Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013

CACHOPO, J. P. O que Escutamos, o que nos Fala: cinco variantes em torno do gesto musical.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 155-161.

O que Escutamos, o que nos Fala: cinco variantes em torno do gesto musical

João Pedro Cachopo (Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal)

jpcachopo@gmail.com

Resumo: O gesto musical é um tema na ordem do dia, várias conferências e publicações tendo sido organizadas so- bre o assunto ao longo da última década. De facto, o tema presta-se a diferentes abordagens: permite uma pesquisa tanto sobre a realidade física do som quanto sobre a dimensão performativa das práticas musicais, e lança luz sobre a continuidade entre composição, interpretação e escuta. Mas verificar este interesse consensual é apenas um pon- to de partida, o objectivo sendo mostrar o carácter ilusório dessa homogeneidade, dado que nela se encontram duas tendências – relacionadas, primeiro, com as novas tecnologias e, segundo, com a interpretação musical – e surpreen- der as aspectos que têm em comum. Pode acontecer que este interesse multifacetado oculte uma certa banalização do que se entende por gesto. O objectivo deste ensaio é contrariar essa banalização por meio de cinco variantes – mais do que variações – sobre o tema “gesto” –, cuja articulação pode gerar algum efeito de dissenso.

Palavras-chave: Gesto (musical); Composição, interpretação e escuta musical; Prática musical e estética.

What we Hear, What Speaks to us: five variants on musical gesture

abstract: The musical gesture is a widely debated subject today. Over the last decade, several conferences and publi- cations have been organised on the issue. In fact, the subject lends itself to different approaches: it enables an inqui- ry both into the physical reality of sound and into the performative dimension of musical practices, and sheds light into the continuity between composition, interpretation and listening. Yet, noticing this consensual interest is just a point of departure. The aim is to prove such homogeneity to be apparent, for two tendencies are to be found in it – related, first, to new technologies and, second, to musical interpretation – and to grasp their shared views. It might turn out that this multifaceted interest conceals a certain trivialization of what one understands by gesture. It is the aim of this essay to counter such trivialization, by means of five variants – rather than variations – on the theme of “gesture”, which, in their articulation, might prompt some dissensus.

Keywords: (Musical) gesture; Musical composition, performance and listening; Musical practice and aesthetics.

O gesto musical parece ser um tema na ordem do dia. Desde há cerca de uma dé- cada que conferências sobre a dimensão gestual da música ou, mais genericamente, sobre a relação entre música e gesto se sucedem a um ritmo surpreendente, ao mesmo tempo que publicações sobre o mesmo tema – sobretudo de volumes colectivos publicados por editoras anglo-saxónicas, mas distribuídos por todo o mundo1 – se multiplicam. Este fenómeno diz respeito em primeira instância ao campo da musicologia, ainda que o efeito de contamina- ção recíproca entre este e o domínio da criação musical propriamente dita deva ser tomado em consideração, se queremos compreender a dinâmica deste interesse hoje preponderante. Assinalemos, porém, que se trata de um interesse que não é totalmente novo em si mesmo, novas sendo sobretudo certas inovações tecnológicas, entre as quais algumas capazes de converter “gestos” físicos em “gestos” sonoros (os movimentos de um corpo em movimentos sonoros, sem a mediação, bem entendido, da voz ou de um qualquer instrumento musical). É o que acontece graças a um dispositivo como o MO, um sensor cujas potencialidades (no domínio da investigação, da criação e da pedagogia) foram há não muito tempo discutidas em Oslo, entre 30 de Maio e 1 de Junho de 2011, numa das últimas edições da conferência consagrada aos “New Interfaces for Musical Expression”.
Contudo, vista a uma certa distância, e mesmo que se possa falar de um crescimen- to geral do interesse pela problemática do gesto musical, a dinâmica deste processo está longe de ser homogénea. Além disso, parece-me que essa heterogeneidade não diz tanto res- peito às múltiplas perspectivas temáticas que podem fornecer o pano de fundo para uma reflexão sobre o gesto e a música, mas, de modo mais essencial, à própria dinâmica desse
processo que, diria eu, se desdobra em duas vertentes e, por assim dizer, a duas velocidades.

Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013 Recebido em: 29/01/2013 - Aprovado em: 16/04/2013

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Com efeito – sendo esta a hipótese de que parto –, creio ser notória uma tensão en- tre dois tipos de abordagem: por um lado, a meio caminho entre os campos da musicologia e da criação musical, encontramos pesquisas sobre as novas tecnologias – nomeadamente sobre as novas possibilidades ligadas à tecnologia digital –, que, relacionando os gestos da execução instrumental, da escuta musical e da dança, conduzem a uma problematização das fronteiras existentes entre as diferentes artes e os seus media; por outro lado, deparamo-
-nos também com abordagens aparentemente mais clássicas sobre o gesto musical, centra- das na dimensão performativa da música ou na dialéctica entre partitura e interpretação. Por um lado – em síntese –, uma visão do gesto musical aberta ao “fora” da música, prenhe de entusiasmo tanto pelas inovações tecnológicas quanto pelo estilhaçamento das barreiras tradicionais que separam conceitos e práticas contrastantes; por outro, uma visão sobretu- do centrada no “dentro” da música, mais reticente quanto a adoptar uma visão caleidoscó- pica do gesto musical.
A interpretação mais imediata deste contraste – a saber, aquela que reconhece nele, para abreviar, a oposição entre o entusiasmo pós-moderno pelo desmantelamento das cate- gorias artísticas tradicionais e o cepticismo, digamos, moderno (ou modernista) em relação a um ecletismo tornado subitamente norma – é porventura precipitado. E tal por uma razão muito simples: a multiplicidade de perspectivas abertas acerca do gesto musical associadas à primeira postura não traduz necessariamente uma concepção mais ambiciosa ou estimulan- te do gesto em música, sem que, em contrapartida, a segunda postura difira da primeira sob esse ponto de vista. Em suma, nada impede que este interesse crescente a respeito da relação entre gesto e música ande a par com uma certa banalização do que se entende por gesto.
Para tornar claro o propósito que anima este pequeno ensaio, apresso-me a subli- nhar que esta hipótese não pode – e, sobretudo, não tem a pretensão de – cobrir exausti- vamente o campo de investigação sobre o gesto musical e temas adjacentes. Limito-me, portanto, a reconhecer duas vertentes distintas de uma mesma tendência e a tomar a possi- bilidade de um desvio a ambas como ponto de partida para tecer algumas considerações um tanto ou quanto polémicas sobre o gesto musical – polémicas apenas no sentido em que com elas se procura desfazer um certo consenso menos visível sobre o tema. Tais observações – que assumem o carácter de cinco variantes2 (estética, ontológica, fenomenológica, política e inter-artística) sobre o mesmo tema – não têm, consideradas isoladamente, qualquer preten- são de serem totalmente originais, ainda que a sua articulação possa surtir alguns efeitos de desentendimento inéditos.

1. Variante estética

Começo por uma nota estética, tomando aqui o termo “estética” numa acepção lata, tradicionalmente associada com a filosofia de Kant. Com efeito, se perguntarmos “o que é um gesto musical?”, somos levados a admitir, antes mesmo de darmos uma resposta total- mente articulada, que a noção de “gesto” implica a de movimento e que nenhum movimen- to, por sua vez, é concebível abstraindo do tempo e do espaço. Dito de outro modo, se é ver- dade que nem todos os movimentos do corpo humano constituem gestos (pensemos, por exemplo, em gestos reflexos ou nos que resultam do exercício de uma qualquer força sobre o corpo), também é justo dizer que todo o gesto implica efectivamente um movimento e que, por conseguinte, a sua realidade é antes de mais espácio-temporal.
Refiro-me, pois, ao gesto humano em geral, quer dizer, a um movimento expressivo
– voluntário ou involuntário – do corpo humano; um movimento que não pode ser conside-

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rado um gesto senão na medida em que o seu sentido pode ser interpretado (mesmo que um tal sentido se revele ambíguo, enigmático, ou mesmo indecifrável). O gesto é um fragmen- to vivido de humanidade de que se pode arriscar uma interpretação: um movimento do ser humano mais a possibilidade intrínseca da sua interpretação. Assim sendo, se a dimensão espácio-temporal do gesto é inegável, a sua caracterização exclusivamente estética perma- nece insuficiente (de resto, pode-se apenas imaginar o gesto musical – ouvi-lo interiormen- te). Importa questioná-lo também ontologicamente.

2. Variante ontológica

Por outras palavras, é preciso enfrentar o excesso de sentido que caracteriza o ges- to em geral e, a fortiori, o gesto musical. Um gesto, em música, não seria portanto senão um movimento sonoro que significa musicalmente, sendo evidente que este “musicalmente” permanece irredutível a uma caracterização puramente acústica do som musical. Todavia, não decorre do facto de que o gesto significa que ele constitua um signo (ou seja, uma re- lação constante entre um significante e um significado)3. Atender a este facto é eminente- mente importante quando se trata de música, cujo sentido – que aqui associaríamos à sua dimensão gestual –, permanece irredutível à ideia de representação. Digamos, assim sendo
– para dar dois exemplos mais ou menos anedóticos, mas em todo o caso exemplares – que a noção de gesto musical não encontra uma manifestação paradigmática nem na chicotada no dorso do cavalo ao qual Mazeppa se encontra amarrado (no poema sinfónico homónimo composto por Liszt), nem nas pancadas do destino à porta do quarto de Beethoven (nos pri- meiríssimos compassos da Quinta Sinfonia do compositor)4. Em suma, o gesto musical não é a tradução de um qualquer outro gesto. O gesto musical significa, é verdade, mas signifi- ca musicalmente.
Que a música encerre um excesso de sentido para lá da sua natureza espácio-tem- poral, que por esse motivo se possa até falar de uma linguagem musical, que a música seja “falante”, nada disto autoriza a que se confunda a gestualidade da música com a comunica- ção de uma mensagem precisa. Para AGAMBEN (2002, p. 70), todo o gesto comunica uma comunicabilidade, quer dizer, o “ser na linguagem” do humano. Mais do que dizer (algu- ma coisa) – considerando, de passagem, a distinção wittgensteiniana entre dizer e mostrar
–, o gesto musical mostra-se; ele nada diz, mas é como se falasse. De facto, seria pelo modo como se mostra, pela sua expressão, que se poderia escalpelar a dimensão política do gesto musical (e a política da música em geral). Voltarei a este ponto. Para já, importa interrogar o como desse “mostrar-se” – o que nos conduz a considerações de carácter fenomenológico (tomando o termo na sua acepção mais genérica, de nenhum modo vinculada à tradição de pensamento filosófico que identifica).

3. Variante fenomenológica

Como se mostra o gesto musical? É impossível responder a esta questão sem abor- dar o problema da mediação musical, ou seja, sem reflectir sobre o facto de que a música, ao contrário das artes visuais, “não deixa um único traço na pedra ou numa tela”, nas palavras de Antoine Hennion (2002), o que significa que é necessário “abordá-la através de media- ções: partituras, instrumentos, intérpretes, um palco, um público”. Todas estas mediações condicionam a comunicação musical e permitem levantar uma questão aparentemente in-

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génua, a saber: define-se o gesto (musical) pelo facto de ele ser ouvido – independentemente de saber se ele foi produzido por um instrumento ou pela voz humana, ou se foi gerado por um sintetizador de sons electrónicos – ou, ao invés, é-lhe inerente a possibilidade de ser vis- to no momento em que é produzido? Noutros termos: é o gesto musical consubstancial ao gesto do intérprete? Em The Sight of Sound, Richard Leppert (1993) indicou adequadamente a via aberta pela segunda perspectiva:

Dado, precisamente, que o som é abstracto, intangível e etéreo – perdido logo após ganho – a experiência visual da sua produção é crucial em igual medida para os mú- sicos e a audiência, pois localiza e comunica o lugar da música e do som musical no interior da sociedade e da cultura. [...] A música, não obstante o seu carácter sonoro fenomenologicamente etéreo, é uma prática que envolve o corpo, como a dança e o teatro. (p. xx-xxi)

Notemos, de passagem, que o trabalho de Leppert não se centra especificamente na questão do gesto musical, e que portanto o âmbito da sua investigação transcende a ques- tão que nos ocupa neste ensaio. Dito isto, não deixa de ser possível verificar que uma tal tensão entre, por um lado, uma concepção estritamente sonora da música e, por outro lado, uma simultaneamente sonora e visual nos reconduz à oposição de que partimos: entre uma visão do gesto musical estreitamente articulada com as novas tecnologias e uma outra ba- seada na ideia de que, antes de mais, a dimensão performativa do fenómeno musical con- voca, e exige, uma concepção do gesto musical, cuja audibilidade se revela indissociável da visibilidade.
Pode-se formular esta tensão de outro modo – de um modo, talvez, mais persuasivo
– à luz da noção de aura, associando esta à experiência de assistir – logo, não apenas de ou- vir, mas também de ver – uma interpretação musical. Assim, se, por um lado, para aqueles que acreditam que o gesto musical de define exclusivamente pela escuta, a dimensão aurá- tica da interpretação musical é secundária, ou mesmo indiferente, por outro, para aqueles que põem a tónica na visualidade da produção do som, a aura ligada à presença física do in- térprete – ou seja, aos seus gestos, ao seu modo singular, visualmente perceptível, de tocar ou cantar – é uma condição fundamental da comunicação musical.
Apesar da sua oposição, estas duas perspectivas sobre o gesto musical – uma “pós-
-aurática”, a outra, “aurática” – convergem ao veicular uma acepção do gesto musical co-ex- tensiva ao fenómeno musical em si mesmo, como se para restituir o sentido do gesto musi- cal não fosse senão necessário relacioná-lo com a sua audibilidade no tempo associada (ou não) com sua visibilidade no espaço. Decerto, importa não fazer abstracção do tempo e do espaço; contudo, ater-nos-íamos a uma definição tautológica do gesto musical se nos limi- tássemos a relacionar o sentido musical com o sentido da audição, eventualmente secunda- do pelo sentido da vista. Em suma, a dimensão espácio-temporal das práticas musicais – condição física da audibilidade, bem como da visibilidade, da música – seria uma condição necessária, ainda que insuficiente, para pensar o gesto musical.

4. Variante política

Tornemos explícita a hipótese que nos pode conduzir à política do gesto musical: tal como nem todos os movimentos do ser humano deverão ser considerados gestos, tam- bém nem todo o movimento sonoro será eo ipso um gesto musical. O gesto musical seria um excesso, uma excepção, um desvio em relação ao fluxo contínuo da música.

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É ao tomar o pulso à excepcionalidade e à imprevisibilidade significantes de certos movimentos sonoros que se nos impõe a ideia de que o gesto musical se cristaliza em certos momentos que escapam ao curso previsível da música. Eles constituiriam, se assim se pode dizer, “momentos pregnantes” – uma expressão de Lessing que Barthes, no seu célebre en- saio intitulado “Diderot, Brecht, Eisenstein”, associa – com grande interesse no contexto da presente investigação – à noção brechtiana de “gesto social”: “em Brecht, é o gestus social que retoma a ideia do instante pregnante” (1982, p. 89), dado que um gesto social, segundo Brecht, é justamente “um gesto, ou um conjunto de gestos (mas nunca mera gesticulação), onde se pode ler toda uma situação social” (1982, p. 89-90).
Ora, decisivo para nós neste contexto é que para Barthes, justamente, “o sentido co- meça no gestus social (no instante pregnante); fora do gestus, não há senão o vago, o insig- nificante” (1982, p. 91). Todavia, sabendo que este texto de Barthes diz sobretudo respeito à pintura, à literatura, ao teatro e ao cinema, o que dizer então relativamente à música? Qual seria a pertinência de tais comentários sobre o “instante pregnante” e o “gestus social” quan- do pensados em relação com a música? Talvez um exemplo do próprio Brecht, ainda que lin- guístico – gramatical – possa constituir uma boa pista. Eis como o comenta Barthes (1982):

Até onde é lícito ir à procura de gestus sociais? Até bem longe: na própria língua: uma língua pode ser gestual, diz Brecht, quando indica certas atitudes que o homem falante adopta diante de outros; se o teu olho te faz sofrer, arranca-o é mais gestual do que Arranca o olho que te faz sofrer, pois a ordem da frase e o assíndeto que dela se apodera remetem para uma situação profética e vingativa. (p. 90)

Em suma, é o tom que muda, por mais que a mensagem (a significação da frase) seja a mesma. O gesto de uma tal profecia articula mais violentamente, na sua primeira ver- são, causa e efeito: Se o teu olho te faz sofrer, arranca-o! Uma ruptura violenta toma o lugar da continuidade anódina da frase: Arranca o olho que te faz sofrer. Ora, esta mudança de tom, na emergência de um gesto brusco, traduz uma outra relação entre causa e efeito, en- tre o que antecede e o que sucede a algo – uma que pode ser lida politicamente5. Este tipo de contraste diz respeito, sob todos os aspectos, à música – arte temporal por excelência – cujos gestos traduziriam instantes pregnantes, nos quais o novo, o inesperado, o perturba- dor (imanentes ao modo como a música se constitui no tempo) se tornam audíveis – solici- tando uma leitura, por mais precária que ela não possa deixar de ser.
Uma política da música – da qual o gesto poderia constituir uma primeira unida- de construtiva e expressiva – seria a um só tempo simbólica e fisiológica, na medida em que com ela se supõe a possibilidade quer de arriscar um leitura política da construção musical, quer de pesar os efeitos políticos da sua expressão.

5. Variante inter-artística

Com a expressão que dá o título a este ensaio – o que escutamos, o que nos fala –, transpõe-se analogicamente o título de um livro de Georges Didi-Huberman (Ce que nous voyons, ce qui nous regarde) para o campo da música. Uma tal analogia não é arbitrária. Ela sugere uma afinidade de fundo entre as artes – no caso, entre as artes visuais e a música – uma afinidade que teria eminentemente que ver com a questão do gesto. É em torno de uma tal sugestão que gostaria de terminar.
Na obra de Didi-Huberman que acabo de mencionar, trata-se de chamar a atenção para o valor de interpelação da imagem: não seria possível reduzir a imagem a uma superfí-

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cie plana, muda, que caberia tão-só observar. Ver uma imagem – sobretudo quando de trata de arte, nomeadamente de arte contemporânea – envolve mais do um olhar unidireccional. É como se a imagem, quando a contemplamos, nos olhasse também. Daí a dialéctica entre o que nós vemos e o que nos olha: a imagem devolve-nos o olhar. Não se vê, portanto, uma imagem senão dando-se conta do seu olhar; ver uma imagem é pois ter a experiência de um tal olhar (independentemente de este se revelar mais ou menos inquietante ou apaziguador). Toda a obra de arte, escreveu Adorno na sua Ästhetische Theorie, reenvia o olhar – o seu ges- to mais íntimo é o do seu olhar interrogador, a aparência inquietante de um enigma. Não se defronta esse poder de interpelação sem riscos: é o perigo da contemplação visual, mas também – é o que importa acrescentar – da escuta (pensemos em Teseu diante de Medusa, mas também em Ulisses navegando ao largo das sereias).
A dialéctica entre o “ver” e o “ser interpelado pelo que se vê” assemelhar-se-ia à que
se nos apresenta entre “escutar” e “ser interpelado pelo que se escuta”, o que quer dizer tam- bém que a diferença entre “olhar” e “ver” seria análoga à diferença entre “ouvir” e “escutar”. Por outras palavras, escutar música não se resume a ouvir sons musicais, ou – nos termos de um dito anedótico atribuído ao maestro Thomas Beecham, que terá afirmado, a propósi- to dos seus conterrâneos ingleses, que estes não gostavam de música, embora apreciassem o barulho que ela faz – “ouvir/escutar música” não é o mesmo que “ouvir o barulho que ela faz”. Ouvir/escutar música implica aperceber-se de que a música nos interpela, que ela nos visa. Poder-se-ia mesmo arriscar uma definição minimal – e totalmente hipotética – da es- cuta musical, afirmando que a escuta musical corresponde à audição dos gestos da música. A música, nesse sentido, fala-nos de nós – ainda que, obviamente, ela nada nos diga de es- tritamente verbalizável. Ela interpela-nos; e nós interpelamo-nos, escutando-a.
Para que a dimensão política de tudo isto se torne clara importa notar que os ges- tos musicais, ainda que não digam nada de preciso – nada susceptível de ser verbalizado de modo unívoco –, não cessam de nos falar, de significar, e de se – e nos – mostrar. É o espec- tro indeterminável daquilo de que fala a música que cabe salvaguardar ao reflectir, o menos estritamente possível, sobre o gesto musical, um gesto cuja política se deve antes de mais a que ele é também o gesto em suspenso de uma multidão à espera, aquela de que nos fala Adorno, ao comentar que “três ligeiras batidas de um único instrumento [tarola] despertam o sentimento de uma multidão a marchar ao longe”, e isto para concluir que “[a]ssim se re- corda que toda a música, mesmo a mais solitária, vale para muitos, cujo gesto é conservado pelo seu som” (1998, p. 280-281).

Notas

1 Cf., por exemplo, GODOY, Rolf Inge e Marc LEMAN (Eds.), Musical Gestures: Sound, Movement, and Meaning.

New York: Routledge, 2010; GRITTEN, Anthony e Elaine KING (Eds.), Music and Gesture. Hampshire, Ashgate,

2006; ou ainda HATTEN, Robert S., Interpreting Musical Gestures, Topics, And Tropes: Mozart, Beethoven, Schu- bert. Bloomington and Indianopolis: Indiana University Press, 2004.

2 “Variantes” e não “variações” (distinção estabelecida por Adorno a propósito de Mahler) pois enquanto as varia-

ções variam o tema em que se baseiam (A, A’, A’’...), as variantes constituem em si mesmas o tema – o qual, esse sim, varia através delas (Aa, Ab, Ac...); a variante, ao contrário da variação, não pressupõe uma versão “original” do tema. O que assim se sugere, designando por variantes os apontamentos que se seguem, é justamente que nenhum deles encerra uma visão sobre o gesto à qual coubesse reconhecer primazia.

3 BARTHES, Roland, “Droit dans les yeux”. L’obvie et l’obtus (Essais critiques III). Paris: Seuil, 1982, p. 279-283.

4 Deste ponto de vista, a ontologia do gesto musical escapa aos debates intermináveis em torno da oposição entre

“música de programa” e “música absoluta”.

5 Cf. também BRECHT, Bertolt, Estudos sobre o teatro. Para uma arte dramática não-aristotélica. Lisboa: Portugá- lia Editora, s/d, p. 309.

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Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. Quasi una fantasia (Gesammelte Schriften 16). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998.

AGAMBEN, Giorgio. “Notes sur le geste” (1992). Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: Rivages, 2002.

BARTHES, Roland. L’obvie et l’obtus (Essais critiques III). Paris: Seuil, 1982.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre o teatro. Para uma arte dramática não-aristotélica. Lisboa: Portugália Editora, s/d.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Ce que nous voyons, ce qui nous regarde. Paris: Minuit, 1992. GODOY, Rolf Inge e Marc LEMAN (Eds.). Musical Gestures: Sound, Movement, and Meaning.

New York: Routledge, 2010.

GRITTEN, Anthony e Elaine KING (Eds.). Music and Gesture. Hampshire: Ashgate, 2006. HATTEN, Robert S. Interpreting Musical Gestures, Topics, And Tropes: Mozart, Beethoven,

Schubert. Bloomington e Indianopolis: Indiana University Press, 2004.

HENNION, Antoine. La musique, entre le geste et la chose. In Sciences Humaines, Hors-série, nº 37 (Art), Juin/Juillet/Aout 2002. Disponível em http://www.scienceshumaines.com/la-musi- que-entre-le-geste-et-la-chose_fr_12593.html. Acesso em 17 de Janeiro de 2013.

LEPPERT, Richard. The Sight of Sound. Music, Representation, and the History of the Body. Berkeley / Los Angeles / London: University of California Press, 1993.

João Pedro Cachopo - Estudou musicologia e filosofia em Lisboa, Paris e Berlim, tendo-se doutorado pela Univer- sidade Nova de Lisboa com uma dissertação sobre o pensamento estético de Adorno, entretanto publicado com o título Verdade e Enigma: Ensaio sobre o pensamento estético de Adorno (Lisboa, Vendaval, 2013). É membro do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, onde desenvolve um projecto de pós-doutoramento sobre os aspectos estéticos e políticos da relação da ópera com outras artes.


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