Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013

CRANMER, D. Marcos Portugal: mestre de música de suas altezas reais.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 19-33.

Marcos Portugal: mestre de música de suas altezas reais

David Cranmer (FCSH/Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal)

cranmer@netcabo.pt

Resumo: Em 1807 Marcos Portugal foi nomeado Mestre de Música de Suas Altezas Reais, tendo sido este o seu car- go principal nos anos passados no Rio de Janeiro, de 1811 a 1830. Foi conservado um corpo substancial de material pedagógico produzido pelo compositor: solfejos, trechos de ópera (em redução para canto e fortepiano), canzonette e ariette (com textos de Metastasio), e peças para fortepiano solo: duas aberturas e dez “motivos”. Este texto procura expor a natureza deste repertório, avaliar a sua importância e chegar a algumas conclusões acerca das exigênciasdo Mestre no que respeita aos alunos reais.

Palavras-chave: Marcos Portugal; Mestre de música de suas altezas reais; Solfejos de Marcos Portugal; Trechos de

ópera de Marcos Portugal; Motivos na música de Marcos Portugal; Pedagogia musical.

Marcos Portugal: master of music to their royal highnesses

abstract: In 1807 Marcos Portugal was appointed Master of Music to Their Royal Highnesses, and this was his prin- cipal position during the years spent in Rio de Janeiro, from 1811 to 1830. A substantial body of pedagogic material produced by the composer has survived: solfeggi, opera excerpts (reduced for voice and fortepiano accompaniment), canzonetteand ariette (with texts by Metastasio), and pieces for solo pianoforte: two overtures and ten “motives”. This text attempts to describe the nature of this repertoire, to assess its importance and to reach certain conclusions concerning the demands that the Master made of his royal pupils.

Keywords: Marcos Portugal; Master of music to their royal highnesses; Solfeggi by Marcos Portugal; Opera excerpts

by Marcos Portugal; Motives in music by Marcos Portugal; Musical pedagogy.

Apesar de constituir uma figura emblemática na história da música luso-brasileira, Marcos António1 da Fonseca Portugal (1762-1830) continua a ser pouco valorizado fora dos meios especializados, em ambos os lados do Oceano Atlântico, sujeito a mitos de várias or- dens e, sobretudo, a um desconhecimento geral da sua música, assim comode aspetos fun- damentais da sua vida e carreira. Os textos clássicos sobre ele – sobretudo os verbetes nos dicionários de JOAQUIM DE VASCONCELLOS (1870) e ERNESTO VIEIRA (1800), as mo- nografias de MANOEL CARVALHAES (1910/1916) e de JEAN-PAUL SARRAUTTE (1979), para além de uma obra tão recente como Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo (DAVID CRANMER (ed.), 2010) – focam sobretudo a sua produção como compositor de óperas (em especial) e de música sacra. Raramente referida, ou apenas de passagem, é outra faceta cen- tral à sua atividade profissional: a pedagogia e a produção a ela associada.
No entanto, Marcos Portugal a 17 de setembro de 1800, poucas semanas após o seu regresso definitivo de Itália, onde, entre 1792 e 1800, o seu sucesso extraordinário como compositor de ópera italiana lhe granjeou fama internacional2, foi nomeado Mestre de Solfa do Real Seminário Patriarcal, em Lisboa (MARQUES, 2012b, p. 71), a única ins- tituição de instrução musical na capital portuguesa de então, e onde ele próprio recebe- ra a sua formação. Desde esta data até à sua partida rumo ao Brasil, em março de 1811, terá dado aulas a uma sucessão de alunos, ganhando assim uma experiência pedagógica significativa.
A 18 de janeiro de 1807, o compositor foi condecorado pelo Príncipe Regente, D. João, com o título de “Mestre, e Compozitor da Sua Real Camara, permitindo-lhe uzar da Farda que compete aos Mestres de Suas Altezas Reaes”3. No cargo de Compositor da Real Câmara e Mestre de Suas Altezas Reais (abreviadas habitualmente como SS.AA.
RR.), teve uma série de ilustres antecessores: Domenico Scarlatti (1685-1757), David Perez

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(1711-1778) e João de Sousa Carvalho (1745-1798). É de sublinhar igualmente que, tal como estes, Marcos Portugal, nunca foi nomeado Mestre da Capela Real, nem em Portugal, nem no Brasil, sendo o seu envolvimento nesta instituição sempre pontual e sobretudo como compositor. O motivo pela sua nomeação nesta conjuntura não está claro, pois ain- da vivia Giuseppe Totti ( fl. 1779-1832/33), que já ocupava o cargode Mestre de SS. AA. RR.. Contudo, mesmo queMarcos Portugal tenha começado, de facto,a exercer funções em 1807, terá sido por poucos meses, dada a partida da Família Real para o Brasil a 29 de novembro, como resultado da I Invasão Francesa a Portugal e da transferência da capital portuguesa para o Rio de Janeiro.
O compositor não viajou com a Família Real, mas foi chamado pelo Príncipe Regente numa fase posterior, um de uma lista de “criados” por este convocados, datada de 3 de agosto de 1810. Esta missiva foi seguida por uma carta individual mais insistente datada de 7 de janeiro de 20114. Marcos Portugal viajou com a sua mulher, Maria Joana, e mais quatro pessoas, na Fragata Princesa Carlota, partindo de Lisboa a 16 ou 17 de mar- ço e chegando ao Rio de Janeiro a 11 de junho (MARQUES,2012b, p. 94). No dia 23 deste mesmo mês foi confirmado na sua posição de Mestre de Música de Suas Altezas Reais5, sendo este o cargo principal que o compositor ocupou ao longo dos quase 20 anos passa- dos no Brasil6.
É concebível, como conjeturado por ANTÓNIO JORGE MARQUES (2012b, p. 106), que Marcos Portugal tenha elaborado o seu Breve, e facil rezumo / Dos principios da Muzica.

// Solfejos. / Que para uso de SS. A A. RR. / Compôz. / Marcos Antonio Portugal / No anno de

1811, durante os quase três meses da travessia do Atlântico. Caso não, terá sido nas primei- ras semanas após a sua chegada ao Brasil. Neste manual, conservado unicamente numa có- pia em manuscrito que pertencia originalmente à Casa Real7, pode ser observado o fruto da sua experiência como professor do Real Seminário Patriarcal.
Após uma secção introdutória em que o autor expõe os princípios mais básicos da música, continua apresentando um método de canto (“solfejos”), com acompanhamen- to, na tradição napolitana de Leonardo Leo (1694-1744) e David Perez, entre outros, e dos portugueses que seguiram esta mesma tradição: Francisco Inácio Solano (1720-1800), João Pedro de Almeida Mota (1744-1817) e José António da Silva Policarpo (1745?-1803) (Trilha
2012, p. 423). Dos seus 40 exercícios, os 27 primeiros são mais simples, todos em dó maior: “Os primeiros solfejos abordam questões elementares da teoria musical, como os valores das notas e fórmulas de compasso,algunssão mais exemplos da escrita musical, que exer- cícios de canto ou acompanhamento” (idem, p. 425). Os restantes, em oito tonalidades di- ferentes, são mais variados e complexos, quer melódica quer ritmicamente, incluindo cro- matismos e ornamentos vocais. Os acompanhamentos são igualmente variados, não só no seu grau de dificuldade, mas também relativamente à questão de se são baixos cifrados (a realizarem-se pelo executante) ou obbligati (inteiramente escritos), ou parcialmente um e parcialmente outro.
A dedicatória genérica “para uso de SS. AA. RR.” não nos permite saber exatamente quais de Suas Altezas Reais terão usado este manual, mas seria razoável supor que passou pelas mãos dos quatro Infantes aos quais o compositor dedicou outras obras para se execu- tarem: (por ordem de nascimento) a infanta D. Maria Isabel (futura rainha de Espanha), o príncipe real D. Pedro de Alcântara (futuro Imperador do Brasil e subsequentemente rei de Portugal), a infanta D. Maria Francisca de Assis (futura esposa do infante espanhol, Carlos de Bourbon) e a infanta D. Isabel Maria (futura regente de Portugal). Em junho de 1811, ti- nham respetivamente 14, 13, 11 e 10 anos de idade. De um modo semelhante, só podemos conjeturar se esta obra foi usada apenas para aulas de canto, ou igualmente para aulas de

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acompanhamento ao fortepiano (o instrumento que possuíam para as aulas), ou se as aulas de canto foram acompanhadas pelo Mestre, um dos alunos reais ou até do próprio cantor – uma questão a que voltaremos adiante.
Não querendo diminuir a importância destemétodo assumidamente didático, o corpo principal de obras musicais destinadas às aulas de SS. AA. RR. é constituído es- sencialmente por peças que Marcos Portugal compôs ou arranjou para execução pelo Príncipe epelas Infantas: 47 trechos (solos, duetos e dois tercetos) e duas aberturas das suas óperas, reduzidos, conforme o caso, para canto e fortepiano ou fortepiano solo, oito canzonette ou ariette compostas para canto e fortepiano, e dez “motivos”, breves peças para fortepiano solo.
Antes de caraterizar mais exatamente estes repertórios, seria importante focar um pouco a localização atual das fontes (na sua esmagadora maioria, manuscritos au- tógrafos), assim como a maneira como nos chegaram. Estes manuscritos encontram-se no Museu Imperial, em Petrópolis, na Biblioteca do Palácio Real, em Madrid, e sobretu- do em dois fundos da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP): no Fundo do Conservatório Nacionale no Fundo Conde de Redondo. À exceção do álbum em Madrid, que terá sido levado diretamente pela infanta D. Maria Isabel, quando se casou, todos estes manuscri- tos terão sido recolhidos pela infanta mais nova, D. Isabel Maria8, levadas por esta para Lisboa quando a Família Real regressou a Portugal, em 1821, permanecendo na sua pos- se até o falecimento, em 1876. Foram vendidos num leilão que se realizou a 10 de março do ano seguinte, quando foram adquiridos pelo 16.º conde de Redondo, Fernando Luiz de Souza Coutinho Menezes (1835-1928). Este, por sua vez, terá oferecido os três conjuntos de manuscritos que estavam encadernados em álbuns: um que, ao que parece, havia per- tencido a D. Maria Isabel, atualmente em Petrópolis (BR-PETm 780.262P852c R)9, e dois que tinham pertencido respetivamentea D. Maria Francisca de Assis (P-Ln C.N.198) e a D. Isabel Maria (P-Ln C.N. 271), oferecidos ao Conservatório Nacional de Lisboa, hoje em dia depositados na BNP.
Os restantes – manuscritos avulsos (incluindo as aberturas, os motivos e um con- junto de três canzonette dedicadas à infanta D. Isabel Maria) – foram retidos na biblioteca particular do Conde de Redondo, adquirida pelo Instituto Português do Património Cultural, em inícios da década de 1980, tendo sido entretanto depositadosigualmente na BNP (Fundo Conde de Redondo, entre os manuscritos de Marcos Portugal no maço F.C.R.168). Vale a pena referir ainda o facto de vários destes manuscritos separados (sempre de duetos e terce- tos) terem sido recolhidos originalmente num outro álbum, pertencente a D. Maria Isabel, mas cuja encadernação entretanto se desfeze desapareceu (deixando solta cada peça que continha). Duas destas peças (P-Ln F. C. R. 168//67 e 77) possuem adicionalmente uma folha de guarda colada, com a marca de água inglesa “MOLINEUX JOHNSTON / & A LEE / 1803”, igual à do álbum de Petrópolis, enquanto outras têm vestígios de cola na lombada, traindo o facto de terem sido previamente encadernadas10. Este álbum terá feito par originalmente com a fonte brasileira11.
Por último, em relação às fontes, deve-se destacar a encadernação luxuosa dos álbuns de D. Maria Isabel, em Madrid, e de D. Isabel Maria, no Fundo Conservatório Nacional da BNP, em pele encarnada com decoração dourada, e com as iniciais dos res- petivos donos: J. D. M. J. (Infanta Dona Maria Isabel) ou J. D. J. M. (Infanta Dona Isabel Maria) – no primeiro caso, adicionalmente com o brasão da coroa portuguesa. São clara- mente volumes de apresentação, contendo manuscritos que são em todos os casos cópias limpas, encadernados em conformidade com os padrões habituais dos livros pertencentes à Biblioteca Real.

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Figura n.1: Encadernação luxuosa do álbum da Infanta Dona Isabel Maria (J. D. J. M.) na Biblioteca Nacional de Portugal

(C.N. 271).

Em termos dos repertórios representados, no que diz respeito ao corpo maior – os excertos de ópera italiana – verifica-se que provêm de grande parte da carreira do com- positor, desde Zulima e La donna di genio volubile (óperas estreadas respetivamente em Florença e Veneza, em 1796) até à segunda versão de Demofoonte e Adriano in Siria (estrea- das respetivamente em Lisboa, em 1808, e em Pádua, em 1809, esta última na ausência do compositor (CRANMER, 2012, p. 283-285)). Visto que todos estes arranjos terão sido feitos no Rio de Janeiro, a partir de 1811, não deve surpreender, por um lado, uma preferência para as óperas compostas em Lisboa (cerca de dois terços do total), por serem mais recen- tes e, portanto, “atualizadas” em termos estilísticos. A distribuição por ópera encontra-se a seguir, na Tabela 1.

Tabela n.1: Distribuição por ópera dos trechos arranjados para Suas Altezas Reais.

Opera

Ano, cidade e teatro

Número de trechos

Zulima

1796 Florença, Teatro Pallacorda

1

La donna di genio volubile

1796 Veneza, Teatro S. Moisè

3

L’amore industrioso

[ca. 1797]?

1

Il ritorno di Serse

1797 Florença, Teatro Pallacorda

3

Le donne cambiate

1797 Veneza, Teatro S. Moisè

2

La maschera fortunata

1798 Veneza, Teatro S. Moisè

1

Alceste

1798 Veneza, Teatro La Fenice

3

Gli Orazi e i Curiazi

1798 Ferrara, Teatro Nuovo

1

La madre virtuosa

1798 Veneza, Teatro S. Moisè

1

La morte di Semiramide

1801 Lisboa, Teatro S. Carlos

1

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Opera

Ano, cidade e teatro

Número de trechos

Zaira

1802 Lisboa, Teatro S. Carlos

2

Il trionfo di Clelia

1802 Lisboa, Teatro S. Carlos

4

Merope

1804 Lisboa, Teatro S. Carlos

1

L’oro non compra amore

1804 Lisboa, Teatro S. Carlos

8

Fernando nel Messico

1805 Lisboa, Teatro S. Carlos

1

Ginevra di Scozia

1805 Lisboa, Teatro S. Carlos

4

La morte di Mitridate

1806 Lisboa, Teatro S. Carlos

3

Artaserse

1806 Lisboa, Teatro S. Carlos

5

Demofoonte

1808 Lisboa, Teatro S. Carlos

2

Adriano in Siria

1809 Pádua, Teatro Nuovo

1

Há vários aspetos a salientar em relação à seleção dos excertos, em especial, a esco- lha destes e não outros, a distribuição das dedicatórias entre SS. AA. RR. e o que se pode de- duzir acerca das suas vozes, e, por último, a natureza das adaptações efetuadas nos arranjos.
Vários critérios terão influenciado o compositor na sua escolha de trechos, sen- do alguns mais óbvios do que outros. A cavatina “Per amar abbiamo il core”, de La donna di genio volubile, por exemplo, foi a ária mais popular de todas as do compositor, existin- do em numerosas cópias manuscritas, para além de duas edições impressas (Paris: Florido Timeoni, 1797, e Paris: De Momigny, no Journal des troubadours, s.d.). Em muitos outros casos também, são números que gozaram de uma popularidade generalizada, a julgar pe- los manuscritos existentes. Há outros, contudo, onde o contrário é o caso. A este respeito, destacam-se, por exemplo, os excertos de Il trionfo di Clelia e de Ginevra di Scozia, para as quais nenhuma partitura completa foi conservada. Vários dos arranjos para as SS. AA. RR. constituem a única fonte conhecida dos números em questão.
Manuscritos autógrafos de duas outras óperas são igualmente de grande importân- cia. Na chamada Relação Autógrafa, uma lista que o compositor elaborou das suas obras, em
1809 e atualizada até 1816 (PORTO-ALEGRE, 1859)12, não se encontra qualquer referência
às óperas L’amor industrioso e Adriano in Siria. No entanto, a canzonetta “Con la dolcezza” (P-Ln F.C.R. 168//66), identificada como pertencente à primeira, existe igualmente em várias bibliotecas italianas, com atribuição sempre a Marcos Portugal, mas sem referência à ópera que integra. Por outro lado, o texto do dueto “Non ti moro allato”, com indicação de que per- tence à segunda (P-Ln C. N. 198 (2)), encontra-se na edição do libreto referente à produção de Adriano in Siria, de Marcos Portugal, em Como, em 1813, onde se encontra no Final do segundo ato13. O arranjo do compositor constitui a única fonte do único trecho desta ópera que nos chegou.
Já se referiu a preferência para as óperas lisboetasentre os excertos selecionados. Destacam-se duas óperas em particular: L’oro non compra amore (8 trechos, para além da abertura) e Artaserse (5 trechos). Certamente não será coincidência o facto de estas óperas terem sido representadas no Rio de Janeiro, no Teatro Régio, a 17 de dezembro (os anos da rainha D. Maria I) respetivamente de 1811 e 1812, em princípio, sob a direção do próprio compositor. Até que ponto o Príncipe e as Infantas possam ter pedido para cantar nas aulas de canto números “favoritos” destas óperas, que terão presenciado, e até que ponto o Mestre os propôs é impossível saber.
Por último, respeitante à escolha, é de salientar a ausência quase completa de nú- meros compostos para o célebre soprano Angelica Catalani, apesar de esta ter sido a prima donna em sete das vinte óperas representadas nesta seleção. O motivo é óbvio – que as vozes dos alunos reais não tinham nem a extensão, nem a agilidade da desta. No entanto, como ve-
remos de seguida, foi esta uma das poucas concessões técnicas que o Mestre lhes admitiu.

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À exceção dos dois tercetos, “Pace, pace, cara Ghitta”, de La donna di genio vo- lubile (P-Ln F.C.R. 168//100), e “Oh come in questi amplessi”, de La Zaira (P-Ln F.C.R.
168//81, com cópia E-Mp), dedicados a “SS. AA. RR.” e do dueto “Per pietà, deh non las- carmi calma”, de Ginevra di Scozia (P-Ln F.C.R. 168//76), que carece de qualquer indica- ção, todos os trechos de ópera têm dedicatória a uma ou duas de SS. AA. RR.. No caso dos duetos, verifica-se que o par é sempre D. Maria Isabel com D. Pedro de Alcântara (antes da mudança de voz) ou D. Maria Francisca de Assis com D. Isabel Maria. Enquanto as de- dicatórias a D. Maria Isabel e a D. Isabel Maria são frequentes (respetivamente 19 e 21), a D. Pedro de Alcântara e a D. Maria Francisca de Assis são relativamente escassas (respe- tivamente 5 e 7). Pode-se deduzir, todavia, que as vozes destes últimos eram as mais agu- das (sobem ambos até sib4, de passagem no caso de D. Pedro, mais sustentado no caso de D. Maria Francisca), que a voz de D. Isabel Maria era a mais grave (de sib2 até ré4) e a de D. Maria Isabel entre estes extremos: em termos latos, dois sopranos, um contralto e um meio-soprano, embora seja importante salientar, no caso das Infantas, que eram bastante novas ainda, com vozes ainda por desenvolver, especialmente no que diz respeito às no- tas mais agudas e graves da extensão. A falta de datação dos manuscritos dificulta uma avaliação de como estas vozes poderiam ter evoluído ao longo dos anos que duraram as aulas de canto.
Quanto a D. Pedro de Alcântara, a mudança de voz permite conjeturar mais. Todas as suas dedicatórias dizem respeito ao período antes da mudança, incluindo o único solo, a extensa e difícil ária “Per quel paterno amplesso”, de Artaserse (BR-PETm), da qual só se pode concluir queterá possuído uma voz de soprano poderosa e resistente. Por vários mo- tivos, contudo, pode-se propor adicionalmenteque, após a mudança, lhe estava destinado o papel de Ariodante, escrito na clave de fá, no referido dueto sem dedicatória, “Per pietà, deh non lascarmi calma”, de Ginevra di Scozia. A combinação de um âmbito relativamen- te reduzido, de baixo, de sib1 até ré3, com uma nota alternativa proposta, uma oitava mais grave, a única vez que sobe para mib3 (compasso 115), em conjunto com uma linha me- lódica com algumas dificuldades técnicas, apontam uma voz ainda por se desenvolver de um dono tecnicamente experiente. Vale a pena comparar, por exemplo, o dueto “Vo’ can- tar d’una certa contessa”, de Le donne cambiate (P-Ln F.C.R. 168//74), dedicada a D. Maria Francisca de Assis, em que há várias passagens para o papel de Contessa Ernesta com al- ternativas uma oitava mais grave (incluindo dó5 quatro vezes, com alternativa de dó4), ou seja, para a voz da aluna há alternativas mais fáceis propostas. Pelo contrário, o papel do sapateiro Biagio, escrito na clave de fá, é bem diferente do de Ariodante, com uma tessitu- ra bastante mais aguda (com um número elevado de mib3 e vários fá3 de passagem) e sem alternativas. O cantor foi nitidamente outro, profissional (sem necessidade de alternativas), muito plausivelmente o notável baixo-barítono João dos Reis Pereira (1782-1853), convoca- do para prestar este serviço.
Os arranjos dos trechos de ópera variam no grau de modificação introduzido em comparação com as suas versões originais, sendo algumas das alterações criteriosas, mas outras mais “caprichosas”. Obviamente o acompanhamento, sendo uma redução de uma textura orquestral toma bastantes liberdades na sua acomodação para duas mãos num for- tepiano. As linhas vocais, contudo, permanecem, em grande parte, fieis às originais.
Uma ária que exemplifica características comuns a muitos outros excertos é a de Biagio, “Mie care donnette”, de Le donne cambiate, adaptada para a voz de D. Maria Isabel (BR-PETm). Em primeiro lugar, a linha vocal é transposta uma oitava para cima, da clave de fá (papel masculino) para a clave de sol (intérprete feminina). Em segundo lugar, a orna- mentação está mais explícita: no arranjo, por um lado, passagens com notas repetidas (for-

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te-fraca)foram alteradas para que a primeira esteja escrita um grau mais agudo (compassos
48-52, 88-92 e 128-132), ou seja, cantada como se fosse uma appoggiatura, uma prática que um cantor profissional experiente da época seguiria automaticamente, por convenção do contexto, mesmo na ausência de qualquer appoggiatura escrita, mas, ao mesmo tempo,uma prática da qual uma amadora, como a infanta D. Maria Isabel, não teria o mesmo conheci- mento; por outro lado, mas pelo mesmo motivo, a ornamentação na fermata do compasso 46 (repetida exatamente nas passagens idênticas dos cc. 86 e 126) está escrita por extenso em vez de ser deixada para a intervenção do intérprete (Exemplos 1a e 1b). Neste mesmo exem- plo, depara-se igualmente numa pequena alteração rítmica e mudança de altura da última nota nos compassos 44 e 45.

Exemplo n.1: “Mie care donnette”, de Le donne cambiate, compassos 44 a 47: a) (esquerdo) na versão original da ópera14, e b) (direito) no arranjo do compositor para a infanta D. Maria Isabel.

Mais caprichosas, no sentido de que envolvem um grau de recomposição e não uma mera adaptação, são precisamente certas passagens em que a figuração melódica ou rítmi- ca está alterada ou em que uma frase foi prolongada ou encurtada. Nos compassos 44 e 45, a modificação foi muito ligeira, mas, por exemplo, nos compassos 56 e 57, a intervenção foi mais profunda: uma simples escala descendente em colcheias, na versão original, foi subs- tituída porgrupos descendentes de três semicolcheias em tercinas, com o texto alterado de “la ra la | la ra la” para “tingoli mingoli tanghele | tungheli tingheli tangheli” – sílabas com- pletamente sem sentido mas mais “engraçadas” (Exemplos 2a e 2b).

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Exemplo n.2: “Mie care donnette”, de Le donne cambiate, compassos 53 a 59: a) (em cima) na versão original da ópera, e b) (em baixo) no arranjo do compositor para a infanta D. Maria Isabel.

Os últimos compassos da ária foram igualmente reformulados. A figura descen- dente final é cantada uma sexta mais aguda e repetida duas vezes (uma prolongação des- ta frase), enquanto a conclusão orquestral foi encurtada de cinco para dois compassos (Exemplos 3a e 3b), uma modificação que, no seu todo, pode ser vista como tendo um efei- to mais enfático e conclusivo.


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Exemplo n.3: “Mie care donnette”, de Le donne cambiate, compasso 157 até ao fim: a) (em cima) na versão original da ópera, e b) (em baixo) no arranjo do compositor para a Infanta D. Maria Isabel.

Os tipos demodificação que se verificam nesta ária encontram-se frequentemente nos restantes trechos. A transposição é relativamente frequente, às vezes resultando em pe- quenas alterações melódicas, mas sempre de modo a conservar a linha dentro do âmbito da voz que a cantará e não com vista afacilitar. O Mestre acrescenta ornamentação sempre que considera útil para os alunos. Alterações pontuais em determinadas passagens, porque o compositor assim entendeu por motivos artísticos, também são comuns, sendo que podem ser vistas habitualmente como melhoramentos em termos composicionais (por serem mais incisivos e terem mais impacto). No entanto, uma importante conclusão a que se chega, e de uma forma absolutamente constante, é que as alterações que Marcos Portugal introduziu nas linhas vocais para SS. AA. RR. não resultaram de maneira alguma na sua simplifica- ção, o que implica uma exigência técnica muito elevada, visto que as óperas foram compos- tas originalmente para profissionais de alto nível.
Deve-se referir aqui, de passagem, um pequeno corpo de seis trechos de ópera, até agora não mencionados, com dedicatórias a uma ou outra das três Infantas, mas com acom- panhamento orquestral em vez de redução para fortepiano. São os seguintes:

Tabela n.2: Trechos de ópera com dedicatórias às Infantas, mas com acompanhamento orquestral (por ordem cronológica de composição).

Ópera

Ária

Dedicatória

La madre virtuosa

“Consolatevi carino”

[D. Maria Isabel]

Alceste

“Grazie vi rendo, oh Dio”

D. Isabel Maria

La Zaira

“Povero cor ti sento”

D. Maria Isabel

L’oro non compra amore

Recitativo e ária: “Se al mio duol non vi movete”

D. Isabel Maria

Ginevra di Scozia

Recitativo e ária: “Per pietà, deh, non lasciarmi”

D. Maria Isabel

Ginevra di Scozia

“La fiera gelosia”

D. Maria Francisca de Assis

Com este acompanhamento, não poderiam ter sido usados nas aulas habituais, mas para ensaios e concertos privados no Paço da Quinta da Boa Vista. Os três destinados à in- fanta D. Maria Isabel são cópias, enquanto os restantes (no Fundo do Conde de Redondo, da BNP) são autógrafos. No entanto, o trecho de La madre virtuosa (BR-PETm), em dois dos seus compassos, quase no fim, tem um acrescento, aparentemente autógrafo do composi- tor, baixando ligeiramente a altura da nota mais aguda e modificando a ornamentação para a voz da intérprete. (Embora careça de dedicatória explícita, a sua inclusão no álbum de Petrópolis, um volume inteiramente de peças dedicadas a esta Infanta, não deixa dúvidas acerca da sua destinatária.)
No caso da ária de La Zaira, no mesmo álbum, difere ligeiramente do exemplar da partitura completa de 180415, em que está transposta de Sib maior para Lá maior, não tem oboés (sendo os solos para este instrumento redistribuídos para flauta ou para clarinete) e
não possui uma parte explícita para os fagotes (que terão dobrado o baixo), com a perda sub-

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sequente dos solos originalmente destinados a este instrumento. Infelizmente, não existe a partitura da versão original desta ópera, de 1802, para comparação direta, mas visto que o Teatro de S. Carlos possuía oboés sistematicamente por esta altura, não nos parece concebí- vel o compositor não ter incluídoeste instrumento se os usou em 1804; enquanto no Brasil, na segunda década de oitocentos, observa-se um declínio generalizado no uso de oboés a fa- vor de clarinetes. Sendo assim, a versãono álbum de Petrópolis terá sido adaptada, em prin- cípio pelo compositor, no Rio de Janeiro. Mais uma vez os trechos de Ginevra di Scozia as- sumem uma importância especial, na ausência de uma partitura completa para esta ópera, sobretudo por fornecerem uma versão com orquestra, tratando-se, no caso de “La fiera gelo- sia”, de uma partitura autógrafa (P-Ln F.C.R. 168//56).
Passando para as oito ariette e canzonette, diferem fundamentalmente dos tre- chos de ópera no sentido emque são novas composições escritas especialmente para as Infantas: duas para D. Maria Isabel (álbum de Petrópolis), três para D. Maria Francisca de Assis (álbum BNP Fundo Conservatório Nacional) etrês para D. Isabel Maria (BNP Fundo Conde de Redondo (F.C.R. 168//22)), sendo todas as oito partituras autógrafas.Caraterizam- se pela sua simplicidade musical, o que as torna especialmente agradáveis em termos au- ditivos, mas não necessariamente fáceis do ponto de vista técnico.

Tabela n.3: Ariette e canzonette com indicação da dedicatória e autor do texto

Título

Dedicatória

Autor do texto

Arietta (“Assai m’inganasti”)

Maria Isabel

Desconhecido

Palinodia a Nice /Canzonetta a voce sola

(“Placa gli sdegni tuoi”)

Maria Isabel

Metastasio, Canzonetta 4,estrofes 1, 7 e 8

“Ma tornerai fra poco”

Isabel Maria

Metastasio, Cantata IX

“La sorte mia tiranna”

Isabel Maria

Metastasio, Siroeato I cena 13

“Già viede primavera”

Isabel Maria

Metastasio, Canzonetta 1 Primavera, estrofe 1

“È la fede degli amanti”

M.ª Francisca de Assis

Metastasio, Demetrio ato II cena 3, (tb. Da Ponte, Così)

“Sol puo dir che sia contento”

M.ª Francisca de Assis

Metastasio, Attilio Regolo, ato I cena 6

La partenza (“Ecco quel fiero istante”)

M.ª Francisca de Assis

Metastasio, Canzonetta 5

É de realçar que o autor dos textos é sempre Pietro Metastasio, com exceção da arietta dedicada a D. Maria Isabel (BR-PETm), cujo autor não foi possível identificar. Em alguns casos provêm de árias de libretos de ópera, ou, num caso, de uma cantata; noutros são originalmente mesmo textos de canzonette. Até que ponto o uso de textos metastasia- nos reflete uma predileção por este autor ou simplesmente uma necessidade pragmática – que os textos se dispunham – é de difícil verificação. Observa-se, porém, que o compositor se encontrou obrigado a ter recurso a uma panóplia de textos deste autor na elaboração do libreto da serenata Augurio di felicità (PACHECO, 2012a).
Chama-se a atenção igualmente para a indicação na folha de rosto do conjunto de três canzonette dedicadas a D. Isabel Maria: “Cançonettas / Com o acompanhamt.º de forte piano, / Que p.ª cantar, e acompanhar-se a si mesma / A Serenissima Snr.ª Infanta D. Izabel Maria / compôz Marcos Portugal”. A Infanta cantava e tocava ao mesmo tempo, sendo esta a única fonte com esta indicação. Voltaremos, no entanto, à questão de quem acompanha-
va na conclusão do presente texto.

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Figura n.2: Folha de rosto das três canzonette dedicadas à infanta D. Isabel Maria.

Existem duas aberturas em reduções para uso de Suas Altezas Reais: a de La mas- chera fortunata (P-Ln F. C. R. 168//17) e a de L’oro non compra amore (P-Ln F. C. R. 168//18). A primeira é uma cópia destinada originalmente à infanta D. Maria Isabel, mas com o se- gundo nome riscado e substituído por“Francisca”, o que pode implicar que depois de ter sido usada pela primeira, passou para uso da irmã mais nova. Embora, na página de rosto, conste a indicação “[...] La maschera fortunata; reprezentada em Veneza / no Carneval [sic] de 1798 [...]”, o texto musical difere significativamente do da única partitura da ópera com- pleta, conservada no Real Conservatorio Superior de Madrid (E-Mc A. R. A. Leg. 196 (197)). Para além da mudança de tonalidade, de Mib maior para Ré, a introdução, na partitura com- pleta, é de apenas cinco compassos de acordes, que servem meramente para estabelecer a tonalidade, enquanto a versão para fortepiano possui uma secção substancialde 31 compas- sos, com material temático próprio. Na secção principal, apesar de se basearem nos mesmos temas e de manterem a mesma estrutura de fundo, as ideias musicais são substancialmente retrabalhadas, de uma forma paralela com o que se verifica em muitas outras peças revistas por Marcos Portugal. O mais provável, portanto, apesar da referência a Veneza e ao ano de
1798, é que a redução seja a de uma revisão do compositor, elaborada para a produção re- alizada, conforme a Relação Autógrafa, em Lisboa, no Teatro da Rua dos Condes, em 1802, com o título A máscara.
A abertura de L’oro non compra amore, foi arranjada para uso da infanta D. MariaIsabel e é um manuscrito autógrafo. Em termos do conteúdo, as alterações compara- das com a versão orquestral são mínimas (ligeiras variantes melódicas ou rítmicas), em- bora com uma prolongação de três compassos nos acordes da conclusão. De algum inte- resse, especialmente visto que o manuscrito é autógrafo, são algumas dedilhações que o compositor acrescentou para a mão direita. De destacar é o uso do terceiro dedo repeti-

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damente, no segundo compasso da secção principal, de modo a garantir uma articulação de staccato.

Figura n.3: Início da secção principal da abertura de L’oro non compra amore (manuscrito autógrafo, P-Ln F. C. R. 168//18, f. 2r), com dedilhações na mão direita.

A inserção de dedilhação encontra-se igualmente num dos motivos para fortepia- no (em sol maior).Estas dezpeças, todas elas conservadas em manuscritos autógrafos inte- grados no Fundo Conde de Redondo da BNP (P-Ln F. C. R. 168//42 a 51), constituem o cor- po mais extenso e variado da produção de música para tecla do compositor16. Simples na sua estrutura (com uma forma binária, ternária ou rondò) e encantadores em termos me- lódicos, os motivos não deixam, por isso, de apresentar desafios técnicos, desde escalas, saltos, passagens em oitavas ou terceiras paralelas, até dificuldades em termos de articu- lação, sendo que estas características estão sempre bem integradas na textura musical, nunca se tornando meros exercícios. À exceção de um para D. Maria Francisca e dois para D. Isabel Maria, todos foram compostos para uso da infanta D. Maria Isabel. Embora não se encontre explicação óbvia, é de reparar que os três motivos em Sib maior e dois dos três em Fá maior foram compostos para D. Maria Isabel. Será que gostava especialmente de to- car nestas tonalidades com bemóis – ou as evitava e assim foi obrigada a tocar nelas por um Mestre zeloso?
É de reparar igualmente a ausência de motivos ou outras composições para forte- piano dedicados a D. Pedro de Alcântara, embora se suponha que, como compositor, e aluno de composição de Marcos Portugal, o Príncipe Real tenha tido alguma competência em ins- trumentos de tecla17. De facto, o que se sabe, para além de noções bastante genéricas, sobre a formação musical do futuro Imperador do Brasil é bastante escasso.

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No caso das infantas D. Maria Isabel e Maria Francisca de Assis, as aulas de canto e de piano terão terminado, quando estas partiram do Rio de Janeiro para se casarem, num duplo casamento, respetivamente com Ferdinando VII de Espanha (1784-1833) e o seu irmão D. Carlos de Bourbon (1788-1855), celebrado em pessoa, em Madrid, a 29 de setembro de
1816. A partir desta data, parece provável que apenas a infanta D. Isabel Maria tenha con- tinuado a receber aulas de música de forma regular, sendo por isso que chegou a recolher as partituras preparadas originalmente para os irmãos mais velhos. Se não antes, com o re- gresso da Família Real zortuguesa a Lisboa, em 1821, terão terminado estas aulas também.
No dia 1 de janeiro de 1825, Marcos Portugal foi confirmado como Mestre de Música da Família Imperial, assumindo a formação musical das filhas do Imperador D. Pedro: D. Maria da Glória e D. Januária Maria, respetivamente com 5 e 2 anos de idade. Desconhecemos até que ponto, nos cinco anos de vida que ainda lhe restavam, continuou a dar aulas de música ou se o título foi mais honorífico do que real, permitindo a continuação do seu direito de receber o ordenado correspondente. Em termos de produção pedagógica nestes anos, nada nos chegou.
Para concluir, voltamos à questão de quem acompanhava ao fortepiano quando o Príncipe ou uma ou outra Infanta cantava. Verificámos o caso da infanta D. Isabel se acom- panhar. Sabe-se que D. Maria Isabel e D. Maria Francisco de Assis também tocavam, e par- te-se do pressuposto de que D. Pedro de Alcântara também possuía esta capacidade. No en- tanto, excetuando o caso de D. Isabel Maria no conjunto de três canzonette, não há qualquer evidência explícita de que se acompanhavam a si próprios ou que os irmãos se acompanha- vam entre si. Fora da abertura de La maschera fortunata e o motivo em Sol maior, nenhu- ma peça ou solfejo tem dedilhação – cuja presença teria constituído um sinal inequívoco do seu uso por uma ou outra de Suas Altezas Reais. Sendo assim, o candidato mais natural para a realização do acompanhamento é o próprio compositor, Marcos Portugal. O Mestre de Música é, afinal, nada mais do que um criado, e não é esse o dever de qualquer criado: acompanhar o seu amo?

Nota do autor

As fotografias neste artigo são reproduzidas por autorização da Biblioteca Nacional de Portugal. O autor agradece esta cedência.

Notas

1 Este artigo foi elaborado em conformidade com o Acordo Ortográfico de 1990, na sua variante de português europeu.

2 Chegou a Itália no outono de 1792. A sua primeira ópera encenada foi Le confusioni della somiglianza, o sia i due

gobbi, na temporada de Primavera de 1793, no Teatro degl’ Intrepidi della Pallacorda, de Florença, com sucesso imediato.

3 Livro Terceiro dos Assentamentos das Merces [...], P-Lant, Arquivo da Casa Real, ACRL.º 933, f. 156 v, apud

ANTÓNIO JORGE MARQUES (2012a, p. 34; 2012b, p. 105).

4 [5.º Livro que serve de Registo de Cartas, pertencentes á Thezouraria do Particular.], P-Lant ACR, Lº. 2979, res- petivamente f. 57rv e 64r, apud MARQUES (2012a, p. 45; 2012b, p. 93-94)

5 Livro 4º da Corte (1811-12), BR-Ran Série Interior – Gabinete do Ministro, IJJ1186, f. 19v, apud MARQUES

(2012a, p. 47; 2012b, p. 96-97).

6 Continuou a compor para a Capela Real eassumiu a inspeção, escolha e direção das obras levadas à cena nos teatros públicos na presença do Príncipe Regente. No entanto, nos teatros públicos do Rio de Janeiro, à seme- lhança da situação na Capela Real, nunca ocupou um cargo formal. As ocasiões em que atuou como dirigente,

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quer no Teatro Régio, quer no Teatro de São João(a partir de 1813), terão sido escassas, e as duas obras dramáticas que compôs no Rio de Janeiro (a farça A saloia enamorada, em 1812, e a serenata Augurio di felicità, em 1817) destinavam-se ao Paço Real da Quinta da Boa Vista.

7 Manuscrito, P-Ln F. C. N 270.

8 Independentemente da sua dedicatória original, grande parte destas obras tem a assinatura de D. Isabel Maria, que as terá adquirido subsequentemente.

9 Agradecemos à Prof. Dra. Rosana Lanzelotte por nos ter chamado a atenção para esta fonte.

10 P-Ln F.C.R. 168//29, 30, 78, 81 e 100, todos manuscritos autógrafos. Na maioria dos casos, existe igualmente uma cópia no álbum da infanta D. Maria Isabel, em Madrid.

11 Para detalhes sobre os conteúdos dos álbuns, assim como das peças avulsas, em termos das suas dedicatórias,

veja-se OLIVEIRA (2012).

12 Reproduzido em MARQUES (2012c, p. 59-80) e disponível em: <http://www.caravelas.com.pt/textos_breves_ Porto_Alegre_1859.pdf>. Data do acesso: 08/03/2012.

13 Para uma discussão detalhada destas duas óperas e a questão da atribuição, ver CRANMER (2012b) In: CRAN-

MER (2012a).

14 Aqui e nos outros exemplos a), redução para piano do presente autor, preparada para a produção da versão por- tuguesa desta ópera, As damas trocadas, no âmbito da Lisboa, Capital Europeia da Cultura, 1994.

15 Lisboa, Biblioteca da Ajuda, P-La 48-II-31 a 32.

16 Para além dos motivos e duas aberturas, foram encontradas apenas uma sonata para órgão (numa coleção parti- cular), um conjunto de três peças soltas (sonata, minuete e variações, na Library of Congress, em Washington) e dois minuetes, um a quatro mãos e outro a duas (na BNP). Veja-se CRANMER (2012c).

17 Sobre D. Pedro como músico, ver o verbete de Alberto Pacheco, no Dicionário Biográfico Caravelas (PACHECO,

2012b).

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David Cranmer - Docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. É douto- rado da Universidade de Londres, sendo atualmente investigador responsável pelo projeto Marcos Portugal, assim como pelo Caravelas – Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira. É autor de vários livros e numero- sos artigos, assim como editor das coleções de ensaios: Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo/and their time (2010) e Marcos Portugal: uma reavaliação (2012).


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