Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013
ZAMPRONHA, E. Transferência: o que é, e o que oferece à música?
Revista Música Hodie, Goiânia, V.13 - n.1, 2013, p. 8-18.
Transference: what does it mean, and what does it offer to music?
O ano é 2009. O concerto está quase começando, e justamente quando abro o pro- grama as luzes são apagadas. Consegui reter uma única frase: o solista tocava em um vio- loncelo Francesco Lazzaretti de Vicenza, construído em 1893.
Esta frase transformou o modo como escutei aquele concerto. O fato de saber que o violoncelo era do final do século XIX, o fato de saber que era um instrumento único, de autor, italiano da região de Vêneto (Itália), construído artesanalmente com materiais e téc- nicas da época, tudo isso me levou a escutar o som que era projetado naquela sala de forma muito especial. As qualidades, valores e conceitos que atribuí àquele violoncelo definitiva- mente foram transferidos à minha experiência musical naquele concerto.
Transferência é isto. É o fenômeno no qual qualidades, valores e conceitos atri- buídos a algo passam a ser atribuídos a outra coisa de modo a alterar sua significação. O caso do violoncelo Francesco Lazzaretti que mencionei é um exemplo. Outros exemplos são o cenário, gestos e, como não podia deixar de ser, a própria música (quando alguma qualidade, valor ou conceito atribuído a uma música, estilo ou gênero musical é transfe- rido a outra).
Com o objetivo de compreender e exemplificar melhor o fenômeno da transferên- cia, primeiro aprofundo o conceito aqui brevemente mencionado. Em seguida ilustro como a transferência pode ocorrer dentro do universo musical. Finalmente discuto três caracte- rísticas chave para que uma transferência ocorra, que pode servir de guia para sua utiliza- ção como ferramenta tanto composicional quanto interpretativa para a introdução de signi- ficações em uma obra.
Revista Música Hodie, Goiânia - V.13, 362p., n.1, 2013 Recebido em: 10/01/2013 - Aprovado em: 09/03/2013
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Transferência é uma ferramenta semiótica presente em campos tão diversos como as artes, as ciências, a publicidade, a psicanálise e muitos mais. Neste texto evito o uso da terminologia específica da semiótica, preferindo sempre que possível a nomenclatura mais freqüente em música. No entanto, adianto que a semiótica de CHARLES S. PEIRCE (1974) é a matriz teórica que dá sustentação à construção do presente texto1.
A relação que existe entre o nome de um artista muito conhecido (Picasso, por exemplo) e um quadro concreto em uma exposição transfere a certo público um universo de valores, conceitos e qualidades do artista ao quadro. Algo equivalente pode ocorrer quan- do relacionamos o título com a própria obra, como em com Ceci n’est pas une pipe (“Isto não é um cachimbo”), de René Magritte. Nesta obra o titulo está pintado no quadro, debai- xo da imagem de um cachimbo (ver uma análise interessantíssima deste quadro realizada por FOUCAULT, 1989). Na publicidade, personalidades públicas anunciam produtos, trans- ferindo àquilo que é anunciado valores reconhecidos nestas personalidades por certo gru- po de consumidores. Nas ciências, paralelos entre eventos conhecidos do público e uma nova teoria que se quer explicar permitem transferir conceitos destes eventos conhecidos à nova teoria para que seja compreendida e possivelmente aceita, servindo como ferramenta argumentativa (ver especialmente casos de argumentos pseudo-científicos explicados em PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996).
Nos casos mencionados há sempre dois objetos (ou eventos, contextos, músicas, agentes, imagens). Além disto, é necessário que estes dois objetos estejam relacionados de alguma forma para que qualidades, valores e conceitos associados a um objeto sejam trans- feridas ao outro. No caso da pintura de Picasso mencionada antes, o nome e o quadro devem estar relacionados seja porque o quadro está assinado, seja porque o catálogo da exposição indica que o quatro é de Picasso, seja através de qualquer outro recurso. Portanto, é possível que esta relação seja tanto uma conexão de fato (o quadro assinado) quanto uma conexão atribuída conceitualmente ou uma conexão sugerida: em uma publicidade o famoso ator “x” recomenda um certa marca de café porque segura ou bebe o café, porque afirma isto expres- samente, ou porque aparece ao lado o produto. De forma equivalente, o cientista utiliza o evento conhecido “y” como modelo para aplicá-lo diretamente sobre o evento científico que quer explicar e validar, ou utiliza o evento conhecido como um exemplo, ou o utiliza como analogia para justificar sua argumentação. Esta relação (conexão) entre os dois objetos, tem a natureza de um índice: algo aponta a algo, como a assinatura de Picasso indica que o qua- tro é deste artista específico (o catálogo da exposição procede de forma equivalente, assim como os demais casos mencionados aqui). Vejamos alguns exemplos concretos na música.
Ao escutar uma música, a transferência é possível quando um fragmento ou aspec- to daquilo que escutamos traz para dentro da obra alguma qualidade, valor ou conceito que geralmente pertence a um contexto musical distinto. Como é necessária a presença de dois objetos para que a transferência ocorra, é a própria música que cria (ou sugere) os dois obje- tos. Canope, de Claude Debussy, é um dos prelúdios mais sofisticados do seu segundo livro de prelúdios, com uma notável densidade construtiva. Canope começa com um conjunto de acordes que se movem em paralelo e que transferem à obra uma sonoridade modal mui- to especial.
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Exemplo n.1: Inicio do prelúdio Canope, de Claude Debussy (1913). (Fragmento simplificado).
Uma observação atenta revela que somente os cinco primeiros acordes pertencem ao modo dórico. A qualidade modal destes compassos resulta mais do movimento de sen- sível por tom de dó a ré, e menos uma estrutura escalar modal fixa. De fato, o sexto acorde já introduz o si bemol, e mais adiante aparece o mi bemol, logo o lá bemol, o sol bemol e o ré bemol. Ou seja, Debussy introduz bemóis seguindo a conhecida progressão de quintas, e logo conclui novamente em ré. O modo dórico ao início (sete notas naturais) mais cinco alterações em bemóis que aparecem em seguida não é outra coisa que a utilização do total cromático, mas de forma a valorizar sensíveis modais a ré. Evidentemente, a cadencia final de sol bemol a ré menor não é modal, e o que produz a sensação de conclusão é o retorno a ré, polarizado durante todo este segmento, somado ao movimento melódico final, uma va- riação do movimento de abertura da obra.
Este é um ré que não é tipicamente modal, mas que transfere uma forte sonoridade modal à obra. Na realidade este prelúdio é tonal, e está na tonalidade de dó maior2, de tal forma que o ré do início da obra poderia ser estruturalmente interpretado como o segundo grau de dó, elaborado de forma modal, ou como o próprio primeiro grau de dó, por compar- tir com o ré dórico sugerido no primeiro compasso todas suas sete notas. O primeiro movi- mento melódico que aparece na mão esquerda, e que realiza claramente o movimento sol-
-dó afirmando o dó, é revelador desta segunda interpretação. Neste momento, temos duas possibilidades interpretativas que se sobrepõem, uma estrutural (tonal) e outra que resulta da transferência (modal), e neste caso a transferência modal predomina. Aí temos dois obje- tos, como uma música dentro da outra, uma transferindo qualidades, valores e conceitos à outra, transformando nossa escuta. A particularidade deste segmento de Debussy é que os dois objetos aparecem de forma simultânea, não em sucessão como em outras obras.
Construções sofisticadas como esta existem na música de diferentes maneiras, e podem ser encontradas em obras tão diversas como no excelente Quarteto de Cordas Nº3 de Alfred Schnittke o qual, embora apresente fragmentos concretos extraídos de Orlando de Lasso, Beethoven e um fragmento atonal (que inscreve na obra o nome de Dmitri Shostakovitch com as letras D-S-C-H, isto é, ré, mi bemol, dó, si), todo o foco está nas ca- racterísticas gerais destes fragmentos, e o que se reconhece de fato é o contraste entre mo- dal-tonal-atonal mais que qualquer uma destas obras em concreto. Como já demonstrei em outro trabalho (ZAMPRONHA, 2009), o que está relacionado ao modal se transforma em repouso, o que está relacionado ao tonal se transforma em direcionalidade, e o que está re- lacionado ao atonal se transforma em tensão (clímax), e cada um destes segmentos transfere à obra qualidades sonoras de suas épocas, tornando a escuta da obra mais densa e com uma clara perspectiva histórica.
Em S’io esca vivo, que compus para três pianos, é a sonoridade dos madrigais que
é transferida para a obra através de cadências típicas da música ficta. Em Composição para
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piano a quatro mãos e dois comentários, no primeiro comentário transfiro à obra qualidades sonoras das sonatas de Domenico Scarlatti e do modalismo inglês do início do século XX. A obra de Gilberto Mendes apresenta diversos recursos deste tipo principalmente em suas obras pós-1980, como em Recado a Schumann, ou Il Neige... De Nouveau! (para uma visão ampla e biográfica de Gilberto Mendes, ver MENDES, 1994).
Mas a transferência pode ocorrer em âmbitos mais profundos e estruturais da com- posição. Partiels é uma das obras mais emblemáticas da música espectral de Gérard Grisey. Para a composição desta obra Grisey analisa o espectro de uma nota mi grave de um trom- bone e, a partir da estrutura que identifica em seus parciais (seus harmônicos), constrói uma estrutura de notas que aplica à composição (GRISEY, 1991; ver também FICHET, 1996, p. 312-328). A transferência, neste caso, está fundada na hipótese de que a estrutura encon- trada na nota mi do trombone pode ser transferida à composição musical. Não se trata de levar o ouvinte a escutar a qualidade sonora da nota mi tocada pelo trombone novamente na obra. Trata-se, sim, de transferir a coerência estrutural que Grisey identifica na nota to- cada pelo trombone à composição musical. É esta coerência estrutural que é transferida, não o som do trombone. Entre o indeterminismo e o serialismo que havia no início da década de 1970, esta é uma solução realmente inteligente que resolve um problema estético de base para a época. Em obras espectrais posteriores, surge uma preocupação maior em realizar transferências no nível da superfície musical, com resultados eficientes. A obra L’esprit des dunes, de Tristan Murail, é um exemplo no qual referências à música do norte de áfrica en- riquecem substancialmente os materiais sonoros escutados na superfície do discurso musi- cal. Outros tipos de transferência estrutural podem ocorrer, como é o caso da utilização de arquétipos formais da música do passado para estruturar uma composição, ou arquétipos provenientes de contextos como a natureza, a geometria fractal, a percepção e as ciências cognitivas entre outros (ver CORADINI e ZAMPRONHA, 2009).
A presença de dois objetos ou eventos é claramente reconhecível quando o objeto que transfere qualidades, valores e conceitos à música é um instrumento musical, já que a conexão e a indicialidade entre o instrumento e o resultado sonoro é imediata. A Suite for Toy Piano (“Suíte para Piano de Brinquedo”) de John Cage, é um caso exemplar. Podemos visualizar uma sala de concerto com um pequeno piano de brinquedo ao centro, e um pia- nista com seu grande tamanho tocando as notas diatônicas e simples que abrem esta obra. Além disso, é perfeitamente reconhecível que se trata de um piano de brinquedo, e a sim- ples introdução deste instrumento em um teatro dedicado a concertos tradicionais pode produzir um espetacular descondicionamento de nossa escuta (entre outras reações pos- síveis). Há um claro contraste com relação ao timbre, afinação, tamanho, mas certamente o foco no contraste conceitual é praticamente insuperável. Todo um universo de valores e conceitos é colocado sobre o palco simplesmente pelo fato deste ser um piano de brinquedo. É o próprio instrumento, em sua relação com este contexto específico, que transfere outros conceitos e referências ao modo como escutamos esta obra, modificando o foco de nossa experiência musical. Trata-se de uma forma de ready-made musical através de um instru- mento. E se o ouvinte não rejeita de imediato a idéia de escutar o que quer que seja em um piano de brinquedo em um teatro convencional, possivelmente estará mais receptivo a uma linguagem musical também distinta da convencional (e se a linguagem musical for conven- cional, a ironia não deixará de estar presente).
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O Concerto Grosso nº1, de Alfred Schnittke, utiliza um cravo, um piano prepara- do e dois violinos solistas para transferir à música um conjunto de características perten- centes ao Barroco. O piano preparado, neste caso, também está associado ao Barroco já que sua preparação se aproxima muito a uma caixa de música com uma sonoridade antiga, rea- lizando uma transferência que é mais tímbrica que instrumental (e que será comentada no próximo tópico). A transferência instrumental, aqui, ocorre com os demais instrumentos, intensificado pelo próprio titulo da obra (“Concerto Grosso”). Os instrumentos enfatizam o contraste entre sonoridades barrocas e contemporâneas que utiliza Schnittke, transferindo para o palco e para a escuta musical todo um universo relacionado com uma música do pas- sado e que vai além de um contraste entre sonoridades. Chega a ser um contraste de pers- pectivas históricas sumamente distintas, de conceitos em certos momentos incompatíveis, e de uma ambigüidade quanto às funções que os instrumentos adquirem nesta obra.
É também possível utilizar instrumentos para transferir à música contextos cultu- rais distintos ao da música clássica ocidental (especialmente quando seus timbres, afina- ções e modo de execução não estão completamente ocidentalizados). No século XX esta ex- pansão ocorreu e ocorre claramente na percussão, e é acompanhada de forma cada vez mais intensa por outros grupos instrumentais, indício de um trans-culturalismo cada vez mais presente em diferentes obras do repertório atual. Podemos encontrar flautas Bororo tocan- do juntamente com flautas ocidentais na obra Trilogia Bororo, de Roberto Victório, na qual o contraste cultural está relacionado de certa forma à tensão dramática da obra. Podemos en- contrar também a fusão de instrumentos chineses com instrumentos da orquestra clássica mais instrumentos de corda pinçada, como o violão, o bandolim e a harpa em certas forma- ções instrumentais do Nieuw Ensemble.
Também é possível o uso de instrumentos que não são considerados instrumen- tos musicais pela tradição clássica ocidental, como o uso balões para criar uma textura so- nora muito especial que se funde com flautas clássicas tradicionais em Eoliolinda de Jorge Antunes, ou o uso de rádios como instrumentos musicais em Radio Music, de John Cage. É discutível se o uso de um piano de brinquedo em Suite for Toy Piano de Cage, entra ou não nesta categoria. De qualquer forma, em todos estes casos há uma clara transferência de va- lores, qualidades e conceitos associadas a estes instrumentos às obras, influindo de forma substancial e produtiva na forma como são escutadas.
Os timbres em si mesmos podem ser ricas fontes de transferências, especialmente quando associados a certas formas de execução instrumental. Juntos, timbres e formas de interpretação podem transferir à música um espetacular universo de qualidades, valores e conceitos capazes de tornar a escuta de uma obra extremamente rica, podendo ser uma no- tável fonte de recursos para a composição e interpretação. A obra eletroacústica Mortuos Plango, Vivos Voco, de Jonatan Harvey, está fundada em dois sons fundamentais: o som do sino tenor da catedral de Winchester e a voz de um menino. O som do sino e a voz do me- nino transferem à obra uma clara qualidade e litúrgica. O texto falado/cantado pelo menino está em latim, um extrato do texto gravado no sino tenor, reforça esta transferência litúr- gica. É importante observar que a transferência não resulta somente do timbre, mas de um modo específico de utilização destes timbres: a voz do menino é sem vibrato (voz branca); o texto em latim é pronunciado diversas vezes sobre uma única nota (canto monotônico), e no início da obra o som do sino é multiplicado de forma a produzir a imagem de um denso
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número de sinos tocando simultaneamente, como em uma catedral, estabelecendo de ime- diato a relação de transferência com o contexto litúrgico. É este modo de tocar ou cantar que reforça a transferência, mais que o timbre isoladamente.
Outras transferências estão diretamente relacionadas com a forma como um músi- co interpreta uma obra. A interpretação do Concerto para Clarinete de Aaron Copland por Benny Gooodman é um exemplo claro. O timbre empregado por Benny Goodman, o seu an- damento mais lento, o foco característico que dá às notas e aspectos rítmicos de sua inter- pretação estão claramente relacionados com o contexto do jazz. A mesma obra tocada por um intérprete atual, dentro de uma perspectiva clássica, pode chegar a um resultado sig- nificativamente distinto ao adotar um andamento mais rápido, valorizando a interpretação virtuosística, com uma nota mais focada, com menos swing e um fraseado com pontos cul- minantes distintos. A obra possivelmente perderia parte significativa de sua referência ao jazz e poderia, talvez, tornar-se mais stravinskiana. Desta forma haveria uma modificação substancial dos contextos transferidos à obra e, como conseqüência, do modo como os dife- rentes segmentos musicais poderiam ser entendidos pelos ouvintes.
O universo da música historicamente informada certamente poderia ser analisado como um tipo específico de transferência tímbrico-performática. Não se trata somente de utilizar instrumentos de época para interpretar obras do passado. Mesmo quando os instru- mentos utilizados são antigos, parece muito difícil (e ingênuo) sustentar a tese de que esta- mos escutando as obras tal como soariam no passado. Em nenhum caso escutamos o pas- sado como tal. O que escutamos são recriações fundamentadas no passado que atendem a certas exigências e certas codificações presentes na escuta de um ouvinte atual. Este passa- do não é escutado, mas sim transferido. Escutamos o passado dentro de uma interpretação moderna. Estas interpretações realizam um grande número de transferências simultâneas, muito bem coordenadas, dando uma forte densidade histórica àquilo que escutamos (ver uma excelente ilustração de como descobertas históricas são capazes de modificar nossa visão sobre a música do passado e, conseqüentemente sua interpretação em BIAGGI, 2004).
Recursos deste tipo podem ser amplamente utilizados não somente na interpreta- ção mas também na composição visando transferir a obras contemporâneas qualidades e conceitos de certos repertórios do passado. Em Lamenti emprego uma voz feminina para que, com um modo específico de cantar, e em meio a diversos sons eletroacústicos, seja possível transferir à composição o universo madrigalesco de Monteverdi (primeira prática). Listening Beyond é outra obra eletroacústica na qual vozes cantam um fragmento da Divina Comédia de Dante sobre um único acorde (canto monotônico), realizando um canto intros- pectivo que contrasta suavemente com a manifestação eufórica de uma multidão, criando uma tensão dramática entre os contextos transferidos. Em Figuração Interpretada, para pia- no, em certo momento da obra é o universo de uma Sarabanda como as de J. S. Bach que é transferido, dando à obra uma densidade histórica e estilística que em poucas notas produz uma qualidade sonora muito específica na escuta.
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Exemplo n.2: Fragmento de Figuração Interpretada, de Edson Zampronha (manuscrito do autor), compassos
228 a 232.
A Figura 1 esquematiza os elementos mínimos presentes em uma transferência. Nesta figura, “B” é a música que se escuta; “A” é o outro objeto que possui certas qualida- des, valores e conceitos diferentes de “B”, e a flecha representa a transferência na qual cer- tas qualidades, valores e conceitos de “A” passam a “B”. Com base neste esquema, realizo a seguir três observações chave sobre transferências.
Figura n.1: Esquema simplificado dos elementos presentes em uma transferência.
Para que a transferência seja efetiva, é necessário que as propriedades pertencen- tes a “A” sejam gerais. Caso as propriedades de “A” sejam particulares, dificilmente poderão desprender-se de “A” para serem transferidas a “B”. O que é transferido são qualidades, va- lores e conceitos gerais que podem ter a forma, por exemplo, de uma abstração, de uma re- gra ou de um esquema geral3.
No caso das flautas Bororo presentes na música de Roberto Victorio, a forma de to- car e o som destas flautas são claramente diferentes das flautas transversais tradicionais. No entanto, isso não é suficiente para identificar as flautas como flautas Bororo. Outros ele- mentos devem intervir para auxiliar esta identificação como, por exemplo, uma nota de pro- grama. No entanto, ainda que as flautas Bororo tenham uma sonoridade muito especial, o que possivelmente conta é a idéia geral com relação às culturas indígenas que estas flautas representam. Possivelmente este universo geral é que é transferido à obra. Algo equivalente ocorre com um modo de tocar associado ao Barroco. Barroco é uma propriedade geral, que desconsidera diversos tipos de Barroco, diferentes fases e estilos. São as propriedades gerais
que interessam à transferência.
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É necessário que o ouvinte conheça “A” de forma genérica (talvez o conhecimento de “A” seja somente genérico na maioria dos casos) para que suas propriedades sejam trans- feridas a “B”. Se um ouvinte desconhece completamente “A”, a transferência não ocorre. No entanto, é muito importante ter em conta que “A” deve ser mais conhecido que “B”. Esta con- dição parece ser certa na maioria dos casos estudados. A abertura da Sonata Opus 31 n.2 de L. Van Beethoven é um exemplo. Como já analisei em outra ocasião (Zampronha, 2006):
Os arpejos em primeira inversão no início desta obra são uma fórmula de introdução. E a forma como aparecem, em especial como arpejos e na primeira inversão, remete a introduções presentes em certos recitativos barrocos. As articulações específicas presentes nas linhas melódicas que seguem estes arpejos também têm associação com articulações barrocas, já que o modo como estão escritas leva à leitura destas articulações de modo similar às notes inégales, embora não se realizem alterações rítmicas nos valores das notas. A re-exposição desta sonata confirma definitivamente a referência que Beethoven realiza a recitativos barrocos: uma linha melódica que po- deria perfeitamente ser a linha de um recitativo aparece literalmente logo após cada um dos arpejos. A referência, agora, é completa. (p. 48)
Exemplo n.3: Compassos 1 a 6 da Sonata Opus 31 N°2, “A Tempestade”, de Ludwig van Beethoven (s.d.).
Se o ouvinte desconhece as características do Barroco que Beethoven introduz em sua obra (características pouco conhecidas para um ouvinte atual), este desconhecimento impedirá a ocorrência da transferência, e a discussão sobre este segmento poderá limitar-se a uma construção harmônica centrada no fato do primeiro acorde ser uma dominante em primeira inversão, ou em interessantes questões formais, mas sem que seja detonada qual- quer possível relação com o Barroco. Este é um sintoma de que, quando “A” é menos co- nhecido que “B”, “B” absorve “A”. No entanto, um conhecimento destas referências poderia conduzir o debate a outras direções pelas transferências que produz (ver um exemplo em ZAMPRONHA, 2006), propiciando uma interpretação também distinta da obra, capaz de restaurar e resgatar os tons vivos da espetacular construção musical desta sonata.
Em casos nos quais “B” é mais conhecido ou mais familiar que “A”, a transferência pode inverter-se, confirmando que sempre ocorre do evento mais familiar ao menos fami- liar. O uso de uma música clássica em uma publicidade pode estabelecer uma associação tão forte e habitual entre produto e música que, se um ouvinte habituado a esta associação escuta a música clássica original em um concerto, pode chegar a pensar que um compositor do século XVIII ou XIX está citando a música de uma publicidade do século XXI. E mes- mo quando o ouvinte é consciente de que a obra que escuta no concerto é a música original usada pela publicidade, possivelmente não se livrará da transferência, podendo haver certa interferência da publicidade na escuta da obra.
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O piano de brinquedo na obra de John Cage, quanto colocado em um teatro, realiza o diálogo com um piano de cauda com base em uma similaridade entre os dois instrumen- tos. O instrumento esperado e o instrumento que de fato se encontra no cenário são simi- lares já que ambos, efetivamente, são pianos. Não importa a cor, a marca ou o número de teclas que cada piano possui. A similaridade associa os dois pianos (o de cauda e o de brin- quedo) e se torna o fundamento da transferência. Com base neste fundamento, a substitui- ção entre o instrumento esperado e o outro que é o piano de brinquedo produz a referência (indicialidade) de um ao outro. Ou seja, a presença do piano de brinquedo no palco remete ao piano de cauda (ausente), dando início às transferências já mencionadas.
No caso do prelúdio Canope, de Debussy, é a relação de causa e efeito que é o fun- damento: identificamos sensíveis modais neste prelúdio, e se sensíveis modais são produ- zidas por músicas modais, somos levados a escutar este segmento como modal. Em outras palavras, a similaridade (as sensíveis modais de Canope são similares às modais) associa- da à relação de causalidade (músicas modais produzem sensíveis modais, ainda que isto nem sempre seja assim) nos convida a escutar as sensíveis modais como marcas de música modal. Desta forma, outros elementos composicionais não modais podem ser introduzidos (desde que não aniquilem esta relação de causalidade) sem que a escuta deixe de conectar aquilo que escuta como uma sonoridade modal, ampliando o espectro de elaboração com- posicional. Algo equivalente ocorre entre o contexto litúrgico e os sinos e a voz branca do menino na obra Mortuos Plango, Vivos Voco de Harvey, mencionada antes. Estas sonorida- des em si mesmas não são litúrgicas. É a relação de causalidade entre a liturgia e uma cer- ta forma de tocar sinos ou de cantar um texto (que é similar tanto na obra quanto em cer- ta liturgia, e portanto uma relação de similaridade também está envolvida) que nos leva a transferir o universo litúrgico à obra. Não os sons em si mesmos que fazem isto. É possível também que o fundamento seja uma regra, procedimento padrão ou lei, como um arquéti- po de forma sonata aplicada a uma obra que não é efetivamente uma sonata, ou a utilização da estrutura do espectro de uma nota de trombone na obra Partiels de Gérard Grisey para estruturar a relação de notas dentro da composição. Embora estas relações não sejam escu- tadas em primeiro plano (e possivelmente não sejam conscientes), podem ser sentidas pelos ouvintes sob a forma de algo que é inteligível ao transferirem ou ao se associarem a mode- los de escuta aprendidos e desenvolvidos na prática de escuta musical.
Neste texto defini transferência como um recurso no qual qualidades, valores ou conceitos atribuídos a algo passam a ser atribuídos a outra coisa, alterando assim sua signi- ficação. O grande potencial das transferências pode ser observado através de exemplos de transferência na música considerando casos relacionados com os instrumentos musicais, com a interpretação (transferências tímbrico-performáticas) e composição (realizadas pela própria linguagem musical). Em seguida foram discutidas três características especiais das transferências, observáveis nos exemplos mencionados, e que são:
1) que as propriedades transferidas devem ser gerais;
2) que o objeto ou evento musical que transfere algo à música deve ser mais conhe- cido e familiar que a música que se escuta, e
3) que a transferência sempre ocorre com base em um fundamento.
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A título de conclusão, é possível afirmar que reconhecer a presença de transferên- cias na música é admitir abertamente que uma obra musical é mais que um conjunto de objetos sonoros que se relacionam entre si, ou “formas sonoras em movimento” nas pala- vras de Hanslick5 (2011, p. 41), palavras que reverberaram intensamente em diversos au- tores do século XX. É também admitir que uma obra transcende sua estrutura interna e nem por isso cai em um subjetivismo descontrolado, e que uma obra é mais precisamente um lugar (ou um não-lugar) que toma forma a partir do cruzamento de experiências pro- venientes de outros contextos, transformando ou mesmo questionando a pertinência de observar-se a música como um objeto que pode ser extraído do contexto em que se inse- re6. A análise da música como objeto separado de seu contexto e de sua prática parece ter sentido apenas como delimitação analítica, e possivelmente sirva apenas a certo reper- tório que buscava justamente isto: uma autonomia da música com relação ao contexto e sua prática. A transferência, ao contrário, é uma ferramenta composicional, interpretativa e também analítica que salta para fora da partitura, enlaçando o projeto composicional com uma prática de fazer e escutar música, trabalhando diretamente com a manipulação de sentidos musicais que apresenta um enorme potencial criativo em diversas facetas do fazer musical.
1 Sobre o uso da semiótica de Peirce, as referências que considero mais oportunas, por sua solidez, são o próprio PEIRCE (1974), além de NÖTH (1990), SANTAELLA (1995), MERRELL (1998). Ver TARASTI (1994) e também ZAMPRONHA (2001) para uma explanação da semiótica aplicada à música.
2 Esta afirmação requer uma explicação complexa, já que este dó no final da música inclui um si bemol (que está
na armadura de clave). Isto resulta de uma obra construída em dois estratos hierárquicos diferentes, um que é tonal e profundo, e outro que está na superfície do discurso e que modaliza a tonalidade. Uma explicação deta- lhada deste procedimento requer uma análise que transcende as dimensões deste texto, e deverá ser realizada de forma exclusiva em um texto futuro.
3 Referem-se, na semiótica de Peirce, a signos cujo interpretante pertence à terceiridade (ver MERRELL, 1998).
4 Este tópico está profundamente relacionado com a divisão triádica da semiótica de PEIRCE (1974, de 2.227-
2.249). Aqui, o que denomino fundamento é literalmente o fundamento do signo, ou ground, e as formas deste fundamento estão assentadas nas estruturas triádicas do signo e sua relação com seus objetos.
5 Ver também FUBINI (2004, p. 37-44), que oferece uma perspectiva muito original deste aparente objetivismo
musical ao propor sua leitura dentro da oposição entre natureza e história.
6 Ver este mesmo debate em um contexto equivalente, que é o da construção do sentido musical. Em ZAMPRO- NHA (2004) mostro o papel determinante do ouvinte neste processo, já que é o ouvinte quem estabelece as cone- xões para dar sentido àquilo que escuta.
BEETHOVEN, Ludwig van. Sonata Opus 2 Nº 2. Sonatas for the piano. New York: Schrirmer, s.d..
BIAGGI, Emerson De. O gesto musical e a performance histórica. In: Sekeff, Maria de Lourdes e Zampronha, Edson (Org.). Arte e Cultura III – estudos transdisciplinares. São Paulo: Annablume, 2004, p. 13-23.
CORADINI, Leandro Pedrotti; ZAMPRONHA, Edson. Um mapa das tendências de compo- sição pós-1980 que utilizam recursos tecnológicos. Música em Perspectiva, v.2, n.2, p. 64-77, outubro 2009.
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