultando assim em muito, a apreen- são e a compreensão do discurso pela familiaridade. Para Almeida Prado, a redundância é um recurso decisivo na assimilação da obra pelo ouvinte.
Nas palavras do próprio compositor, “O uso de oitavas, elemento vivo existente em qualquer ressonância mínima na natureza, ficava proibido, salvo raríssimas exceções” (ALMEIDA PRADO, 1985, v.2, p. 559), e “A escuta de uma obra atonal não dá ao ouvinte, nunca, a sensação de recuperar determinado acorde, aquele elemento simples e óbvio que tece uma articulação através do discurso tonal”. (ALMEIDA PRADO, 1985, v.2, p. 559).
Buscando uma solução para este problema, o compositor decide desenvolver uma nova técnica denominada “Transtonalismo” que, em essência, é uma proposta de sínte- se entre os paradigmas tonais e não tonais (uma superação da aporia, tipicamente da es- tética pós-moderna), aproveitando-se da redundância, para ele tão cara a compreensibili- dade da obra, e da ressonância tonal sem abrir mão da expansão do material harmônico, uma das maiores conquistas do século XX. Ao longo da década de 1970 e em diante, ve- mos o compositor desenvolver essa sua nova técnica em diversas obras. “O meu sistema seria então, uma tentativa de colocar junto[as] as experiências atonais com o uso racional dos Harmônicos Superiores e Inferiores, criando Zonas de Percepção das Ressonâncias” (ALMEIDA PRADO, 1985, v.2, p. 559). Um dos exemplos mais típicos do Transtonalismo em Almeida Prado é a utilização de estruturas por terças, acordes frequentemente diatôni- cos e que poderiam ter função tonal em outro contexto, organizados sem nenhuma ordem hierárquica, desfuncionalizados.
Este processo já poderia ser observado em Debussy, em diversos Prelúdios do pri- meiro e do segundo caderno, porém Almeida Prado reitera que se trata de mais um recurso, e não de um substitutivo para a tonalidade, esta ainda claramente pertencente ao seu estilo; “o tonalismo está sempre presente em minha música, mesmo quando eu sou serial, dode- cafônico. [...] certas cadências [...] tendem a dar uma ideia de um repouso tonal ou modal”
(ALMEIDA PRADO apud COSTA, 1998, p. 121).

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6. A Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado: análise musical

Estruturada em três movimentos Intenso - Scherzo (Féerico) - 3 Improvizações3 so- bre um Tema anônimo popular (Sereno), esta obra de aproximadamente 15 minutos funda- menta-se em três ideias temáticas distintas:
a) A ideia inicial construída sobre uma sonoridade complementar ao Acorde
Araponga (Exemplo 4).

Exemplo n.4: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, Ideia 1, 1º mov., c. 1-2.

Uma ideia simples, que encerra em sua textura de tétrades no primeiro compasso o intervalo de classe 2 (0,10) e (6,8). O ritmo em colcheias pontuadas seguidas por semi- colcheias, particularmente com as ligaduras das semicolcheias para as colcheias, é muito menos representativo de um modelo de abertura ao estilo francês do que da “onomatopeia” que busca reproduzir uma Araponga. Ao invés de utilizar o próprio Acorde Araponga, Almeida Prado opta por uma sutileza, lançando mão do complementar deste acorde, o hep- tacorde 7-5. A primeira elaboração desta ideia, imediatamente no compasso seguinte (c.2) reproduz com a ampliação de um tempo a mesma figura rítmica, articulação, textura e con- torno melódico, porém agora sobre o hexacorde 6-34 (Acorde Prometeu). O uso da dinâmi- ca crescendo que ocorre constante e progressivamente ao longo destes dois compassos, pelo acréscimo de volume pode sugerir que estejamos nos aproximando desta ave que canta em algum lugar próximo.
b) O ‘Canto das Rosas’ (Exemplo 5).

Exemplo n.5: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, ideia 2, 1º mov., c. 17-29.

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Sobre o significado do título Canção das Rosas e a obra como um todo, Almeida
Prado nos relata,

foi um noturno que eu compus em Maio de 1994 (para evitar a denominação Noturno eu coloquei ‘Canção das Rosas’). Trata-se de um tema bem tonal, em Mi bemol maior e foi inspirado por um quadro acadêmico – um vaso com rosas vermelhas que ma- mãe tinha, deixou de herança para mim e hoje está com minhas filhas. Minha mãe faleceu em agosto do mesmo ano de 94 e meu pai havia falecido em 86, então resolvi fazer uma sonata em memória deles. Coloquei uma introdução com quase que uma araponga cantando e esse canto das rosas ficou sendo o segundo tema da forma sona- ta do primeiro movimento. O segundo movimento é um scherzo. No terceiro movi- mento eu coloquei uma valsa de Jaú que meu pai cantava para eu dormir – eu não me lembrava da letra, mas escrevi essa canção de memória, em Fá maior e harmonizei Transtonalmente, com um acompanhamento que não é de valsa (pra diluir um pou- co) e fiz, não variações, mas improvisações sobre esse tema, buscando uma sensação onírica entre o acordar e o dormir, vendo o meu pai e, ao mesmo tempo, ele não está mais lá. A sonata termina serena, em Fá maior maravilhoso. (ALMEIDA PRADO apud MOREIRA, 2002, p. 55)

São três os motivos desta estrutura, x (Cf. Exemplo 5) – que tem como característi- ca principal o seu perfil melódico, salto ascendente (podendo e sendo invertido ao longo do movimento), geralmente por um intervalo de classe 2 ou uma oitava, como no próprio tema; y – sequencia de três sons conjuntos ascendentes (contraste ao grande salto do motivo ante- rior) e z – apojatura, também representando conjunção. Destes motivos, o que mais caracteri- za o Tema das Rosas é o salto ascendente de x, elemento que servirá como um dos principais recursos de unidade da obra, sendo utilizado em todos os três movimentos da Sonata n. 10.
Este Tema de caráter fortemente lírico, cujo motivo x (conforme o Exemplo 5) já ha- via sido prenunciado no c.3, porém harmonizado com acordes não tonais, mais especifica- mente, relacionados ao arquétipo de Berg (4-9). Ao longo do primeiro movimento, esta melo- dia, quando apresentada na íntegra, sempre vem acompanhada da utilização de armadura, no caso a de Mib maior. Como podemos observar nas marcações do exemplo acima, trata-se de uma Sentença4 ampliada com proposta (c.17-18), resposta (c.19-20) e sequencia (modelo e reprodução c.20-23) que é expandida para uma nova região tonal através do arpejo do acor- de de Si menor (c.22) até uma área tonal que se encontra suspensa pelo uso do acorde de V com 4ª suspensa de Dó (Sol com nona e quarta suspensa nos c. 24-25 e 27). Este acorde é in- termediado pela sua dominante, Ré com sétima (c.26). Apesar de uma tendência harmôni- ca à tonalidade de Dó, podemos observar, aqui e no retorno desta parte do tema das Rosas (c.55-56), uma forte tendência ao pentacorde de Fá Lídio (0,5,7,9,11). O acorde de Fá com sé- tima (V de Sib no c.23) reforça esta tendência por ser o ponto de entrada (c.23) e de saída (c. 29) desta digressão harmônica do tema. É o primeiro indício de uma progressão de Mib a Fá presente em toda a obra e cujo significado é fundamental para a construção da metáfora musical do poema como será discutido à frente.
c) O Tema popular, gerador das Improvizações do terceiro movimento, que, segun- do o autor, era cantado por seu pai5 (Exemplo 6).
Este tema poderia ser considerado um período duplo regular e quadrado não fos- se a atípica assimetria entre o primeiro e o segundo grupo de frases, este último tendo duração de apenas três compassos (talvez por omissão deliberada do próprio composi- tor, pois não há nenhum indício na canção que nos leve a compreender esta assimetria). A melodia está diatonicamente centrada em Fá maior, por exceção de um Si natural que ocorre em c.4, mas que pode facilmente ser compreendido como uma ornamentação (esca- pada). O compositor, de acordo com seu próprio relato, determina que a harmonização é

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Transtonal. Efetivamente podemos constatar isso, visto que existe a utilização de acordes terciais diatônicos desfuncionalizados sustentando o discurso melódico.


Exemplo n.6: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, estruturas do tema destacadas, 3º mov., c. 3-33.

7. 1º Movimento - Intenso

A partir do depoimento de Almeida Prado, assumimos o tema das Rosas como se- gundo Tema de uma forma sonata. Se assim for, entenderemos a ideia da Araponga como primeiro tema e não como introdução. Ainda, não teríamos desenvolvimento formal, sendo as ideias desenvolvidas ao longo do discurso, mais se aproximando de uma forma sonata sem desenvolvimento e sem transição. Estas estruturas auxiliares da forma são substituídas por ligações que quase sempre se assemelham a cadenzas (c.40-45, por exemplo).
A forma pode ser segmentada de acordo com a seguinte tabela:

Exposição

Ligação

Reexposição

Coda

c.1-10

c.11-14

c.15-29

c.30-33

c.34-40

c.40-45

c.46-56

c.57-62

Área temática I

Ligação

Área temática II

Ligação

Área temática I

Ligação

Área temática II

Coda

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Esta forma é extremamente similar ao do 1º movimento da Sonata n. 30 op. 109 de Beethoven. Também ela contém uma ideia inicial (simples sucessão de terças descenden- tes) que se segue a um segundo tema em andamento mais lento após uma minúscula tran- sição, tem uma breve ligação no lugar d eum desenvolvimento e uma reexposição seguida de uma Coda.
A Área temática I da Sonata n. 10 já contém as duas ideias distribuídas na seguin- te ordem, c.1-2 com 7-5 e 6-34, (conjuntos complementares6 do Acorde Araponga e Acorde Prometeu, respectivamente) – ideia da araponga e a seguinte sucessão de acordes harmoni- zando o intervalo x do Canto das Rosas (Exemplo 7).
Além da harmonização por acordes arquétipos7 da Segunda Escola de Viena, a li-
nha melódica encontra-se distribuída pelo registro médio e agudo do instrumento alcan- çando desde o Dó3 (central) até o Sib5 com a indicação ff e Sonoro. Todos estes recursos não nos permitem antever o caráter lírico que irá prevalecer no segundo Tema.

Exemplo n.7: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, Arquétipos de Berg, 1º mov., c.3-4.

Uma breve sucessão de acordes arpejados no c.5, respectivamente 6-Z29, 6-Z37 e 7-2, apresenta como subconjunto de 6-Z37 o Acorde Araponga em sua “forma original” (Exemplo 8). Esta sucessão conduz a uma sequencia de graus conjuntos descendentes sem modo escalar definido em c.6. Esta, por sua vez, precede uma reafirmação dos quatro com- passos iniciais, sendo os dois primeiros por variação (agora sobre os tetracordes 4-17, 4-19 e
4-12 e o pentacorde 5-26 que é o tetracorde 4-12 sobre um pedal da nota Ré), e os dois últi- mos (c.9-10) uma transposição do exemplo dos arquétipos de Berg um semitom abaixo, onde observa-se uma ligeira alteração no segundo acorde, antes tetracorde 4-5 (2,3,4,10), agora te- tracorde 4-Z29 (1,3,4,9).

Exemplo n.8: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, Acorde Araponga em arpejo, 1ºmov., c. 5.

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Quatro compassos (c. 11-14) em polirritmia de oito semicolcheias contra cinco colcheias construída sobre a superposição de dois tetracordes representativos da escala Pentatônica (4-23) em dinâmica pp-ff constituem uma ligação entre o final da primeira área temática e o início da segunda (Exemplo 9). Essa superposição é um gesto claramente pia- nístico de jogo de teclas brancas (m. dir.) e teclas pretas (m. esq.). Apesar da superposição destes dois tetracordes gerar três octacordes distintos (8-6, 8-23 e 8-16 respectivamente) é possível atribuir a esta sonoridade o sentido de transição entre um contexto não tonal, re- pleto de arquétipos de Berg, Acordes Prometeu e Araponga, além de outros conjuntos, para um contexto francamente tonal da área temática II, devido à diatonicidade inerente dos te- tracordes 4-23 (são subconjuntos da coleção diatônica 7-35 e de seu complementar, a cole- ção pentatônica 5-35).

Exemplo n.9: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado

A segunda área temática é o tema das Rosas já discutido no Exemplo 5. Acrescentamos que a mudança do tempo (semínima = 63) e o acompanhamento em arpejos, com uma leve inflexão à região do V de Mib através do uso do Lá natural (c.18-20) já prenuncia a chegada do pentacorde Lídio em Fá já demonstrado no Exemplo 5.
Após a apresentação e repetição do tema das Rosas por ritornelo, uma breve ligação, já novamente no andamento inicial (semínima = 100), em quatro compassos retoma o moti- vo principal da Área temática I. Com o cancelamento da armadura (c.30) e a utilização dos pentacordes 5-20, 5-29, 5-23 e 5-29 respectivamente, renuncia a tonalidade operando, assim, como uma ligação com função estrutural de Retransição.
Pelo seu tamanho e concentração motívica parece-nos sem sentido atribuir uma função de elaboração ou desenvolvimento a esta breve passagem. Há uma nítida condução melódica em c.32 e 33 da nota superior da mão direita em direção ao Sib 4, este último, o início da Reexposição. Essencialmente, a principal característica da ligação é a de reestabe- lecer o andamento inicial, o motivo de colcheia pontuada-semicolcheia, presente no início do movimento e o ambiente harmônico não tonal.
A Reexposição inicia com a ideia da Araponga reapresentada com uma mudan- ça nos tetracordes da mão esquerda que agora estão arpejados em grupos de quatro se- micolcheias. Novamente a sequencia inicial de conjuntos é 7-5 (complementar do Acorde Araponga) e 6-34 (Acorde Prometeu), agora acrescentado da nota Lá, portanto o heptacorde
7-30. No c. 38 inicia-se uma cadenza com um trilo do Fá#5 em fff e a série harmônica do Dó, culminando no c.40 com o tertacorde 4-2, um arpejo em fusas de uma sexta maior e sétima menor, ambas ascendentes, que realiza movimento cromático descendente até o c.44. Neste momento (c.44) a dinâmica decresce ao pp com um refreamento do movimento sobre a trí- ade 3-9 (Exemplo 10). Novamente, trata-se de uma transição da sonoridade não tonal para a
tonal, preparando o retorno do tema das Rosas (c.46).

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Exemplo n.10: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, Cadenza, 1º mov., c. 38-44.

Nesta recapitulação, o tema das Rosas apresenta-se, em linhas gerais, com a mes- ma organização estrutural do que na exposição. O motivo z sofre uma ampliação rítmica, agora em semínimas sincopadas opostas a um ostinato em quiálteras de colcheias (c.50-53). A resposta que encontrava-se já sobre o pentacorde de Fá Lídio (5-24), agora, está totalmente inserida nesta sonoridade. Esta resposta é interrompida após articular o motivo x no c.56. Essa suspensão articula o rompimento entre a reexposição e a Coda, esta última integral- mente dedicada ao estabelecimento de Mib Maior, através do prolongamento das notas deste acorde acrescidas de alguns membros de sua série harmônica.
Podemos observar que, aproximadamente, a seção Aurea da peça (2/3, c.46) coincide com o retorno do tema das Rosas e essencialmente, com o retorno da tonalidade. Um interes- sante acorde suspenso, 7-35 (c.54) criado pelos prolongamentos das notas articuladas imedia- tamente antes expressa todo o pentacorde diatônico de Mib maior, detalhado em dinâmica ff.
Uma brevíssima Coda de cinco compassos em andamento Lento (semínima = 56) fecha o movimento com uma última reiteração do motivo x (c.60), precedido por um arpejo dos sons presentes na série harmônica de Mib acrescidos da sétima maior e da sexta.

8. 2º Movimento – Scherzo

O segundo movimento pode ser, em sua macroestrutrura, considerado uma for- ma ternária com Coda, com os c.1-40 correspondendo à Seção A, c.41-60 ao Trio e c.100-
114 à Coda. A Seção inicial deste movimento é construída por um intenso jogo entre tri- cordes 3-11 (acordes maiores e menores). Trata-se de um interessante uso do conceito de Transtonalidade, pois não se pode afirmar uma intenção de estabelecer a tonalidade de Mib maior, nem a de Fá maior. Estas são as duas tríades que iniciam o movimento, reproduzindo o que parece ser o “motivo” harmônico principal da Sonata (Exemplo 11).

Exemplo n.11: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, alternância entre as tricordes 3-11 em Mib e Fá, 2º

mov., c. 1-6.

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A ordem de apresentação dos tricordes 3-11 ampliando e reduzindo os tempos de cada compasso estabelece uma fluidez rítmica e uma sucessão harmônica que impede a es- tabilização de qualquer centro tonal, fato ressaltado pela utilização do pedal.
Analogamente, não se estabelecem divisões nitidamente perceptíveis de estrutura formal tradicional, sendo esta Seção A um constante desenvolvimento da ideia inicial (opo- sição de tricordes). Essa textura se repete até o c.25, onde as duas mãos tocam simultanea- mente, articulando a superposição de dois tricordes 3-11 (4,8,11) e (0,5,9), formando o hexa- corde 6-Z19.
A partir do c.36 até o c.40, uma forte tendência ao diatonismo associada à mu- dança da textura inicial. Isso de dá devido à utilização do tricorde 3-11 (c.36) com a co- leção (1,6,10), seguido do heptacorde 7-35 (o próprio heptacorde diatônico) com a coleção (0,2,4,5,7,9,11) no c.37, novamente o tricorde 3-11 (c.38) com a coleção (4,8,11), o pentacorde
5-35 (penatcorde pentatônico) no c.38 e, finalmente, o tricorde 3-11 com a coleção (0,5,9). Todas estas coleções são subconjuntos da coleção diatônica 7-35, o que transforma este tre- cho em uma espécie de transição sonora para o Trio que se segue.
O Trio, cujo andamento é Calmo (Fusa pontuada=72), é uma sucessão de acor- des (todos os subconjuntos da coleção diatônica) articulados pelas duas mãos em simul- taneidade e que tem em sua voz superior a melodia do “tema das Rosas”. Apesar dos acor- des serem tipicamente característicos do sistema tonal (coleções 3-7, 4-27, 5-27, 3-11 e
4-20), a sua sucessão não expressa nenhuma tonalidade específica caracterizando o uso do Transtonalismo (Exemplo 12). Ritmicamente teríamos as seguintes proporções rítmi- cas se considerarmos cada compasso a unidade: 3:4:1:2:1:2:1:6 (Exemplo 12). Trata-se de uma flexibilização do modelo rítmico do tema das Rosas, porém, ele ainda é claramente reconhecível.

Exemplo n.12: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, proporções e acordes Transtonais, 2º mov., c.41-50.

A Coda nos trás uma reminiscência da temática ecológica8, tão relevante na obra de Almeida Prado. Intitula-se Sabiá-Laranjeira. Após uma breve sucessão de quatro tri- cordes (todos com uma nota dobrada), sucessão esta que se repete nos últimos compassos (c.108-114), prevalece a presença de coleções altamente cromáticas (4-1 e 4-2) e uma mé- trica livre (inclusive com a recomendação de se repetir mais vezes o trecho (Exemplo 13). O registro utilizado é o agudo e os ornamentos são característicos da escrita “ornitológi- ca” de Almeida Prado.

Exemplo n.13: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, Sabiá-Laranjeira - Coda, 2º mov., c.105-107.

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9. 3º Movimento

O movimento final é uma série de 3 improvisações sobre o tema popular já de- monstrado na Exemplo 6. São denominadas Improvizações9 e não observam a interessante estrutura do tema original (4+3+4+4+4+4+4+4).
A improvização I é construída a partir de uma ideia diretamente derivada das notas do tema. As duas seguintes são construídas a partir de ostinatos que, igualmente, derivam do tema. Nestas duas últimas observamos a fragmentação (que é inclusive o procedimento mais característico deste movimento) do “tema das Rosas”, seja pela ampliação do seu in- tervalo inicial característico, seja pelo espaçamento métrico dado aos eventos, muito simi- lar ao que ocorreu no Trio do Scherzo (2º movimento). O exemplo seguinte (Exemplo 14) de- monstra as transformações que o compositor utiliza neste movimento para construção de cada improvisação.

Exemplo n.14: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, derivações do “Tema popular” gerando as improvisações do terceiro movimento.

Seguindo a lógica da fragmentação, o ostinato da terceira improvisação, após sobre- por-se ao motivo x do tema das Rosas (c.57-62) e a série harmônica do Fá, tem algumas de suas notas suprimidas, rarefazendo e diluindo a sua textura (Exemplo 15), permitindo uma progressiva desaceleração em direção ao “Fá Maior maravilhoso”, representado por quatro acordes do tricorde 3-11, agora claramente expressando o sentido tonal inerente a sua cole- ção (0,5,9), o acorde de Fá Maior (Exemplo 16).

Exemplo n.15: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, diluição do ostinato, 3º mov., c.62-65.

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Exemplo n.16: Sonata n. 10 para piano de Almeida Prado, série harmônica e acordes finais, 3º mov., c.68-73.

Após a breve análise dos três movimentos desta Sonata, podemos inferir dos fatos algumas conclusões, questão central do nosso trabalho.

10. Relações intertextuais

O poema de Rilke:

Não falemos de ti. És inefável

Segundo a tua natureza.

Outras flores ornamentam a mesa: Tu a transfiguras.

Num simples vaso és arranjo, E eis que tudo muda:

É talvez a mesma frase, Mas cantada por um anjo

Em virtude dos resultados obtidos na análise podemos interpretar o uso da tonali- dade, particularmente quando associada a dois temas de valor emocional para o compositor, como uma referência a nostalgia, da infância (tema popular) e dos pais (tema das Rosas). Seria então o ti, a tonalidade? Neste caso, seria ela (a tonalidade) quem transfigura, sendo os outros idiomas harmônicos empregados na obra (Transtonalidade, Pantonalidade) ornamentações. Assim a tonalidade é desafiada a se metamorfosear através do desafio de novas organizações do sistema sonoro, para se apresentar de uma outra forma, renovada tal qual Almeida Prado a utiliza nesta obra. O próprio depoimento do compositor, ao utilizar a palavra “maravilho- so” para designar a tonalidade nos induz a esta interpretação, corroborada pela reiteração de estruturas tonais e a final afirmação da tonalidade nos movimentos externos da obra.
Num simples vaso és arranjo (o tema), e eis que tudo muda (o princípio de variação, inerente nas improvisações). É talvez a mesma frase (mais uma vez o conceito de variação), mas cantada por um anjo. O anjo pode ser representado pela tríade de Fá maior, reiterada pelos compassos finais do 3º movimento. Se considerarmos uma relevante obra para pia- no anterior do compositor, o Rosário de Medjugorjie, vemos, de acordo com Corvisier, que Almeida Prado estabelece a tonalidade de Mib para o significado de luz e Fá maior para o de Sublime, angelical, permitindo uma perfeita analogia com a Sonata n. 10.

de fato, Almeida Prado também utiliza centros tonais específicos para destacar os temas principais e as passagens com especial significado religioso: a tonalidade de Mi maior simboliza a alegria; a tríade de Fá maior representa a Santíssima Trindade, Eternidade e Beatitude; a tonalidade de Mib maior simboliza a luz. (CORVISIER,

2000, p. 36, tradução nossa)

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Através da análise foi possível compreender a forte tendência ao diatonismo, pre- sente nos três movimentos, que quase exclusivamente diz respeito ao passo da tonalidade de Mib maior para Fá maior. Neste contexto, podemos interpretar este passo como uma re- presentação metafórica da Luz em direção ao Sublime (direta relação com a perda dos pais e o propósito inicial da composição da Sonata n. 10).
Em relação à Scriabin, de uma forma mais ampla, podemos perceber na utilização do acorde de Prometeu e na própria utilização indireta (através do conjunto complementar
7-5) do Acorde Araponga, uma clara citação. A análise deste caráter intertextual pode facil- mente estender-se para abarcar a própria ordem de apresentação dos acordes logo no gesto de abertura da Sonata n. 10: Acorde Araponga, Acorde Prometeu, Arquétipo de Berg, todos eles preparando a ideia central (tema das Rosas) cujo caráter é francamente tonal, corrobo- rando a tese de que a nostálgica Rosa está sendo metaforicamente representada pela tonali- dade. Além disso apontam para referências distintas que compõem o ambiente Intertextual desta obra, Scriabin como a revisão da Tonalidade, o misticismo inerente, Berg-Webern como o moderno (porém no caso ainda com uma influência tonal) e a autorreferencia no Acorde Araponga. O próprio segundo movimento não contém nenhuma passagem especi- ficamente tonal, contudo intermedia os dois movimentos externos, cujo tópico harmônico central é a tonalidade sob diversos aspectos. Podemos associar a passagem do poema “ou- tras flores ornamentam a mesa: tua a transfiguras”, sendo tu a tonalidade e as outras flo- res, a transtonalidade e outros sistemas representados pelos arquétipos de Berg, o Acorde Prometeu e o Acorde Araponga.
A respeito da relação com as Sonatas de Beethoven, destacamos duas característi- cas: a semelhança conceitual de macroforma entre a Sonata das Rosas e a Sonata n. 30 op.
109 de Beethoven e a utilização de “variações livres” para a construção do movimento final, com a utilização de progressiva fragmentação do tema sobre ostinatos. Na primeira, ambos os compositores estabelecem uma forma quase Sonata no primeiro movimento, sequencias agitadas que emolduram uma bela melodia, utilizam um rápido andamento no segundo, com caráter de Scherzo e finalmente concluem com variações. Na segunda característica podemos comparar a pulsação ternária e a fragmentação do tema popular a que Beethoven conduz na Sonata n. 32 op. 111 (Exemplo 17), também sobre um pedal em tremolo (ostina- to) na 4ª variação.

Exemplo n.17: Beethoven, Sonata n. 32 op. 111, fragmentação do tema, 2º mov., c. 1-8.

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Considerações finais

Ao inscrever uma incursão textual em uma obra, imediatamente somos compelidos a buscar quais as referências possíveis e como se processa a metaforização da incursão na obra. Evidentemente, a análise da obra é o primeiro passo para a compreensão, desde que seja capaz de estabelecer relações analógicas entre os procedimentos, processos e materiais empregados pelo compositor e a natureza do que se quer representar.
No caso específico em questão, pudemos apreciar a partir dos próprios depoi- mentos do compositor e de referências de outras obras diversos procedimentos que estão imbuídos de significados, cuja compreensão não necessariamente se dá em um primeiro momento.
A análise utilizada como ferramenta para elucidar os processos composicionais nos permitiu compreender a obra e viabilizou uma possível rota por onde a interpretação flo- resceu. Esta interpretação se deu pelas analogias estabelecidas como, por exemplo, entre a Rosa, tema central do poema de Rilke e a tonalidade, entre a escolha de um tema popular harmonizado de forma não convencional como afirma o próprio compositor e “Num sim- ples vaso és arranjo”, ou ainda, “é talvez a mesma frase” e o conceito seminal de variação e improvisação.
Evidentemente, não esgotamos as possibilidades de interpretação e analogias, po- rém indicamos uma dentre muitas possibilidade de compreensão da relação texto-música sustentada por uma análise objetiva da obra.

Notas

1 Para este trabalho utilizamos de Allen Forte a nomenclatura das alturas (FORTE, 1972, p. 2), dos conjuntos (FORTE, 1972, p. 12), conjuntos complementares (FORTE, 1972, p. 73) e os conceitos de superconjunto (superset) e subconjunto (subset) (FORTE, 1972, p. 24). Todos estes conceitos também podem ser encontrados em outros autores que dedicam-se ao estudo do repertório pós-tonal, com destaque para John Rahn (Basic Atonal Theory. New York: Longman, Inc, 1980), Joel Lester (Analytic Approaches to Twentieth-Century Music. NY: W. W. Norton,

1989), Joseph Straus (Introduction to post tonal theory. 3rd. ed. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 2005), Stefan

Kotska (Materials and Techniques of twentieth-century music. 4 ed. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 2012), e Paolo Susanni e Elliott Antokoletz (Music and Twentieth-Century Tonality: Harmonic Progression Based on Mo- dality and the Interval Cycles. NY: Routledge, 2012).

2 Vide Forte (1972, p. 1).

3 Grafia do próprio compositor.

4 Arnold Schoenberg define em Fundamentals of Music Composition (SCHOENBERG, 1967, p. 58) Sentença como uma estrutura composta de proposta, resposta, modelo e reprodução (sequência) e cadência.

5 Na partitura encontra-se escrito pelo autor “Este tema meu pai cantava para mim quando eu era criança, tema

ouvido por ele em Jahú” (ALMEIDA PRADO, 1996, p. 16).

6 Vide Forte (1972, p. 73).

7 De acordo com MENEZES (2002, p. 314) que aponta a existência de formações de acordes arquetípicas na música do século XX. Entre elas ele aponta os arquétipos de Anton Webern e o de Alban Berg. Sendo estes dois membros da Segunda Escola de Viena (Schoenberg, Webern e Berg), consideramos então o termo arquétipos da Segunda Escola de Viena.

8 Os termos ecológico e ornitológico referem-se aqui à eixos temáticos relevantes presentes na obra de Almeida

Prado, como por exemplo nas obras Savanas, Trio Marítimo e Episódio de Animais.

9 Trata essa denominação do conceito de improvisação, nada tendo a ver com a utilização da grafia com z por

Almeida Prado.

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Ernesto Hartmann - Bacharel em Piano pela UFRJ, Licenciado em Música pela UCAM/RJ, Mestre em Práticas In- terpretativas (Piano) pela UFRJ e Doutor em Música (Linguagem e Estruturação Musical) pela UNIRIO. Produziu trabalhos publicados como artigos em diversas revistas científicas abordando temas ligados a Análise, Teoria e Lin- guagem Musical. Foi professor colaborador da UFF-CEIM/RJ, Professor Substituto de Harmonia e Piano da UFRJ, Professor Substituto de Harmonia da UFMG, Coordenador dos Cursos de Bacharelado e Licenciatura em Música do Conservatório de Música de Niterói/RJ. Atualmente é Professor Adjunto II e Chefe do Departamento de Teoria da Arte e Música da UFES.


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